Elevação não harmônica no português de Porto Alegre : caracterização acústica e análise fonológica

Abstract

Este trabalho apresenta uma análise da elevação não harmônica das vogais médias pretônicas, fenômeno em que as vogais médias /e/ e /o/ são realizadas como [i] e [u], respectivamente (s[e]nhora ~ s[i]nhora / b[o]neca ~ b[u]neca). Estudos anteriores sobre o processo na variedade do PB de Porto Alegre realizam análises variacionistas (Klunck, 2007; Cruz, 2010; Cunha, 2022) e constatam baixas proporções de aplicação, mais altas para /o/ do que para /e/. A partir da literatura sobre o fenômeno, os objetivos deste estudo são determinar uma representação fonológica das vogais que explique a realização do processo e examinar acusticamente as vogais elevadas. O trabalho tem duas etapas: análise acústica e análise fonológica. As hipóteses para a primeira etapa foram que (i) a elevação não harmônica deriva de uma mudança no F1 das vogais médias pretônicas e que (ii) as vogais que sofrem o processo de elevação têm valores de F1 intermediários entre vogais altas e vogais médias. Para testá-las, a análise acústica contou com quatro participantes, os quais gravaram 40 frases-veículo cada um. Foram controladas as medidas de F1, F2 e duração das vogais /i, e, o, u/ tônicas e pretônicas e das vogais pretônicas /e, o/ elevadas, totalizando dez grupos de vogais. Com as medidas coletadas, efetuaram-se análises de regressão linear na plataforma R para as séries de vogais anteriores e posteriores separadamente. Apenas F1 apresentou efeitos significativos, resultado consistente com a expectativa de a elevação em sílabas pretônicas envolver mudança de altura da vogal e não a centralização. Em relação à segunda hipótese, as vogais elevadas apresentaram comportamento similar ao das pretônicas /i/ e /u/, não valores intermediários de F1. Ainda, a vogal /e/ elevada apresentou duração menor que das vogais /i/ e /e/ pretônicas, enquanto /o/ elevado apresentou duração próxima à pretônica /u/. Para a análise fonológica, as hipóteses levantadas foram que (iii) a elevação não harmônica seria licenciada por mudança no traço [alto] e que (iv) sua implementação deriva de regras no nível fonético-fonológico por conta de segmentos dorsais e labiais em contexto precedente (cf. Bisol, 1981; Battisti, 1993; Schwindt, 1995; Klunck, 2007; Cruz, 2010; Battisti, Perozzo, Cunha, 2020; Cunha, 2022). Para testar a hipótese (iii), buscou-se a representação fonológica dos segmentos, conforme Purnell e Raimy (2015) e Purnell, Raimy e Salmons (2019). Nesse modelo, parte-se de uma abordagem de contraste e aperfeiçoamento de Hall (2011), em que a fonologia (abstrata) é composta por representações de traços subespecificados. Já a variação (situada na fonética) é resultado da implementação e aperfeiçoamento dos contrastes, que podem ser influenciados por diferentes fatores. Uma das representações elaboradas neste trabalho levou em conta a proposta de Lee (2008) e os achados de Madruga (2017), o qual justifica a variação na pauta pretônica por uma mudança no traço [ATR]. Portanto, testou-se uma representação em que os processos na pauta pretônica decorreriam de uma mudança de [ATR], entretanto ela se mostrou inviabilizada. A segunda representação testada levou em conta os achados de Bisol (1981) e Schwindt (1995), os quais justificam o processo de harmonia vocálica por uma mudança no traço [alto]. Então retomamos a representação elaborada por Battisti (2024). A autora verificou que as vogais tônicas recebem especificação na seguinte ordem: Raiz da língua > Impulso da língua > Altura da língua > Altura da língua. Na primeira dimensão, a vogal /a/ recebe especificação pelo traço [RTR]. Na segunda dimensão, as vogais anteriores recebem especificação pelo gesto [anterior]. Na terceira dimensão, as vogais /i, u/ recebem especificação pelo gesto [alto]. Por fim, na dimensão Altura da língua, as vogais médias-altas recebem especificação pelo gesto [alto] e as médias-baixas ficam subespecificadas. Na pauta pretônica, as vogais médias são neutralizadas e a última iteração deixa de ocorrer. A representação alcançada por Battisti (2024) permite tecer explicações sobre os fenômenos que ocorrem na pauta pretônica, especialmente a variação entre as médias-altas e médias-baixas. As vogais altas e médias-altas mantêm especificações diferentes, portanto elevação não harmônica deve ser explicada por regras no nível fonético-fonológico. Em relação a /e/, não se verificou contexto precedente favorecedor, assim, a proposta de Battisti, Perozzo e Cunha (2020) é que a elevação da vogal anterior ocorra por dispersão no espaço vocálico. Já a vogal /o/ tem os segmentos labial e dorsal como favorecedores em contexto precedente. No nível fonético-fonológico, os segmentos labiais e velares ficam inertes, bem como as vogais médias, o que pode motivar a aplicação de processos de aprimoramento de contraste, em favor das vogais altas. Sobre as maiores proporções de elevação de /o/, este é o segmento subespecificado no sistema, portanto sofre mais flutuação que outros segmentos. Assim, concluímos que a adoção do modelo de organização interna de Purnell e Raimy (2015) e Purnell, Raimy e Salmons (2019) permite uma análise que relaciona a representação fonológica e variabilidade atestada na pauta pretônica, no que diz respeito à elevação não harmônica.

