SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA: EXPLODINDO O DISCURSO PATRIARCAL DA DOMINAÇÃO FEMININA Martha Giudice Narvaz Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia sob orientação da a Prof . Draa. Sílvia Helena Koller Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Psicologia Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento Fevereiro 2005 “Houve um tempo em que não eras uma escrava, lembra-te disso. Caminhavas sozinha, alegre, e banhavas-te com o ventre nu. Dizes que perdeste toda e qualquer lembrança disso, recorda-te... Dizes que não há palavras para descrevê-lo, dizes que isso não existe. Mas lembra-te. Faze um esforço e recorda-te. Ou, se não o conseguires, inventa”. ‘Les Guérillères’ Monique Witting 2 AGRADECIMENTOS Muitas pessoas e instituições fazem parte da história desta pesquisa e, sendo impossível listar a todas aqui, uma vez limitada pelo espaço e por algumas formalidades acadêmicas, gostaria esquecidos (as). Ao Cnpq, pelo apoio e pelo incentivo a esta pesquisa; Ao corpo administrativo e ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento da UFRGS, em especial à secretária Margarete, por sua disponibilidade, e aos professores César Piccinini e William Gomes, pelas discussões metodológicas e epistemológicas que impulsionaram meu interesse pelas abordagens feministas em pesquisa. Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, na pessoa do professor Henrique Caetano Nardi, pela oportunidade de aprendizagem sobre a constituição da subjetividade e sobre os processos de exclusão (ou desfiliação) social; por sua acolhida, disponibilidade e flexibilidade do professor Henrique às minhas problematizações feministas no estudo da obra de Michel Foucault, discussões estas que foram fundamentais ao desenvolvimento deste “estudo nômade”. Às professoras Regina Mutti, do Instituto de Letras da UFGRS e à colega e amiga Blanca Morales, pela descoberta da abordagem discursiva francesa de análise do discurso. Ao professor Jorge Castellá Sarriera e às professoras Marlene Neves Strey e Maria Ângela Yunes, aos quais muito devo pelas ricas, respeitosas e construtivas sugestões e críticas feitas por ocasião da defesa do projeto desta investigação. À equipe do Serviço de Atendimento Familiar e ao Ambulatório de Atendimento à Violência do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas, sobretudo à Elisabeth Wartchow, às colegas, parceiras e amigas Ceres Valle Machado, Carmen Berwanger, Isolde Lindemann e Marialda Scherer, e às mestras e amigas feministas Graziela Werba, Télia Negrão e Maria do Rosário Nunes pelo companheirismo na luta pelos direitos humanos das mulheres e das meninas. Aos cepianos e cepianas e às colegas com quem estabeleci trocas intelectuais e afetivas: à Alessandra Cecconello, à Clarissa De Antoni, à Normanda Araújo, à Maria Cecília Baini, à Juliana Bredemeier; ao colegas e amigos Lucas Neiva, Vicente Borges e Elder Cerqueira, e a nossa incansável secretária Carmem; agradeço, ainda, às graduandas em Psicologia pela UFGRS, Júlia Bongiovani e Lívia Zanchet, que integraram minha quero que soubessem da minha gratidão, e que jamais serão 3 equipe de pesquisa; às grandes amigas Iara Menezes, Denise Barcellos, Heloísa Soares, Adriana Birmann e Luciane dos Anjos, pelo carinho e pelo incentivo à realização desta pesquisa. Às mulheres da minha família: à minha avó Zilá Viana, à minha tia Jussara Giudice, às minhas irmãs Jussinara Narvaz e Indira Narvaz e, sobretudo, à minha mãe Jussarina Narvaz, colega de profissão, pelo apoio e pelo modelo oferecido e compartilhado de mulheres que acreditam nos poderes femininos e que sempre apoiaram meus projetos e que celebram minhas realizações. Ao meu pai, Nilso Narvaz, com quem aprendi que as diferenças político-ideológicas são campo fértil de debate e de crescimento; com quem sempre pude contar de diversas formas, mostrando-se, inclusive, interessado por esta pesquisa e contribuindo com a mesma nas discussões sobre os direitos das mulheres. Obrigada, pai, pois tu sabes o quanto teu incentivo ao saber e tua crença na luta pelos direitos humanos influenciaram esta pesquisa. Ao meu filho Kim que, aos três anos de idade, disse que eu “parecia uma leoa, porque eu lutava pelo que eu queria”, e que hoje, aos treze anos, suporta minhas ausências e minhas indisponibilidades advindas do envolvimento intenso com meus projetos profissionais; pelo incentivo e pelo apoio de um adolescente que soube me fazer rir nas horas mais atribuladas e por me lembrar que todo o tempo dedicado a esta investigação tinha um sentido em minha vida. Do fundo do meu coração de mulher-mãe dividida entre tantos papéis, tantas lutas e tantos ideais, obrigada, meu filho. À minha orientadora Silvia Helena Koller, minha eterna gratidão pela disponibilidade, pelo apoio, pelo estímulo e pelo exemplo de competência, de flexibilidade e de respeito com que legitimou minhas inquietações e minhas “transgressões” à ciência positivista, androcêntrica e impessoal do meio acadêmico. Obrigada, Sílvia, pois tua orientação, teu carinho e tua amizade foram suportes fundamentais à concretização desta pesquisa. À Iara, nome fictício da participante deste estudo, pela coragem em expor as feridas e as cicatrizes de sua história de vida e por auxiliar-me a compreender os meandros da submissão e da resistência das mulheres-mães das vítimas de incesto contra as violências que sofrem. Obrigada, Iara; tuas falas certamente ecoarão para muito além desta investigação e já fazem parte da história da minha vida. A todas as pessoas que resistem aos abusos da sociedade patriarcal, vítimas ou militantes, da interminável luta por “liberar a vida lá onde ela é prisioneira” (Deleuze & Guatarri, 1997, p.23). 4 SUMÁRIO Lista de tabelas e figuras.......................................................................................... 6 Resumo.................................................................................................................... 7 Abstract................................................................................................................... 8 INTRODUÇÃO.......................................................................................................9 CAPÍTULO I. REVISÃO DA LITERATURA...................................................... 13 1.1 As explicações míticas...................................................................................... 13 1.2 Os discursos filosóficos da antiguidade............................................................ 16 1.3 As descobertas antropológicas.......................................................................... 20 1.4 A invenção da família....................................................................................... 23 1.5 Família e modos de produção........................................................................... 28 1.6 As famílias brasileiras....................................................................................... 32 1.7 Família e violência........................................................................................... 36 1.8 Violência e gênero............................................................................................ 41 1.9 A transmissão transgeracional da violência...................................................... 46 1.10 Violência: submissão e resistência.................................................................. 48 CAPÍTULO II. MÉTODO...................................................................................... 56 2.1 Considerações teórico-metodológicas.............................................................. 56 2.1.1 As abordagens feministas.............................................................................. 57 2.1.2 A abordagem discursiva................................................................................ 64 2.1.3 O estudo de caso............................................................................................ 73 2.2 Delineamento.................................................................................................... 74 2.3 Participante....................................................................................................... 76 2.4 Instrumentos e procedimentos.......................................................................... 78 2.5 Questões éticas................................................................................................. 79 2.6 Análise dos dados............................................................................................. 80 CAPÍTULO III. RESULTADOS E DISCUSSÃO................................................. 81 CAPÍTULO IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................157 REFERÊNCIAS......................................................................................................162 ANEXOS ...............................................................................................................187 5 LISTA DE TABELAS E FIGURAS Tabela 1. Demonstrativo da Unidade, Categorias e Subcategorias de Análise dos dados ................................................................................................................81 6 RESUMO O objetivo deste estudo foi o de examinar as diferentes posições ocupadas por uma mulher diante da violência sofrida tanto por ela quanto por suas filhas, ao longo de sua história de vida. A participante foi uma mulher, vítima de diversas formas de violência, cujas filhas foram vítimas de incesto. O delineamento utilizado foi o estudo de caso, baseado em entrevistas. A análise de discurso qualitativa mostrou que a participante ocupou posições alternadas, ora de submissão, ora de resistência no enfrentamento da violência sofrida tanto por ela quanto pelas filhas. Os resultados apontaram que diversos processos contribuíram à posição de submissão. Alguns desses processos referem-se aos valores patriarcais que influenciaram a concepção de família da participante e a concepção de papéis familiares ao longo das várias gerações de sua família. Sua concepção de família revelou um modelo de família nuclear, burguesa, patriarcal e monogâmica. A concepção de papéis familiares da participante apareceu associada a valores patriarcais, que prescrevem papéis de gênero hierárquicos e estereotipados encontrados em famílias violentas e incestuosas. Ainda assim, estes papéis não foram vividos pela participante de forma homogênea. A análise qualitativa encontrou que o suporte social foi a contribuição fundamental ao engendramento das estratégias de resistência da participante e de suas filhas no enfrentamento da violência. Estes resultados indicaram que as mulheres são plurais e heterogêneas e que não são sempre ou apenas vítimas da violência, o que explode o discurso patriarcal da dominação feminina. Uma vez que os dados foram coletados com base em apenas um caso, novas investigações sobre o tema são recomendadas. Palavras-chave: mães de vítimas de incesto; família patriarcal; poder; violência; gênero. 7 ABSTRACT The aim of this study was to explore the different positions occupied by a woman in the presence of violence suffered during her life cycle by her as much as by her daughters. The participant was a woman victim of violence in several ways whose daughters were incest victims. The case study was based on interviews. Qualitative speech analysis showed that participant occupied alternate positions, sometimes submission, other times resistence position to cope with violence suffered by her as much as by her daughters. Results pointed out that several processes helped to submission position. Some of these processes concern to patriarchal values that influenced participant family conception and family roles conception in her family through several generations. Her family conception revealed an idealized nuclear, monogamy, patriarchal and bourgeois model of family. Family roles participant conception revealed being associated to patriarchal values that prescribe stereotyped and hierarchical gender roles found in violent and incestuous families, even had not being experienced by participant in a homogeneous way. Qualitative analysis found that social support was fundamental help to resistance strategies sketched by participant and by her daughters to cope with violence. These results indicated that women are plural and heterogeneous and they are not always or just victims of violence, what means that results found explode patriarchal speech about feminine dominance. Since data were collected upon only one case, new investigations are recommended. Keywords: Mother of incest victims; patriarchal family; power; violence; gender. 8 INTRODUÇÃO Um empreendimento de pesquisa pressupõe o interesse por um tema a ser investigado, interesse que se constrói a partir de nossa história e de nossas vivências. Nossas teorias estão impregnadas de discursos que influenciam o modo como a realidade é percebida (Foucault, 1969, 1997; Guba & Lincoln, 1994) e como as situações são definidas, fundindo-se, assim, nossa teoria com nossa biografia (Fonseca, 2000a, 2000b). Dado que somos construtores ativos de temas e de narrativas que contamos a nós mesmos e a outros ao longo de nossa história, tais temas e narrativas não são individuais, embora singulares, mas coletivas (Andersen, 1991; Harding, 1987; Keller, 1996). A presente investigação propõe-se a problematizar a questão da vitimização das mulheres diante das violências sofridas. Esse tema emergiu de narrativas coletivas que se construíram no cotidiano de minha prática enquanto terapeuta de famílias e de grupos de mulheres e de meninas vítimas de várias formas de violência, inclusive de incesto. Também minha inserção em outros espaços institucionais enquanto militante de Movimentos de Direitos Humanos, de Direitos das Crianças e das Mulheres levou-me a refletir acerca das possibilidades (micro)políticas de intervenção no trabalho com famílias abusivas e com as redes sociais em que estavam inseridas. Ao deparar-me com estas famílias abusivas, em especial com mulheres vítimas de violência doméstica e suas filhas vítimas de incesto, minha escuta ocorria não só em relação às subjetividades vitimadas, mas fundamentalmente à dinâmica social e comunitária em que estavam inscritas. Ao dar voz àquelas mulheres no espaço de confiança e confidencialidade oportunizado pela terapia familiar e pelos grupos terapêuticos (Narvaz, Berwanger, Brusius & Rosa, 2000), desvelaram-se inúmeros segredos de vitimização, tanto passada quanto atual: aquelas mulheres-mães tinham sido vítimas de diversas formas de abuso em sua infância, inclusive sexual, bem como viviam, na atualidade, relacionamentos conjugais abusivos. Tais mulheres relatavam sofrer violência emocional, econômica e física dos atuais parceiros, abusadores sexuais de suas filhas, que, muitas vezes, faziam uso de drogas psicoativas e mostravam-se violentos no contexto familiar (Narvaz, 2002b, 2003). 9 Iniciei, então, minha busca pela compreensão das dinâmicas familiares e sociais dos contextos abusivos, identificando um padrão de transmissão transgeracional da violência (Narvaz, 2002b, 2003) no qual os aspectos de gênero apareciam profundamente implicados (Narvaz, 2002a; Narvaz & Koller, 2004a). As falas daquelas mulheres e meninas denunciavam que suas tentativas de rompimento com as situações de abuso sexual geralmente eram mal acolhidas pelos órgãos de denúncia legal e pelo sistema de saúde aos quais recorriam. As crianças e as mulheres diziam-se desacreditadas ao realizarem seus relatos e, quando o faziam, não contavam com a proteção familiar, comunitária e institucional de que necessitavam. Permaneciam, assim, em situação de vulnerabilidade diante do medo de retaliação do agressor, uma vez denunciado. Por não acreditarem na real possibilidade de rompimento com a condição de assujeitamento e dominação impetrada pela violência, estas mulheres e meninas suportavam, às vezes por muitos anos, situações abusivas. Diante disso, silenciavam, mãe e filha, ambas vítimas de um sistema social opressor e hierárquico que não lhes oferecia suporte para a superação de sua condição de subordinação. A escuta daquelas famílias, em especial das mulheres e meninas, revelou-me, ainda, o despreparo das instituições para a acolhida das denúncias das violações que sofriam. Impregnadas por discursos que postulavam as teses da provocação e da sedução feminina, do silêncio, da conivência e da culpabilidade materna essas instituições, implícita e, por vezes, explicitamente, responsabilizavam as mulheres e as meninas pelos abusos sofridos. Instituições que deveriam ser instrumentos de garantia de direitos, de promoção de saúde e de proteção integral, constituíam-se em dispositivos disciplinares e de re-vitimização (Narvaz, 2004a, 2004b). Neste contexto, sentia-me comprometida com a denúncia da violência e dos processos mantenedores da posição de dominação das mulheres, postura herdada ainda da primeira geração do feminismo (Louro, 1995; Nogueira, 2001). Meu interesse de pesquisa localizavase, inicialmente, na problematização dos discursos sociais e científicos que atribuíam às mulheres, mães das vítimas de incesto, o papel de coniventes e, portanto, de culpadas pelo abuso das filhas. No resgate da genealogia desses discursos de culpabilização e de vitimização feminina, desvelou-se a ideologia patriarcal que os constituíram, ideologia a qual interessa manter as mulheres em uma posição de dominação. Uma vez que as subjetividades são engendradas pelos discursos que as constituem (Butler, 2000, 2003; Foucault, 1995), denunciar a dominação a que têm sido submetidas as mulheres e as meninas em nossa sociedade, embora necessário, pode servir para mantê-las numa posição homogênea de vítimas assujeitadas, anulando suas singularidades e suas competências. Ao (des)construir o 10 discurso homogeneizante de vitimização das mulheres, podem emergir outros discursos e, com eles, novos olhares sobre subjetividades não só assujeitadas (Butler, 2000; 2003; Fonseca, 2000a). Para efetivamente romper com a formação discursiva de vitimização do feminino, na qual também meu discurso encontrava-se capturado, foi necessário, então, resgatar a condição das mulheres enquanto protagonistas de suas histórias (Soihet, 1997; Strey, 2000, 2004). As (des)construções teórico-metodológicas que ocorreram ao longo da presente investigação deslocaram meu objetivo inicial de pesquisa, qual seja, o de problematizar a cumplicidade materna diante do abuso da filha, para um novo objetivo, que foi o de investigar, ao longo da história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto, a submissão e a resistência às violências sofridas. Nesse deslocamento, novas questões de pesquisa emergiram e tomaram corpo na presente investigação, que são: quem são as mães das vítimas do incesto? quais as histórias de vida destas mulheres? que discursos têm sido produzidos sobre as mulheres ao longo da história? quais as possíveis articulações entre estes discursos e a dinâmica da violência contras as mulheres e contra as meninas? como se articulam os aspectos de poder e gênero na produção desses discursos e na dinâmica das famílias violentas e incestuosas? seriam estas mulheres, na atualidade, igualmente vítimas dos abusos masculinos? são cúmplices, coniventes e, portanto, culpadas as mães das vítimas de incesto pela violação sofrida por suas filhas? essas mulheres teriam sido também vítimas de abuso sexual em sua infância? pode-se falar em um padrão de transmissão transgeracional no abuso sexual? que processos estariam presentes na reprodução do abuso sexual ao longo de gerações? que efeitos o abuso vivido na infância destas mulheres teria produzido em sua subjetividade? as violências sofridas, tanto passadas quanto atuais, interferem no enfrentamento do incesto (re)vivido pelas mulheres-mães através do abuso de suas filhas? que estratégias essas mulheres e essas meninas têm desenvolvido para enfrentar as violências sofridas? de que recursos dispõem no engendramento de estratégias de resistência às violências sofridas? que alternativas os contextos sociais e comunitários oferecem para a superação destas violações? que discursos têm sido produzidos sobre as mulheres-mães das vítimas de incesto? Consoante com as epistemologias feministas, que advogam a ligação do fazer acadêmico com as práticas e lutas sociais (Fonseca, 2000a, 2000b; Harding, 1986, Neves & Nogueira, 2003), esta investigação busca realizar o ideal romântico de uma práxis política e científica na tentativa de integrar, ainda, a clínica à pesquisa, tal como sugere Petersonn (1991). Nesse sentido, pretendo contribuir com a proposição de ações afirmativas na questão 11 da violação dos direitos humanos das meninas e das mulheres, daí a relevância científica, social e política da presente investigação. Ações afirmativas implicam o resgate das competências de mulheres e de meninas a fim de que, empoderadas (Leon, 2000), possam esboçar estratégias de resistência aos abusos sofridos. Inscreve-se aqui outro deslocamento teórico-metodológico deste estudo que, ao problematizar o discurso do vitimismo das mulheres (ver Gregori, 1993), centra seu foco de interesse nas estratégias de resistência e de empoderamento do feminino. No Capítulo I, procedo à revisão da literatura, abordando alguns conceitos fundamentais nos quais se baseia esta investigação, entre eles os conceitos de incesto, poder, gênero, patriarcado e violência. Estes conceitos, discutidos a partir de uma perspectiva interdisciplinar, típica dos estudos nômades (Fonseca, 2000a), envolvem diversos aspectos, entre eles: as diferentes explicações para a organização social existente em nossa civilização; os discursos sobre o feminino e sobre as relações de gênero; as diferentes formas de organização familiar ao longo da história; a constituição da família contemporânea brasileira; as transformações do papel da mulher na sociedade ao longo dos tempos; as dinâmicas das famílias violentas e incestuosas e a relação destas estruturas familiares com os valores ditados pelo patriarcado e pelo modo de produção econômica capitalista. No Capítulo II, desenvolvo considerações teórico-metodológicas relativas às abordagens feministas e à abordagem discursiva, com base nos aportes de Foucault (1969, 1986, 1991) e de Pêcheux (1969/1983, 1998), utilizadas neste estudo. Descrevo, ainda, o delineamento do Estudo de Caso Único (Yin, 1994) eleito para conduzir esta investigação. No Capítulo III, apresento os resultados encontrados a partir dos dados coletados para, em seguida, discuti-los à luz do referencial teórico estudado. No Capítulo IV, esboço considerações finais relativas às conclusões e reflexões suscitadas durante o processo desta pesquisa, identificando algumas de suas limitações e sugerindo possíveis direções a novas investigações pertinentes ao tema. 12 Capítulo I REVISÃO DA LITERATURA A necessidade de desvendar a origem do mundo, do sujeito, das coisas e da natureza, bem como de compreender as relações que regem a vida em sociedade são objeto de estudo de várias disciplinas há séculos (Pires, 2002). Utilizando-se desde os mitos às teorias científicas, diferentes sociedades elegeram inúmeras e criativas justificativas para sua organização social. Nas civilizações primitivas, estas explicações baseavam-se nos mitos de origem divina, enquanto nas civilizações ocidentais contemporâneas a ciência cumpre a função de buscar explicações para a ordem social existente a fim de legitimá-la (Berger & Luckmann, 1966; Strey, 1998). Resgatar tanto a história mítica da criação do mundo, quanto a história da civilização ocidental auxilia-nos a compreender as diferentes formas de relação vividas ao longo da história pelo/as humano/as. Não se trata de buscar origens universais que revelem verdades últimas e essencialistas (Rosaldo, 1995), sequer adotar uma perspectiva evolucionista ou mítica para a compreensão das relações humanas. Trata-se, isto sim, de resgatar a historicidade destas relações a fim de compreender seu engendramento, em especial no que concerne às relações de poder e de dominação que caracterizam as relações violentas e incestuosas, tema central deste estudo. 1.1 As explicações míticas Mitos e tragédias gregas (Bulfinch, 2001; Koltuv, 1986; Muraro, 1997; Rinne, 1988; Rodrigues, 1995; Tiburi, Menezes & Eggert, 2002) contam que, na origem do Universo, as primeiras deusas eram polifacéticas, criativas e destrutivas, boas e más ao mesmo tempo, cujos poderes eram independentes dos poderes masculinos e não estavam circunscritos à fecundidade. Hécate, divindade misteriosa, representa tanto as trevas e os horrores, quanto o esplendor da noite de lua cheia (Bulfinch, 2001). Tragédias clássicas como ‘As Bacantes’ e ‘Medéia’, de Eurípedes, falam em mulheres independentes e poderosas, que integravam 13 sexualidade e maternidade, bondade e maldade em uma só figura. Medéia, que matou por ciúme os próprios filhos ao ser traída pelo marido, encarna ora a imagem negativa de mãe má, ora a imagem de sabedoria, poder e força da mulher que não se submete à infidelidade masculina legitimada pela ordem patriarcal. As ‘Bacantes’ são mulheres de Tebas que abandonam seus lares à noite e celebram orgias, a ponto de uma delas matar o próprio filho sem o saber (Maluf, 1993; Rinne, 1988). Em ‘Antígona’, tragédia de Sófocles, Electra e Antígona, filhas de Édipo, representam mulheres que, mesmo vivendo sob a égide paterna, ousam desafiar a dominação masculina reinante em Tebas (Pires, 2002). O poder feminino é também representado pelas sacerdotisas, que conhecem a arte do amor e da adivinhação. Em ‘O Banquete’, Platão (1966) atribui tudo o que aprendeu sobre o amor à sacerdotisa Diotima de Mantinéia. A palavra Mantinéia “relaciona-se com a mântica, a arte da adivinhação e do delírio. O dom de ler sinais é poder dado a poucos. Sacerdotisa dos mistérios, tudo o que diz ou ensina Diotima liga-se estreitamente à ‘doença sagrada’, o amor” (Matos, 2002, p. 115). Os poderes femininos, associados à capacidade reprodutiva, à sexualidade e à adivinhação eram percebidos, no entanto, como ameaçadores. Aparece, então, o mito da criação do Universo por Zeus, que toma para si a capacidade reprodutiva e engrandece a paternidade, destituindo as imagens femininas de seus poderes. Em outros mitos, como os de Pandora, Perséfone e Psique, as mulheres são representadas como curiosas, frívolas, dependentes e feitas apenas para agradar aos deuses masculinos (Bulfinch, 2001; Luna, 2002; Muraro, 1997; Richlin, 1991; Tiburi, Menezes & Eggert, 2002). As origens do mundo e da humanidade, segundo o livro bíblico ‘Gênesis’ (Bíblia de Jerusalém, 2003), revelam um Deus-Pai-Criador violento e autoritário. Dominar a natureza, extrair dela seus recursos, conquistar outros povos e submetê-los para construir a civilização são idéias presentes desde o Adão bíblico. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é dotado do privilégio de dominar todos os seres vivos, ao qual é prescrito que subjugue a terra, o céu, o mar e todas as suas criaturas. A mulher é criada a partir do homem, como produto dele. Não tolerando a desobediência de Adão e Eva, que outorgam a si o direito ao saber e à autonomia, Deus os castiga com o sofrimento do trabalho e a dor do parto (Boff, 1997; Dadoun, 1998). O mito de Lilith, a deusa diaba, que representa a outra face de Eva, conta que Lilith foi expulsa do paraíso por reivindicar autonomia e prazer sexual. Não querendo se submeter a Adão e nem a Deus, Lilith é condenada pelo Deus-Pai-Criador, que lhe diz: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” (Bíblia de Jerusalém, 2003, p. 38). Enquanto Lilith é castigada, a Virgem Maria é venerada, não como deusa, mas enquanto mãe de Jesus-Deus. 14 Maria é a Serva do Senhor, mediadora do ‘Deus Criador’, cuja sexualidade é negada, uma vez que concebe a partir do ‘Espírito Santo’. A imagem da mulher ideal passa a ser a de Maria, que não é mulher, é apenas mãe, adorada por sua condição de humildade, resignação e subordinação. Idealiza-se, a partir daí, a representação feminina da boa mãe, nutridora, protetora, santa e assexuada. Na Inquisição, durante a Idade Média, a força ameaçadora das mulheres é simbolizada na figura da bruxa e condensada numa figura ainda mais poderosa, a do diabo, figura masculina (Koltuv, 1986; Luna, 2002; Maluf, 1993; Muraro, 1997). Contos de fada (Bettellheim, 1997), mitos indígenas (Rodrigues, 1995) e narrativas populares (Fonseca, 1992, 1995b; Maluf, 1993) mencionam a complexa heterogeneidade das relações humanas. Na análise das personagens femininas dos contos de fada feita por Bettellheim (1997), mães e pais aparecem como abandonantes, ciumentos, edípicos e temerosos da independização das filhas. Rapunzel é entregue à feiticeira, mãe adotiva que tenta guardá-la para si, escondida do mundo em uma torre. Em ‘A Bela e a Fera’, a Bela transfere, segundo o autor, a intensa ligação amorosa que tinha com o pai para o marido, a Fera, que é transformado no Príncipe pelo amor abnegado da Bela. Chapeuzinho Vermelho, desobedecendo à ordem da mãe de seguir determinado caminho para chegar na casa da avó, é seduzida pelo Lobo. A avó não consegue proteger Chapeuzinho dos perigos e é engolida pelo Lobo, sendo salva pelo caçador, uma figura masculina. Cinderela é vítima dos ciúmes das irmãs e das maldades da madrasta, embora seja triunfante ao final, casando com o Príncipe. “As relações entre Branca de Neve e a rainha simbolizam algumas das dificuldades graves que ocorrem entre mãe e filha. Mas são também projeções, em figuras separadas, das tendências incompatíveis dentro de uma só pessoa” (Bettellheim, 1974, p. 67). Em quase todos esses contos as figuras femininas são salvas por príncipes, figuras masculinas pelas quais esperam ‘adormecidas’ ou ‘engasgadas’ com os feitiços das madrastas, simbolizados na maça envenenada pela Bruxa, a Madrasta de Branca de Neve. Os homens são heróis, salvadores dos perigos da sexualidade do ‘Lobo Mau’ ou das maldades e feitiços das madrastas/bruxas. Estudo de Maluf (1993), com moradores da Lagoa da Conceição, na Ilha de Santa Catarina, descreve narrativas sobre bruxas e bruxarias. Tais narrativas falam de mulheres que, à semelhança das ‘Bacantes’ de Eurípedes, saem de suas casas, abandonam seus lares e, encontrando-se em lugares ermos, celebram orgias homossexuais durante a noite; atacam os homens e enfeitiçam as embarcações e as redes de pesca, instrumentos de trabalho dos homens do povoado. O feitiço é quebrado quando estes homens olham ‘fundo nos olhos das bruxas’, descobrindo quem elas são. Evidencia-se aí força do contra-poder masculino. 