Hobbes e o reino das trevas : política e religião no leviatã
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Data
2022Orientador
Nível acadêmico
Doutorado
Tipo
Assunto
Resumo
A ideia de que o frontispício do Leviatã oferece um resumo visual do conteúdo do trabalho é generalizada. Entretanto, a análise do frontispício muitas vezes subutiliza o texto ou deixa certos elementos iconográficos de lado. Nas discussões sobre o emblema do 'Dilema' dos escolásticos, por exemplo, a imagem é geralmente reduzida a uma representação de 'lógica' ou 'escolástica', deixando de lado a intrincada inter-relação entre os objetos presentes na imagem e sua conexão com o conteúdo do livro. ...
A ideia de que o frontispício do Leviatã oferece um resumo visual do conteúdo do trabalho é generalizada. Entretanto, a análise do frontispício muitas vezes subutiliza o texto ou deixa certos elementos iconográficos de lado. Nas discussões sobre o emblema do 'Dilema' dos escolásticos, por exemplo, a imagem é geralmente reduzida a uma representação de 'lógica' ou 'escolástica', deixando de lado a intrincada inter-relação entre os objetos presentes na imagem e sua conexão com o conteúdo do livro. Este artigo argumenta que esta imagem ajuda a entender a crítica de Hobbes às doutrinas escolásticas e seus efeitos políticos no Leviatã. Para Hobbes, estes conceitos supostamente puramente filosóficos da lógica (tridente do 'Silogismo') ou metafísica (bidente 'Real/Intencional') escondem uma parte central do pensamento escolástico: uma concepção política 'sediciosa' a qual alega que o Papa tem um direito indireto ao poder temporal em assuntos relativos às questões espirituais (bidentes 'Espiritual/Temporal' e 'Direto/Indireto'). O modelo escolástico fez o povo ignorante acreditar que o Papa teria pelo menos tanta autoridade quanto o Soberano. Quando confrontados com a escolha entre obedecer ou ao Papa ou ao Soberano Civil, os súditos se encontrariam em um perigoso 'Dilema'. Hobbes, em todas as edições latinas de suas obras, emprega uma concepção dupla de poder, potentia (poder não-jurídico) e potestas (poder jurídico). Embora o conceito de potestas não tenha sofrido mudanças significativas, a dimensão potentia do poder foi refinada nas obras de Hobbes. No Leviatã, Hobbes emprega uma concepção relacional de potentia que inclui a reputação como uma dimensão social do poder (Lev 10,5). Este posterior desenvolvimento da dimensão potentia do poder é fundamental para explicar a antropologia da religião de Hobbes, que engloba tanto a gênese quanto a destruição de grupos religiosos. Este desenvolvimento em sua análise crítica da religião também é relevante para descrever como Hobbes veio a retratar associações religiosas independentes como entidades políticas perigosas. Sob esta nova perspectiva, ou seja, associações religiosas atuando como nódulos de potentia, Hobbes reforça seu argumento a favor de uma regulamentação rigorosa pelo poder soberano sobre estas associações. Na edição latina do Leviatã, ao tratar da possibilidade ou não de fazer juramentos no estado de natureza, Hobbes parece contradizer-se. No capítulo 12, ele afirma que não é possível fazer um juramento fora do estado civil. Enquanto no capítulo 14, Hobbes afirma que a única maneira de reforçar a aplicação de pactos fora do estado civil é através de juramentos. Esta aparente posição contraditória não recebeu sequer uma nota de rodapé nas traduções mais célebres da edição latina do Leviatã (Tricaud, Curley e Malcolm). Este artigo argumenta que esta posição paradoxal pode ser explicada pela mudança de ênfase com a qual Hobbes descreve a religião. Após as críticas recebidas pela versão inglesa do Leviatã, Hobbes passa a enfatizar uma versão restrita de sua definição normativa de religião (como o conteúdo e as práticas definidas pelo soberano civil). Se os juramentos dependem da religião (EL 15.16; DCi 2.20; Lev 14.31), e a religião só pode ser instaurada após o estabelecimento da soberania, então os juramentos (em um sentido restrito) só podem existir no estado civil. Este artigo argumenta ainda que a posição de Hobbes poderia ser emendada se tomarmos o "voto" (DCi 2.13) como uma forma de proto juramento, possível no estado de natureza. Hobbes rejeita as substâncias incorpóreas em seu trabalho (EL II.5-6; Lev 34.18, 34.24, 44.15-16, 44.34; EW6, p. 236). Entretanto, a análise da invisibilidade dos corpos e movimentos só se desenvolve plenamente no Leviatã. A inclusão de uma extensa discussão a respeito da influência da religião é, eu defendo, uma das fontes para uma discussão mais ampla a respeito das "coisas invisíveis". No Leviatã, Hobbes retrata a dificuldade dos indivíduos ignorantes em tentar designar as causas das coisas invisíveis (como corpos ou movimentos), confundindo-as com a intervenção de algum agente incorpóreo, invisível (Lev 12,6-7). Para Hobbes, esta é uma das causas do domínio do clero sobre o povo ignorante (Lev 2,8). Destacar a análise da invisibilidade no Leviatã é crucial para explicar como Hobbes aplica conceitos da filosofia natural para combater certas doutrinas escolásticas predominantes. Hobbes estabelece, além da dicotomia entre corpos imateriais e invisíveis, uma análise das "coisas invisíveis" que visa avançar argumentos mecanicistas que poderiam explicar fenômenos naturais pelo menos parcialmente, como um substituto para as teorias vigentes. Em última análise, este breve excurso em filosofia natural visa combater as doutrinas errôneas utilizadas para justificar o poder do Papa e da Igreja. Até agora, a literatura existente se concentrou quase exclusivamente na parte negativa da proposta de Hobbes de que as doutrinas a favor de substâncias incorpóreas dão apoio à reivindicação de poder da Igreja. Sua proposta positiva de substituir substâncias imateriais por corpos invisíveis, pelo contrário, não foi totalmente explorada. Hobbes argumentará que o universo é composto de inumeráveis corpos invisíveis. No entanto, o único corpo invisível com uma agência é Deus. Ao negar a existência de substâncias imateriais e substituí-la por corpos invisíveis, a filosofia natural de Hobbes evita o abuso clerical e a usurpação do poder eclesiástico. ...