This study presents an analysis of non-harmonic raising of pretonic mid vowels, a process in which the mid vowels /e/ and /o/ are realized as [i] and [u] in pretonic syllables, respectively (s[e]nhora ~ s[i]nhora ‘lady’/ b[o]neca ~ b[u]neca ‘doll’). Previous studies on the process in the BP variety of Porto Alegre carry out variationist analyses (Klunck, 2007; Cruz, 2010; Cunha, 2022) and find low application proportions, higher for /o/ than for /e/. Based on the literature on the process, the objectives of this study are to determine a phonological representation of vowels that explains the process and to acoustically examine raised vowels. The study has two stages: acoustic analysis and phonological analysis. The hypotheses for the first stage were that (i) non-harmonic raising derives from a change in the F1 of pretonic mid vowels and that (ii) vowels that undergo the raising process have F1 values between high and mid vowels. To test these hypotheses, the acoustic analysis included four participants, each of whom recorded 40 carrier phrases. F1, F2, and duration of the stressed and pretonic vowels /i, e, o, u/ and of the raised pretonic vowels /e, o/ were obtained, totaling ten groups of vowels. Linear regression analyses were performed on these measures using R , and front and back vowels were analyzed separately. Only F1 showed significant effects, a result consistent with the expectation that raising in pretonic syllables involves a change in vowel height and not centralization. Regarding the second hypothesis, the raised vowels presented behavior similar to that of the pretonic vowels /i/ and /u/, with no intermediate F1 values. Furthermore, the raised vowel /e/ displayed a shorter duration than the pretonic vowels /i/ and /e/, while raised /o/ displayed a duration similar to pretonic /u/. For the phonological analysis, the hypotheses raised were that (iii) non-harmonic raising would be licensed by a change in the [high] feature and that (iv) its implementation derives from rules at the phonetic-phonological level driven by dorsal and labial segments in a preceding context (cf. Bisol, 1981; Battisti, 1993; Schwindt, 1995; Klunck, 2007; Cruz, 2010; Battisti, Perozzo, Cunha, 2020; Cunha, 2022). To test hypothesis (iii), we probed the phonological representation of the segments according to Purnell and Raimy (2015), and Purnell, Raimy, and Salmons (2019). This model conforms to the contrast and refinement approach by Hall (2011), in which (abstract) phonology is composed of representations of underspecified features. Variation (located in phonetics) is the result of implementation and enhancement processes, which can be influenced by different factors. One of the representations developed in this work took into account the proposal by Lee (2008) and the findings by Madruga (2017), who propose that the variation of pretonic mid vowels involves a change in the [ATR] feature. Therefore, a representation was tested in which the non-harmonic mid vowel rising in pretonic syllables would result from a change in [ATR], which, however, is shown to be unfeasible. The second representation tested took into account the findings of Bisol (1981) and Schwindt (1995), which propose that the process of vowel harmony involves a change in the [high] feature. Following from this, we reviewed the representation developed by Battisti (2024). The author found that stressed BP vowels receive specification in the following order: Tongue root > Tongue impulse > Tongue height > Tongue height. In the first dimension, the vowel /a/ receives specification by the feature [RTR]. In the second dimension, the front vowels receive specification by the gesture [front]. In the third dimension, the vowels /i, u/ receive specification by the gesture [high]. Finally, in the Tongue height dimension, the high-mid vowels receive specification by the gesture [high] and the low-mid vowels are underspecified. In pretonic position, the mid vowels are neutralized and the last iteration ceases to occur. The representation proposed by Battisti (2024) allows us to explain the vowel processes that occur in pretonic position, especially the variation between high-mid and low-mid vowels. As the high and high-mid vowels maintain different specifications, non-harmonic raising must be explained by rules at the phonetic-phonological level. Regarding /e/, no preceding favorable context was found, thus, the proposal of Battisti, Perozzo and Cunha (2020) is that the raising of the front vowel occurs by dispersion in the vowel space. The raising of vowel /o/, on the other hand, is favored by the labial and dorsal segments in the preceding context. At the phonetic-phonological level, the labial and velar segments remain inert, as well as the mid vowels, which can motivate the application of contrast enhancement processes in favor of high vowels. Regarding the raising of /o/, since /o/ is an underspecified segment in the system, it undergoes more fluctuation than other segments. Thus, we conclude that the adoption of the internal organization model of Purnell and Raimy (2015), and Purnell, Raimy and Salmons (2019), allows for an analysis that connects phonological representation with the variability stemming from non-harmonic raising attested in pretonic syllables.