15 Pesquisas (Fonseca, 1992, 1995a) em bairros populares de Porto Alegre encontraram narrativas espontâneas de mulheres descritas, segundo esta autora, como valentes, malandras, interesseiras e transgressoras, que não admitem ser traídas pelos maridos. Estes, em piadas e fofocas, são os “guampudos” (Fonseca, 1992, p. 310). A tentativa de enclausuramento das mulheres é percebida nestes estudos como estratégia de controle dos homens diante do medo da transgressão feminina. Sentindo sua masculinidade ameaçada por homens de grupos dominantes, mais abastados, há a crença implícita de que, se o homem não oferece adequado conforto à mulher, esta não tem a obrigação de ser fiel, indo procurar um “melhor casamento” (Fonseca, 1992). Os homens são vítimas das mulheres também em alguns mitos indígenas investigados por Rodrigues (1995): “Os mitos Javaé falam de irmãs que seduzem o próprio pai, praticando o incesto; falam de mães esfomeadas que negam comida para a própria filha biológica; falam de avós que enganam os netos e os obrigam a comer a carne de sua própria mãe, representando o incesto simbólico; falam de esposas que escondem a água do próprio marido, obrigando-o a inventar o rio e de esposas que traem os maridos com um amante cujo falo é imenso (...). Estes temas se repetem em vários mitos. As mulheres são caracterizadas como seres cujos desejos individuais têm preponderância sobre a ordem coletiva. Ante de tudo, elas têm fome de comida ou de sexo e, para saciar esses desejos, são capazes de violar as mais básicas regras sociais, negando a continuação da sociedade (...). Enquanto as mulheres são punidas, os homens transcendem à condição anterior, adquirindo algum tipo de poder, como forma de se defender ou de controlar a atitude das agressoras imorais” (p. 137 –138). 1.2 Os discursos filosóficos da antiguidade Em um percurso interdisciplinar nômade (Fonseca, 2000a), fui buscar na história e na filosofia a origem dos discursos constitutivos das mulheres-mães da contemporaneidade. Para tanto, recorri a Foucault (1997) que, influenciado pela ‘Genealogia da Moral’, de Nietzsche (1998), desenvolveu um projeto genealógico a fim de compreender como se produziram, ao longo da história, as verdades constitutivas do sujeito da modernidade. Neste projeto, Foucault (1986, 1999) retomou o estudo da moralidade desde a Antiguidade, encontrando, segundo ele, importante preocupação dos gregos com sua conduta moral e com a ética que estabeleciam consigo mesmos e com os outros. Os gregos almejavam ter ‘uma existência bela’, o que implicava cuidar do corpo e da alma, o que chamavam ‘cuidados de si’. Estes cuidados são descritos em dois volumes, ‘A História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres’ (Foucault, 1990b) e ‘A História da Sexualidade - O Cuidado de Si’ (Foucault, 1990c), nos quais encontram-se idéias de filósofos que influenciaram, e influenciam até hoje, o pensamento ocidental, entre eles Aristóteles, Hipócrates, Platão e Demóstenes. Estes ‘grandes 16 sábios’ prescrevem conselhos sobre as três grandes artes de se conduzir ou as ‘técnicas de si’, como as denominavam, encontradas nos livros ‘A Dietética, a Econômica e a Erótica’. Nestes escritos encontramos ensinamentos sobre a arte do chefe de governar a esposa, o patrimônio e os serviçais, descrevendo a relação entre homens e mulheres como relações políticas isomorfas às relações entre um governante e um governado. Os maridos não devem, assim, conversar com suas esposas, devendo manter com elas uma relação absoluta de poder. Conforme Aristóteles, a natureza programou os papéis que cada um dos esposos deveriam desempenhar, ressaltando as virtudes das mulheres que obedecem com prontidão aos seus maridos. As virtudes femininas seriam a subordinação e a temperança, inclusive no ato sexual, ao qual era prescrita apenas a finalidade reprodutiva. O prazer da mulher deveria ser extenso e dependente do prazer do homem. O ato masculino é o que determina, regula, atiça, domina e determina o início e o fim da relação sexual entre um homem e uma mulher. O confinamento das mulheres à esfera privada doméstica, necessário ao cuidado da casa e à atividade reprodutiva e educativa dos filhos, era igualmente sugerido por Aristóteles, o que garantia o ócio dos cidadãos gregos para seus diálogos. Tais diálogos eram, na realidade, encontros filosóficos e eróticos. A fidelidade não era prescrita de forma igualitária para os sexos, sendo, obviamente, mais permitida a infidelidade masculina. Segundo Platão (1966), a relação erótica dos homens com rapazes mais jovens, ainda impúberes, era a única forma possível e, segundo os gregos, necessária para forjar o caráter masculino dos mesmos, forma de ‘educação masculina’. O amor entre os homens, geralmente do mestre com seus aprendizes, era a forma de amor ideal e estava associada à filosofia, entendida como o ‘amor pela sabedoria’. Não se pode, portanto, amar as mulheres e os rapazes do mesmo modo, uma vez que nas relações heterossexuais não havia troca intelectual nem namoro, só a procriação e a volúpia. Para Hipócrates, considerado o pai da medicina, o corpo da mulher precisa do sêmen masculino para manter-se saudável. De acordo com Demóstenes, as esposas servem para fazer filhos; as cortesãs para distraírem os homens e as escravas, para gozarem o prazer (Foucault, 1990b, 1990c). A natureza viril e hierárquica da Grécia Antiga já havia sido admitida por Nietzsche (1860/2000). Para Cassin, Loraux & Pechanski (1993, p. 15), “a cidade grega não é uma democracia modelo, funcionando à custa de exclusões; na verdade, é uma oligarquia travestida para fins violentamente antidemocráticos”. Na sociedade grega, as mulheres geralmente eram excluídas dos debates filosóficos, das competições e dos espetáculos e não tinham outra tarefa senão a de produzir corpos belos e fortes destinados à reprodução. Segundo Arendt (2003), importante filósofa contemporânea, o termo ‘doxa’ significa opinião, 17 glória e fama. Relaciona-se ao domínio político e à esfera pública, em que cada um pode mostrar quem é e o que pensa. Fazer valer sua opinião, na Antiguidade, significa ser capaz de mostrar-se, de ser visto e ouvido pelos outros. Este privilégio é conferido aos homens e à vida pública, não ocorrendo na privacidade doméstica, “em que não se é nem ouvido nem visto por outros. Na vida privada, se está escondido e não se pode aparecer nem brilhar, não sendo permitido ali qualquer doxa” (Arendt, 2003, p. 97). A liberdade, nesse contexto, estava associada ao espaço público. Livre agir é agir em público e público é o espaço do político. Originalmente, ser livre significava poder ir onde bem se desejasse e estar livre de toda obrigação, inclusive do trabalho, que era reservado aos escravos e às mulheres. Tal liberdade só tinha o senhor da casa (Arendt, 1998). As relações éticas e políticas gregas pressupunham uma assimetria do cidadão da polis, o homem livre, com os chamados ‘outros’, ou seja, as mulheres, os escravos e os estrangeiros, que tinham um status inferior de não cidadãos e não eram reconhecidos como plenamente humanos (Arendt, 2003). Há que se perguntar, nesse sentido, de que relações éticas falavam os gregos, cuja ‘existência bela’ não parecia contemplar a existência feminina (ver Narvaz & Nardi, no prelo). O próprio Foucault (1990a, 1990c, 1995) conclui, ao final do seu projeto genealógico, que novas formas éticas de relação devem ser construídas em nossa sociedade, inclusive entre os sexos, mas que não podem ter a não-reciprocidade grega como modelo. Nossa civilização foi profundamente marcada pelo pensamento grego, no qual há fortes prescrições quanto aos papéis de gênero. A tradição filosófica grega influenciou as representações sobre as relações sociais e sobre as mulheres ao longo da Idade Média e da Renascença, chegando à modernidade. Essa tradição filosófica, que tem como principais representantes filósofos como Platão e Aristóteles, passando pelos medievais Spinoza, Locke e Hume, chegando a Kant, Rousseau e Schopenhauer, parece androcêntrica e misógina (ver Narvaz & Nardi, no prelo; Tiburi, Menezes & Eggert, 2002). Kant, recatado e celibatário, afirma que as mulheres que se envolvem com os conhecimentos complexos ‘próprios’ dos homens deveriam ‘usar barba’, pois esta expressaria mais visivelmente o ar de profundidade e seriedade que elas buscam. Para ele, não há nada mais feio que as mulheres, o ‘belo sexo’, discursarem sobre filosofia, não devendo se interessar pela ciência, pois assim se masculinizarão. Para Nietzsche (1860/2000), os ‘verdadeiros espíritos livres’, os filósofos realmente autênticos, permaneceram solteiros, entre eles Descartes, Leibniz, Malebranche, Spinoza e Kant. Isto ocorria porque a busca da verdade, característica do pensamento filosófico era incompatível com mulheres, seres feitos para a mentira e para a dissimulação. Tal qual Kant, Nietzsche (1860/2000) considerava estranho, e hostil à mulher o envolvimento 18 com a ciência, a sabedoria e a verdade, dado que a grande arte feminina, sua causa maior é a aparência e a beleza. Rousseau, em 1774, publica “Emílio ou, Da educação”, onde consta que, não sendo feitas para o saber, o lugar das mulheres é o espaço doméstico, cuja função é agradar ao marido e cuidar da família (Carvalho, 2002; Matos, 2002; Menezes, 2002; Tiburi, 2002). Schopenhauer (1851/2004), nesta mesma linha de raciocínio, diz que as mulheres só existem para a propagação da espécie, tendo disposição para serem vítimas, cuja natureza está destinada à obediência e à tutela de um marido ou de um amante. A função cívica da procriação, a qual devem ficar circunscritas as mulheres, é enaltecida por Augusto Comte. Uma vez que o dinheiro é coisa suja e especificamente masculina, as mulheres não devem trabalhar, recomenda Comte (Rago, 1997, 2001). Spinoza, outro celibatário, equiparava a mulher aos escravos por sua falta natural de autonomia. Segundo ele, o homem não precisa se impor à mulher por meio da força física, uma vez que os atributos viris de sua alma e de sua inteligência lhe possibilitam sobressair-se hierárquica e naturalmente à mulher. Já Locke, contrário às teorias absolutistas do poder, propunha que o poder político deveria basear-se na boa vontade de cidadãos livres. No entanto, parece deliberadamente ter abandonado sua argumentação, uma vez que corria o risco de promover uma reforma radical na sociedade se levasse adiante a tese da igualdade natural entre homens e mulheres (Ruiz, 2002). Além destes, diversos outros ‘saberes de grandes filósofos’, sexistas e misóginos, que influenciaram o pensamento ocidental, foram compilados em interessante obra intitulada “El estupidário de los filósofos”, (Barrère & Roche, 1999, citados por Ruiz, 2002). Ao menos, destaca Wagner (2002, p.178), “as mulheres podem vangloriar-se de que nesse bestialógico não há uma única mulher.” Estes discursos não podem, alerta Pires (2002), ser considerados a voz geral do seu tempo. Há outros discursos sobre a mulher. Poulain de la Barre, pensador do século XVII, publica, já em 1673, a obra ‘Igualdade dos dois sexos’, postulando que as desigualdades não são fruto de uma natureza desigual, mas de uma visão politicamente criada de que as mulheres são inferiores aos homens (Menezes, 2002). Em 1790, o Marquês de Condorcet redigiu um projeto de instrução pública e igualitária para os dois sexos e uma proposta de direito de cidadania para as mulheres. Em 1791, Olympe de Gouges escreve a ‘Declaração dos direitos da mulher e da cidadã’, sendo decapitada logo depois disso (Carvalho, 2002). A existência de mulheres ativas na história da filosofia antiga é apontada por Hierro (1995), que critica as interpretações falocêntricas comumente encontradas nos discursos acercas das mulheres romanas. Comenta, nesse sentido, evidências da participação feminina em projetos políticos na Roma antiga, ressaltando que, nessa época, não havia ainda a separação entre vida 19 pública e vida privada tal como se estabeleceu mais adiante na história. Na casa romana existiam grandes pátios internos onde as mulheres participavam dos debates políticos junto com os homens. Na Antiguidade, existiu uma escola de nível superior para as mulheres, fundada por Safo, poetisa de Lesbos, nascida em 625 a.c. Safo propunha a homoeroticidade feminina, forma relacional, dialógica e igualitária como alternativa às formas gregas fálicas de sexualidade, baseadas em relações de poder e de dominação (Greene, 1996; Menezes, 2002). Na utópica cidade vislumbrada por Platão (2000), em ‘A República’, a responsabilidade pelo cuidado das crianças deve ser comum aos dois sexos e as mulheres devem gozar da mesma liberdade sexual que os homens. Tal utopia parece revelar a necessidade de mudanças no sistema ético-político grego na direção da igualdade e da cidadania. Aguirre (1995), diz que talvez Platão pudesse ser considerado um ‘protofeminsta’. Segundo ele, “as sacerdotisas detinham prestígio e poder. Junto com as mulheres que se ocupam dos casamentos, atuam como juízes em diferentes assuntos. Platão descobriu que a situação da mulher na sociedade é convencional e não natural, antecipando o conceito ‘gênero’. Estabeleceu, ainda, que, em questões que afetem diretamente às mulheres, os júris deveriam estar integrados pela mesma quantidade de mulheres que de homens. Não pode passar despercebido que em ‘Leis’, de 932 a.c., Platão prescreve que a violência exercida contra anciãos, seja qual for seu sexo, deveria ser castigada por seis juízes, dos quais três deveriam ser necessariamente mulheres. Ademais, em 929 a.c. se explicam casos em que as mulheres votam diretamente sobre assuntos transcendentais, uma vez que se tratavam de questões de cidadania que envolviam seus próprios filhos” (Aguirre, 1997, p. 183). 1. 3 As descobertas antropológicas A heterogeneidade dos discursos sobre o feminino, sobre as relações sociais e familiares é encontrada também na ciência. Descobertas arqueológicas, históricas e antropológicas (Bott, 1976; Engels, 1884/1964; Malinowski, 1927/1983; Mead, 1934/1975; Muraro, 1997; Rosaldo, 1895; Schelsky, 1968; Smith, 1973) revelaram que homens e mulheres, no início da história da humanidade, tinham tamanho corporal equivalente, não havendo uma divisão rígida entre papéis sexuais e nem mesmo entre papéis sociais. As comunidades eram sociedades coletivistas, tribais, nômades e igualitárias. Todos os membros destas comunidades envolviam-se igualmente com a coleta de frutas silvestres e de raízes, alimento dos quais sobreviviam, bem como cabia a todos os membros o cuidado das crianças do grupo. Nas sociedades coletoras, havia mais lazer e mais reciprocidade. As crianças eram ensinadas a serem generosas, não sendo punidas fisicamente e nem demasiado incentivadas à obediência. As formas de agrupamento eram matrilineares, matrifocais e matrilocais, ou seja, os membros organizavam-se em pequenos grupos em torno da figura da fêmea-mãe-mulher. 20 As relações sexuais eram casuais e não monogâmicas, não tendo sido encontradas formas violentas de relação entre machos e fêmeas. As disputas, quando ocorriam, circunscreviam-se à luta pela sobrevivência e à disputa pelas fêmeas, geralmente entre machos rivais. Tais disputas, entretanto, não tinham o objetivo de matar o macho rival, apenas triunfar sobre ele na disputa pela fêmea e pela sobrevivência. As sociedades matrilineares eram menos competitivas, não havendo formas institucionalizadas de governo nem repressão à sexualidade. Não havia nestas comunidades regras para o acasalamento entre os membros, o que foi interpretado como ‘promiscuidade’ por alguns antropólogos (ver Rosaldo, 1995). As mulheres gozavam de liberdade, inclusive sexual, tendo papel importante na organização social que ainda não separava a vida doméstica da vida pública. A hipótese mais aceita entre os antropólogos é a de que, no período Paleolítico Superior, os homens ainda não conheciam seu papel na reprodução. A organização centrada no papel e na descendência materna era uma decorrência desse desconhecimento (Muraro, 1997). A organização social centrada na figura da fêmea-mulher-mãe não deve ser confundida com matriarcado. Bachofen, em 1861, publica “O Matriarcado”, teoria segundo a qual as mulheres teriam tornado-se guerreiras como forma de reação ao domínio e aos abusos masculinos característicos do início da civilização. Tomando o poder, as mulheres instituem uma nova organização social chamada ‘Ginecocracia’, cujos valores morais, jurídicos e sociais fundavam-se no sistema do direito materno, estruturado em torno da figura da mulhermãe. Bachofen (1861/1987) acreditava que as mulheres estavam na origem do direito, embora esta fosse apenas uma etapa do direito. O estabelecimento do direito paterno é que teria fundado a civilização. A teoria do matriarcado, baseada nesse pressuposto, foi criticada por ser androcêntrica e evolucionista (ver Colling, 2004). Influenciado pela teoria do matriarcado, Engels (1884/1964) acreditava num matriarcado primitivo e remoto como origem primeira da civilização. O matriarcado teria sido subjugado pelo domínio masculino ao surgir a propriedade privada, instaurando-se, então, o patriarcado: “a abolição do direito materno foi a grande derrota do sexo feminino. O homem assumiu o timão da casa; a mulher foi submetida, domesticada, feita escrava de seu prazer e um simples instrumento de reprodução. Esta degradada condição da mulher, tal como se manifestou sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos, e mais ainda nos tempos clássicos, foi gradativamente retocada e dissimulada, ou mesmo suavizada em alguns lugares, mas de maneira alguma suprimida” (Engels, 1884/1964,p. 66). Engels (1884/1964) atribuiu à monogamia e ao casamento burguês a origem da opressão feminina. Esta concepção é de crucial importância para os estudos feministas, afirma 21 (Toledo, 2003, p.29), por ter “retirado a questão da opressão feminina da mulher do domínio da biologia e a inserido no domínio da história e da cultura, tornando possível vislumbrar a sua superação por meio da ação política”. Por outro lado, a obra de Engels (1884/1964) é contestada por reduzir a compreensão de processos sociais exclusivamente a fatores econômicos (ver Muraro, 1997) e por aderir à teoria evolucionista e androcêntrica do matriarcado (ver Colling, 2004; Rosaldo, 1995). Na avaliação de Suárez (1994), a maioria dos antropólogos clássicos, entre eles Bachofen, Morgan e Lèvi-Strauss. não problematiza a oposição binária e hierárquica das diferenças sociais e dos papéis de gênero em suas pesquisas. Segundo esta autora, outros trabalhos, tais como as investigações antropológicas de Bronislaw Malinowski e Gregory Bateson, na Inglaterra, e de Ruth Benedict e Margaret Mead, nos Estados Unidos, ao enfatizarem o caráter cultural das diferenças dos papéis atribuídos a cada um dos sexos, podem ser considerados precursores aos estudos das relações de gênero. A teoria do matriarcado tem sido criticada (Bamberger, 1979; Colling, 2004) por sugerir que as mulheres não teriam sido competentes de forma a manter o poder que outrora tiveram, e por ter-se construído com base em mitos gregos e romanos e em especulações de Bachofen (1861/1987). Relatos de tribos bastante igualitárias, como, por exemplo, entre os arapesh, os hópis e entre os pigmeus Mbuti da África do Sul, foram realizados por antropólogos e antropólogas (Malinowski, 1927/1983; Mead, 1936/1988; Muraro, 1997; Rosaldo, 1995). Contudo, não há indícios que comprovem a existência de sociedades verdadeiramente matriarcais, que devem ser compreendidas como um mito ou contextualizadas, como propõe Rosaldo (1995), “ao escreverem sobre o matriarcado, o que os pesquisadores queriam ressaltar não era que as mulheres dominavam a vida pública, mas que as primeiras formas sociais humanas deram às mulheres um lugar importante, porque a sociedade pública não era ainda diferenciada do contexto doméstico” (p. 25). As teorias do matriarcado e do patriarcado também aparecem em ‘Totem e Tabu’, de Freud (1912/1967), para quem o matriarcado teria sido, tal qual para Bachofen (1861/1987), apenas uma etapa provisória e anterior ao surgimento da civilização. O surgimento da civilização estaria associado à repressão e à dominação patriarcal. Para Freud (1912/1967), no mito da horda primordial, o primeiro grupo humano estava sob o domínio de um machohomem-pai que, monopolizando para si as mulheres, teria subjugado todos os outros membros da horda ao seu poder. Proibidos de desfrutarem da sexualidade, os filhos roubavam as mulheres do patriarca, pai e tirano e, sob a ameaça da castração ou da morte pela transgressão cometida, se exilavam em pequenas comunidades. O ódio despertado pelo domínio despótico 22 teria provocado a rebelião dos filhos exilados, que assassinaram e devoraram o pai num ritual coletivo. Boa parte do poder patriarcal passa para a mulher, instaurando-se o matriarcado, que é substituído por uma contra-revolução patriarcal. Restaurados os ‘direitos históricos’ do pai primordial, institucionaliza-se o sentimento de culpa e, com ele, a religião. O mito da horda primordial patriarcal explica aspectos centrais da teoria freudiana. Em ‘Moisés e o Monoteísmo’ (Freud, 1936/1967) e em ‘Psicologia das Massas’ (Freud, 1921/1967), o mito da horda primitiva é retomado para descrever vários processos psicológicos, tanto individuais quanto grupais. Contudo, a teoria da origem da civilização com base na repressão e no mito da horda primitiva é criticada por Marcuse (1955/1978). Para este autor, trata-se de uma especulação antropológica de difícil verificação científica e sem coerência lógica, tendo de ser rejeitada, a não ser que a consideremos apenas pelo seu valor simbólico. Entretanto, diz Freud (1912/1967): “em 1912, adotei a hipótese de Darwin, segundo a qual, a forma primitiva da sociedade humana teria sido a horda submetida ao domínio absoluto de um poderoso macho. Procurei demonstrar que os destinos da horda deixaram marcas inesquecíveis na história hereditária da Humanidade” (p. 1154). 1.4 A invenção da família Qualquer que tenha sido a forma primitiva de organização social, matriarcal ou patriarcal, no início da história da humanidade, o acasalamento entre os membros ocorria dentro de um mesmo grupo, caracterizando o período da família consangüínea (Engels, 1884/1964; Freud, 1912/1967; Lèvi-Strauss, 1908/1982; Schelsky, 1968). Posteriormente, surge o casamento fora do grupo familiar, chamado exogâmico. O valor funcional da exogamia seria o de manter a sobrevivência dos grupos. As trocas estabelecidas entre os diferentes grupos através dos casamentos manteriam a coesão dos agrupamentos, evitando o fracionamento e o isolamento dos mesmos em pequenas unidades de famílias consangüíneas. As alianças formadas entre os grupos pelos casamentos fortaleciam redes de parentesco, asseguravam a paz entre diferentes grupos, garantiam a reprodução e a multiplicação da força de trabalho necessárias à sobrevivência. Uma das conseqüências da regra da exogamia foi o tabu do incesto, que prescreveu a interdição de relações sexuais entre pais e filhos e, logo após, entre irmãos. O tabu do incesto é tema controverso. Alguns estudiosos (Freud, 1912/1967; LèviStrauss, 1908/1982) falam da universalidade do tabu do incesto e de seu papel fundante na civilização. Outros (Mead, 1934/1975; Schelsky, 1968), relativizam tal proposição, a partir do 23 estudo de povos como os do Egito, da Pérsia, do Sião, da Birmânia e do Havaí, bem como entre os Queshuas (incas) e os fenícios. Nesses grupos, o incesto seria permitido e mesmo incentivado devido a interesses econômicos e políticos. Cultivavam a tradição de casamentos entre irmãos e irmãs, e mesmo entre pais e filhos, a fim de manter intacta a linhagem das casas reais. Outro tópico controverso é o da exogamia, no que concerne ao papel das mulheres nos sistemas de trocas. Lèvi-Strauss (1908/1982) alega a existência, empiricamente observável, embora não universal, da supremacia masculina e da assimetria entre os sexos. Para ele, o fato fundamental é que os homens é que trocam as mulheres, e não o contrário. Já para Bourdieu (1999), tanto homens quanto mulheres circulavam entre os grupos. Não seriam apenas as mulheres os instrumentos de troca ou de aliança entre os povos, mas também os homens, nas chamadas comunidades fraternais. Lèvi-Strauss (1908/1982) é criticado pelos estudos feministas (Heilborn, 1993; Rosaldo, 1995) por ter criado uma teoria social da opressão feminina, na qual as mulheres são objeto de troca e símbolos do prestígio e domínio masculinos. A exogamia teria um valor social de troca entre os grupos, nos quais as mulheres seriam os ‘valores por excelência’, afirma Lèvi-Strauss (1908/1982): “Certamente não é porque algum perigo biológico se ligue ao casamento consangüíneo, mas porque do casamento exógamo resulta um benefício social (...). A lei da exogamia refere-se a valores - as mulheres - valores por excelência (...), sem as quais a vida não é possível (...). A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe casar-se com a mãe, a irmã ou a filha do que uma regra que obriga a dar a outrem a mãe, a irmã ou a filha; é a regra do dom por excelência” (p. 521-522). Instaurada a regra da exogamia e, com ela, a proibição do incesto, instala-se o período da família punaluana - na qual membros de um grupo casam com os membros de outro grupo, mas não entre si. A estrutura familiar na qual grupos inteiros casam entre si é conhecida como família por grupo. Já a família sindesmática ou de casal adere ao tabu do incesto, porém não condiciona sua ligação à obrigatoriedade do casamento intergrupos (Engels, 1884/1964). A família ‘promíscua’, característica das sociedades primitivas, tornouse monogâmica somente muito tempo depois, em função de interesses políticos e econômicos associados ao surgimento da propriedade privada. A família monogâmica surgiu, portanto, não de condições naturais, mas econômicas, concretizando o triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva. O casamento monogâmico não foi fruto do amor sexual individual, uma vez que os casamentos eram arranjados por conveniência. A monogamia teria a finalidade de garantir herança aos filhos legítimos. A valorização da virgindade e da fidelidade da mulher, bem como o adultério, a prostituição, o controle sobre a sexualidade e sobre os corpos das mulheres seriam tributários das formas patriarcais e 24 monogâmicas de organização familiar. A família monogâmica criou, ainda, a divisão dos papéis sexuais e, a partir daí, a divisão do trabalho e dos papéis sociais (Engels, 1884/1964; Reich, 1966, 1933/1998; Schelsky, 1968). Segundo Prado (1981), nenhuma sociedade teria vivido à margem, ao longo da história, de alguma forma de instituição familiar, de alguma forma de institucionalização das relações entre os membros. Ainda assim, a família não é algo biológico, algo natural ou dado, mas produto de diferentes formas históricas de organização entre os humanos que, aos poucos, foram sendo institucionalizadas na forma de organizações familiares. Premidos pelas exigências materiais de produção e de reprodução necessárias à sobrevivência da espécie, os humanos inventaram diferentes modos de relação com a natureza e entre si (Berger & Luckmann,1966; Engels, 1884/1964; Muraro, 1997; Shelsky, 1968). Podemos dizer, com base nesta argumentação, que os diferentes modos de relação entre os humanos e humanas, incluindo-se aí as relações familiares, foram inventados. Esses modos de relação foram-se tornando habituais, processo denominado por Bourdieu (1999, p. 17) de “habitus”. Com o tempo, esses modos de relação (que foram inventados) foram institucionalizados na forma de papéis que prescrevem como os sujeitos devem comportar-se em cada relação. Os papéis prescritos a homens e a mulheres são, para Bourdieu (1999, p. 9) “gêneros como habitus sexuados”. As gerações que não participaram do processo inicial de construção (ou invenção) dos diferentes modos de relação aderem aos papéis prescritos, esquecendo-se que esses papéis foram construídos pelas gerações anteriores de seus antepassados. Estes papéis passam a ser institucionalizados, ou seja percebidos como instituições “dadas, inalteráveis e evidentes” (Berger & Luckmann, 1966, p. 85). Este processo de institucionalização das relações em papéis (incluindo-se aqui as dimensões de classe social etnia, geração e gênero na delimitação destes papéis) ocorre concomitante a outros processos, entre eles a cristalização e a reificação. Na cristalização, os papéis são percebidos como fixos e como estáticos. Na reificação, estes mesmos papéis são percebidos como inatingíveis e transcendentais, como se estivessem além da capacidade humana de intervenção ou de modificação (Berger & Luckmann, 1966). A atribuição de papéis fundamentou-se, desde o início dos tempos, de acordo com Bourdieu (1998, 1999), nas diferenças entre os corpos dos homens e das mulheres, principalmente na diferença dos órgãos sexuais. A diferença foi convertida em dissimetria, originando-se a partir daí categorias binárias que dividiram todo o universo em oposições masculino/feminino. Sobre estes argumentos foram construídas as diferenças entre os gêneros 25 das coisas e das pessoas, cujo pressuposto é a superioridade masculina como inscrita na natureza das coisas que, invisível, não é questionada, explica Bourdieu (1999): “Arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino (...) num sistema de oposições homólogas, alto/baixo, e cima/embaixo (...) fora/dentro, público/privado, etc que, para alguns, correspondem a movimentos do corpo (...). Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza (...). a divisão dos sexos parece estar ‘na ordem das coisas’ (...) como se também as coisas fossem sexuadas” (p. 1617). Os papéis sociais, institucionalizados segundo divisões binárias e hierárquicas que naturalizaram a superioridade masculina (Bourdieu, 1998, 1999), consolidam na Roma Antiga a instituição da família (Prado, 1991). O próprio termo família, originado do vocábulo latino ‘famulus’, revela a ideologia patriarcal e androcêntrica implícita em sua origem. De acordo com Engels (1884/1964, p. 91), “famulus quer dizer escravo doméstico, e família, o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem”. Contudo, o termo ‘família’ não se aplicava às famílias de homens livres na Roma Antiga, somente aos escravos. Com o tempo, o termo família passou a significar um grupo social cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com direito de vida e de morte sobre todos eles (Osório, 1996, 1997; Prado, 1991; Xavier, 1998). Apesar da origem do seu termo, a família contemporânea, em suas múltiplas configurações, pode ser importante núcleo afetivo, de apoio e de solidariedade entre seus membros. Pode, também, ser agência de desigualdades, de controle e de repressão, quando não de violência, fator de risco para seus membros (De Antoni & Koller, 2000; Narvaz & Koller, 2004b; Prado, 1991). Reis (1985) propôs um percurso histórico a fim de compreender a constituição da organização familiar contemporânea, predominantemente nuclear e burguesa. Segundo ele, na família feudal da Idade Média era a linhagem, e não o casamento, que estava no centro da vida familiar. A mulher era considerada como pertencente à linhagem do marido e quando este morria ela era excluída da linhagem. A família era do tipo extensa ou abrangente, ou seja, incluía outros parentes, amigos e vassalos. Na família feudal, a obediência à autoridade era altamente valorizada, sendo permitido o uso do castigo físico para garantir a ordem e a disciplina, quer na família, na escola ou no clero. A sexualidade, entretanto, não era tão controlada, e as necessidades sexuais das mulheres eram reconhecidas. A família aristocrata não atribuía valor algum à privacidade, à domesticidade, aos cuidados maternos ou às relações íntimas entre pais e filhos. A família camponesa, tal qual a família aristocrática, mantinha laços comunitários de dependência com a aldeia, a qual regulava a vida cotidiana através dos 26 costumes e da tradição. Os rituais, como casamentos e enterros, envolviam a aldeia inteira. As crianças dependiam, principalmente, da comunidade e não dos pais, aprendendo a obedecer às normas sociais. A mãe camponesa dividia a criação dos filhos com outras mulheres da comunidade, não estando tão isoladas quanto na família burguesa. Além disso, na medida em que as mulheres precisavam trabalhar, as crianças não eram o centro da vida familiar, nem o papel materno idealizado como viria a ser mais adiante. Na constituição da organização da família proletária, Reis (1985) identificou três diferentes fases. Na primeira, com a industrialização do século XIX, todos os membros da família trabalhavam conjuntamente. A família era a unidade de produção familiar dos meios de subsistência. Neste contexto de precariedade e de opressão engendrados pelo capitalismo emergente, foi necessária a manutenção dos antigos laços comunitários, ou seja, havia dependência e apoio mútuo, tais como entre as associações de artesãos (Castel, 1998). Na segunda fase, na metade do século XIX, surgem setores mais qualificados da classe operária e alguns burgueses começam a preocupar-se com uma melhor condição de vida de seus empregados. Com a melhoria de vida, a diferenciação de papéis sexuais começa a aproximarse dos padrões burgueses e a mulher passa a ficar mais tempo em casa a fim de cuidar do lar e dos filhos. Na terceira, já no século XX, a família operária muda-se para o subúrbio, rompendo com os laços comunitários. Cria-se um reforço da autoridade paterna e um ‘aburguesamento’ ideológico da classe operária, diz Reis (1985). A organização latifundiária, tal qual a feudal, assentava-se no protecionismo e na tutela do senhor em relação a seu grupo. Ao final da Idade Média, com o advento do capitalismo, a manutenção do modelo patriarcal passou a não mais servir aos novos interesses individualistas da burguesia. No novo modo de organização social capitalista, aboliu-se a tutela do senhor feudal, desvalorizaram-se as formas coletivas de produção e desfizeram-se as redes de solidariedade encontradas nas organizações familiares abrangentes. A dissociação dos espaços públicos e privados e o isolamento da família conjugal nuclear monogâmica da comunidade seriam, portanto, tributários da valorização do individualismo burguês, característico do modo de produção capitalista. A família burguesa, que teve seu berço na Europa, em meados do século XVIII, caracterizava-se pelo fechamento em si mesma, o que foi conseqüência do enfraquecimento da linhagem e da família abrangente. O isolamento da família burguesa das redes de parentesco e das redes comunitárias ocasionou a dependência das crianças à figura da mãe, que passaram a depender dela para suprir todas as suas necessidades de cuidado material e de afeição. Ocasionou, ainda, a dependência da mulher ao marido, inclusive para seu sustento. Na família burguesa, separou-se afeto de sexo: a família 27 era um lugar de afeto e não de prazer. Os corpos das mulheres passam a ser regulados e sua sexualidade controlada. As mulheres foram destituídas do direito ao prazer, servindo apenas à procriação. Os padrões morais eram, entretanto, diferentes para homens e mulheres, permitindo-se e estimulando-se apenas a sexualidade masculina. Criou-se, ainda, forte repressão à sexualidade infantil. O papel social de filho/a desenvolveu-se através da submissão aos valores dos pais e, mais tarde, dos professores (Ariès, 1981; Castel, 1998; Reich, 1966; Reis, 1985). Na nova configuração familiar – a família nuclear burguesa – o homem deixava de ser o proprietário da família para ocupar o papel de pai – provedor/mantenedor burguês da esposa e da prole. A mulher não mais era propriedade do marido, mas mãe – educadora e protetora dos filhos, cuidadora do marido e do lar. Sob a égide do liberalismo, o casamento deixou de ter o caráter econômico de outrora para constituise no espaço de concretização do amor romântico, contrato afetivo e sexual de sujeitos ‘livres’ (Reis, 1985). Extinta a necessidade de obediência natural da organização feudal patriarcal, o domínio masculino precisava de outras justificações, encontrando respaldo na ciência positivista liberal (Diamond & Quinby, 1998; Harding, 1987). Algumas teorias psicológicas contribuíram para tais justificações (Fonseca, 1997, 2000b; Strey, 2000). Estas teorias, baseadas em concepções essencialistas, naturalizaram e prescreveram papéis estereotipados, heterossexuais, binários e hierárquicos a homens e a mulheres (Bourdieu, 1999; Butler, 1984, 2000, 2003). Na família moderna burguesa, a natureza passiva, cuidadora, frágil e dominada da mulher, legitimada agora pela ciência, justifica a necessidade da tutela e da proteção masculina, nova face do poder patriarcal (Scott, 1986; Strey, 1998, 2000; Tiburi, Menezes & Eggert, 2002). 1.5 Família e modos de produção O patriarcado foi, dessa forma, alterando suas configurações como uma função dos modos de produção (Bedregal, 2002; Garretas, 2004; Saffioti, 1979, 1988). Diversos estudiosos (Castel, 1998; Engels, 1884/1964; Lênin, 1980; Marcuse, 1965/1997; Toledo, 2003) demonstram essa associação entre os modos de produção e as formações sociais, nas quais se encontram as diferentes organizações familiares. Cabe aqui situar alguns destes conceitos com os quais estamos trabalhando, entre eles as noções de formações sociais, modos de produção, relações de produção e capitalismo a partir das contribuições de Guareschi (2004a, 2004b). Estas noções estão todas articuladas e consistem em deslocamentos discursivos de termos, tais como sociedade e sistemas, que sugerem idéias estáticas, propensas a serem naturalizadas e reificadas (Berger & Luckmann, 1966). O 28 objetivo ao revisar alguns termos é o de resgatar a noção histórica de que a vida em sociedade é produzida, em seus mais variados aspectos, pela ação humana e, se é criada pela ação humana, pode ser por ela transformada. Assim, ao construto ‘sociedade’ é proposto o de ‘formações sociais’. O que distingue as sociedades, ou as formações sociais, umas das outras é o tipo de relação que se estabelece entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Há vários tipos dessas relações, que são as relações básicas pelas quais as coisas são criadas, construídas e produzidas, daí serem chamadas ‘relações de produção’. A complexa articulação dessas relações de produção configura o que Guareschi (2004b) sugere denominar ‘modos de produção’, tradicionalmente denominados ‘sistemas de produção’. Modos de produção são, portanto, modos pelos quais os/as humanos/as produzem cotidianamente suas vidas. Diferentes modos de produção distinguem-se por diferentes tipos de relação entre as pessoas, entre o capital e o trabalho. Os modos de produção comumente estudados são o socialismo, o comunismo e o capitalismo. Embora fuja ao escopo deste trabalho pormenorizar a discussão sobre modos de produção, é importante mencionar que houve, ao longo da história, diferentes configurações em cada um destes três modos de produção, ou seja, diferentes socialismos, diferentes comunismos e diferentes capitalismos. Houve, e ainda há, posições teóricas, políticas e ideológicas variadas sobre os mesmos (ver Marx & Engels, 1848/2002; Guareschi, 2004b). Os modos de produção socialista e comunista, de forma genérica, são considerados modos cooperativos (Marx & Engels, 1848/2002), nos quais as relações são de cooperação entre as pessoas que trabalham e entre o capital e o trabalho. Nestes modos de produção os/as trabalhadores/as apropriam-se coletivamente dos frutos do seu trabalho. Já no capitalismo, as relações de produção pressupõem a expropriação (ou exploração) do trabalho humano por aquele que detém o capital. No capitalismo as relações são de dominação, ou seja, “há um dono que se apropria de algo que é do outro, no caso, do valor do seu trabalho. O termo ‘dominação’ origina-se do vocábulo ‘dominus’, que significa dono” (Guareschi, 2004b, p. 49). Dominação é, portanto, uma forma de relação na qual alguém toma, retira, subtrai, extrai, expropria e apropria-se de capacidades (que são poderes) de um outro. Há várias formas de dominação. Uma delas é “a criação de estereótipos, isto é, de qualidades tidas como negativas ou pejorativas em determinada sociedade, com o fim de expropriar poderes de outros” (Guareschi, 2004a, p. 94). Uma vez que estes ‘outros’ são vistos como passíveis de exploração, naturalizam-se e legitimam-se práticas discriminatórias de exclusão e de dominação sobre eles, tais como ocorrem no racismo, na homofobia e no sexismo (Negrão, 2002). Modos de produzir a vida envolvem não só as relações com o capital, com o trabalho e com/entre as pessoas que trabalham, mas também o trabalho envolvido na reprodução e na 29 maternidade. A revisão do conceito foi incluída pelas feministas (Benhabib & Cornell, 1987; Saffioti, 1988, 2001) para dar visibilidade ao trabalho (reprodutivo) geralmente ocultado e negligenciado nas considerações (androcêntricas e masculinas) sobre trabalho e modos de produção. Essa noção de expropriação e de dominação articula o conceito de capitalismo ao de patriarcado e à produção das subjetividades, dos papéis sociais e das configurações familiares. As relações de produção não produzem apenas coisas, meios para a subsistência, mas produzem também as pessoas. A partir das formas como as pessoas se relacionam, vão-se construindo subjetividades (Butler, 2000; 2003; Foucault, 1986, 1999; Scott, 1986), papéis e instituições sociais (Berger & Luckmann, 1966; Guareschi, 2004b; Reis, 1985), tais como as configurações familiares (Engels, 1884/1964). Capitalismo e patriarcado estão intimamente relacionados uma vez que, em ambos, as relações que se estabelecem entre os sujeitos baseiam-se em relações de dominação e expropriação, nas quais os homens, como categoria social, têm prerrogativas e vantagens sobre as mulheres (Bedregal, 2002; Fonseca, 2000a; Garretas, 2004; Saffioti, 1988, 2001; Toledo, 2003), dais quais sentem-se ‘donos’. Conforme Saffioti (1988, p. 144), “patriarcado e capitalismo são duas faces de um mesmo modo de produzir e reproduzir a vida” e, embora o patriarcado seja anterior ao advento do capitalismo ele agudiza as contradições atuantes na sociedade. O triunfo do capitalismo, imperial, neoliberal, militarista e depredador revelam uma das formas mais elaboradas do patriarcado, que têm mostrado, nos diversos atentados terroristas, nas últimas guerras e na crescente ‘feminização’ da pobreza, sua pior face (Bedregal, 2002; Garretas, 2004; Prá, 2001). Foi no clássico “Sexual Politics”, que Kate Millet, em 1970, introduziu o conceito de patriarcado para definir o sistema social de opressão às mulheres (Werba, 2002). Cabe destacar que o patriarcado não designa o poder do pai, mas dos homens, ou do masculino, enquanto categoria social (Goldner, 1985, 1988; Saffioti, 2001). O patriarcado é um modo universal ou, ao menos, predominante (Narvaz & Nardi, no prelo), geográfico e histórico, de relacionamentos, nos quais a política sexual implica o fato de que os homens estabelecem as regras de poder e de controle social (Goldner, 1988; Jones, 1994; Lerner, 1999; Millet, 1970; Pateman, 1993;Urry, 1994). O patriarcado é uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois princípios básicos: 1) as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens; e, 2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos (Millet, 1970). Algumas estudiosas (Lerner, 1999; Millet, 1970; Pateman, 1993; Saffioti, 1988; Toledo, 2003) atribuem ao capitalismo e ao patriarcado a gênese da violência contra a mulher e a rígida divisão sexual e social do trabalho. A supremacia masculina ditada 30 pelos valores do patriarcado atribuiu um maior valor às atividades masculinas em detrimento das atividades femininas; legitimou o controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia femininas; e, estabeleceu papéis sexuais e sociais nos quais o masculino tem vantagens e prerrogativas (Castells, 1999; Diamond & Quinby, 1998; Scott, 1986). O patriarcado é outro tema controverso (ver Aguiar,1997). Algumas pesquisadoras (Grossi, 2001; Scott, 1986; Werba, 2002) entendem que não se pode reduzir ao patriarcado a explicação de todas as formas de desigualdades e de opressão do gênero feminino. Lobo (1992) e Rowbotham (1984) criticam o uso do termo ‘patriarcado’ em função do caráter ahistórico, fixo e determinante impregnado em seu conceito. Também Castro e Lavinas (1992) entendem que “apesar da crítica ao patriarcado em sua forma substantiva, ou seja, como um sistema, em formações capitalistas, seu uso tem sido adjetivado, aparecendo em expressões como “família patriarcal” e “ideologias proletária e patriarcal”. Embora o conceito de patriarcado faça parte das formulações de Weber sobre a sociologia da dominação, em grande parte da produção feminista ignora-se tal matriz. O conceito de patriarcado em Weber tem delimitações históricas claras (...). Trata-se de um tipo de dominação em que o senhor é a lei e cujo domínio está referido ao espaço das comunidades domésticas ou formas sociais mais simples, tendo sua legitimidade garantida pela tradição (...). Não há, entre as feministas, concordância no seu uso, senão na identificação da noção de poder de dominação masculina. Para algumas, ele se dá ao nível da família, para outras, num plano mais geral, na relação com o Estado. O primeiro nível, o da família, já coloca dúvidas quanto à pertinência no uso do conceito de patriarcado para explicar a dominação masculina. Não somente a família mudou, mas mudou também a mulher, o homem e, portanto, as relações entre os sexos. O conceito de patriarcado impossibilita pensar a mudança, pois cristaliza a dominação masculina. Condena a mulher ‘ad eterna’ a ser um objeto, incorrendo pois, paradoxalmente, no mesmo movimento que as articuladoras do conceito querem denunciar” (p. 237). Nessa linha de argumentação, a diversidade da história ocidental das posições das mulheres, em contextos de transformação e contradições, dificilmente pode ser remetida a qualquer idéia unitária de patriarcado, a não ser como uma alusão à constante, mas jamais igual, modalidade de dominação masculina, conforme diz Machado (2000): “Não propugno a não utilização do conceito de ‘patriarcado’. Não entendo que seja inapropriado se falar de um ‘patriarcado contemporâneo’. As relações patriarcais, devidamente definidas em suas novas formas e na sua diversidade encontram-se presentes na contemporaneidade, mas seu uso implica um sentido totalizador, quer seja na sua versão adjetiva ou substantiva, e empobrece os sentidos contraditórios das transformações. Entendo que as transformações sociais contemporâneas dos lugares das mulheres e dos homens e dos sentidos das diferenças de gênero, fogem ao aprisionamento do termo ‘patriarcado’. A utilização do conceito de relações de gênero, não define, a priori, os sentidos das mudanças, 31 e permite construir metodologicamente uma rede de sentidos, quer divergentes, convergentes ou contraditórios” (p. 3). Já para Pateman (1993, p. 167), “o poder natural dos homens como indivíduos (sobre as mulheres) abarca todos os aspectos da vida civil. A sociedade civil como um todo é patriarcal. As mulheres estão submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto na pública”. Nesse sentido, há, segundo ela, um patriarcado moderno, contratual, que estrutura a sociedade civil capitalista. O patriarcado moderno vigente alterou sua configuração, mas manteve as premissas do pensamento patriarcal tradicional. O pensamento patriarcal tradicional envolve as proposições que tomam o poder do pai na família como origem e modelo de todas as relações de poder e autoridade, o que parece ter vigido nas épocas da Idade Média e da modernidade até o século XVII. O discurso ideológico e político que anuncia o declínio do patriarcado, ao final do século XVII, baseia-se na idéia de que não há mais os direitos de um pai sobre as mulheres na sociedade civil. Entretanto, enfatiza Pateman (1993), uma vez mantido o direito natural conjugal dos homens sobre as mulheres, como se cada homem tivesse o direito natural de poder sobre a esposa, há um patriarcado moderno. 1. 6 As famílias brasileiras De acordo com Goldner (1985, 1988), não é mais necessário comprovar a existência do patriarcado, dada sua evidente influência na estruturação da família pequeno-burguesa ocidental. No Brasil, estudiosos (Canevacci, 1987; Figueira, 1986; Reis, 1985; Saffioti, 1979; Xavier, 1998) entendem que a história da instituição familiar teve como ponto de partida o modelo patriarcal, importado pela colonização e adaptado às condições sociais do Brasil de então, latifundiário e escravagista. Na família colonial, o patriarca era o detentor das posses, não apenas de seu latifúndio, mas de sua família, de seus agregados e de seus escravos. Nessa configuração, a mulher era considerada propriedade do patriarca. Mercadoria cambiável nos casamentos arranjados, depois de casada, cabia à mulher administrar a casa e servir ao marido como reprodutora. A explicação biológica de que a constituição da mulher é mais frágil e inferior a do homem fundamentava sua posição ocupada na sociedade da época, bastante limitada. O amor romântico não era a tônica dos enlaces. O casamento, contrato sócio-político e econômico, não pressupunha a afetividade e nem a sexualidade romântica características da família burguesa moderna. Mesmo restrito às classes dominantes, uma vez que a classe trabalhadora não tinha bens econômicos a preservar pelo contrato de casamento, este modelo influenciou profundamente a realidade social brasileira. A moça, propriedade entregue ao casamento junto com um dote, sujeitava-se à vontade do patriarca que transigia livremente sobre seu corpo. A mulher casada ou a jovem solteira que transgredisse os ditames patriarcais 32 estavam sujeitas ao confinamento religioso. A tríade que sustentava a ideologia colonial era o Patriarca, a Propriedade e a Igreja (Del Priore, 2001; D’Incao, 1989; Rocha, 2003; Schumaher, 2000). Apesar da desintegração do patriarcado rural, que ocorreu de forma diferenciada em diversas regiões do Brasil (Freyre, 1933/1984), a mentalidade patriarcal permaneceu na vida e na política brasileira através do coronelismo, do clientelismo e do protecionismo. Estes elementos podem ser identificados na adoração dos santos, padroeiros e na figura do coronel, necessários à proteção do povo (Baquero, 2001; Chauí, 1989; Dowbor, 1999). Mesmo no meio urbano, a gênese das atitudes autoritárias sobre a condição feminina deve ser entendida em relação aos esquemas de dominação social que caracterizam o patriarcado tradicional brasileiro (D’Ávila Neto, 1994). A posição da mulher, na família e na sociedade em geral, desde a colonização até hoje, demonstra que a família patriarcal rural escravagista foi uma das matrizes de nossa organização social (Saffioti, 1979, 1988, 2001). As mulheres brasileiras, nas primeiras décadas do século XX, saíram da tutela do senhor do período colonial e não ficaram mais aprisionadas na casa burguesa. Ainda assim, não haviam conquistado os direitos civis garantidos ao homem. Precisavam exigir seus direitos de cidadã e aumentar sua participação na vida pública. Em 1916, foi criado o Código Civil Brasileiro, de cunho paternalista, no qual constava que a mulher casada só poderia trabalhar com a autorização do seu marido. Em 1934, em meio ao governo provisório de Getúlio Vargas, uma nova constituição assegurou o voto da mulher. O trabalho feminino foi regulamentado pela Consolidação das Leis Trabalhistas somente em 1941. Durante a ditadura Vargas, os movimentos feministas foram reprimidos, sendo retomados novamente no início da Segunda Guerra Mundial. Nesta época, nos países desenvolvidos, os homens foram para o front de batalha e as mulheres tiveram que trabalhar para sustentar suas famílias. O Estado de Bem-Estar Social, característico do pósSegunda Guerra, em 1945, girava em torno do pleno emprego masculino e propunha o cuidado feminino do lar. A mulher, beneficiária da do suporte social assegurado pelo trabalho masculino, não dispunha das mesmas garantias, a não ser enquanto esposa ou filha, o que evidenciava sua condição de dependente do marido-pai. Percebida apenas como uma coadjuvante no sustento da família, não sua mantenedora, o salário feminino poderia ser inferior aos salários gerais. Somente em 1962 é que o Código Civil Brasileiro sofreu alterações, permitindo que mulheres casadas pudessem trabalhar sem a autorização de seus maridos. A Constituição Federal de 1988 e o Novo Código Civil Brasileiro, de 2002, que substituiu o Código Civil, ainda de 1916, consolidaram alguns direitos femininos já existentes na sociedade. Esses direitos consolidados são frutos de legislações esparsas, de matérias 33 doutrinárias e de decisões de tribunais que tiveram que atender às exigências da sociedade moderna liberal globalizada. No Novo Código, a família não seria mais regida pelo pátrio poder, ou seja, pelo poder do pai, como na época feudal, mas pelo pater familiae, que pressupõe a igualdade de poder entre os membros do casal. Alguns termos que constavam no Código anterior foram alterados a fim de diminuir a linguagem androcêntrica nele contido, entre eles os termos ‘todo homem’, que foi substituído por ‘toda pessoa’ (Dias, 2004a, Machado, 2001; Pimentel, 1998; Rocha, 2003; Verucci, 1988a, 1988b). No entanto, a igualdade de direitos e de poderes pressuposta pelo pater familiae está apenas no papel (Machado, 2001). Estudos recentes com famílias brasileiras (Falcke & Wagner, 2000; Spina, Morita, Camargo & Cerveny, 1979; Szymanski, 1992, 1994, 1997, 1998; Wagner & Bandeira, 1996; Zamberlan, Camargo & Biasoli-Alves, 1997) revelam que estereótipos sexistas característicos permanecem no imaginário social. A idéia de família na contemporaneidade refere-se ao modelo da família monogâmica nuclear, burguesa e patriarcal descrito como o “modelo de família nuclear burguesa com conotação normativa” (Szymanski, 1997, p. 26). Este modelo de família baseia-se em relações de parentesco, estruturada em um contexto de relações estáveis marcada pela autoridade do pai sobre a mãe e os filhos. Conforme Szymanski (1997, 1998), A idealização desta forma de organização familiar seria fruto da mediação institucional, que determina e legitima uma forma específica de interação familiar como a ideal. Este modelo ideal de família não corresponde, entretanto, às possibilidades reais das famílias que vivem na pobreza.A família nuclear burguesa baseada na autoridade patriarcal parece ser o modelo ‘normal’ de família no imaginário social que, mesmo que não seja efetivamente vivida, é a família pensada e idealizada. A autoridade na família ‘pensada’ é exercida pelo pai e somente na ausência do mesmo a mãe poderá assumila. Na família ‘vivida’, a autoridade evidencia uma inferioridade social em relação às mulheres e às crianças (Szymanski, 1994). Ainda que a participação dos homens nas famílias de nível sócio-econômico baixo seja bastante precária (uma vez que estas famílias geralmente constituem-se sem a presença do pai, devido à separação ou ao abandono), persiste o modelo do homem como provedor financeiro e de autoridade (Szymanski, 1992). A hegemonia do modelo idealizado da família nuclear e a dicotomia entre ‘família pensada e família vivida’ (Szymanski, 1997, 1998), foram encontradas também em meninas maltratadas que não mais vivem em suas famílias por estarem institucionalizadas (De Antoni & Koller, 2000), e em crianças provenientes de famílias ‘reconstituídas’ (Wagner & Bandeira, 1996). Pesquisa realizada por Falcke e Wagner (2000), com cinqüenta mulheres, mães e madrastas, encontrou um forte legado transgeracional relativo aos papéis de gênero. Na 34 concepção de mãe expressa pelas mulheres pesquisadas, as mulheres são responsáveis pelo bem estar da família, sendo natural o papel de mãe na vida de uma mulher. Tal concepção correspondeu ao mito do amor materno incondicional, o que demonstra, segundo as autoras, o poder e o valor que os mitos sociais têm na vida e na conduta das pessoas. Spina, Morita, Camargo e Cerveny (1979) relatam a permanência da distinção, em famílias brasileiras, entre os papéis do pai e o da mãe na família nuclear contemporânea. Nestas famílias, as mulheres foram percebidas segundo valores tradicionais veiculados pela cultura acerca da divisão do trabalho na esfera doméstica conforme o sexo da pessoa. O papel assumido pela mãe relaciona-se à criação e ao cuidado dos filhos, enquanto o papel do pai, além de provedor econômico (embora a mãe também participe do sustento da família), associa-se à disciplina e à autoridade (Zamberlan, Camargo & Biasoli-Alves, 1997). O casamento e a maternidade ainda são vistos como as principais fontes de realização feminina (Cardoso, 1997a, 1997b; Szapiro & Féres-Carneiro, 2002). A crença de que a mãe deveria ter dedicação em tempo integral aos filhos foi encontrada em famílias em situação de vulnerabilidade social investigadas por Cecconello (2003). Essa crença constituiu o modelo de mãe ideal tanto para as mães quanto para os filhos pesquisados. A sobrecarga de papéis foi relatada por essas mulheres, que tinham que desempenhar o papel de mãe e de pai ao mesmo tempo, devido à posição periférica dos pais de seus filhos. Possati e Dias (2002), em pesquisa conduzida com mulheres de classe social privilegiada, com terceiro grau e exercendo atividades liberais, revelou que o trabalho remunerado foi percebido como importante fonte de prazer e realização pelas mulheres entrevistas. Entretanto, os meios de comunicação continuam a mistificar as informações, gerando culpa para as mulheres que não se limitam à esfera doméstica no desempenho dos papéis tradicionalmente estabelecidos pela sociedade patriarcal. Estudos de Cardoso (1997a, 1997b) encontraram que às mulheres ainda é atribuída a responsabilidade pela mediação das relações afetivas na família. O fracasso nessa tarefa é geralmente vivenciado como culpa por esta mulher que, não acreditando na possibilidade de manter-se sozinha, e desejando manter a família unida, acaba por submeter-se, inclusive, a relações violentas. A hegemonia da organização familiar patriarcal é questionada por investigações (Corrêa, 1982; Fonseca, 1989, 1995b, 1997, 2001) que demonstram a pluralidade das famílias brasileiras, entre elas as famílias chefiadas por mulheres e as famílias com filhos de criação. Conforme Corrêa (1982, p.22), “sob a hegemonia do modelo patriarcal, foi ocultada a diversidade de uma sociedade multifacetada, móvel, flexível e dispersa, na tentativa de acomodá-la dentro dos estreitos limites do engenho ou da fazenda”. Segundo esta autora, 35 trabalhos como “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, de 1933, e “The Brazilian Family”, de Antonio Candido, de 1951, parecem ter contribuído a uma certa normatização dos modos de organização familiar e doméstica do povo brasileiro. A concepção de família aparece, assim, no discurso científico e social como uma única e específica forma de organização, ou seja, da família conjugal monogâmica, patriarcal, urbana e burguesa. Essa forma de organização, típica da classe burguesa nas sociedades ocidentais contemporâneas, é percebida como o modelo ‘normal’ de família no imaginário social, naturalizada e legitimada como modelo monolítico e hegemônico de organização familiar. As demais configurações familiares são desqualificadas ou não reconhecidas como formas legítimas de ‘ser família’ (Canevacci, 1987; Figueira, 1986; Gomes e cols., 2002; Mitchell, 1987; Xavier, 1998). Mesmo reconhecendo a pluralidade e a heterogeneidade constitutiva de nosso povo (Rolnik, 1998a) e de nossas formas de organização familiar (Corrêa, 1982; Fonseca, 1997), diante do exposto, parece que a idéia de família na contemporaneidade ainda corresponde à família monogâmica nuclear, burguesa e patriarcal. A permanência dos valores patriarcais inscritos na família contemporânea brasileira remete ao processo de institucionalização (Berger & Luckmann, 1966). A família, através do processo de socialização de seus membros, prescreve padrões de comportamento a meninas e a meninos, padrões esses que, naturalizados e reificados, são institucionalizados e reproduzidos de geração em geração (Bourdieu, 1998; Reis, 1985). Dada a influência dos ditames patriarcais na matriz da civilização ocidental e, inclusive, da organização social brasileira (Goldner, 1988; Rago, 1997; Saffioti, 1979, 1988), as famílias brasileiras tendem a organizar-se conforme esses ditames. Institucionalizada a ordem patriarcal, a obediência e a submissão das mulheres e das crianças ao homem-pai fica naturalizada, solo fértil para os abusos masculinos (Bourdieu, 1999; Fontes, 1993; Saffioti, 1999). Estes elementos evidenciam-se na medida em que crianças, adolescentes e mulheres são as principais vítimas da violência familiar e doméstica. No mundo, um milhão de crianças tem sido divulgado como vítimas de violência doméstica e de exploração sexual. No Brasil, este número é de cem mil crianças e mulheres exploradas sexualmente (Koller, 1999; Nunes, 2003). A adesão a modelos estereotipados de gênero e a distribuição rígida e hierárquica de papéis dentro da família tem sido percebida na dinâmica dessas famílias violentas e incestuosas, cujas relações parecem corresponder à configuração típica das estruturas patriarcais (Narvaz & Koller, 2004a). Articulam-se, assim, os construtos de poder, patriarcado, violência e gênero como fundamentais à compreensão da dinâmica das famílias 36 violentas e incestuosas (Bravo, 1994; Hare-Mustin, 1987; McConaghy & Cottone, 1998; Saffioti, 1999). 