Abstract
The idea that the Leviathan frontispiece offers a visual summary of the contents of the work is widespread. However, the analysis of the frontispiece often under-explores Leviathan's text or leaves certain iconographic elements aside. In discussions of the Scholastics ‘Dilemma’ emblem, for instance, the image is commonly reduced to a representation of ‘logic’ or ‘scholasticism’, leaving aside the intricate interrelationship between the objects present in the image and their connection with the ...
The idea that the Leviathan frontispiece offers a visual summary of the contents of the work is widespread. However, the analysis of the frontispiece often under-explores Leviathan's text or leaves certain iconographic elements aside. In discussions of the Scholastics ‘Dilemma’ emblem, for instance, the image is commonly reduced to a representation of ‘logic’ or ‘scholasticism’, leaving aside the intricate interrelationship between the objects present in the image and their connection with the content of the book. This paper argues that this image helps understanding Hobbes’ critique of Scholastic doctrines and their political effects in Leviathan. For Hobbes, these supposedly pure philosophical concepts either in logic (trident of the ‘Syllogism’) or metaphysics (‘Real/Intentional’ bident) hide a central part of Scholastic thought: a ‘seditious’ political conception claiming that the Pope has an indirect right to temporal power in affairs concerning spiritual matters theory (‘Spiritual/Temporal’ and ‘Direct/Indirect’ bidents). The Scholastic model made the common people believe that the Pope would have at least as much authority as the Sovereign. When faced with the choice between obeying either the Pope or their Civil Sovereign the subjects would find themselves in a dangerous ‘Dilemma’. Thomas Hobbes; religion; politics; power; potentia; potestas. ABSTRACT: Hobbes, throughout the Latin editions of his works, employs a two-fold conception of power, potentia (non-juridical power) and potestas (juridical power). Although the concept of potestas did not suffer significant changes, the potentia dimension of power was refined throughout Hobbes’ works. In Leviathan, Hobbes employs a relational conception of potentia that includes reputation as a social and relational dimension of power (Lev 10.5). This late development of the potentia dimension of power is fundamental to explaining Hobbes’ anthropology of religion, which encompasses both the genesis and destruction of religious groups. This development in his critical analysis of religion is also relevant to describe how Hobbes came to portray independent religious associations as dangerous political entities. Under this new perspective, i.e., religious associations acting as nodes of potentia, Hobbes strengthens his argument in favor of strict regulation by the sovereign power over these associations. In the Latin edition of Leviathan, when dealing with the possibility or not of swearing oaths in the state of nature, Hobbes appears to contradict 10 himself. In chapter 12, he states that it is not possible to swear an oath outside of the civil state. While in chapter 14, Hobbes states that the only way to strengthen the enforcement of covenants outside of the civil state is by oaths. This apparent contradiction position has not even received a footnote in the most celebrated translations of the Latin edition of Leviathan (Tricaud, Curley, and Malcolm). This paper argues that this paradoxical position can be explained away by the change in emphasis with which Hobbes describes religion. After the criticism received by the English version of Leviathan, Hobbes shifts to emphasizing a narrow version of his normative definition of religion (as the contents and practices defined by the civil sovereign). If oaths depend on religion (EL 15.16; DCi 2.20; Lev 14.31), and religion can only be instated after the establishment of sovereignty, then oaths (in a narrow sense) can only exist in the civil state. This paper further argues that Hobbes' position could be amended if we take the "vow" (DCi 2.13) as a form of proto-oath, possible in the state of nature. Hobbes rejects incorporeal substances across his work (EL II.5-6; Lev 34.18, 34.24, 44.15-16, 44.34; EW6, p. 236). However, the analysis of the invisibility of bodies and motions only becomes fully developed in Leviathan. The inclusion of an extensive discussion concerning the influence of religion is, I argue, one of the sources for the broader discussion concerning “invisible things”. In Leviathan, Hobbes portrays the difficulty of ignorant individuals in trying to designate the causes of invisible things (such as bodies or motions), mistaking them for the intervention of some incorporeal, invisible agent (Lev 12.6-7). For Hobbes, this is one of the causes of the clergy’s domination over the ignorant people (Lev 2.8). Highlighting the analysis of invisibility in Leviathan is crucial to explain how Hobbes applies concepts from natural philosophy to counter certain prevailing Scholastic doctrines. Hobbes establishes, in addition to the dichotomy between immaterial and invisible bodies, an analysis of “invisible things” that aims to advance mechanistic arguments which could explain natural phenomena at least partially, as a substitute to current theories. Ultimately this short excursus into natural philosophy aims to counter wrong doctrines used to justify the power of the Pope and the Church. So far, existing literature focused almost exclusively on the negative part of Hobbes’ claim that doctrines in favor of incorporeal substances give support to the Church’s claim to power. His positive proposition to replace immaterial substances with invisible bodies, on the contrary, was not fully explored. Hobbes will argue that the universe is composed of innumerable invisible bodies. Nevertheless, the only invisible body with an agency is God. By denying the existence of immaterial substances, and replacing it with invisible bodies, Hobbes’ natural philosophy forestalls clerical abuse and usurpation of ecclesiastical power. ...
Instituição
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS.
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