1.7 Família e violência O termo ‘violência’ tem sua origem no “latim violentia, ato de violentar, constrangimento físico ou moral, ao qual pode se acrescentar a coação ou coerção psicológica” (Levisky, 1997, p. 24). A violência é uma relação de forças na qual há um desequilíbrio ou um abuso de poder. Caracteriza um estado de dominação e de expropriação quer de indivíduos, quer de grupos ou de classes sociais sobre outrem. O termo ‘violência’, na medida que pressupõe um abuso de poder, tem sido utilizado como sinônimo de ‘abuso’ (Corsi, 1997; Foucault, 1995; Guareschi, 2004a, 2004b; Odalia, 1993; Ravazzola, 1999). A violência pode assumir várias formas, podendo-se falar em violências, no plural. Na atualidade, são identificadas algumas destas formas, quais sejam: violência doméstica, violência familiar, violência urbana, violência comunitária, violência institucional, violência social, violência política, violência revolucionária, violência simbólica, violência de gênero e violência estrutural (Bourdieu, 1998; Corsi, 1997; Odalia, 1983; Sluski, 1996; Werba & Strey, 2001). Todas essas formas de violência estão interligadas, sobrepondo-se, muitas vezes, umas às outras. As diferentes definições e tentativas de agrupamentos das formas de violência em categorias são apenas recursos heurísticos utilizados para facilitar a compreensão de um fenômeno complexo como a violência. Libório e Sousa (2004) sistematizaram algumas destas violências em categorias explicativas, que são: a violência estrutural, a violência social, a violência interpessoal. As autoras incluem nessa sistematização a dimensão psicológica, referindo-se ao processo de formação da subjetividade, no qual podem estar inscritos processos de vulnerabilização. A violência estrutural é a violência inerente à forma de organização socioeconômica e política de determinada sociedade, que deve ser entendida a partir de condições históricas e sociais concretas. Na atualidade, a violência estrutural abarca os fenômenos da exclusão social, da globalização e das imposições das leis do mercado. Outras definições articulam a violência estrutural à violência social, como Minayo (1994): “Violência estrutural pode ser descrita como aquela que se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte” (p.10). 37 Na concepção de Odalia (1983, p. 38), “toda violência é social”. Ainda assim, violência social pode ser delimitada à forma de violência que atinge seletiva ou preferencialmente certos grupos, incluindo-se aí as dimensões de gênero, raça/etnia, geração e classe social. A violência de gênero “envolve ações ou circunstâncias que submetem unidirecionalmente, física e/ou emocionalmente, visível e/ou invisivelmente as pessoas em função de seu sexo" (Werba & Strey, 2001, p. 72). As violências racial ou étnica, geracional e de classe direcionam-se, respectivamente, contra diferentes raças/etnias, contra crianças e idosos/as e contra determinadas classes sociais (Guareschi, 20004b; Saffioti, 1992; Toledo, 2003). A violência revolucionária, que é também uma forma de violência política, consiste nas diferentes formas de resposta dos grupos, classes, nações e indivíduos oprimidos à violência estrutural (Minayo, 1994; Sluski, 1996). A violência revolucionária compreende ainda atos terroristas, tortura, assassinatos políticos, invasões de países e legislações que impedem a organização das classes sociais. Na medida em que as relações de força existentes na sociedade aparecem naturalizadas, ocultando-se sua historicidade, a violência passa a ser institucionalizada (Odalia, 1993). Entretanto, a especificidade da violência institucional abarca violências que são impetradas por instituições (Sluski, 1996). O ocultamento das relações abusivas de força ocorre de forma sutil e invisível através das vias simbólicas da comunicação e do desconhecimento, ao que Bourdieu (1930/1999, p.7) chama de “violência simbólica”. A violência não se limita, portanto, apenas a relações coercitivas visíveis que impliquem o uso da força física, operando também no nível da linguagem e do simbólico, ou do discurso, estando disseminadas pelas diversas instituições sociais. A categoria de violência interpessoal proposta por Libório e Sousa (2004) inclui as formas de violência presentes nas relações interpessoais, tanto intra como extrafamiliares. Violência intrafamiliar, ou violência familiar, é a violência exercida entre membros de uma mesma família. A violência familiar tem sido associada à violência doméstica, que ocorre no espaço doméstico. Ainda que a violência familiar ocorra comumente no espaço doméstico, não são, entretanto, idênticas, podendo haver violência familiar em espaços urbanos (Corsi, 1997, 2003; Ravazzola, 1997). A violência familiar pode dar-se de forma passiva ou ativa como violência contra crianças e adolescentes, como violência contra a mulher, como violência conjugal cruzada e como violência contra o/a idoso/a. As categorias classicamente estudadas de violência familiar contra crianças e adolescentes são a violência física, a violência emocional, a negligência e o abuso sexual. Outras formas de violência contra crianças e adolescentes têm igualmente sido objeto de atenção, entre elas a exposição à 38 violência, a violência fatal, a Síndrome de Münchausen por Procuração e a Síndrome do Bebê Sacudido (Amazarray & Koller, 1998; Koller, 1999; Pires, 1999). Violência sexual, ou abuso sexual, é uma forma de violência interpessoal que geralmente ocorre no âmbito familiar e doméstico contra crianças e contra adolescentes (Corsi, 1997, 2003; Furniss, 1993; Libório & Sousa, 2004; Perrone & Nanini, 1998). Violência sexual, violação sexual ou abuso sexual são termos que remetem a um mesmo fenômeno. Entende-se abuso sexual como toda exposição de uma criança à estimulação sexual e todo e qualquer ato perpetrado por determinado sujeito que, valendo-se de uma posição de maior poder sobre outrem, impõe práticas sexuais que incluem a sedução, o assédio, o toque, o voyeurismo e o exibicionismo, a exposição à pornografia, o intercurso oral, anal, o estupro e a exploração sexual comercial, com ou sem a utilização de força física a fim de obter prazer e estimulação sexual. Tais práticas não são consentidas ou sequer compreendidas pela vítima da violação que, dado seu nível de desenvolvimento, no caso das crianças e adolescentes, ou sua condição de ‘menor poder’ (Saffioti, 1979), como no caso das mulheres, são incapazes de dar seu consentimento àquelas práticas de forma livre, consciente e autônoma. Inclui-se nesta definição a prática de atos perpetrados não só por adultos em relação a crianças, adolescentes ou mulheres, mas, inclusive, práticas que envolvem um adolescente e uma criança, ou mesmo entre crianças, entre as quais haja cerca de cinco anos de diferença de idade entre o autor do ato abusivo e a vítima (Furniss, 1993; Koller, 1999). Abuso sexual incestuoso é uma forma de abuso sexual, que ocorre predominantemente dentro da família. Originalmente, foi concebido como a atividade sexual abusiva entre membros de uma mesma família nuclear, ou seja, entre pais e filhos ou entre irmãos (Farinatti, Biazus, & Leite, 1993). Na atualidade, o conceito ampliou-se e abarca a atividade sexual abusiva cometida também por um cuidador. Ocorre, portanto, não apenas entre pais e filhos biológicos, estendendo-se a outros graus de parentesco e de relação de proteção, tutela ou cuidado, além do cuidado parental, tais como padrastos, tutores ou cuidadores de uma criança ou adolescente (Amazarray & Koller, 1998; Flores & Caminha, 1994). Há uma tendência na literatura, aponta Saffioti (1999), em não diferenciar o abuso sexual incestuoso do incesto. São fenômenos diferentes, embora em ambos esteja presente a relação de parentesco. O incesto define-se por qualquer contato de natureza sexual entre parentes consangüíneos ou afins que participam dele de forma livre, apesar do caráter de interdição nele implicado. Não há, necessariamente, coerção em uma relação incestuosa, podendo ocorrer entre irmãos, entre primos e entre tios e sobrinhos (Saffioti, 1999). De toda forma, as expressões ‘incesto contra crianças e contra adolescentes’e ‘vítimas de incesto’ 39 enfatizam a dimensão abusiva aí implicada. Os termos ‘contra’ crianças e adolescentes e ‘vítimas’ pressupõem que há coerção física ou emocional nesta forma de incesto. Apesar das ponderações de Saffioti (1999), o termo incesto é amplamente utilizado por estudiosos (Corsi, 1997; 2003; Farinatti, Biazus & Leite, 1993; Furniss, 1993; Koller, 1999; Ravazzola, 1997,1999) que tratam do tema da violência contra crianças e contra adolescentes para referirse ao abuso sexual incestuoso. Além disso, ao colocar em evidência que o incesto pode ser uma livre escolha, há o risco de reafirmarem-se discursos que responsabilizam crianças e adolescentes pelos abusos que sofrem. Ao longo deste estudo, o uso da expressão ‘vítimas de incesto’ ou ‘incesto contra crianças e contra adolescentes’, estará sendo utilizado para tratarse de abuso, com base nesta linha de argumentação. Ainda que se desconheçam em todos os lugares do mundo dados precisos, a incidência de abuso sexual é alta e relevante em termos dos efeitos deletérios produzidos na subjetividade das vítimas e de toda sua família. A questão do incesto é um desafio não só às políticas de saúde, mas objeto de preocupação social (Marques, 1994; Nunes, 1999). Um dos trabalhos que oferece um cálculo mais aproximado acerca da incidência de abusos sexuais é a pesquisa de Russel (1978) realizada em San Francisco, nos Estados Unidos. A pesquisa, realizada com uma amostra aleatória de 930 mulheres adultas, encontrou 28% de incidência de abusos sexuais sofridos por estas mulheres antes dos 14 anos de idade. Outro estudo, descrito por Foeken (1989), com 1000 mulheres representativas da população geral, na Holanda, apontou que uma em cada três mulheres tinha sido vítimas de abusos sexuais antes da idade de 15 anos, sendo que uma em cada seis havia sido vítima de incesto. Nos casos de incesto, 3% referiam-se à relação pai-filha. Flores (1997) identificou 12,6% de casos de incesto no Rio Grande do Sul, embora estime que apenas de cinco a 10% dos casos sejam notificados. Pesquisas estimaram que 18% das mulheres de Porto Alegre, menores de 18 anos, sofreram algum tipo de assédio sexual por algum membro da família, revelando a presença concomitante de abuso físico em 74% dos casos de abuso sexual (Oliveira & Flores, 1999). Em levantamento realizado pela Delegacia para a Criança e o Adolescente de Porto Alegre, entre os anos de 1996 e 1998, os casos de abuso sexual incestuoso identificados neste período foram predominantemente contra meninas (96%), que eram virgens (90%), brancas (80%), entre dez e 14 anos de idade (56%). As vítimas encontravam-se em casa apenas com o agressor no momento da violência sexual (80% dos casos), sendo que não ofereceram resistência ao abuso (70%). O tempo para a efetivação da denúncia também foi pesquisado: 30% das vítimas levaram de três a seis anos para romper com o silêncio (CCDH, 1999/2000). 40 A literatura é extensa ao apontar que a maioria dos abusadores sexuais é de homens adultos, predominantemente pais biológicos e padrastos ou que têm algum grau de parentesco com as vítimas, geralmente meninas (Braun, 2002; Corsi, 1997; Fontes, 1993; Herman, 1991; Kristensen, Oliveira & Flores, 1999; Perrone & Nanini,1998). As meninas são cinco vezes mais atingidas por abusos sexuais que os meninos (Browne & Finkelhor, 1986; Finkelhor, 1994). O incesto é uma forma de violência de gênero (Narvaz, 2002a), na medida em que submete física, psíquica e emocionalmente, em especial as meninas, a práticas abusivas (Werba & Strey, 2001). Esta compreensão articula a violência de gênero às demais formas de violência (Camargo, 1998), bem como elucida que a gênese e a manutenção da violência de gênero na sociedade estão relacionadas com o conceito de patriarcado (Goldner, 1985, 1988; Goodrich e cols., 1990; Millet, 1970; Pateman, 1993; Saffioti, 1999). A violência constitui um componente fundamental do adestramento das mulheres à ordem social patriarcal. A garantia de sobrevivência e de manutenção da família tem na obediência dos filhos e na submissão e dependência das mulheres, a metodologia operativa da dominação patriarcal, terreno fértil para a ocorrência de abusos (Bourdieu, 1999; Gilligan, 1979, 1982; Ravazzola, 1999; Strey, 2001). As bases da violência intrafamiliar nas crenças instituídas no sistema inter-relacional e transgeracional familiar são denunciadas por Azevedo e Guerra (1989): “Entre os deveres sagrados da esposa está a obediência total ao marido (...), que a usa para satisfazer seus desejos sexuais de acordo com suas necessidades (...). Os elementos mais vulneráveis dentro da casa são as mulheres que, as quais, por ignorância, medo e submissão à autoridade não ousam protestar” (p. 60). 1.8 Violência e gênero Através dos tempos e nas mais diversas culturas, as mulheres, desde meninas, são educadas para responderem às necessidades dos homens e não às suas próprias. Há crenças sexistas de que os homens têm fortes necessidades sexuais e que não podem se controlar, devendo ser satisfeitos em todas as suas necessidades, mesmo às sexuais, às quais as mulheres (e as crianças) devem atender (Felipe, 1999; Ravazzola, 1997, 1999). Determinadas situações, ainda que violadoras das subjetividades e dos direitos das mulheres e das crianças, como o abuso sexual, são suportadas a fim de que a família permaneça ‘intacta’ (Cardoso, 1997a, 1997b). Os aspectos da cultura adultocêntrica e falocêntrica aparecem, geralmente, associados, legitimando a cultura da violência contra a mulher e contra as crianças e adolescentes, especialmente do gênero feminino (Azevedo & Guerra, 1995; Narvaz, 2002a). Reside também nos deveres de obediência à autoridade paterna a impossibilidade de recusa da menina ao ataque sexual do pai, cuja prescrição de obediência e de zelo pela manutenção da 41 família rouba-lhe a infância e a possibilidade de decidir com quem compartilhar sua experiência erótica (Azevedo & Guerra, 1999; Felipe, 1999; Ferrari, 2002; Furniss, 1993; Herman, 1991; Narvaz & Koller, 2004a). Conviver com a violência imposta pela socialização desigual e sexista de gênero desde tenra idade faz com que as práticas abusivas sejam naturalizadas e banalizadas. Essa aprendizagem acontece a partir da vivência de relações abusivas, como ator, vítima e testemunha da violência nas relações familiares e sociais (Koller, 1999). Testemunhar violência de forma reiterada pode conduzir a crenças de que a violência é um componente normal em uma relação conjugal, de que não há outros tipos possíveis de relação entre homens e mulheres e que estas devem se submeter. Mulheres que sofrem violência conjugal na vida adulta apresentam maior probabilidade de haver testemunhado violência doméstica em suas infâncias. Os papéis estereotipados de gênero veiculados pela cultura através da família tornam invisível tanto a produção e a reprodução da subordinação feminina (forma de violência simbólica e de gênero), quanto a violência física. Estas violências são naturalizadas e reificadas (Berger & Luckmann, 1966). Institucionalizadas pela cultura sexista através da prescrição de papéis sociais e familiares, a regra da subordinação e da obediência são absorvidas como fazendo parte da dinâmica familiar e como algo que não poderia ser evitado (Cardoso, 1997a, 1997b; Giberti & Fernandez, 1989; Koller, 1999; Strey, 2000). A naturalização e a institucionalização das relações violentas facilita a passividade e a submissão das mulheres, das crianças e adolescentes às situações de violência sofridas, que sequer são identificadas como tal (Ravazzola, 1997, 1999). Experiências reiteradas de violência de baixa e média intensidade, tais como a “violência da socialização cotidiana e a lavagem cerebral” (Sluski, 1996, p. 236), geram distorções cognitivas através das quais as vítimas incorporam os valores dos opressores de forma não crítica. Mulheres vítimas de abuso físico reiterado podem desenvolver o que ficou conhecido como ‘Síndrome de Estocolmo’, processo segundo o qual uma refém de um assalto desenvolveu aliança profunda com um dos agressores e acabou casando com ele (ver Sluski, 1996). Esses mecanismos de assujeitamento, anestesia, paralisação e embotamento afetivo têm sido objeto de diversas investigações. Pesquisa conduzida por Sawaia (1995), acerca dos processos de consciência de mulheres da classe trabalhadora que viviam em condições de miserabilidade e eram publicamente desprezadas, revelou que estas mulheres eram incapazes de perceber seu próprio sofrimento, mostrando um anestesiamento subjetivo. Interpretavam a situação como condição de vida que dificilmente poderia ser alterada e cujo melhor encaminhamento era a conformidade. Estes sentimentos ideológicos, arraigados no processo de socialização, como a vergonha e a culpa, 42 bem como o medo, favoreceram a subalternidade. Tais mecanismos de assujeitamento e subordinação atuam sobre as emoções até anulá-las, dissociando o pensar do fazer e do sentir como formas de sobrevivência a condições extremamente adversas. Observou-se nestas mulheres um estado de apatia e de tristeza passiva descrito como ‘tempo de morrer’ por Sawaia (1995), semelhante à ‘anomia’ (Corsi, 1997). A aparente submissão tem sido, entretanto, erroneamente percebida como consentimento e aceitação: “a aparente passividade demonstrada por muitas mulheres ao serem violadas, freqüentemente, é interpretada como aquiescência. No entanto, a passividade (paralisação) nasce do pânico frente ao agressor e ao medo da morte” (Zuwick, 2001, p.86). Especificamente em relação às vítimas de abuso sexual crônico, sentimentos como vergonha, culpa e medos por elas experimentados produzem um anestesiamento subjetivo e uma atitude de conformidade diante da situação percebida como inalterável (Corsi, 2003; Herman, 1991; Marques, 1994; Mason, 2002; Miller, 2002). Eventos traumáticos vividos pelas vítimas de incesto afetam suas subjetividades, alterando a percepção de si mesmas e da realidade. As vítimas relatam profunda descrença, desesperança, baixa-estima, falta de iniciativa e de autonomia, mostrando-se excessivamente dependentes e carentes de afeto, culpadas e envergonhadas pelo abuso sofrido (Browne & Finkelhor, 1986; Furniss, 1993; Herman, 1991; Russel, 1978). A vergonha é geralmente confundida com culpa, sendo que as mulheres parecem ter maior propensão a sentirem-se culpadas. Mason (2002) encontrou escores muito mais altos em escalas de vergonha nas mulheres do que nos homens pesquisados, especialmente nos itens que avaliam inferioridade e alienação. Diante da conexão com as emoções revividas a partir do trauma original, as vítimas de situações traumáticas, como o abuso sexual crônico, geralmente recorrem a mecanismos de defesa a fim de adaptar-se e sobreviver. Os mecanismos comumente acionados são a dissociação do pensamento, a negação e a anulação dos sentimentos, o que exerce um efeito mutilador sobre as capacidades cognitivas e a prontidão para a tomada de decisões e de ações efetivas (Banchs, 1995; Narvaz & Koller, 2004a; Silva, 2000). Nas situações de abuso crônico, as vítimas apresentam estados depressivos (Associación Pro Derechos Humanos, 1999) e alterações da consciência, submetendo-se, de forma passiva, aos rituais e às manipulações do perpetrador da violência (Corsi, 1997; Furniss, 1993; Góngora, 2000; Hirigoyen, 2000; Martín, 2000; Perrone & Nanini, 1998). Estes aspectos são evidentes no relato autobiográfico de Thomas (1988): “Seres humanos são entregues totalmente à violência de seus chefes e dos guardas. São como fantasmas, autômatos, parecem já não deter os comandos de seu cérebro. O sexo do 43 meu pai que faz de mim a coisa do homem (...) priva-me de toda a humanidade, eu já não existo. É ele que comanda meus gestos, não posso resistir, já estou morta. Roubou-me os comandos do meu cérebro. Já não sei mais dizer não a um homem. Basta uma palavra, um olhar de autoridade para eu me tornar obediente, dócil, submissa. Sou prisioneira do desejo do Outro, presa fácil, sem defesa. O amor só pode ser a tortura (...). Foi desse inferno que saí, é dessa pele de vítima que me arranco com tanta dor” (p. 144). Estudos (Amendola, 2004; Araújo, 1996, 2002; Felipe, 1999; Furniss, 1991; Saffioti, 1999) demonstram que a mãe sente-se confusa diante da suspeita ou constatação de que o companheiro abusa sexualmente da filha. Ambivalente também em relação à filha, a mãe sente raiva e ciúme, ao mesmo tempo em que atribui a si a culpa por não protegê-la. Na verdade, a mãe é igualmente vítima da violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração diante da ameaça de desmoronamento da família. Em qualquer das situações, o desmentido materno, a afirmação de que nada aconteceu, é o pior que pode acontecer a uma criança que revela o abuso sexual. A negação da mãe, segundo os referidos autores, pode estar ainda relacionada com uma cumplicidade silenciosa, freqüente em casais com conflitos sexuais, onde a criança ocupa um lugar (função sexual) que não é dela, desviando ou amenizando o conflito conjugal. Segundo Saffioti (1999) “a mãe sempre ‘sabe’, independentemente de seu grau de cultura, quando o marido está usando sexualmente a filha. Trata-se, todavia, de um conhecimento inconsciente. Ela intui, mas não tem provas. Ela sabe, mas não quer saber. O conhecimento está presente, mas, como causa muito sofrimento, é empurrado para o inconsciente (...). É , portanto, um saber inconsciente, por maior que seja a sensação de contradictio in subjecto que essa expressão possa causar. Não tem coragem de confirmar esse conhecimento indesejado, que provoca muita dor, seja fiscalizando a filha, seja conversando com ela e fazendo aberturas para que a menina fale” (p. 137). Para Azevedo e Guerra (1989, p. 60), “há uma tendência em responsabilizar a mãe por tudo o que acontece na família, daí acusá-la de fraca, negligente, incapaz, imatura ou mesmo conivente nos casos de abuso sexual incestuoso”. Apesar dos discursos da conivência, culpa e cumplicidade maternas diante do abuso sexual das filhas, a maioria das mães parece não estar ciente de que o abuso sexual ocorre (Zavaschi, Teitelbom, Gazal, & Shansis, 1991) e, quando sabem, são elas as que mais denunciam os abusos intrafamiliares. De acordo com Saffioti (1999, p. 131), “64, 5% das denúncias são feitas majoritariamente pelas genitoras, cifra compatível com estatísticas internacionais. As vizinhas têm papel importante neste contexto, denunciando o abuso sexual incestuoso em 13,3% dos casos”. Sattler (1994) refere que 76% das denúncias de abuso sexual são feitas pelas mães. Já para Felipe (1999), são raros os casos 44 de incesto na família acerca do qual as mães não têm conhecimento, silenciando e, inclusive, oferecendo a sexualidade das filhas como forma de se livrarem do sexo imposto e garantirem seu sustento econômico. O silenciamento da mãe é percebido como forma de manter a homeostase familiar, havendo um acordo tácito entre o casal sobre o desvio da sexualidade do pai em relação à filha, apesar do aparente segredo (Flores & Caminha, 1994; Furniss, 1993; Sattler, 1993). Nestes discursos, há um desvio implícito de responsabilidade do verdadeiro agressor (Ravazzola,1999), dinâmica segundo a qual “a vergonha de que deveria ser portador aquele que a agrediu volta-se contra a mulher e a silencia, tornando-a parte da rede que sustenta a dominação” (Zuwick, 2001, p. 89). Além de serem percebidas como passivas, acusadas de permanecerem em relações violentas e de não protestarem contra os abusos sofridos, as mulheres e meninas têm, ainda, sido vistas como provocadoras, sedutoras e, portanto, culpadas pela violência que sofrem (Jones, 1994; Koltuv, 1986; Ravazzola, 1999; Vigarello, 1998; Zuwick, 2001). As meninas, ao buscarem carinho e afeto da figura masculina, recebem sexo e são culpabilizadas por isso. É crucial entender que, mesmo diante de um possível comportamento sedutor da menina/adolescente, cabe ao adulto delimitar as fronteiras adequadas da experiência erótica. Como diz Neuter (1993, p.205), “apesar de seus comportamentos sedutores, que constituem uma demanda de reconhecimento de sua existência, de sua desejabilidade, de sua feminilidade, o que a filha demanda ao seu pai é que ele encarne o interdito.” As vítimas de abuso sexual jamais podem ser responsabilizadas pelo abuso sofrido (Amazarray & Koller, 1998; Furniss, 1993; Gabel, 1997; Madanes, 1991; Narvaz, 2004a, 2004b). Desvela-se, assim o discurso patriarcal inscrito nas teorias da provocação, da conivência e cumplicidade femininas (ver Narvaz, 2004a, 2004b), segundo as quais as mulheres e meninas, sedutoras, provocam a sexualidade masculina e são culpadas pelas violências que sofrem. Mãe e filha, nos casos de incesto, são colocadas numa posição de rivais, ao invés de vítimas. Tais teorias estigmatizam as mulheres, homogeneizando-as como co-autoras e culpadas pelos abusos sofridos, tanto por elas quanto pelas filhas. Às mães negligentes, não protetivas ou sexualmente não responsivas aos desejos sexuais dos maridos são atribuídos vários distúrbios psiquiátricos, rotuladas de doentes mentais (Miller, 1994; Miller, 2002). O silenciamento das mães diante do incesto das filhas, interpretado como cumplicidade e conivência, necessita ser situado no contexto histórico da subordinação feminina (Strey, 1998). Não se pode atribuir igual responsabilidade a pessoas que têm diferentes percentuais de poder em uma relação (Foucault, 1979/2002; Laird, 2002; Narvaz & Koller, 2004a; Perelberg, 1994). Para “compreender o porquê de a mulher permanecer com 45 quem a agride, torna-se necessário desvelar essa realidade oculta que oprime cotidianamente a mulher e a mantém no pólo da subordinação” (Cardoso, 1997b, p.136). A recusa em acreditar no relato das vítimas de abuso sexual não ocorre apenas pela mãe das vítimas. Profissionais que atuam em diversos segmentos, tais como na saúde, na educação e nos sistemas de garantias de direitos da infância e da adolescência, despreparados tecnicamente (Brino & Williams, 2003) e influenciados pela crença de que as crianças mentem e fantasiam sobre o abuso, tendem a desacreditar e a invalidar a tentativa de revelação. O tabu da sexualidade perpassa todo o tecido social, dificultando o acolhimento da revelação do abuso sexual não só pelas mães das vítimas de incesto, mas pela comunidade social e científica, o que é uma forma de (re)vitimização (Fontes, 1993; Gabel, 1997; Narvaz, 2004a, 2004b; Zuwick, 2001). A crença de que a criança fantasia o abuso parece estar associada à disseminação da psicanálise e das fantasias edipianas, tributárias da teoria freudiana da sedução. Na atualidade, alguns aspectos da psicanálise têm sido criticados (Kehl, 1992, 1998), em especial no que concernem à sexualidade feminina. Gallop (1982) e Masson (1984) demonstraram que as fantasias de sedução de pacientes analisadas por Freud não eram fantasias, mas relatos de abusos sexuais reais. Segundo estes autores, a teoria do trauma infantil teria sido originada destes relatos. Estas evidências estão documentadas nos debates de Freud com outros psicanalistas, com os quais se correspondia por cartas que foram encontradas no Museu de Viena por Masson. Dada a negativa repercussão destes achados na apresentação ao Círculo Psicanalítico, formado predominantemente por psicanalistas masculinos da Viena vitoriana de então, Freud teria modificado a teoria do trauma, elaborando a teoria da sedução. Conta Masson (1984): “Quando Freud anunciou suas novas descobertas no discurso de 1896 sobre a etiologia da histeria, não encontrou qualquer refutação fundamentada, qualquer discussão científica, mas apenas repulsa e reprovação. A idéia de violência sexual na família tinha tal carga emocional que a única reação que encontrou foi a aversão irracional. Enfrentando a hostilidade de seus colegas às suas descobertas, Freud sacrificou seu maior insight Quando Ferenczi, uma geração depois, foi levado por seus pacientes a mesma descoberta, encontrou reação semelhante (...). Quando outros quarenta anos depois Robert Fliess instou a comunidade psicanalítica a reexaminar a teoria do trauma sexual na infância, encontrou a reação que, já agora, se tornara comum” (p. 179). 1.9 A transmissão transgeracional da violência Nestas famílias abusivas identificam-se ainda padrões transgeracionais aprendidos, tanto de violência física quanto sexual (Azevedo & Guerra, 1989; Famularo & cols., 1994; Haz, Castillo & Aracena, 2003; Herman, 1991; Narvaz, 2002b, 2003). A experiência dos pais 46 em suas famílias de origem está relacionada à qualidade da parentagem na vida adulta. Parece haver um padrão de repetição relativamente estável dos processos tanto de adaptação e resiliência quanto de vulnerabilidade que é transmitido através de três ou quatro gerações familiares (Patterson & Capaldi,1991). O risco de repetição da experiência de negligência e de educação severa na infância tem sido demonstrado em diversas investigações (Belsky, 1980; Ferrari, 2002; Patterson & Capaldi, 1991; Simons & Johnson, 1996; Simons, Whitbeck, Conger & Chyi-In, 1991). Uma das principais conseqüências de haver sofrido abuso físico é a probabilidade de transformar-se num adulto abusivo. Oliveira e colaboradores (2002) investigaram estilos parentais de educação e padrões de transmissão intergeracional, encontrando correlação positiva entre as medidas de autoritarismo da avó materna e da mãe, o que ampara a hipótese da transmissão intergeracional. Grossi, Casanova e Starosta (2004) referem que um terço das crianças que sofrem violência vão reproduzir este ciclo no futuro. Pesquisas referidas por Haz, Castillo e Aracena (2003, p. 809) revelam “uma taxa de transmissão transgeracional de violência física de adultos maltratados em sua infância cerca de seis vezes maior que a taxa de violência intrafamiliar na população em geral”. Estudos (ver Appleyard & Osofsky, 2003) realizados com sobreviventes do Holocausto e veteranos da Guerra do Vietnã evidenciam que as experiências traumáticas têm efeitos duradouros sobre os indivíduos, que apresentam elevado grau de ansiedade e depressão, o que interfere no adequado exercício das funções parentais. Tais fenômenos, identificados como transtorno de estresse pós-traumático relacional ou transtorno de estresse pós-traumático à deux referemse à ocorrência simultânea da sintomatologia pós-traumática em um adulto cuidador e uma criança, em que a sintomatologia de um geralmente exacerba a sintomatologia do outro. Há posições (ver Gomes e cols., 2002) que questionam a hipótese da transmissão transgeracional da violência como explicação para os maus tratos infantis. Segundo Azambuja (2004, p. 267) “não existem estudos que apresentem evidências sólidas que confirmem esta hipótese de modo definitivo, muito antes pelo contrário (....) apenas entre 20% e 30% das pessoas que foram maltratadas na infância praticam agressões com seus filhos”. Embora existam poucos achados acerca da questão da transmissão transgeracional da violência sexual, pesquisas (Amendola, 2004; Correa, 2000; Narvaz, 2002b, 2003; Sattler, 1993, 1994) referem que muitas das mães das vítimas de incesto também foram abusadas na infância. Estas mães não receberam apoio de suas próprias mães, mostrando-se, na vida adulta dependentes, emocional e/ou economicamente dos companheiros. McCloskey e Bailey (2000) afirmam que meninas cujas mães foram sexualmente abusadas têm 3,6 mais chances de serem também sexualmente vitimizadas. Pesquisas sobre abuso sexual infantil (Fontes, 1993; 47 Herman, 1991) demonstram haver diferenças nos comportamentos de das crianças segundo o segundo o gênero das vítimas: as meninas tendem a ser revitimizadas de diversas formas na vida adulta e tendem a desenvolver mais quadros depressivos que os meninos. Já os meninos tendem a mostrar mais comportamentos de externalização e agressividade na infância e a tornarem-se homens mais violentos na vida adulta. Estes processos de transmissão de padrões através de gerações são descritos como processos de delegação através dos quais operam lealdades invisíveis como profecias, mitos, legados ou missões familiares (Andolfi & Angelo, 1989; Correa, 2000; Elkaim, 1990; Groissman, 1996; Tilman-Ostyn, 2000; Schutzenberger, 1997; Stierlin, 1981). O traumatismo, como vivência cumulativa não elaborada, transforma o vivido em algo impensável, algo que não é representado, que não pode ser lembrado e nem verbalmente expresso Constrói-se, assim, o segredo que passa a ser, muitas vezes, um legado familiar (Correa, 2000; Groissman, 1996; Laird, 2002; Langdon, 1993; Miller, 2002). Registros de necessidades não satisfeitas passam de uma geração a outra em busca de satisfação (Andolfi & Ângelo, 1989), em que as ‘contas não quitadas’ de uma geração passam à próxima em busca de ressarcimento: “uma pessoa, admitindo um fantasma que sai da cripta, sofre de uma doença genealógica familial e das conseqüências de um não-dito secreto” (Nicolas & Torok, 1987, citados por Schutzenberger, 1997, p.67). A revelação do abuso da filha parece catalizar a revivência de vitimização na infância das mães, que voltam a re-experimentar sintomas de estresse pós-traumático numa espécie de ‘incesto revisitado’ (Green, Coupe, Fernandes & Stevens, 1995; Laird, 2002). O impensável, o abuso da mãe na infância, durante muito tempo negado, parece retornar através do abuso da filha. Alguns sintomas acentuam-se à medida que o indivíduo encontra-se em situações que recordam ou simbolizam o trauma original (Correa, 2000; Silva, 2000; Tilman-Ostyn, 2000). 1.10 Violência: submissão e resistência Além do aspecto da transmissão transgeracional, que naturaliza e institucionaliza a violência na família, o alcoolismo também parece estar associado à violência conjugal, aos maus tratos infantis e ao incesto. Bass e Davis (1998) estimam que 50% das vítimas de incesto e 74% das mulheres de famílias alcoólicas provêm de lares alcoólicos, sendo física, sexual e emocionalmente abusadas. Pesquisas (Bolger, Thomas & Eckenrode, 1997; Kashani & Allan, 1998) indicam que a maioria das mães que sofreram violência conjugal maltrata seus filhos. O abuso de álcool pode desencadear situações de violência conjugal, bem como abuso e maus tratos infantis, servindo, muitas vezes, como justificativa para o comportamento 48 abusivo (Cecconello, 2003). Embora não se possa atribuir ao alcoolismo a explicação para a violência (ver Gomes e cols., 2002, Madanes, 1991), estes aspectos parecem desempenhar importante papel no silenciamento diante do segredo do incesto. A presença de abuso físico dificulta tanto a revelação do abuso sexual pelas crianças (Fontes, 1993), quanto atitudes mais assertivas das mulheres vítimas de violência conjugal de proteção a si e as suas filhas, dada a provável naturalização da violência e o assujeitamento com os quais sempre conviveram (Laird, 2002; Miller, 2002; Narvaz & Koller, 2004 a, Sluski, 1996). Embora tema controverso, a pobreza parece estar associada à violência como fator de risco para a ocorrência de abuso e de maus tratos infantis (Garbarino & Barry, 1997; Garbarino & Eckenrode, 1997; Levisky, 1997; Luthar, 1999; Nunes, 1999; Violante, 1997). Pesquisa de Fontes (1993), com crianças porto-riquenhas pobres, vítimas de abuso sexual, nos Estados Unidos, encontrou que a pobreza distanciava as crianças de recursos potenciais de apoio, bem como as deixava vulneráveis à estratégia de oferecimento de bens econômicos utilizada pelo abusador. Já ouros estudos (ver Gomes e cols., 20002; Guareschi, Comunello, Nardini & Hoenisch, 2004) apontam para o risco da criminalização e da estigmatização das famílias pobres. Pesquisas recentes (Cecconello, 2003; Yunes, 2001) com famílias brasileiras demonstram que a pobreza não produz, necessariamente, resultados negativos, observando-se atitudes protetivas e capacidade de resiliência nas famílias pobres. Por outro lado, a miséria afetiva, decorrente da miséria econômica, afeta a capacidade das famílias para lidarem com as situações adversas (Hutz, Koller & Bandeira, 1996). A exclusão gerada pela pobreza fragiliza os laços sociais e dificulta o acesso a recursos de suporte social (Castel, 1998; Keil, 2001; Nardi, 2002a, 2003). Pesquisas (Azambuja, 2004; Azevedo e cols., 2000; Camargo, 1998; Fontes, 1993; Simons & Johnson, 1996) têm proposto que determinados fatores auxiliam enquanto outros obstaculizam tanto os processos de revelação do abuso sexual, quanto a submissão e a permanência de mulheres e crianças nas situações de violência. Dentre estes fatores destacamse a presença de apoio social e emocional como fatores que auxiliam o rompimento do silêncio imposto pelo segredo do abuso e da violência. Já a falta de suporte emocional, comunitário e social atuam como fatores de risco e de manutenção do silêncio e da submissão ao abuso. Investigações (Cardoso, 1997a, 1997b) realizadas com mulheres vítimas de violência doméstica indicam que a dependência financeira dos parceiros e a falta de apoio da família extensa e da comunidade eram percebidas pelas mulheres como mantenedoras de sua posição de desvalia, isolamento e submissão aos abusos sofridos. Diversas pesquisas que envolveram mulheres em situação de violência (Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Meneghel 49 & cols., 2003) confirmam a importância dos fatores de apoio nos casos de violência. Em especial nos casos de incesto, dada a síndrome do segredo que o caracteriza (Furniss, 1993), o isolamento das famílias é uma forma de controle do agressor sobre a vítima (Dutton, 1997; Hirigoyen, 2000; Miller, 1999). Embora estudos (Belsky, 1980; Simons & Johnson, 1996) demonstrem que o apoio conjugal, mais que o da rede extensa seja o recurso mais poderoso de apoio, nos casos de incesto, o apoio conjugal é inviabilizado. Restam, assim, os recursos da família extensa e da comunidade como fatores de apoio. Um cuidador não-abusivo ou um cuidador alternativo é capaz de proporcionar apoio emocional e adequado modelo de interação social nos casos de violência doméstica (Muller, Goebel-Fabri, Diamond & Dinklage, 2002). Os fatores de apoio e a rede social constituem suporte necessário ao engendramento de estratégias de resistência e de superação da condição de risco e submissão (Amendola, 2004; Brito & Koller, 2002; Garmezy & Masten, 1994; Koller, 1999; Robinson & Garber, 1995; Rutter, 1987). Para que seja rompido o ciclo da violência, é necessário que exista uma rede articulada de apoio à mulher agredida, que nem sempre silencia, bem como uma escuta competente que possa realmente acolher sua denúncia e oportunizar a ela e a sua prole adequada proteção (Camargo, 1998; Miller, 1994; Penn, 1988; Soares, 1999; Strey, Werba & Nora, 2004). Foram criados, nesse sentido, vários mecanismos legais de proteção às mulheres, à infância e à adolescência nas últimas décadas. A Lei n º 8.069, de 13/07/1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), proíbe toda e qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão contra crianças e adolescentes. No que tange às mulheres, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como ‘Convenção de Belém do Pará’, foi ratificada pelo Brasil em 1995 e adquiriu força de lei nacional, estando presente na Constituição Federal em vigor. Uma vez que o Brasil é signatário deste documento, tem o compromisso de adotar as medidas necessárias para que as disposições legais nela contidas sejam efetivadas. A Convenção prevê que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, uma vez que limita total ou parcialmente à mulher o exercício dos direitos fundamentais do ser humano, entre eles o direito à liberdade. Ao avaliar, após dez anos da ratificação da referida Convenção, Oliveira (2004) entende que o Brasil não tem cumprido seus compromissos a contento. Mesmo sendo pioneiro na criação das Delegacias da Mulher, na década de 1980, o Estado brasileiro ainda tem uma rede de apoio e de cuidados ineficiente às mulheres. A maioria das Delegacias da Mulher trabalha com parcos recursos humanos e quase sem apoio institucional, sendo poucas as brasileiras privilegiadas com o 50 acesso a tais equipamentos, precários e inexistente em mais de 90% das cidades brasileiras (Oliveira, 2004; Strey, Werba & Nora, 2004). Os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes desconhecem, conforme demonstra pesquisa de Brino & Williams (2003), o Estatuto da Criança e do Adolescente, estando igualmente despreparados para cumprirem com a doutrina de proteção integral à infância e à adolescência. Estes profissionais denunciam, ainda, a falta de apoio institucional para desempenharem suas tarefas. Todas as formas de violências contra as mulheres, crianças e adolescentes são, portanto, violações dos direitos humanos fundamentais, segundo a chamada ‘Carta Maior’, ou a Constituição Federal do Brasil (Dias, 2004 a, 2004b; Machado, 2001; Negrão, 2004; Nunes, 1999). Ainda assim, mulheres e crianças são as principais vítimas da violência familiar e doméstica. O gênero feminino tem sido descrito como o gênero mais vitimado pela violência sexual (Amazarray & Koller, 1998; Koller, 1999), inclusive pelo abuso sexual incestuoso, forma de dominação tributária da ordem patriarcal (Narvaz, 2002a; Narvaz & Koller, 2004a). O componente fundamental das relações violentas - entre elas o incesto - tem no abuso do poder de um indivíduo sobre outro sua marca fundamental (Corsi, 2003; Koller, 1999; Ravazzola, 1997, 1999). Os abusos sexuais contra mulheres e crianças são vistos por Foucault (Bravo, 1994) como reprodução de sistemas sociais abusivos, nos quais estão inscritas relações de poder e de dominação masculina. Para Foucault, diz Bravo (1994): “O poder e o domínio masculino favorecem estilos de relação de imposição sobre os mais fracos. Os abusos e suas conseqüências (como a prostituição) seriam uma reprodução do funcionamento de sistemas humanos macrossociais, onde os homens e os adultos, aproveitando-se abusivamente do seu poder, utilizam as crianças e as mulheres para satisfazer suas necessidades e resolver seus conflitos” (p. 144). Cabe distinguir aqui entre relações de poder e relações de dominação, tais como sistematizadas por Foucault (1995, 1979/2002). Embora tenha sido um dos teóricos que mais falou sobre poder e sexualidade (Roso & Parker, 2002), o conceito de poder não é criado por Foucault (1991, 1995). A noção de poder é sistematizada por ele a partir das idéias de Nietzsche (1998) e de Weber (Foucault, 1995). Em Nietzsche (1998), as noções de ‘vontade de potência’ e de ‘vontade de verdade’ aparecem entrelaçadas, nas quais desejo, saber e poder engendram capacidades e poderes nos indivíduos; em Max Weber, a noção de poder aparece enquanto forma de relação que não se restringe apenas ao poder vertical, coercitivo e repressivo do Estado ou das instituições (Foucault, 1995). Apropriando-se dessas noções, Foucault (1991, 1995, 2000) rejeita a hipótese repressiva do poder e resgata os aspectos produtivos, geradores e criativos do poder. Para ele, toda relação é uma relação de poder, na 51 medida em que os indivíduos e os grupos procuram agir sobre outrem a fim de atingir seus objetivos. Não há um poder, ou o poder, nos termos de Foucault (1991): “o poder é algo que não existe. Isto é, a idéia de que está em um local determinado, ou emanando de um ponto determinado, algo que seja um poder me parece que repousa sobre uma análise limitada e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. O poder, na verdade, são relações, um conjunto aberto, mais ou menos coordenado, de relações” (p. 132). O poder não é, portanto, apenas coercitivo ou repressor, mas produtivo, heterogêneo, e atua através de “práticas e técnicas que foram inventadas, aperfeiçoadas e se desenvolvem sem cessar. Existe uma verdadeira tecnologia do poder, ou melhor, de poderes, que têm cada um sua própria história” (Foucault, 1999, p. 241). A complexa rede de tecnologias e de sistemas disciplinares pelas quais o poder opera são, particularmente, as disciplinas normalizantes da medicina, da educação e da psicologia, nas quais poder e saber, entrelaçados constituíram os discursos sobre o sujeito da modernidade (Foucault, 1969, 1995, 1975/2002). Assim, para Foucault (1990a): “Dizendo poder, não quero significar 'o poder', como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um estado determinado. Também não entendo poder como um modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma de regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (pp. 88-89). O poder, compreendido como algo fluido, móvel, dinâmico, circular, implica sempre a possibilidade de negociação e de resistência: “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta” (Foucault, 1995, p. 248). Quando relações de poder passam a ser unidirecionais e verticais, estáticas, rígidas, fixas, não vislumbrando possibilidade de resistência, já não se tratam de relações de poder, mas de relações de dominação (Foucault, 1995). A noção de poder inclui a possibilidade de resistência, que é 52 fundamental na contraposição a todas as formas de opressão e violência. No entanto, a resistência só é real para sujeitos livres (Foucault,1990a, 1995). A possibilidade de subversão ou de resistência aparece no curso da subjetivação – processo de constituição do sujeito. A resistência é um efeito e uma parte do poder uma vez que é acionada por ele. A subjetividade constitui-se sempre discursivamente, ou seja, através dos discursos entre os sujeitos e entre as diversas instâncias da qual ele participa. Cabe ressaltar que os discursos não remetem apenas à linguagem simbólica. Os discursos são práticas concretas que constituem o sujeito e que estão disseminados pelas mais diversas instituições na forma de práticas disciplinares e disciplinantes (Foucault, 1969, 1995). Cumprem papel importante neste contexto as disciplinas normatizantes da medicina, da psicologia, do direito e da educação que impõem normas para a constituição das subjetividades em cada tempo e contexto históricos (Foucault, 1975/2002). Embora o sujeito sempre esteja assujeitado a determinados discursos, ele não é produzido de uma só vez, em sua totalidade. O processo de ser produzido ocorre em repetidas produções através de práticas discursivas concretas. O sujeito foucaultiano nunca é completamente constituído no assujeitamento; é repetidamente constituído no assujeitamento e é na possibilidade de repetição que se inclui o espaço para a subversão. A possibilidade de repetição não consolida um sujeito homogêneo, mas um sujeito que é capaz de negociar suas construções dentro de uma estrutura de relações de força que estão em tensão. Mesmo estando o sujeito restrito ou situado numa estrutura de relações de força, que é sempre um campo político determinado, o sujeito cultural negocia suas construções dentro das oposições disponíveis em dado contexto. Na construção da subjetividade (subjetivação), ocorrem reconfigurações, renegociações e reposicionamentos complexos dentro das estruturas nas quais se constitui o sujeito. Há espaço, portanto, não só para a submissão (sujeição ou assujeitamento, em termos foucaultianos), mas espaço também para a subversão do sujeito aos discursos, ou ao discurso dominante, que o constitui (Butler, 2000, 2003; Foucault, 1995, 1999). As noções de poder, de dominação, de resistência e de discurso inscritas no processo de subjetivação (Foucault, 1986, 1995, 1999) foram retomadas por Butler (2000, 2003). Estas noções são importantes ferramentas à compreensão das diferentes posições, ora de submissão (dominação ou assujeitamento), ora de resistência das meninas e das mulheres diante dos abusos sofridos. Estes aportes também são úteis ao desvelamento dos discursos científicos e sociais normatizantes (Foucault, 1986) que, através de mecanismos, técnicas e dispositivos disciplinares (Foucault, 1990a, 1975/ 2002) disseminados pelas formações sociais e institucionais engendram diferentes subjetividades nos sujeitos. Assim, mulheres e meninas 53 mesmo submetidas ao discurso patriarcal podem subverter subjetividades assujeitadas e vitimizadas através de estratégias de luta e de resistência às violências sofridas. A noção de poder enquanto uma multiplicidade de relações de força (Foucault, 1990 a) abre espaço para a pluralidade de poderes que coexiste nas tramas das relações familiares e sociais, condição fundamental para a subversão da dominação patriarcal. Pesquisas (Fonseca, 1992, 1995a, 1997; Maluf, 1993; Perrot, 1988, 1998) demonstram que, embora as mulheres não detenham o poder, elas têm poderes e nem sempre são vítimas passivas dos abusos masculinos. Conforme Strey (2000, p. 9), “submissão e resistência sempre fizeram parte da vida das mulheres”. Foucault (1979/2002) destaca que as mulheres iniciaram lutas específicas contra a forma particular de poder, de coerção e de controle que foi exercida sobre elas. A sociedade patriarcal, ao deslocar as mulheres das posições dominantes de poder, criou espaço para formas alternativas de existência feminina, tais como a valorização das conexões relacionais, da intimidade e da afetividade (Giddens, 1992). As formas específicas de poder feminino que ocorrem nas famílias e nas comunidades locais têm sido, contudo, tradicionalmente ocultadas pelos discursos históricos oficiais, inclusive pelo discurso científico, ao que as teóricas do gênero têm procurado resgatar (Del Priore, 2001; Perrot, 1988, 1998; Schumaher, 2000). Algumas atividades e habilidades femininas, como as produções no campo das artes, da ciência e da escrita foram concebidas como inferiores pelo discurso da razão ocidental. O envolvimento histórico das mulheres na comunidade e nos bairros nem mesmo são reconhecidas como atividade política. Recordando o slogan feminista de que ‘o pessoal é político’, estas atividades políticas locais falam dos modos como as mulheres têm-se envolvido com o poder nos níveis mais íntimos da vida cotidiana. Uma vez que a atividade política das mulheres acontece geralmente no nível local e refere-se ao seu envolvimento na sustentabilidade da vida, elas manifestam freqüentemente uma ética em seu ativismo que se contrapõe à dominação, ao terrorismo e à violência característicos da ação revolucionária masculina (Albornoz, 2002; Diamond & Quinby, 1988). Exemplos destas lutas travadas pelas mulheres são a revolução do pão, a revolta pelos altos aluguéis e manifestações durante a revolução industrial na França. As mulheres, aproveitando-se da crença de que ‘os policiais não batem em mulheres’, participam dos sindicatos e fazem piquetes nos pontos de saída dos caminhões nas cidades (Perrot, 1988). Na Argentina, há o movimento das Madres de Plaza de Mayo (Luna, 2002) e, mais recentemente, o movimento conhecido como ‘Calderazzo’, protagonizado pelas mulheres como reivindicação a melhorias das condições de vida do povo argentino. No Brasil, várias mulheres envolveram-se em movimentos políticos, tais como nos movimentos abolicionistas e na Revolução Farroupilha, em 1834. Participavam 54 dos debates políticos defendendo seus pontos de vista e publicando não só romances e folhetins, mas panfletos e jornais de teor político. Feministas defendiam os benefícios do trabalho feminino em revistas de grande circulação desde 1897, organizando-se em sindicatos e associações (Pedro, 2001; Rago, 2001; Telles, 2001). Lutas atuais protagonizadas pelas mulheres envolvem campanhas políticas locais, como o Movimento Feminino pela Anistia, o Movimento Custo de Vida e o Movimento de Luta por Creches (ver DeSouza & Baldwin, 2000; Dowbor, 1999). Fica evidente a complexidade das questões envolvidas na compreensão da dinâmica das famílias incestuosas e, em especial, da história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto. Aspectos tais como gênero e poder, apoio social e políticas públicas de enfrentamento à violência desempenham papel crucial nesta dinâmica. A questão da vitimização feminina, em seus múltiplos aspectos, entre eles a proclamada idéia da cumplicidade materna diante do abuso sexual da filha, deve ser problematizada e investigada de forma crítica. Só uma abordagem que envolva variáveis contextuais e históricas permitirá a compreensão da complexa questão das posições ocupadas pelas mulheres-mães e por suas filhas diante dos abusos vividos. A ciência, às vezes, parece estar a serviço da dominação e da domesticação social, quando o seu discurso é utilizado como instrumento de legitimação e de naturalização das desigualdades e das subordinações, quer seja de gênero, de classe, de geração ou de etnia. A literatura científica, neste cenário, apesar de dizer-se ‘apolítica’ (Fonseca, 1997; Strey, 2000), coloca-se a serviço da dominação patriarcal. Neste sentido, além dos aspectos individuais e familiares, é fundamental dar visibilidade à heterogeneidade dos discursos e práticas nos quais se inscreve o incesto. Se, como diz Butler (2003, p. 22), “discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso”, é preciso desvelar os discursos que têm sido produzidos acerca da culpabilização, da conivência e da vitimização femininas diante do incesto. Discursos que depositam individualmente na figura da mãe a responsabilidade pelo abuso e pelo silenciamento isentam os homens, o Estado e a comunidade de sua responsabilidade social (Narvaz, 2002b, 2003; Saffioti, 1999; Silva, 1993). Estes discursos auxiliam a manter o status quo da estrutura patriarcal que, de outra forma, teria que revisar os paradigmas na qual está assentada. Além disso, tais discursos são incorporados pelas mulheres-mães das vítimas de incesto, que passam a carregar, em seus corpos e em sua subjetividade, a marca da vitimização feminina imposta pela dominação patriarcal, contribuindo para sua perpetuação. Ao desvelarmos a heterogeneidade das posições 55 ocupadas pelas mulheres e pelas meninas diante das violências sofridas, explodimos a univocidade dos discursos (Pêcheux, 1969/1983), sobre a dominação feminina. Ao darmos visibilidade não só à submissão e ao silenciamento, mas também às estratégias de resistência desenvolvidas pelas mulheres ao longo da história (Strey, 2000), estaremos resgatando os poderes femininos. Poderes presentes já nos cultos às deusas polifacéticas, dizimados, entretanto, pelo patriarcado (Muraro, 1997). Este estudo propõe-se, assim, “a liberar-se das velhas categorias do negativo e investir no positivo, no múltiplo, nômade e desvincular a militância da tristeza, pois o desejo pode ser revolucionário” (Deleuze & Guatarri, 1997, p.23). Capítulo II MÉTODO 2.1. Considerações teórico-metodológicas Em cada sociedade há um regime de verdade com seus mecanismos particulares de produção. A verdade nunca está fora do sistema de poder e não há uma verdade sem poder (Foucault, 1969, 1975). As teorias, antes que verdades absolutas, são apenas diferentes maneiras de construir e organizar o conhecimento e referendar uma práxis legitimada por determinada comunidade científica em determinado contexto histórico. A pós-modernidade trouxe-nos a pluralidade e o questionamento das certezas como marcas de uma época em que não há um único modelo a ser seguido (Bombassaro, 1995; Chalmers, 1993; Gergen, 1985). Diferentes paradigmas de pesquisa, qualitativos e quantitativos coexistem na atualidade como 56 formas igualmente válidas de construção do conhecimento científico, devendo ser adequadas aos problemas que se propõem a investigar e aos interesses e filiações teóricas de cada pesquisador (Benz & Newman, 1998; Habermas, 1982). As formas pelas quais problematizamos uma questão afetam o modo como a investigamos, tanto quanto diferentes métodos de investigação destacam diferentes evidências e, assim, podem conduzir a diferentes resultados (Slife & Williams, 1995; Wilkinson, 1986). Não é mais possível, portanto, dissociar teoria e método, tampouco negligenciar os aspectos epistemológicos, ideológicos e éticos envolvidos em nossas escolhas. Torna-se cada vez mais fundamental conhecermos os implícitos com os quais estamos trabalhando, uma vez que estes têm importantes implicações práticas na condução de nossas investigações. Faz-se necessário, nesse sentido, embora ainda um tanto tabu em nosso meio científico, assumir que nossas escolhas são um ato político, mesmo em se tratando de escolhas de métodos de pesquisa ou das teorias com as quais escolhemos trabalhar (Fonseca, 1997, 2000a; Foucault, 1979/2002; Jones, 1994). A escolha da teoria crítico-feminista da família (Goldner, 1985, 1988; Goodrich, Rampage, Ellman & Halstead, 1990; Hare-Mustin, 1987; Perelberg, 1994; Ravazolla, 1997, 1999; Urry, 1994), e da abordagem discursiva (Foucault,1969, 1975; Pêcheux, 1969/1983) como alicerces teórico-metodológicos deste estudo explicita o caráter ativista intrínseco à ética das abordagens críticas (Guba & Lincoln, 1994). A teoria críticofeminista da família abarca os pressupostos das epistemologias feministas (Eichler, 1988; Keller, 1985, 1996; Harding, 1987; Wilkinson, 1986) e dos estudos de gênero (Butler, 1984, 2000, 2003; Scott, 1986), servindo-se, ainda, de aportes oferecidos pelos críticos da instituição familiar (Engels, 1884/1964; Reich, 1966, 1933/1998). 2.1.1 As abordagens feministas Sabemos que a expressão ‘feminista’ não é isenta de confusões e preconceitos (Jones, 1994). O movimento feminista contemporâneo, reflexo das transformações do feminismo original, predominantemente intelectual, branco e de classe média, configura-se como um discurso múltiplo e de variadas tendências, embora com bases comuns. As feministas destacam que a opressão de gênero, de etnia e de classe social perpassa as mais variadas sociedades ao longo dos tempos. Esta forma de opressão sustenta práticas discriminatórias, tais como o racismo, o classismo, e a exclusão de grupos de homossexuais e de outros grupos minoritários (Negrão, 2002; Prá, 1997; Toledo, 2003). O feminismo é uma filosofia que reconhece que homens e mulheres têm experiências diferentes e reivindica que pessoas diferentes sejam tratadas não como iguais, mas como equivalentes (Jones, 1994; Louro, 1999; 57 Scott, 1986). As feministas denunciam que a experiência masculina tem sido privilegiada ao longo da história, enquanto a feminina, negligenciada e desvalorizada. Elas demonstraram, ainda, que o poder foi (e ainda é) predominantemente masculino, cujo objetivo original foi a dominação das mulheres, especialmente de seus corpos (Butler, 2003; Diamond & Quinby, 1988; Millet, 1970; Narvaz & Nardi, no prelo; Pateman, 1993). O feminismo é um campo político (Scott, 1986; Toledo, 2003) e teóricoepistemológico (Eichler, 1988; Keller, 1985, 1996; Harding, 1987; Wilkinson, 1986) de variadas tendências. O feminismo vem problematizando a si mesmo ao longo dos tempos, desde as doutrinas do feminismo original. O feminismo, considerado ‘problemático, instável e tenso’, o feminismo está em permanente (des)construção (Butler, 1984, 2003; Harding, 1986, 1993; Negrão, 2002) está em permanente (des)construção. As intersecções do feminismo com os movimentos de luta de classes configuram diferentes movimentos feministas, entre eles: o radical (inclui-se aqui o movimento de mulheres legras), o liberal, o socialista, o marxista e o anarquista (Chrisler & Smith, 2004; Toledo, 2003). Houve, também, várias gerações ou fases no feminismo, conhecidas como ‘ondas do feminismo’ (Costa, 2002). Essas diferentes fases ocorreram em épocas distintas, historicamente construídas conforme as necessidades políticas, o contexto material e social e as possibilidades pré-discursivas em cada tempo (Scott, 1986). Não há, na atualidade, um só feminismo unívoco e totalizante, mas vários feminismos que coexistem enquanto movimentos políticos e teórico-epistemológicos (Negrão, 2002). A primeira geração (ou primeira onda do feminismo), representa o surgimento do movimento feminista. O feminismo nasceu como movimento liberal de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos que eram conferidos apenas aos homens. O movimento sufragista (que se estruturou na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Espanha) teve fundamental importância nesta fase de surgimento do feminismo. O objetivo do movimento feminista, nesta época, era a luta contra a discriminação das mulheres e a garantia de direitos, inclusive do direito ao voto. Inscreve-se nesta primeira fase a denúncia da opressão feminina imposta pelo patriarcado. A segunda fase do feminismo (segunda geração ou segunda onda), ressurge nas décadas de 60 e 70, em especial nos Estados Unidos e na França. As feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da igualdade, enquanto as francesas postulavam a necessidade de serem valorizadas as diferenças entre homens e mulheres, dando visibilidade, principalmente, à especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada. As feministas francesas foram influenciadas pelo pensamento pós-estruturalista que predominava na França, especialmente pelo pensamento de Michel Foucault e de Jacques Derrida (ver Pereira, 2004). Nos anos 80, a 58 crítica pós-modernista da ciência ocidental introduz o paradigma da incerteza no campo do conhecimento. Nesse contexto, o movimento feminista passa a enfatizar a questão da diferença, da subjetividade e da singularidade das experiências, concebendo que as subjetividades são construídas pelos discursos, em um campo que é sempre dialógico e intersubjetivo. Surge, assim, a terceira fase do feminismo (terceira geração ou terceira onda), cuja proposta concentra-se na análise das diferenças e da alteridade. Com isso, desloca-se o campo do estudo sobre as mulheres e sobre os sexos para o estudo das relações de gênero. O desafio nesta fase do feminismo é pensar, simultaneamente, a igualdade e a diferença. As propostas feministas que enfatizam a igualdade são conhecidas como ‘o feminismo da igualdade’, enquanto as propostas feministas que destacam as diferenças e a alteridade são conhecidas como ‘o feminismo da diferença’. Esta terceira fase do movimento feminista é fruto da intersecção entre o movimento político de luta das mulheres e a academia (Louro, 1995; Machado, 1992; Scott, 1986; Strey, 1998). As três gerações do feminismo, tanto em seus aspectos políticos quanto teóricoepistemológicos, não podem ser entendidas desde uma perspectiva histórica linear. As diferentes propostas características de cada uma das fases do feminismo sempre coexistiram, e ainda coexistem, na contemporaneidade. A fase surgida mais recentemente, a terceira geração do feminismo, tem grande influência sobre os estudos de gênero contemporâneos (Louro, 1999). As questões introduzidas pela terceira geração do feminismo revisaram algumas categorias de análise consideradas fundamentais, mas instáveis (Harding, 1993; Scott, 1986; Louro, 1995) aos estudos de gênero. Estas categorias estão articuladas entre si, que são: o conceito de gênero; a política identitária das mulheres; o conceito de patriarcado e as formas da produção do conhecimento. As feministas desta última geração problematizaram as teorias essencialistas ou totalizantes das categorias fixas e estáveis do gênero presentes nas gerações anteriores. Nas gerações anteriores, o gênero era definido a partir do sexo enquanto categoria natural, binária e hierárquica, como se existisse uma essência naturalmente masculina ou feminina nas pessoas. A expressão ‘totalizante’ foi usada para descrever a idéia até então vigente de que havia uma essência, uma única forma estável e homogênea de ser mulher ou de ser homem. Enquanto ‘sexo’ descrevia os aspectos biológicos, gênero compreendia a construção cultural que ocorria sobre as diferenças entre homens e mulheres, com base nas diferenças biológicas. Esta concepção foi chamada ‘sistema sexo-gênero’ (ver Pereira, 2004). Na terceira geração, as feministas refutaram tais proposições, desnaturalizando e desconstruindo a perspectiva de gênero das gerações anteriores. O gênero passa a ser uma categoria relacional e política 59 (Scott, 1986). Não mais baseado nas diferenças biológicas ou ‘naturais’, diz-se que o gênero foi (des)naturalizado. Revisada a idéia binária de dois sexos e dois gêneros, o gênero passa a ser entendido como relação, primordialmente política, que ocorre num campo discursivo e histórico de relações de poder (Scott, 1986). Incorporando as tendências pós-estruturalistas e desconstrucionistas, Butler (2003) conceitua gênero como um ‘ato performático’, como um efeito, produzido ou gerado. Essa definição resgata a noção de processo e de construção singular de cada sujeito, dentro de um campo situado de possibilidades, de seu próprio gênero, que é reafirmado ou renegociado através de sucessivas ‘performances.’ Performances são práticas concretas através das quais os sujeitos se constituem, tais como, por exemplo, a maneira de vestir-se (McHugh & Cosgrove, 2004). Estas novas concepções sobre gênero deram margem ao questionamento das teorias essencialistas que definem a categoria ‘mulheres’. Não mais havendo sexo natural e nem mais uma única forma de ser mulher (ou de ser homem), as políticas de identidade do feminismo original, presentes nas gerações anteriores, foram refutadas. Para Butler (2003, p. 213), “Mulheres é um falso e unívoco substantivo que disfarça e restringe uma experiência de gênero variada e contraditória. A unidade da categoria ‘mulheres’ não é nem pressuposta nem desejada, uma vez que fixa e restringe os próprios sujeitos que liberta e espera representar”. Segundo Costa (2002, p.71), isto significa apenas que ‘mulher’ é uma categoria histórica e heterogeneamente construída dentro de uma ampla gama de práticas e discursos, e sobre os quais o movimento de mulheres se fundamenta.” Coexistem, assim, correntes feministas que propõem abandonar a categoria ‘mulheres’, como propõe Butler (2003), com teorias que entendem ser necessária a identidade de uma categoria, em função das lutas políticas que devem ser travadas pelas ‘mulheres do feminismo’. A terceira questão problemática do feminismo é o patriarcado. Ao patriarcado foi atribuída a gênese da opressão de gênero e, daí, a violência contra as mulheres (Millet, 1970). O capitalismo foi articulado ao patriarcado (Saffioti, 1979, 1988, 2001) na questão da dominação feminina, sendo que algumas correntes marxistas (Toledo, 2003), entendem que o capitalismo é preponderante na questão das desigualdades, embora não desconsiderem a influência do patriarcado na gênese da opressão feminina. Também as terapias feministas da família (Burck & Daniel, 1994; Goldner, 1985, 1988; Hare-Mustin, 1987; McConaghy & Cottone,1988) atribuem à dominação masculina a gênese das desigualdades de gênero, em especial na dinâmica das relações violentas. Contudo, a questão do patriarcado permanece tensa entre as feministas. Algumas (Pateman, 1993; Saffioti, 1988) advogam existir uma forma de ‘patriarcado moderno’, enquanto outras (Aguiar, 1997; Castro & Lavinas, 1992) 60 entendem não ser adequado o uso do termo ‘patriarcado’ nas sociedades modernas. Para estas últimas, não há uma teoria universalizante do patriarcado. O termo ‘patriarcado’, cunhado por Max Weber (ver Aguiar, 1997), definia sistemas sociais e familiares baseados no reconhecimento da autoridade pela tradição, não podendo ser aplicado às formações sociais que encontramos na atualidade. A epistemologia feminista também não é um domínio estável. Ao contrário, representa um espaço de contestação e de dúvida acerca do que é considerado ‘conhecimento’, quem o define e como este é capturado pelo sujeito do conhecimento (Harding, 1987). Mais apropriado seria falar em epistemologias e em metodologias, no plural, uma vez que não há uma só forma de se fazer ciência, mas várias, a partir de diferentes teorias. McHugh e Cosgrove (2004) descrevem as principais linhas epistemológicas, que são: o empiricismo feminista, a teoria do ponto de vista feminista (feminist standpoint theory), o construcionista social, o feminismo pós-moderno (pós-estruturalista e desconstrucionista) e, mais recentemente, a epistemologia feminista com base na física quântica. As diferenças entre estas linhas epistemológicas dizem respeito à forma como se concebe a realidade e à forma como os objetos da realidade são apreendidos (McHugh & Cosgrove, 2004). De toda forma, a epistemologia feminista abre-se para um campo essencialmente multidisciplinar, defendendo a pluralidade de métodos na pesquisa. A ciência, na perspectiva das epistemologias feministas, tem gênero, havendo uma maneira feminina de fazer ciência. Homens e mulheres produzem conhecimento de formas diferenciadas. A ciência positivista, considerada androcêntrica, associou a objetividade à masculinidade, o que conduziu a presumir que, para ser objetivo, requer-se um distanciando e uma separação entre razão e emoção. A imparcialidade, nesse contexto, não é possível, sequer desejável, especialmente uma vez que se encontra comprometida com a mudança social. A epistemologia feminista entende que o conhecimento é sempre situado, posicionando-se contra a objetividade e a neutralidade características da ciência positivista androcêntrica, resgatando o papel da emoção e da experiência feminina na produção do conhecimento científico (Eichler, 1988; Jaggar, 1997; Keller, 1985; Harding, 1987; McHugh & Cosgrove, 2004; Wilkinson, 1986, 1998). As metodologias feministas são descritas na literatura (Bruschini, 1992; Chrisler & Smith, 2004; Dias, 1992; McHugh & Cosgrove, 2004; Neves & Nogueira, 2003) como instrumentos ou estratégias de mudança social que refletem perspectivas de diferentes epistemologias. A complexidade da investigação feminista envolve a preocupação com todo o processo de condução da investigação. As preocupações comuns das diversas epistemologias e metodologias iniciam com a escolha do delineamento a ser utilizado na pesquisa, uma vez 61 que diferentes métodos conduzem a diferentes resultados. Os pressupostos epistemológicos, ontológicos e éticos implícitos nos delineamentos de pesquisa têm implicações políticas, podendo estar a serviço de interesses diversos. As metodologias feministas assumem o caráter intrínseco das abordagens críticas (Guba & Lincoln, 1994), tendo como objetivo comum o resgate da experiência feminina, o uso de análises e de linguagens não sexistas (Eichler, 1988) e o empoderamento (Leon, 2000) dos grupos oprimidos, em especial das mulheres. A pesquisa feminista tem especial preocupação com o lugar do/a investigador/a na relação com os/as participantes e com o impacto da investigação nos/as participantes da pesquisa. Na investigação feminista a relação desigual de poder entre o/a investigador/a e o/a investigado/a é trabalhada de forma a que a perspectiva do/a último/a seja validada e reconhecida como fundamental, considerando-se os/as participantes especialistas das suas próprias experiências (Chrisler & Smith, 2004; Neves & Nogueira, 2003; Teitelbaum,1997). As proposições feministas estão presentes na ciência em vários campos do saber. Podemos citar vários estudos a partir da perspectiva feminista, entre eles estudos na área da filosofia (Tiburi & Menezes, 2002), da antropologia (Corrêa, 1982; Fonseca, 1995 a, 1995b) e da psicologia (Bernardes, 1995; Cardoso, 1997 a, 1997b). Na psicologia feminista, há uma articulação entre a ciência psicológica, a pesquisa e clínica, em especial no trabalho com mulheres vítimas de violência (Meneguel & cols., 2003; Neves & Nogueira, 2003; Strey, 2001; Strey, Werba e Starosta, 2004). Algumas pesquisadoras (Bruschini, 1992) postulam que as metodologias feministas referem-se menos à adoção de técnicas específicas de coleta de dados que à inclusão dos aspectos de gênero e do poder na construção do conhecimento. Nesta visão, são igualmente válidas quaisquer abordagens, qualitativas ou quantitativas, desde que analisadas sob uma perspectiva não sexista. Outras posições (Linton, 1997; Teitelbaum, 1997) entendem que as abordagens quantitativas, em especial a utilização de testes padronizados, são incompatíveis com as propostas feministas. As abordagens qualitativas são classicamente adequadas à pesquisa feminista, entre elas: as narrativas, a pesquisa- ação, a abordagem fenomenológica, os grupos focais e os grupos de conceptualização, os estudos de caso, as histórias de vida e o método autobiográfico (Linton, 1997; McHugh & Cosgrove, 2004a; Neves & Nogueira, 2003). As proposições feministas foram incorporadas pelo campo da terapia familiar. O encontro de terapeutas familiares dos Estados Unidos e da Inglaterra, em 1982, na Conferência sobre “Feminismo e Terapia Familiar”, em Londres (Perelberg, 1994) foi um dos marcos da origem da terapia feminista da família. A terapia feminista da família emergiu como crítica à abordagem tradicional das teorias familiares sistêmicas, desenvolvendo a teoria 62 feminista e crítica da instituição familiar, um dos referenciais teórico-metodológicos deste estudo (Goldner, 1988; Goodrich e cols., 1990; Jones, 1994; Perelberg, 1994; Urry, 1994). Desde o surgimento da terapia familiar, houve uma diversidade de pressupostos teóricos que fundamentaram diferentes práticas. Conforme Perelberg (1994), a terapia de família surgiu na Europa, nos anos 60, com o movimento da antipsiquiatria e, nos anos 70, com o pensamento sistêmico, nos Estados Unidos. Na Europa, desenvolveu-se a terapia familiar de base psicanalítica (Eiguer, 1998), passando-se da ‘psique ao sistema’ (Neill & Kniskern, 1990). Nos Estados Unidos, floresce o campo da terapia familiar sistêmica de base cibernética (Vasconcelos, 1995), tendo na escola estrutural (Minuchin, 1981) uma das principais representantes. Na Itália, têm destaque outros grupos, como o grupo de Andolfi (Andolfi & Angelo, 1989) e a escola de Milão (Boscolo, Cecchin, Hoffman & Penn, 1993). As escolas italianas não compartilhavam dos pressupostos da escola sistêmica estrutural e nem da escola psicanalítica, reunindo-se em dois principais grupos que representavam escolas importantes. Estes grupos estimulando a irreverência, o humor e as conexões relacionais, tanto na família, na terapia quanto na formação dos terapeutas. Já a escola estrutural (Minuchin, 1981) entende a família como um sistema orgânico regido pelas leis da circularidade e da complementaridade. O objetivo dos sistemas é o de buscar a homeostase. Nesta escola, o terapeuta é visto como alguém que deve ter poder sobre o sistema, auxiliando a família a reestruturar-se em busca da homeostase. Os problemas familiares são atribuídos à falta de clareza na delimitação dos papéis dentro da família e à falta de hierarquia entre os membros. Famílias com problemas são famílias disfuncionais, cabendo ao terapeuta auxiliá-las a restabeleceram as hierarquias e a delimitarem seus papéis a fim de tornarem-se novamente funcionais. Algumas correntes sistêmicas (ver Vasconcelos, 1995), influenciadas pelo pensamento pós-moderno, incorporam o paradigma da mudança introduzido pela Teoria do Caos (Schnitman, 1996). Terapeutas familiares filiados a diferentes escolas, em diversos lugares do mundo, revisam o pressuposto da homeostase e introduzem em suas formulações conceitos como recursividade e entropia. Concebem agora a família como um sistema aberto em permanente transformação. Surgem então novas linhas teóricas e terapêuticas que refutam os pressupostos das abordagens sistêmicas cibernéticas tradicionais, representantes da primeira geração das terapias sistêmicas. Uma destas correntes, embora ainda filiada à terapia sistêmica de base cibernética, dá origem a uma segunda fase, originando a chamada “Terapia Familiar Sistêmico-Si-Cibernética” (Vasconcelos, 1995, p.116). Outras abordagens terapêuticas, não filiadas às terapias de base cibernética, surgem nesta nova fase da terapia 63 familiar, tais como, por exemplo, as terapias construcionistas (Schnitman, 1996), a abordagem reflexiva (Andersen, 1991) e a terapia narrativa (Penn, 1988). Estas escolas valorizam a intersubjetividade, as narrativas circulares e a reflexividade no sistema. O terapeuta faz parte do sistema e não tem uma posição marcada de poder na terapia. São as famílias que devem definir seus objetivos, sendo encorajadas a explorarem visões alternativas sobre suas dificuldades e a resgatarem suas competências na resolução destas dificuldades. Os problemas familiares não são vistos como disfunções, mas como narrativas estáticas que a família vem construindo sobre os mesmos. O papel do terapeuta é auxiliar a família a ampliar as descrições que tem da realidade através de novas narrativas que são co-construídas no sistema terapêutico (Andersen, 1991; Penn, 1988; Schnitman, 1996). Terapeutas familiares (Goldner, 1985, 1988; Goodrich, Rampage, Ellman & Halstead, 1990; Hare-Mustin, 1987; Perelberg, 1994; Ravazolla, 1997, 1999; Urry, 1994) originalmente filiadas aos grupos originais sistêmicos, tanto dos Estados Unidos quanto da Europa, descontentes com o androcentrismo da terapia familiar, realizam conferências e formam grupos de discussão sobre a omissão dos aspectos de gênero na terapia familiar. Origina-se, então, a terapia e a teoria feminista da família como alternativa às terapias sistêmicas tradicionais. As principais críticas da terapia feminista às abordagens sistêmicas são: 1) na medida em que as abordagens sistêmicas entendem a família como um todo orgânico, não levam em conta as diferenças de poder dentro da família; 2) os pressupostos da circularidade e da complementaridade a partir dos quais funciona a família, desconsideram as diferenças de poder no sistema familiar. A terapia feminista entende que a opressão ocorre de forma linearmente causal, não se podendo atribuir igual responsabilidade a pessoas que não têm o mesmo acesso ao poder dentro de um sistema. O pressuposto da circularidade e da complementaridade deram margem a concepções relativas ao papel igualmente participante das vítimas nas situações de violência familiar; 3) negligenciando os aspectos de gênero na família, as terapias sistêmicas não problematizam os papéis familiares, mantendo, assim, definições estáticas sobre papéis familiares, o que contribui com a manutenção da ordem patriarcal; 4) ao valorizarem o poder, as hierarquias e a busca de autonomia do indivíduo dentro da família, as terapias sistêmicas pautam-se em valores androcêntricos. Ficam desvalorizadas outras formas de conexão relacional predominantemente desenvolvidas pelas mulheres, tais como a busca da intimidade e a valorização do cuidado na família; 5) na medida em que as terapias sistêmicas não questionam a instituição familiar tal como está construída em nossa sociedade, contribui para a manutenção das desigualdades de gênero e, 64 com isso, contribui com a manutenção da opressão feminina (Burck & Daniel, 1994; Goldner, 1985, 1988; Hare-Mustin, 1987; McConaghy & Cottone,1988; Ravazolla, 1997, 1999). 2.1.2 A abordagem discursiva O segundo referencial teórico-metodológico no qual se apóia esta investigação é a abordagem discursiva de Pêcheux (1969/1983). Esta abordagem surge, tal qual a teoria feminista da família, como uma teoria e um método críticos aos estudos da linguagem. A AD consiste tanto num referencial metodológico, dada a operacionalização de análise de discursos que sistematiza, quanto numa teoria. Os aspectos teóricos remetem às posições defendidas pela AD, acerca das concepções sobre o sujeito e sobre a dinâmica social nas quais se inscrevem os discursos, daí ser considerada um referencial tanto metodológico quanto teórico. A abordagem discursiva (Pêcheux, 1969/1983) é uma disciplina que se estrutura no espaço que há entre a lingüística e as ciências das formações sociais (Orlandi, 1995). A abordagem discursiva foi introduzida pela Análise de Discurso, chamada ‘AD’, no campo dos estudos da linguagem especialmente por Michel Pêcheux, representante da escola européia francesa de Análise de Discurso. Há outras abordagens discursivas baseadas em outros pressupostos teóricos (Brandão, 1993). O marco inaugural da AD foi a publicação da obra Análise Automática do Discurso (AAD), em 1969, por Michel Pêcheux, que a definiu, inicialmente, como o estudo lingüístico das condições de produção de um enunciado. As duas grandes vertentes que influenciaram a corrente francesa da AD foram as idéias de Foucault (1969) sobre a formação discursiva (FD) e os conceitos de Althusser (1969/1974) sobre ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. A AD inscreve-se, assim, na confluência de três regiões do conhecimento científico: 1) do materialismo histórico, como teoria das formações sociais, incluindo aí a ideologia; 2) da lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e, 3) da teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos (Brandão, 1993; Pêcheux,1998). Os primeiros estudos lingüísticos foram realizados por Sausurre (1916/1970). Para este lingüista, um termo, ou uma palavra, só tem sentido em uma língua, sistema social de signos que exprime idéias. A língua distingue-se da fala. Enquanto a língua é o sistema social de signos compartilhado por uma determinada cultura, a fala é entendida como ato individual e virtual que só se atualiza na e pela fala (Orlandi, 1995). Assim, um termo pode ter vários sentidos, dependendo de quem o diz, ou enuncia, nos termos dos estudos lingüísticos. Essa concepção destaca a subjetividade, a singularidade do sujeito que fala (ou enuncia) dentro de uma determinada organização da língua, o que Sausurre (1916/1970) chama sistema. No 65 desenvolvimento da lingüística, o ‘sistema’ de organização da língua foi chamado pelos sucessores de Sausurre (1916/1970) de estrutura. Preocupavam-se em descrever as relações entre língua e fala, o que caracterizava a teoria descritiva estruturalista. Ao estruturalismo sucedeu a teoria científica explicativa, chamada ‘generativismo’ por Chomsky (1971). O foco de análise desta abordagem é o estudo dos processos psíquicos e cognitivos que ocorrem entre a linguagem e o pensamento, uma vez que concebe a linguagem como inata. Outro estudioso do campo da linguagem, Bakhtin (1929/1975), afastando-se das concepções individualistas e inatistas, enfatizou o papel da interação social na produção da língua e dos enunciados. A língua passa a ser entendida como um fato social, efeito das necessidades humanas de comunicação. Bakhtin (1929/1975) concebe a matéria lingüística (as palavras concretas que são enunciadas e que estão inseridas dentro de determinada língua) apenas como uma parte do enunciado; a outra, refere-se ao não verbal, ao contexto da enunciação. O sujeito é o centro de sua enunciação. Para este autor, o foco de análise dos estudos da linguagem desloca-se da análise da estrutura da língua (Sausurre, 1916/1970) e da análise dos processos psíquicos entre linguagem e pensamento (Chomsky, 1971). O estudo da linguagem passa a centrar-se nas relações intrínsecas entre o lingüístico e o social, surgindo assim a ‘Teoria da Enunciação (TE)’ de Bakhtin (1929/1975). À semelhança de Bakhtin (1929/1975), Pêcheux (1998) deslocou a reflexão dos estudos lingüísticos da dicotomia língua/fala proposta por Sausurre (1916/ 1970), e também não compactuou com o paradigma cognitivista proposto por Chomsky (1971). Segundo Pêcheux (1969/1983), o cientificismo da gramática gerativa de Chomsky (1971) busca explicar os aspectos de competência/desempenho da linguagem como se a língua fosse um órgão mental. O paradigma cognitivista negligencia o contexto social em que está inserida a linguagem, o que desistoriciza o sujeito. Nestes aspectos, há concordância entre Bakhtin (1929/1975) e Pêcheux (1969/1983). Entretanto, a AD também problematizou a teoria da enunciação de Bakhtin (1929/1975): o sujeito não é a fonte do sentido dos seus enunciados e nem o senhor da língua. O Eu não se encontra fechado em si, mas tem relação com um exterior que o determina, daí não ser o centro de sua enunciação, conforme propõe a teoria da enunciação de Bakhtin (1929/1975). Os deslocamentos efetuados pela AD às concepções de Sausurre (1916/1970), de Chomsky (1971) e de Bakhtin (1929/1975) referem-se, respectivamente, a três importantes recusas que caracterizam a abordagem discursiva: 1) recusa da idéia de língua como sistema abstrato e ideologicamente neutro; 2) recusa da concepção da língua como universalmente inscrita no inatismo do espírito humano e, 3) recusa da suposição de um sujeito intencional e 66 autônomo como origem enunciadora de seu discurso (Brandão, 1993). A AD de Pêcheux (1969/1983) ocupa, portanto, o lugar de uma teoria crítica da produção da linguagem. Considera primordial a relação da linguagem não com mecanismos psíquicos inatos, mas com o contexto ou com a situação na qual se produz a linguagem. Nesse sentido é que, para Pêcheux (1969/1983), é primordial a análise da relação da linguagem com a exterioridade. Exterioridade refere-se à situação, ao contexto, ao pano de fundo dos discursos, o que na AD se entende por condições de produção dos discursos (Pêcheux, 1969/1983). Pêcheux (1969) define discurso como efeito de sentido entre interlocutores, efeito esse que desliza entre diferentes posições-sujeito segundo diferentes condições de produção. Efeitos de sentido são os diferentes sentidos possíveis que um mesmo enunciado pode assumir de acordo com a formação discursiva na qual é (re)produzido. O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo. Um sentido é constituído a partir das condições de produção de um determinado enunciado. Os sentidos mudam conforme a formação ideológica de quem o (re)produz, bem como de quem o interpreta. O sentido nunca é dado, ele não existe como produto acabado, resultado de uma possível transparência da língua, mas está sempre em curso, é movente e se produz dentro de uma determinação histórico-social, daí a necessidade de se falar em efeitos de sentido. Esses sentidos parecem evidentes, mas são efeitos ideológicos que provocam a ilusão de que um enunciado quer dizer o que realmente diz. A interpretação, gesto de interpretação ou gesto de leitura, segundo Mutti (2003), também interfere na produção dos efeitos de sentido. As condições de produção fazem parte da exterioridade lingüística e podem ser agrupadas em condições de produção em sentido estrito (circunstâncias de enunciação) e em sentido amplo (contexto sócio-histórico-ideológico). São responsáveis pelo estabelecimento das relações de força no interior do discurso e, junto com a linguagem, constituindo o sentido do texto. Uma posição-sujeito não é uma realidade física, mas um objeto imaginário, representando no processo discursivo os lugares ocupados pelos sujeitos na estrutura social. Deste modo, não há um sujeito único mas diversas posiçõessujeito, as quais estão relacionadas com determinadas formações discursivas e ideológicas (Orlandi, 1999; Pêcheux, 1969/1983). Para a AD, uma fala é um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social (Brandão, 1993). Na concepção da AD, um discurso é sempre pronunciado a partir de determinadas condições de produção, estando sempre situado no interior das relações de força existentes em um campo político dado. Não há, portanto, um discurso ideológico, todos o são. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção simbólica, daí dominarem também o campo da 67 produção de idéias (Chauí, 1980). Entendendo por ideologia “um sistema lógico e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer” (Chauí, 1980, p.113), todo discurso é histórico e ideológico, tendo a regulação de uma prática, como as práticas sociais em geral. Na AD, a noção de discurso enquanto prática é tomada de empréstimo de Foucault: “Não se pode falar em qualquer época de qualquer coisa; não é fácil dizer qualquer coisa que seja nova” (Foucault, 1969, p.61). O discurso é uma prática que relaciona a língua com ‘outra coisa’, o que Foucault (1969) chama “prática discursiva”: “Não a podemos confundir com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada num sistema de inferência; nem com a ‘competência’ de um sujeito falante quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época, e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (pp. 147-148). Foucault (1969) afirma que o discurso de uma área específica de conhecimento não é caracterizado por um espaço de regularidades, mas sim por espaço heterogêneo e de dispersão: dispersão de objetos, dispersão de temáticas e de teorias. O que atribuiria uma suposta unidade a um discurso, afirma o autor, não seria a existência de um objeto único, de um estilo único, de temáticas e teorias ou conceitos hegemônicos. O que caracterizaria a unidade do discurso seria um jogo enorme de relações entre objetos, estilos, temáticas, teorias e conceitos. Cabe à análise do discurso descrever essa dispersão, buscando o estabelecimento de regras comuns que regem a formação dos discursos, ou seja, de identificar o que na AD denomina-se Formação Discursiva (FD). A noção de Formação Discursiva (FD) tomada de Foucault (1969), foi revisada por Pêcheux (1988), originando o conceito de Formação Imaginária (FI). A noção de Formação Imaginária (FI) parte da idéia de que a posição dos protagonistas do discurso intervém na produção do próprio discurso. Um discurso não é uma transmissão de informação, mas um efeito de sentidos entre interlocutores cujos lugares de onde falam configuram seu próprio discurso. Todo processo discursivo supõe a existência dessas forças imaginárias, que são as representações subjetivas das designações das posições dos sujeitos. Esse lugar não é objetivo, mas um lugar transformado, representado pelos participantes do discurso, ou seja, referem-se à imagem que se fazem uns dos outros os participantes do diálogo. A cada passo, o discurso de um protagonista é modificado pelo do outro. Há uma antecipação do que o outro 68 vai pensar na constituição de qualquer discurso. A posição dos protagonistas do discurso intervém como uma das condições de produção do discurso, embora o contexto seja um objeto imaginado (o ponto de vista do sujeito) e não a realidade física. Nesse sentido, “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (Pêcheux, 1969/1983, p.82). A AD entende que não existe um discurso autofundado, de origem absoluta. Enunciar é situar-se sempre em relação a um já dito: “todo o discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito. Um livro, por exemplo, além de sua configuração interna e a forma que o autonomiza, está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases” (Foucault, 1969, p. 34). O discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio, sobre um discurso pré-construído. Enunciados simples são provenientes de outro discurso, de um discurso anterior, como se esse elemento já se encontrasse sempre aí, efeito da interpelação ideológica (Pêcheux, 1969/1983). Discursos já ditos em outros lugares e em outros tempos são os discursos pré-construídos e fazem parte da Formação Discursiva (FD). Entretanto, há sempre ‘deformações’ sobre esse discurso prévio já constituído, possibilidades estas que permitem a construção de novos sentidos. Todo o enunciado pode sempre se tornar outro, uma vez que seus sentidos podem ser muitos, mas não qualquer um (Mutti, 2004). O autor, como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações é impulsionado por uma vocação totalizante. Tenta, em função disso, conferir coerência, estabilidade, unidade e homogeneidade a seu discurso. Essa ilusão de unicidade, entretanto, lhe escapa, aparecendo os equívocos e a heterogeneidade do discurso. Na AD, ‘equívoco’ é uma marca de resistência que afeta a regularidade do sistema da língua. Este conceito surge uma vez que a língua é concebida como materialidade do discurso, como um sistema não-homogêneo e aberto. Algumas manifestações de equívocos são as falhas, lapsos, deslizamentos, mal-entendidos, ambigüidades, que fazem parte da língua e representam uma marca de resistência e uma diferenciação em relação ao sistema da FD dominante (Orlandi & Guimarães, 1986). O locutor procura anular qualquer desnível ou heterogeneidade de seu discurso através de manobras discursivas, ou esquecimentos (Dias, 2003; Mutti, 2004). Há dois tipos de esquecimentos: No esquecimento número 1, o sujeito cria uma realidade discursiva ilusória; colocando-se na origem da autoria do que diz, na fonte exclusiva do sentido de seu discurso, o sujeito tem a ilusão de que é ele o criador absoluto de seu discurso; no esquecimento número 2, ao retomar seu discurso para explicar a si o que diz, o sujeito tem a ilusão de que o discurso 69 reflete o conhecimento objetivo que tem da realidade (Pêcheux , 1969/1983). As noções de esquecimento estão entrelaçadas com a noção de memória discursiva. Um domínio de memória compreende “enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos, (...) mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, de gênese, de transformação, de continuidade e de descontinuidade histórica” (Foucault, 1969, pp. 72-73). A concepção de sujeito da AD rompe com as teorias inatistas e com as teorias essencialistas do sujeito, entendendo que tanto o sujeito quanto os sentidos não são dados a priori, mas são constituídos no discurso. O sujeito perde sua universalidade, sua ilusão de autonomia e sua centralidade ao passar a integrar o funcionamento dos enunciados atravessado por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, em que “o sujeito falante, efeito de linguagem, é determinado pelo inconsciente e pela ideologia” (Chauí, 1980, p.119). A ambigüidade constitutiva da noção de sujeito inscrita na AD situa-se paradoxalmente entre uma subjetividade livre e uma subjetividade assujeitada. O indivíduo é interpretado em sujeito (livre) para que se submeta livremente às ordens do sujeito, logo, para que ele aceite (livremente) seu assujeitamento. Há, portanto, uma contradição no interior desse sujeito: não sendo totalmente livre, nem totalmente submetido, o espaço de sua constituição é tenso (Orlandi,1988). Nem totalmente livre, nem totalmente assujeitado, sobre a constituição da subjetividade revelam-se as contradições que marcam o sujeito na AD: tensionado entre a incompletude e o desejo de ser completo; cindido entre a dispersão de sua subjetividade e a vocação totalizante do sujeito-locutor em busca da unidade e coerência de seu texto, encontra-se na AD um sujeito marcado pela ilusão de ser fonte e origem dos sentidos que produz (Dias, 2003; Mutti, 2004). A subjetividade se desloca do Eu passa a ser vista como efeito de linguagem. O sujeito é integrado ao funcionamento do discurso, determinando e sendo determinado tanto pela língua quanto pela história. Trata-se do sujeito descentrado: um mesmo sujeito é, efetivamente, outro (Orlandi & Guimarães, 1988). A ambigüidade, a dispersão e a heterogeneidade são constitutivas do sujeito e dos discursos. Para a AD, não há discursos monológicos, unívocos ou estáveis, mas discursos que se pretendem, ou ‘fingem-se’ monológicos (Orlandi & Guimarães, 1986). Embora, “(...) ninguém sonhe em negar que existem diversas séries de universos discursivos logicamente estabilizados, inscritos no espaço das ciências matemáticas e das ciências naturais, naquele das tecnologias industriais e biomédicas e na esfera social dos dispositivos de gestão-controle administrativos (...) é imperioso reconhecer que toda língua natural é também a condição da existência de universos discursivos não estabilizados logicamente, próprios ao espaço sócio-histórico dos rituais ideológicos, discursivos filosóficos, enunciados políticos, expressão cultural e estética. Nessa segunda categoria dos 70 universos discursivos, a ambigüidade e o equívoco constituem um fato estrutural incontornável” (Pêcheux, 1998, p.50). Os discursos são, portanto, heterogêneos. Na fala de um sujeito, falam também outras vozes. O discurso se tece polifonicamente num jogo de vozes cruzadas, complementares, concorrentes e contraditórias (Bakhtin, 1929/1975). Há uma heterogeneidade constitutiva do próprio discurso e que é produzida pela dispersão do sujeito. O sujeito, na AD, deixa de ser centro e origem do seu discurso para ser entendido como uma construção polifônica, lugar de significação historicamente constituído. O termo heterogeneidade discursiva é utilizado pela AD para destacar que todo discurso é atravessado pelo discurso do outro, ou por outros discursos. Estes diferentes discursos mantêm entre si relações de contradição, de dominação, de confronto, de aliança e/ou de complementação. A AD rompe, portanto, com as tentativas de homogeneidade e de ilusão de identidade tanto do sujeitos quanto dos discursos, sendo marcada, na atualidade, pela plurivocidade e pela heterogeneidade discursiva (Pêcheux, 1969/1983). Há duas formas de heterogeneidade: 1) a heterogeneidade constitutiva, que não se apresenta na organização linear do discurso. Visto que a alteridade não é revelada, não é passível de ser analisada. Esgota, assim, a possibilidade de captar lingüisticamente a presença do Outro no Um; e, 2) a heterogeneidade mostrada, que indica a presença do Outro no discurso do locutor. A heterogeneidade mostrada, por sua vez, divide-se em duas modalidades: a marcada, da ordem da enunciação e visível na materialidade lingüística, como, por exemplo, o discurso direto e as palavras entre aspas; e a não-marcada, que é da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto e a ironia (Authier-Revuz, 1982). Com a noção de heterogeneidade discursiva a AD não só abandona a idéia de um discurso homogêneo como também desestabiliza os conceitos de unidade do sujeito e unidade do texto dos estudos tradicionais da linguagem. Como o sujeito e o discurso já são heterogêneos na sua constituição, a ilusão de unidade, tanto no sujeito quanto no texto, não passam de efeitos ideológicos (Saldivar, 2004). Essa ênfase teórica na heterogeneidade dá-se na terceira fase da Análise de Discurso (AD3), designada por Pêcheux (1969/1983) como “Terceira Época”. Na AD podem ser identificadas Três Épocas (Dias, 2003; Mutti, 2003). Na Primeira Época da AD (AD1), a análise discursiva consistiu em detectar e construir sítios de identidades que se davam num espaço discursivo supostamente dominado por condições de produção estáveis e homogêneas (Pêcheux, 1969/1983). Na Segunda Época, (AD2), houve um deslocamento teórico que explodiu a noção de máquina estrutural fechada. O objeto da AD2 deslocou o olhar para as 71 relações entre diferentes máquinas discursivas estruturais, relações que são relações de forças desiguais entre processos discursivos. Introduziu-se aqui a noção de formação discursiva tomada de empréstimo de Michel Foucault: uma FD não é um espaço estrutural fechado, estando invadida por outras formações discursivas sob a forma de “pré-construídos” e de “discursos transversos”. Entretanto, na AD2, “o sujeito do discurso continua sendo concebido como puro efeito de assujeitamento à maquinaria da FD com a qual ele se identifica” (Pêcheux, 1969/1983, p.314). O desenvolvimento de pesquisas sobre os encadeamentos intradiscursivos permitiu à Terceira Época da AD (AD3) abordar o estudo da construção dos objetos discursivos, dos pontos de vista e dos lugares enunciativos. A heterogeneidade enunciativa característica da AD3 concebe o discurso como heterogêneo, tal qual o sujeito, cujo enunciado é também dividido, cindido, cujo controle do discurso lhe escapa. A AD3 rompe, portanto, com as tentativas de homogeneidade e de ilusão de identidade presentes nas etapas anteriores. O processo de uma AD, a partir da perspectiva da AD3, passa a ser em espiral, combinando entrecruzamentos, reuniões e dissociações. Inclui, ainda, o sujeito que interpreta o discurso enquanto constituinte do processo de interpretação, preocupando-se com os efeitos dessa interpretação. Fica marcada, dessa forma, a mudança da univocidade para a plurivocidade ao longo das três etapas da AD (Mutti, 2003, Pêcheux, 1969/1983). Para Pêcheux (1969/1983), é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma. O objeto de uma sociologia do discurso seria, portanto, o de verificar a ligação entre as relações de força (exteriores à situação do discurso - exterioridade) e as relações de sentido que se manifestam nessa situação. A AD procura mostrar o funcionamento dos textos observando sua articulação com as formações ideológicas presentes em determinado contexto. Viabilizando a identificação do sujeito que fala, verificando a autoridade que lhe é conferida pelo lugar social que representa em consonância com o tema sobre o qual se pronuncia, desvelando sua intenção e sua posição ideológica em relação ao seu interlocutor, a AD procura tornar visíveis as relações de poder no ato comunicativo. É necessário referir o discurso ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção. As superfícies discursivas, analisadas em série, dão vestígios do seu processo de produção. O processo de analisar um discurso consiste em desvelar a estrutura invisível que determina sua produção. No dizer de Pêcheux (1969/1983, p. 104), “dado um Estado dominante das condições de produção do discurso, a ele corresponde um processo de produção dominante que se pode colocar em evidência pela confrontação das diferentes superfícies discursivas provenientes desse mesmo Estado dominante”. 72 Os pressupostos da abordagem discursiva de Pêcheux (1969/1983) parecem coerentes com as proposições feministas dos estudos de gênero. A base comum entre tais abordagens evidencia-se na compreensão de que os problemas pessoais dependem fundamentalmente das interações, dos contextos e dos sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas experiências, que estão sempre inscritas em um campo político dado (Scott, 1986). Os referidos aportes destacam os aspectos históricos e políticos do empreendimento humano de pesquisa, compreendendo que o conhecimento é sempre situado, no qual sujeito e objeto interagem para produzir significados particulares. Não há, portanto, nessas abordagens, a clássica separação defendida pelo positivismo entre sujeito que conhece e realidade a ser investigada, mas uma relação de interdependência (ou intersubjetividade) e de resgate da subjetividade do pesquisador no processo de conhecimento. O pesquisador está sempre implicado em suas verdades, tanto para as feministas (Harding, 1987; Wilkinson, 1986, 1998) quanto para a AD. Em especial na terceira fase, na AD3 (Pêcheux, 1969/1983), predominante no campo atual da abordagem discursiva, o sujeito-pesquisador-analista do discurso que interpreta o discurso é visto como constituinte do processo de interpretação. Essa posição caracteriza a implicação do sujeito do conhecimento na construção de sua interpretação através dos gestos de leitura e de interpretação dos discursos de que nos fala (Mutti, 2003). Estas abordagens apontam, ainda, para a necessidade de que grupos oprimidos reivindiquem propostas de melhoria de sua condição de vida, assumindo uma posição marcadamente política em suas metodologias. Tanto os enfoques feministas quanto a AD comprometerem-se com valores e projetos antiautoritários, antielitistas, participativos e emancipatórios na busca da plenitude do exercício dos direitos humanos (Harding, 1987; Martín-Baró, 1997; Neves & Nogueira, 2003; Pêcheux, 1969/1983). Tal qual a AD, a crítica feminista também se propõe a desconstruir as suposições ilusórias acerca de um sujeito autônomo e universal. Nem o feminismo nem a representação do feminino são valores universais. Ser mulher no ocidente não tem o mesmo significado que o ser no oriente. Por isso a construção da subjetividade feminina se dá sob o signo da pluralidade: não mais a mulher, mas mulheres (Neves & Nogueira, 2003). Entretanto, para o feminismo, o problema vai além, uma vez que a definição deste sujeito particular dá-se a partir de uma perspectiva androcêntrica e eurocêntrica (Butler, 2003). O feminismo problematiza não só a teoria do sujeito, como o fazem Foucault (1995) e a AD (Pêcheux, 1969/1983), mas denuncia a noção universalizante do sujeito a partir do sujeito masculino, que desconsidera a multiplicidade da experiência feminina (ver Narvaz & Nardi, no prelo). As feministas (Millet, 1970; Saffioti, 1988) e as teorias feministas da família (Burck & Daniel, 73 1994; Goldner, 1988) atribuem ao patriarcado a gênese da opressão feminina. A terceira geração do feminismo, em especial a partir dos aportes de Scott (1986) e de Butler (2000, 2003) entendem que a subjetividade é produzida em um campo político de relações, que são sempre discursivas. Também Foucault (1969, 1995, 1999) concebe que o poder e os discursos constituem os sujeitos. A AD de Pêcheux (1969/1983) busca, através de sua proposta de análise dos discursos, identificar a estrutura invisível que o produz. Estes aportes, articulados, compõem um adequado referencial teórico-metodológico para investigarmos, através da história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto, a estrutura invisível de produção dos discursos de vitimização feminina. 2.1.3 O estudo de caso Consoante com as metodologias feministas (Linton, 1997; Teitelbaum, 1997) que privilegiam as abordagens qualitativas, e, dentre elas, os estudos de caso, esta investigação foi estruturada com base no delineamento do Estudo de Caso Único, ou Estudo de Caso Clássico (Yin, 1994). O Estudo de Caso, devido à sua proposta de coleta e análise de dados, é um método apropriado para investigar um fenômeno contemporâneo, dentro de um contexto de vida real. O Estudo de Caso é igualmente adequado a estudos que se propõem a verificar uma teoria já existente. Os Estudos de Caso podem referir-se a um único caso, caracterizando o Estudo de Caso Clássico ou Estudo de Caso Único. O delineamento do Estudo de Caso proposto por Yin (1994) envolve cinco componentes que estão interligados: 1) as questões de pesquisa; 2) as proposições; 3) a(s) unidades de análise; 4) a lógica que vincula os dados às proposições; e, 5) os critérios para a interpretação dos dados. O primeiro componente do delineamento proposto por Yin (1994) são as questões de pesquisa, que devem ser definidas a partir do problema a ser investigado. O segundo componente do delineamento do Estudo de Caso, conforme Yin (1994), são as proposições (ou hipóteses teóricas) do estudo. As proposições teóricas orientam o/a pesquisador/a no exame dos aspectos a serem investigados a partir do problema e das questões de pesquisa. As proposições focalizam uma área em especial a ser verificada, limitando o foco para a coleta de informações. Segundo Yin (1994), quanto mais proposições houver no estudo, mais facilmente serão focalizados os dados relevantes a serem coletadas e analisadas. O terceiro componente do delineamento refere-se à unidade de análise. A unidade de análise emerge da questão inicial de pesquisa e das proposições teóricas. No Estudo de Caso Único, ou Clássico (Yin, 1994), a unidade de análise pode ser uma única pessoa, sendo coletados os dados a partir das informações em relação a esta pessoa. O quarto e o quinto componentes desse 74 delineamento envolvem os critérios para a análise dos dados. De acordo com Yin (1994), há duas estratégias gerais para a análise dos dados: 1) Basear-se nas proposições teóricas; e, e 2) Desenvolver uma descrição do caso. Segundo o autor, a primeira estratégia é a mais adequada para estudos de caso, ou seja, os dados devem ser analisados a partir das proposições teóricas esboçadas pelo estudo. 2.2 Delineamento O primeiro componente do delineamento utilizado nesta investigação são as questões de pesquisa. Este estudo envolve a temática das famílias incestuosas e busca compreender a história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto, o problema de pesquisa. As questões que emergiram do problema de pesquisa e que orientaram a coleta de dados foram: 1) Qual a história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto?; 2) Quais as vivências em sua família de origem?; 3) Qual é a concepção de família desta mulher?; 4) Que vivências presentes na história de vida desta mulher podem estar relacionadas ao abuso sexual das filhas?; 5) Esta mulher-mãe também foi sexualmente abusada em sua infância?; 6) Pode-se identificar um padrão de transmissão transgeracional de abuso sexual na análise de sua história de vida?; 7) Esta mulher vive relações violentas em sua família conjugal atual?; 8) Como esta mulher percebe a prescrição e o desempenho de papéis familiares?; 9) Como esta mulher percebe a relação com as filhas vítimas, antes e depois do abuso sofrido?; 10) Que posições foram ocupadas por esta mulher em relação ao abuso sofrido pelas filhas, de submissão ou de resistência?; 11) Esta mulher foi conivente e culpada pelo abuso das filhas ou foi também vítima?; 12) Qual a percepção desta mulher quanto às atitudes tomadas diante do abuso das filhas?; 13) Que vivências em sua história de vida podem estar relacionadas às possíveis atitudes de submissão ou de resistência ao abuso sofrido pelas filhas?; 14) Qual a percepção desta mulher sobre os papéis de gênero na sociedade e na família; 15) Que relações podem ser estabelecidas entre sua percepção acerca dos papéis familiares e de gênero e as atitudes/posições ocupadas diante do abuso sofrido pelas filhas?; 16) Que recursos de suporte familiar, comunitário e social foram identificados e acessados por esta mulher no enfrentamento das violências sofridas por ela e pelas filhas?; 17) Que discursos científicos e sociais acerca da vitimização feminina e da conivência materna diante do incesto podem ser identificados na análise da história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto? O segundo componente deste delineamento são as proposições. Baseadas na literatura, as proposições teóricas deste estudo foram: 1) A concepção de família de uma mulher-mãe de 75 vítimas de incesto corresponde à família normativa, organização patriarcal, nuclear, monogâmica e burguesa; 2) Os papéis familiares em uma família incestuosa são designados conforme ditames patriarcais, caracterizando-se por uma divisão rígida e tradicional de papéis, em que o homem é o provedor econômico da família e a mulher-mãe, a cuidadora do lar e dos filhos; 3) O relacionamento familiar nas famílias incestuosas é marcado por diversas formas de violência, caracterizando-se por uma distribuição desigual de poder, cabendo ao homem-pai-marido as decisões quanto às regras a serem seguidas pela família, que deve submeter-se ao poder masculino patriarcal. O poder patriarcal, ao mesmo tempo em que prescreve a obediência e a submissão nas famílias incestuosas, suscita resistências. As mulheres-mães das vítimas de incesto e suas filhas podem ocupar diferentes posições diante das violências sofridas, ora de submissão, ora de resistência. O terceiro componente do delineamento refere-se à unidade de análise. A unidade de análise principal deste estudo foi a História de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto. Vinculadas à unidade principal, foram identificadas subunidades, quais sejam: 1) Concepção de Família; 2) Papéis Familiares; e, 3) Submissão e Resistência. Cada uma destas subunidades abrangeu categorias e subcategorias. Para facilitar a compreensão, ao longo do texto, a unidade principal de análise e as subunidades estão grafadas em negrito, enquanto as categorias e subcategorias de cada uma destas unidades e subunidades estão grafadas em itálico e ordenadas com números. Os exemplos de falas que ilustram estas categorias e subcategorias serão grafados em itálico e destacados do texto, em espaços simples. Estes aspectos estão organizados na Tabela 1, que apresenta os resultados deste estudo (ver Capítulo III). O quarto e o quinto componentes do delineamento utilizado neste estudo envolvem a análise dos dados. Na presente investigação, os dados foram analisados a partir das proposições teóricas, estratégia mais adequada, de acordo com Yin (1994), para estudos de caso. 2.3 Participante Participou do estudo uma mulher-mãe, vítima de várias formas de violência, tanto em sua infância quanto em sua vida adulta, cujas filhas foram vítimas de incesto perpetrado pelo padrasto. Foram nomeadas, ficticiamente, as pessoas envolvidas no estudo para facilitar a compreensão dos processos descritos. A participante, será denominada Iara; suas filhas serão chamadas Ana, a mais velha, e Vanessa, a caçula. O filho de Iara será chamado Gabriel. Os 76 parceiros sexuais e conjugais, citados por Iara, com os quais manteve relacionamentos ao longo de sua história de vida serão chamados Paulo, Pedro, João, José e Aquiles. Iara é uma mulher, de 45 anos de idade, pobre, residente de uma vila da periferia da cidade de Porto Alegre. Apesar da simplicidade de sua vestimenta, Iara tinha uma aparência cuidada, aparentando menos idade do que sua idade cronológica. De estatura mediana, Iara é filha de mãe índia. A tez morena e seus traços faciais revelam a miscigenação típica de sua descendência. Iara conviveu pouco tempo com seus pais biológicos na infância. A mãe, segundo ela, abandonou a família em função de um amante quanto Iara tinha cerca de quatro anos de idade. Iara e o irmão ficaram, então, aos cuidados do pai e da família paterna. Iara foi vítima de abuso sexual pelo tio paterno nessa época, quanto tinha cerca de quatro anos de idade. O pai de Iara, encontrando outra companheira, deixa a família paterna e os filhos. Iara é levada pela mãe para uma família substituta, onde sofre diversas formas de violência. O irmão permaneceu aos cuidados da mãe de Iara. Com cerca de 13 anos, Iara foge dos maus tratos e vai ao Juizado de Menores, sendo entregue a outra família, quem considera sua mãe adotiva. Iara mora com a mãe adotiva até seus 17 anos, quando, segundo ela, é “devolvida” pela mãe adotiva para a mãe biológica. Mais ou menos nessa ocasião, aos 17 anos, Iara sofre assédio sexual de seu dentista e engravida pouco tempo depois de um namorado, Paulo, ainda morando em São Paulo. Desse relacionamento, com Paulo, Iara teve sua primeira filha, Ana. Iara e Paulo não se casaram legalmente, morando juntos durante apenas um ano. Segundo ela, o relacionamento não deu certo porque Paulo bebia e a agredia fisicamente. Após, Iara foi morar em S. M., interior do Rio Grande do Sul, levando a filha Ana consigo. Relacionou-se com Pedro, com quem teve dois filhos, Gabriel e Vanessa. Segundo Iara, Pedro fazia brincadeiras de cunho sexual com a filha Ana, mas nunca soube se houve abuso sexual. Pedro também era abusador de álcool, de drogas e violento fisicamente com Iara. Pedro, conforme relato de Iara, vendo que esta não tinha condições econômicas de cuidar do filho Gabriel, então com dois anos de idade, entrega o menino para ser criado por sua irmã, em Porto Alegre. Depois deste relacionamento, que durou cerca de dois anos, Iara veio morar na Grande Porto Alegre, a fim de ficar mais perto de seu filho. Teve um terceiro companheiro, João, com quem se casou legalmente, convivendo com ele durante cerca de quatro anos. Nesse período, a filha Ana ficava, segundo Iara, um pouco com ela, um pouco no internato, um pouco com sua mãe biológica e um pouco com sua mãe adotiva, em S. P. Iara relatou não nutrir sentimentos amorosos por João, que não a satisfazia sexualmente, mas lhe oferecia uma casa e uma família. Iara referiu tratar muito mal este companheiro, sendo agressiva inclusive 77 fisicamente com ele. João não era agressivo fisicamente com Iara, mas bebia e a agredia verbalmente, diz ela. Quando Iara discutia com João, voltava para S. M. e ficava lá um tempo com o companheiro anterior, Pedro, engravidando então da filha caçula, Vanessa. Retornando a Porto Alegre, voltou a morar com João que, mesmo sabendo não ser o pai biológico do bebê, assumiu a paternidade da menina, provendo alimentos à Vanessa até hoje. Enquanto morava com João, Iara conheceu seu quarto companheiro, José, com quem iniciou um relacionamento. Segundo Iara, José era um homem violento, ex-presidiário e abusava de álcool. José expulsou João de casa e passou a conviver com Iara e com suas filhas, Ana e Vanessa. José abusou sexualmente de Ana durante o período em que ela morou com a mãe, sendo agressivo física e emocionalmente tanto com Ana quanto com Iara. Iara e José estão separados há cerca de dois anos, período em que Iara começa a relacionar-se com Aquiles. O quinto e atual companheiro de Iara, Aquiles, é filho adotivo de José, que freqüentava a casa da família. Iara vive maritalmente com Aquiles há cerca de dois anos. Aquiles tem 23 anos de idade e trabalha com Iara vendendo churrasquinhos. Iara já trabalhou como empregada doméstica e babá de crianças em casas de família. No momento, nenhum dos filhos reside com Iara. Em função do abuso cometido por José, Ana fugiu de casa aos 15 anos de idade e foi para um abrigo, não tendo mais contato pessoal com a mãe há cerca de dez anos. O filho, Gabriel, atualmente com 21 anos de idade, desde os dois anos de idade foi criado pela madrinha e tia paterna, com quem reside até hoje em Porto Alegre. Ambos, Ana e Gabriel, não têm contato com a mãe, falando-se ocasionalmente apenas por telefone. Os irmãos também não têm contato entre si. A filha caçula, Vanessa, atualmente com 14 anos, sempre residiu com Iara. Entretanto, há cerca de um mês, devido à suspeita de abuso sexual que também Vanessa estaria sofrendo por parte de José, que continuou freqüentando a casa de Iara, Vanessa foi morar com o pai adotivo, João. Vanessa e Iara continuam em contato. Iara, embora não tendo acreditado em Ana acerca do abuso cometido na época por José, diz ter acreditado e defendido Vanessa contra os assédios do padrasto. Atualmente, Iara tem tomado todas as providências legais de denúncia do abuso e de avaliação psicológica que estão sendo efetivadas no Centro de Referência ao Atendimento da Infância e Adolescência (CRAI), especializado no atendimento a situações de violência, sediado na instituição onde foi realizado o presente estudo. 2.4 Instrumentos e procedimentos Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi feito contato com a instituição na qual foi realizada a 78 investigação, um ambulatório de atendimento a famílias e vítimas de violência da rede pública de saúde de Porto Alegre. O projeto de pesquisa também foi submetido à apreciação do Comitê de Ética da referida instituição. Concluída esta etapa, foi solicitado o encaminhamento de possíveis participantes que preenchessem os critérios de amostragem, ou seja, mulheres cujas filhas tivessem sido vítimas de incesto, perpetrado pelo pai ou padrasto, companheiro da mãe na ocasião do abuso. Uma vez encaminhada, a participante foi entrevistada individualmente. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita. Dada a extensão e a complexidade do estudo, foram realizadas duas entrevistas com Iara, totalizando cerca de cinco horas de duração. As entrevistas foram realizadas na própria instituição. Foi utilizada para a coleta dos dados uma entrevista semi-estruturada (ver Anexo A), incluindo dados biodemográficos e questões referentes aos objetivos investigados. Observou-se que, no início, tanto a participante quanto a entrevistadora estavam apreensivas, talvez pelo conteúdo mobilizador da entrevista. Outras situações foram percebidas pela entrevistadora como desconfortáveis, as quais provavelmente contribuíram para a referida apreensão inicial. Dentre essas situações destaca-se a preocupação da entrevistadora de colocar-se no papel de pesquisadora devido ao fato de já ter trabalhado na instituição em que estava sendo realizada a coleta de dados como psicoterapeuta de famílias e de vítimas de violência. O receio de que a confusão de papéis, como pesquisadora terapeuta, pudesse atrapalhar a atividade de pesquisa parece ter sido, entretanto, superado e utilizado a favor da formação de um vínculo de acolhida e de uma escuta respeitosa da participante. Outras situações, experimentadas especialmente pelas integrantes da equipe de pesquisa, alunas do terceiro semestre da graduação em psicologia, que participaram da entrevista, também foram comentadas. Segundo as mesmas, a presença de três entrevistadoras em um mesmo espaço para coletar dados de uma participante apenas, bem como os procedimentos da gravação em si mesma (o que exigiu que o diálogo fosse algumas vezes interrompido para a substituição da fita cassete, por exemplo), foram aspectos que, inicialmente, causaram certo desconforto. A preocupação inicial em seguir o roteiro da entrevista, um tanto extenso, foi logo superada. A pesquisadora procurou estabelecer um diálogo com a participante, priorizando a narrativa da história de vida da mesma e, no desenrolar do processo, foi introduzindo as questões previstas na coleta de dados. Aos poucos, tanto a participante quanto as entrevistadoras foram-se descontraindo. O clima, ao longo de todas as entrevistas, foi de colaboração, de respeito e de acolhida e, cabe ressaltar, de emoção. A postura empática das entrevistadoras (três mulheres, duas estudantes de psicologia e uma psicóloga e terapeuta com experiência clínica em casos de violência), 79 evidenciou-se através da solidariedade genuinamente sentida pela entrevistadora e pela equipe de pesquisa acerca das vivências relatadas pela participante em sua história de vida. Apesar do conteúdo mobilizador das entrevistas, não foi percebida resistência da participante às questões que lhe foram feitas, mostrando-se interessada, participativa e, segundo ela, valorizada. A participante, quando falou de sua família de origem e do afastamento dos filhos de sua convivência, chorou. Parece que, ao falar sobre as situações vivenciadas, a participante sentiu-se aliviada e apoiada. Ao final da primeira entrevista, as entrevistadoras agradeceram à participante sua disponibilidade e valorizaram sua coragem em falar de aspectos tão dolorosos. Na segunda entrevista, que durou cerca de três horas, a participante parecia não querer terminar a entrevista. Essa impressão foi confirmada por diversas falas. Em uma dessas falas, Iara chorou, mencionando ter ficando emocionada com o agradecimento feito pela pesquisadora e pela equipe pelo fato de “termos aprendido muito com ela”. Também o comentário feito pela pesquisadora sobre Iara ser “uma mulher lutadora e corajosa, dispondo-se a falar de temas tão difíceis” foi importante, segundo ela: “vi que eu era uma lutadora mesmo e que estava pretendendo mudar de profissão e trabalhar como cabeleireira, um sonho antigo, pois assim poderia se cuidar mais”. Em outro momento, aludindo às entrevistas realizadas para a coleta de dados, disse que “essa ‘terapia’ estava lhe fazendo muito bem”. Em função disso, Iara buscou terapia com uma psicóloga no posto de saúde perto de sua residência, a fim de poder continuar a conversar e a desabafar, pois isto a ajudava a sentir-se aliviada. Ao final do processo, a pesquisadora colocou-se à disposição para acompanhar o caso junto ao CRAI, se fosse do interesse de Iara, ao que ela agradeceu, parecendo sentir-se apoiada e valorizada. 2.5 Questões éticas Todo o processo de pesquisa foi realizado dentro dos Critérios da Ética na Pesquisa com Seres Humanos, conforme Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (1996). O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Instituição em que se desenvolveu a investigação, formulando-se Consentimento Livre e Esclarecido (ver Anexo B) e Autorização para gravação da entrevista em audiotape (ver Anexo C), que foram lidos e preenchidos pela participante. Foram também fornecidas todas as informações referentes aos objetivos da investigação. Uma vez que a temática investigada é bastante mobilizadora, foi assegurada a interrupção do processo de entrevista caso se percebesse algum desconforto prejudicial à participante, bem como esta poderia também solicitar a interrupção da entrevista. Foi oferecido apoio para questões mobilizadoras durante e após a realização das entrevistas. 80 Iara segue sendo atendida no Centro de Referência juntamente com a filha Vanessa, buscando psicoterapia individual para si em um Posto de Saúde perto de sua atual residência. A pesquisadora manteve contato, após a realização das entrevistas, com o Centro a fim de oferecer sua contribuição no acompanhamento do caso. 2.6 Análise dos Dados Os dados foram analisados a partir das proposições teóricas esboçadas neste estudo, estratégia mais adequada, de acordo com Yin (1994), para estudos de caso. Finalizada a coleta dos dados e transcritas as entrevistas de forma literal, procedeu-se à exaustiva e cuidadosa análise dos mesmos. Com base na proposta da Análise de Discurso (Pêcheux, 1969/1983) foram identificados os efeitos de sentido nas falas da participante que remetessem às proposições teóricas e às respectivas unidades e subunidades de análise. Nesse processo, algumas unidades foram renomeadas, enquanto outras foram agrupadas ou re-agrupadas. A análise dos efeitos de sentido dispersos nos enunciados da participante buscou encontrar os elementos regulares que pudessem desvelar a formação discursiva dominante de seu discurso, o que Pêcheux (1969/1983) denomina também de formação imaginária. Cabe destacar que, segundo a abordagem discursiva (Mutti, 2003; Pêcheux, 1969/1983), os gestos de interpretação da pesquisadora interferem a título de condições de produção do discurso. Sendo assim, a análise dos dados privilegiou alguns aspectos, em detrimento de outros, uma vez guiada pelas questões de pesquisa, pelas proposições teóricas e pelo referencial teóricometodológico nos quais se fundamentou esta investigação. Capítulo III RESULTADOS E DISCUSSÃO Neste Capítulo, são apresentados os resultados desta investigação. Para facilitar a compreensão, ao longo do texto, a unidade principal de análise e as subunidades estão grafadas em negrito, enquanto as categorias e subcategorias de cada uma destas unidades e 81 subunidades estão grafadas em itálico e ordenadas com números. Os exemplos de falas que ilustram estas categorias e subcategorias serão grafados em itálico e destacados do texto, em espaços simples. Estes aspectos estão organizados na Tabela 1. Tabela 1 Demonstrativo da Unidade, Categorias e Subcategorias de Análise dos Dados Unidade Proposições Subunidades principal Proposição I - A concepção de família de uma mulher-mãe de vítimas de incesto Concepção de corresponde à família normativa, família organização patriarcal, nuclear, monogâmica e burguesa. Categorias Família pensada Família vivida História de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto Proposição II - Os papéis familiares em uma família incestuosa são designados conforme ditames patriarcais, caracterizando-se por uma divisão rígida e tradicional de papéis, em que o homem é o provedor econômico da família e a mulhermãe, a cuidadora do lar e dos filhos. Papéis familiares Cuidado da casa Sustento econômico Cuidado dos Filhos 82 Tabela 1 Demonstrativo da Unidade, Categorias e Subcategorias de Análise dos Dados (Continuação) Violência conjugal e alcoolismo Proposição III – Transmissão O relacionamento familiar nas transgeracional famílias incestuosas é marcado por diversas formas de violência, Falta de modelo caracterizando-se por uma de família distribuição desigual de poder, protetiva cabendo ao homem-pai-marido as decisões quanto às regras a serem Dependência do seguidas pela família, que deve parceiro submeter-se ao poder masculino Submissão patriarcal. O poder patriarcal, ao Medo do História de mesmo tempo em que prescreve a parceiro obediência e a submissão nas vida de Submissão famílias incestuosas, suscita uma Desejo de resistências. As mulheres-mães das e mulhermanter a família Resistência vítimas de incesto e suas filhas mãe de unida vítimas de podem ocupar diferentes posições diante das violências sofridas, ora incesto Obediência de submissão, ora de resistência. Falta de Recursos de apoio Resistência Transgressão Recursos de Apoio A seguir, são apresentadas as Proposições, as Subunidades de Análise e as respectivas Categorias e Subcategorias de Análise dos Dados, exemplificadas por recortes significativos das falas da participante. 83 Proposição I- A concepção de família de uma mulher-mãe de vítimas de incesto corresponde à família normativa, organização patriarcal, nuclear, monogâmica e burguesa. Subunidade de Análise – Concepção de Família: compreende as concepções e as vivências da participante sobre o que é uma família e sobre quem considera sua família. Incluem-se aqui duas Categorias de Análise: 1) Família Pensada (Szymanski, 1992, 1997, 1998), caracterizase pela definição do que é família para a participante do estudo; e, 2) Família Vivida (Szymanski, 1992, 1997, 1998), caracteriza-se pelas vivências de família descritas pela participante. 1) Família Pensada: A idéia de família expressa pela participante corresponde à configuração idealizada de família nuclear burguesa, modelo normativo de família (Szymanski, 1992, 1997, 1998) em nossa sociedade. Iara diz não saber o que é família, pois não vivenciou tal configuração, como demonstram as falas a seguir apresentadas. Família... Ah, essa parte tá em falta... Na verdade (chora) acho que eu não sei, não sei o que é família (...). Eu acho que não tenho família, porque família... família tem sido gato, cachorro, tem sido a família (...). Eu acredito que não foi uma família, por que minha mãe, bem dizer, desmoronou nós, né. A minha família já veio desmoronada já desde ali, né... Eu tinha quatro anos, meu irmão, dois anos... Ela foi embora com uma pessoa e fico nós pra trás (...). Ela (mãe) vivia com meu pai, não era casada no papel (...). O desejo de ter uma família, uma casa e os filhos perto de si evidenciam o valor e a concepção de família idealizada por Iara. Eu não gostava dele (João, o terceiro companheiro), mas eu queria ter uma casa, ter uma família (...). Com esse eu casei no papel mesmo (...). Quando o Pedro, o pai do guri me tirou ele, eu sofri muito (chora) por que eu queria muito ter um filho comigo(...). Já tinha ficado sem a guria mais velha e agora sem o guri, aí resolvi que ia engravidar de novo, e armei uma armadilha pra ele (risos) e engravidei da minha mais nova, a Vanessa.. Outras concepções de família que se referem às famílias de criação também são identificadas em suas falas. Minha mãe me deu para pra ser criada com eles (família substituta), pra ser criada como filha (...). Aí eles (o Juizado de Menores) passaram eu pra outra família, a de São Paulo (...). O meu filho também foi tirado de perto de mim, quem cria é a madrinha (...). O pai do meu filho (Pedro, o segundo companheiro), ele tirou o guri de mim porque eu não tinha condições de criar, né, não tinha trabalho. Aí ele deu pra irmã dele criar, ela era viúva e não tinha filhos, cria ele até hoje (...). A minha filha mais velha, a Ana, eu não criei, bem dizer ela, quem criou mais foi a avó dela lá de São Paulo (...). A proximidade e o afeto na criação e na adoção são valorizados por Iara em sua concepção de família, em contraste com a idealização da família nuclear consangüínea. O meu atual companheiro (Aquiles) é filho adotivo do meu ex-companheiro (José), mas não tem nada de sangue, nada a ver (...). É filho adotivo (...). Adotivo, bem dizer, só de nome, porque na verdade quem criou só foi a ex- mulher dele, ela que criou (...).Tinha até filhos com outra mulher, então ele era um pai de visita (...). 84 Esse outro (o terceiro companheiro, João) que assumiu a minha filha mais nova, a Vanessa, não é o pai biológico dela, mas assumiu ela como pai (...). Ele não é o pai verdadeiro dela, mas foi quem deu o nome e quem criou e é o pai que ela ama. 2) Família Vivida: os trechos a seguir evidenciam as diversas configurações familiares vivenciadas ao longo do tempo pela participante do estudo. Foram identificados quatro núcleos distintos, quais sejam: família de origem, família substituta, mãe adotiva e família atual. Em suas falas, destacam-se elementos relativos à consangüinidade, ao parentesco, à criação e à proximidade e ao apoio afetivo em suas vivências de família. Família de origem: compreende o grupo de pessoas com as quais Iara tem relações consangüíneas e de parentesco. Eu na verdade não fui criada com a minha mãe, nem com o meu pai, né. (...). Fiquei com o meu pai, no caso, porque quando ela deixô eu, ela deixo com o meu pai, desde os quatro anos, na casa do meu avô, do meu tio, era tudo junto, daí ele saiu, quando ele foi à luta de conseguir outra mulher também (...). Eu acho que eu fui vê mesmo eles depois dos 17 anos é que eu fui... me aproximando da... bem dizê família, que eu digo, né. Assim, familiares, né. Familiares que eu fui vê, os tios, coisa assim (...). Família substituta: compreende o grupo de pessoas com as quais Iara foi criada em substituição à família de origem. Devido aos abusos vivenciados, Iara não considera esta sua família. Aí como eu falei eu tava com uns quatro anos de idade mais ou menos e a minha mãe me pegou pra leva pra essa outra família, pra essa família que me criô até os quinze anos mais ou menos, mas eles me tratavam como uma escrava, um tipo de escravidão. Não me tratavam bem. Essa eu não considero família (...). Como eu achava que eu apanhava muito eu peguei um dia e fugi, né? Fugi e fui num Juizado de Menores. Mãe adotiva: refere-se à pessoa por quem Iara foi criada e que, apesar de não ter legalizado a adoção, é percebida como mãe adotiva. Aí eles passaram eu pra outra família, a de São Paulo, aí que eu fui morar com essa que eu chamo ela de mãe. Morei com ela uns anos. Essa senhora tava procurando justo uma menina pra trabalhar na casa dela. Ela diz criar, mas é pra morar na casa dela, ela queria uma menina pequena (...). Ela não quis me adotar porque eu já era grande, mas resolveu experimentar e disse: ‘Quando tu tiver uma certa idade eu vou te devolver pra tua mãe legítima.’ E quando eu tinha 17 anos foi quando ela me devolveu para minha mãe legítima. Fiquei até aos 17 anos e depois ela mesma foi no juiz e me passou pra minha mãe de novo. Essa, a de São Paulo que eu considero minha mãe. Mas faz tempo que eu não falo com ela... faz uns 14 anos que eu não vejo ela... Ela cuidou da mais velha (a filha) pra mim quando eu levei ela pra lá, por causa do abuso. Família atual: A família atual é definida por Iara pelas pessoas com as quais têm relações consangüíneas e de parentesco. Minha família atualmente, pra mim tem sido só minha pequena (a filha Vanessa), agora no momento, né. Ela que me dá força, que vem tomar conta de mim quando eu preciso. Eu tenho outro filho também, de vinte anos (...). Mas ele não me liga (...). A minha filha (Vanessa) tá morando com o pai dela, por causa do abuso, agora que ela não tá comigo, mas ela me liga pra mim (...). Eu tenho outra filha, a Ana, a mais velha, mas ela tá morando longe agora e me liga só de vez em quando (...). Na família os únicos que agora tem é nós dois (ela e o irmão). Minha mãe, não tenho mais. Só tem um irmão, só que mora no interior de J.C. O pai também já é falecido. Meu pai, eu fiquei muitos anos sem vê ele. 85 Muito, muito, muitos anos sem vê ele (...). Os outros são parente, passou, não se visitam (...). Não tem mais mãe, não tem mais pai (...). Então ficou só nós, bem dizê, né. Meu irmão e meus sobrinhos, minha cunhada também, eles sempre procuram ser uma família pra mim (...). O companheiro é mencionado como a pessoa com quem Iara mora, ficando ambígua a forma como percebe esse vínculo, se considerado ou não como sua família. Não explicita claramente que o considera de sua família. Destaca-se a entonação conferida ao termo ‘mora’ em sua fala. Eu tenho uma pessoa que mora comigo (...). O meu atual companheiro (...). A análise das falas de Iara revelou que os efeitos de sentido encontrados em seu discurso deslizaram entre diferentes posições-sujeito. Entretanto, a formação discursiva dominante identificada na análise dos dados correspondeu, no que concerne à concepção de família, ao modelo idealizado de família nuclear burguesa patriarcal. A concepção de família desvelada no discurso de Iara parece ser definida pelas relações consangüíneas e de parentesco composta por pai, mãe e filhos biológicos (Szymanski, 1992, 1997). A primeira proposição deste estudo, qual seja, a de que a concepção de família de uma mulher vítima de violência corresponde à organização patriarcal, nuclear, monogâmica e burguesa, encontra, assim, sustentação na análise destes dados. Inicialmente, a participante diz não saber o que é família e não ter família, porque a sua família já veio “desmoronada” pelo abandono da mãe. Uma vez que não vivenciou o modelo idealizado, Iara percebe-se como não tendo família. A concepção e a vivência de família aparecem quase indissociáveis em suas falas. Entretanto, devemos destacar que a configuração a que Iara se refere como não sabendo o que é, por não ter efetivamente vivido, diz respeito à família nuclear burguesa com conotação normativa. Tal idéia de família, segundo Szymanski (1992, 1997), ainda parece ser o modelo de família na contemporaneidade. Embora praticamente não tenha vivenciado o modelo idealizado e normativo de família nuclear nem em sua infância nem na vida adulta, o desejo de ter uma família e uma casa, com os filhos e filhas perto de si, foi evidente em sua fala. Iara conta terse submetido a conviver com um companheiro que não amava para ter acesso a esse bem simbólico, ou seja, a família. Iara refere-se, por várias vezes, ao abandono da mãe biológica, que não lhe deu carinho nem amor quando pequena, bem como à falta de convivência com o pai. A valorização da relação com o irmão e com a família deste, referindo-se à cunhada e às sobrinhas que a procuram e que tentam ser uma família para ela e o desejo de restabelecer as relações, ao menos por telefone, com os filhos que lhe “foram tirados”, evidenciam a valorização da família consangüínea. A definição de família passa, portanto, pelas noções de 86 consangüinidade e de parentesco, característicos do modelo de família burguesa, patriarcal, monogâmica normativa (Szymanski, 1992, 1997). Em alguns momentos, Iara refere-se às vivências de família a partir de oposições, marcadas por adjetivos como “biológica”, significando legítima, em oposição à “adotiva” ou “de criação”. Entretanto, apesar dessa oposição, percebe-se a valorização da proximidade, do apoio, do carinho e do cuidado ao definir quem considera sua família. Se, num primeiro momento, Iara dizia não saber o que é família, ou não ter tido família, paulatinamente seu discurso vai desvelando outras formas de organização familiar, as famílias adotivas ou famílias de criação, que foram vividas, quer por ela própria, quer pelas filhas e pelo filho. Desconsidera, por vezes, a consangüinidade e o parentesco, bem como a legitimidade de alguém que “é adotivo só no nome, porque não criou”, ao referir-se a José, pai do atual companheiro de Iara, por exemplo. Esses aspectos são observados também em relação às duas famílias substitutas com as quais Iara conviveu, referindo-se à família de São Paulo como a “verdadeira família” ou a “verdadeira mãe” que, mesmo sem ter adotado Iara legalmente, é vivenciada como “mãe adotiva”. A família a quem Iara foi dada pela mãe para ser criada, percebida como abusiva, não é considerada família, expressando claramente que nunca mais a procurou. Na família atual, valoriza a adoção pelo padrasto (João) da filha mais nova Vanessa, que, mesmo não sendo o pai biológico da menina, a adotou, e “é o pai que ela ama”, com quem está morando atualmente, diz Iara. Já José (pai de Aquiles, atual companheiro de Iara) é desvalorizado em seu papel de pai uma vez que não criou, nem conviveu com o filho, “sendo pai de visita”, diz ela. Percebe-se, nesse sentido, o valor atribuído ao cuidado e à criação como marcas importantes em sua concepção de família. Por outro lado, a criação de seu filho pela madrinha, bem como a criação da filha mais velha Ana, e a sua própria criação pela mãe adotiva de São Paulo são vivenciadas com certa ambivalência. Se, por um lado, suas falas sugerem a valorização dessas formas de organização familiar, especialmente se permeadas por relações de afeto e cuidado, percebe-se também certa tristeza e sentimentos de perda “pelos filhos que lhe foram tirados” e “por não ter tido uma família e não ter sido criada por sua mãe biológica”. Nestes momentos, chora na entrevista. Tais adoções parecem denunciar o desejo e a impotência/incompetência autoconfessa de Iara de manter sua família unida, bem como de não ter vivenciado a configuração de família legitimada pela ordem patriarcal burguesa, que regula as concepções de família normativa (Szymanski, 1992). Diversas configurações familiares coexistem na atualidade com o modelo hegemônico da família nuclear patriarcal burguesa, tais como famílias chefiadas por mulheres sozinhas e famílias de criação. Entretanto, tais configurações e práticas têm sido invisibilizadas ou 87 desvalorizadas (Corrêa, 1982; Fonseca, 1989, 1995, 2001; Maluf, 1993). Há, contudo, uma certa normatização dos modos de organização familiar e doméstica do povo brasileiro, ocultando, sob a hegemonia do modelo patriarcal, a diversidade de “uma sociedade multifacetada, móvel, flexível e dispersa, na tentativa de acomodá-la dentro dos estreitos limites do engenho ou da fazenda” (Corrêa, 1982, p.22). Nas falas de Iara, identificamos esta normatização, o que desvela a formação discursiva patriarcal pela qual seu discurso parece estar capturado. A competência das famílias não depende de sua estrutura ou de sua configuração, mas da qualidade das relações estabelecidas entre seus membros (Costa, Penso & Féres-Carneiro, 1992). Dada a idealização da família nuclear em nossa sociedade, parece ser esse ainda o modelo pensado e desejado de família que são encontrados no relato de Iara, embora não corresponda ao modelo vivido (Szymanski, 1997, 1998). As vivências de família de Iara correspondem a essas configurações alternativas ao modelo de família normativa. Tais vivências aparecem ambivalentes em seu relato, configurando diferentes posições-sujeito por ocupadas por Iara em relação à formação discursiva patriarcal. Embora valorizadas, as configurações alternativas vivenciadas não aparecem como modelos reconhecidos e legítimos de família. Para Gomes e cols. (2002), diversas mudanças têm sido observadas na composição da família brasileira contemporânea dos diferentes segmentos sociais. Entretanto, as famílias que não são organizadas de forma nuclear, com alternância de parceiros da mulher-mãe, são estigmatizadas como desajustadas ou desestruturadas, como se lhes fosse atribuído um estatuto menor do que o modelo idealizado de família nuclear. Este aspecto pode ser encontrado nas falas de Iara, quando percebe sua família como “desmoronada”, quando destaca que o pai e a mãe “não eram casados no papel”, ao mesmo tempo em que valoriza “ter casado no papel” com João, o terceiro companheiro. Também a ambigüidade de Iara ao referir-se ao atual companheiro, Aquiles, como pertencendo à sua família atual ou não, sugere a influência na normatização do casal monogâmico, como prescrição das concepções de família de que falam Gomes e cols. (2002). Aquiles é o companheiro que mora com ela, ao passo que João foi o marido com quem “casou no papel mesmo”. Não há, portanto, como negar a existência da influência das relações patriarcais na organização da família pequenoburguesa contemporânea (Castells, 1999; Goldner,1985, 1988; Millet, 1970), ou, ao menos, em sua representação e no desejo de vivê-la. Neste caso, parece ser esta a concepção de “verdadeira família”, em contraste com o a “família vivida”, percebida por Iara como “família desmoronada”. Tais aspectos confirmam os achados relativos à dissociação entre “família vivida e à família pensada” (Szymanski, 1997, 1998), em que o modelo hegemônico de 88 família nuclear é encontrado mesmo no imaginário de meninas maltratadas que, como Iara, não viveram ou não vivem com suas famílias (De Antoni & Koller, 2000). A análise dos dados revelou que diversas posições-sujeito foram ocupadas por Iara no que tange à concepção de família. Verificam-se tensões nas falas de Iara, que oscilam entre a valorização da família normativa e a valorização dos vínculos de afeto expressos no cuidado e na criação, quaisquer que sejam as configurações familiares em que estejam inscritos. As distinções entre família vivida e família pensada relacionam-se, na história de vida de Iara, à questão das adoções e dos filhos de criação. Na medida em que tanto a mãe de Iara quanto ela própria necessitavam trabalhar, e não contavam com o apoio dos companheiros, recorreram a outras mulheres e à família extensa para o cuidado dos filhos. Tal prática era comum na época feudal, em que a mãe camponesa dividia a criação dos filhos com outras mulheres da comunidade, não estando tão isolada quanto a mãe da família burguesa. As crianças não eram o centro da vida familiar camponesa, nem o papel materno idealizado como viria a ser mais adiante pela família burguesa (Badinter, 1985; Castel, 1998; Reis, 1985). Essa prática de circulação de crianças, baseada em laços comunitários de solidariedade, foi encontrada também em vários estudos com famílias brasileiras (Corrêa, 1982; Fonseca, 1989, 1995, 2001; Maluf, 1993). Na América Central, a família matrifocal é muito comum, na qual mãe e filha adulta, juntas com os filhos desta, formam o eixo do grupo doméstico, tendo os “maridos” eventuais um papel secundário. A família nuclear só veio a se consolidar no início do século XX e não era a organização típica das classes populares (Fonseca, 1997). Nas camadas populares, as famílias improvisavam formas de criar suas crianças, entre elas a socialização dos filhos através de uma extensa rede de vizinhança e parentesco (Venâncio, 1997). A importância da família extensa e da parentela consangüínea expressa por Iara pode, ainda, ser compreendida como a valorização da rede de apoio do parentesco para a criação dos filhos. Este aspecto é referido por Telles (1997) em sua análise sobre as configurações familiares brasileiras em grupos populares. Nestes grupos, a parentela parece ter ocupado um lugar prioritário nas redes de ajuda mútua em função da necessidade de acionar estratégias coletivas para a sobrevivência das crianças. Conforme Telles (1997), a precariedade da família conjugal tem sido uma constante na história dos grupos populares do Brasil. A família patriarcal extensa corresponde a apenas uma pequena parcela da história brasileira pautada no protótipo da família no Brasil. Na sociedade brasileira do século XIX, a concubinagem e as relações sexuais antes do matrimônio eram freqüentes, e não o matrimônio. Há um descompasso entre a moralidade oficial e a realidade vivida pela maioria das pessoas. Diferentes classes sociais engendram 89 diferentes versões de famílias. Mesmo nas camadas médias há famílias que fogem às dinâmicas particulares do modelo normativo de família nuclear, tendo sido encontradas grande número de famílias chefiadas por mulheres desde a época colonial brasileira. O discurso patriarcal e burguês prescreve à mulher a reclusão no espaço doméstico e sua dedicação à casa e aos filhos (D’Incao, 1989; Reich, 1966; Reis, 1985). Recorrer à rede de parentesco ou entregar os filhos para ser criados por outrem é uma prática percebida de forma negativa pela sociedade burguesa. Essa percepção foi encontrada na análise dos dados, o que revela a formação discursiva dominante inscrita na subjetividade das mulheres ao longo das gerações da família pesquisa. Tanto a mãe de Iara é vista como ‘abandonante’, responsável pelo “desmoronamento” da família, quanto ela própria parece culpar-se e sofrer por não ter permanecido junto de seus filhos. Recorrer à rede de parentesco, como forma de apoio para sua maternidade solteira, ao invés de ser percebido como fator de proteção e de solidariedade, foi vivenciado por Iara como incapacidade e com sentimento de perda, revelando-se aí, mais uma vez, a influência dos ditames patriarcais, impostos pela formação discursiva dominante em nossa sociedade, em sua concepção de família. Ao mesmo tempo em que se vê capturada pela formação discursiva dominante (o discurso patriarcal burguês), que normatiza e legitima uma forma monolítica de família como válida (Mitchell, 1987), Iara também valoriza o cuidado, o afeto e a criação presentes em sua história de vida. As famílias vividas por Iara são configurações encontradas nas famílias brasileiras há séculos, tais como as famílias chefiadas por mulheres e as famílias com filhos de criação. O estigma atribuído aos indivíduos que vivem em configurações familiares que fogem aos ditames patriarcais é opressivo e fonte de sofrimento psíquico (Canevacci, 1987; Figueira, 1986; Mitchell,1987). Além destes aspectos, a gênese, a manutenção e a reprodução das relações de poder abusivas características das famílias violentas têm sido relacionadas ao patriarcado. As famílias violentas, em especial as famílias incestuosas, são estruturadas sob os ditames da família patriarcal nuclear monogâmica e burguesa, que prima pela hierarquia, obediência e submissão das mulheres e das crianças ao domínio masculino (Goodrich, Rampage, Ellman & Halstead, 1990; Meneghel e cols., 2003; Narvaz & Koller, 2004a, 2004b). Mulheres e crianças, influenciadas pelos ditames patriarcais, e movidas pelo desejo de ter uma família e de mantê-la unida, submetem-se a relações violentas (Cardoso, 1997a, 1997b), inclusive ao incesto (Felipe, 1999), aspectos encontrados em neste estudo. Ocultadas pelo discurso hegemônico patriarcal que, através do interpelamento ideológico (Pêcheux, 1969/1983), tem interesse em ocultar e desvalorizar quaisquer outras formas de organização que ameacem o domínio masculino, as configurações familiares, em especial as famílias 90 chefiadas por mulheres e as famílias de criação, urgem ser legitimadas pela comunidade científica e social (Corrêa, 1982; Fonseca, 1989, 1995, 2000; Maluf, 1993). A pluralidade das formas de organização familiar, alternativas ao modelo hegemônico de família tradicionalmente prescrito pela ordem patriarcal, poderá, assim, atingir o estatuto de ‘normalidade’ (Mitchell, 1987), ao que a ciência e a pesquisa devem ser convocadas a contribuir. A aceitação da pluralidade das formas de ser família poderá, a partir dos dados coletados nesse estudo, ser fator de proteção e de prevenção da submissão, em especial das meninas e das mulheres, às relações violentas. Proposição II - A segunda proposição deste estudo postula que a família incestuosa caracteriza-se pela divisão rígida e tradicional de papéis na família, com diferentes funções previstas para o homem e para a mulher, em que o homem tem a função de provedor e chefe da família e a mulher tem a função de cuidar do lar e dos filhos. Subunidade de Análise - Papéis Familiares: compreende as concepções acerca do desempenho de papéis na família, tanto em relação à família de origem quanto em relação à família atual de Iara. Incluem-se aqui três Categorias de Análise: 1) Cuidado da Casa; 2) Sustento econômico e, 3) Cuidado dos filhos. 1) Cuidado da Casa: a análise da história de vida de Iara ao longo do tempo, tanto em sua família de origem quanto em sua família atual, demonstra que as tarefas domésticas envolvidas no cuidado da casa são predominantemente desempenhadas pelas mulheres, em especial pela mãe-mulher na família. Família de origem O meu pai não gostava muito de trabalhá, quem fazia alguma coisa era minha mãe (...). Família atual Divisão de tarefas... é assim, um pouco, só entre eu e ela (a filha Vanessa) existe uma divisão. Eu tenho uma pessoa (atual companheiro), mas quem faz é só eu. Não tem divisão porque agora é só eu, ela (Vanessa) não está comigo também, agora é só eu. O João, como eu disse, fora a bebida ele era um excelente marido. Ele fazia, lavava a roupa, se tivesse que fazer comida ele fazia, tudo que tivesse que fazer ele fazia... Os outros não, sempre se negaram, era a mulher que tinha que fazer. O homem não faz nada (...). 2) Sustento econômico: envolve as percepções de Iara relativas ao sustento econômico da família. As falas selecionadas demonstram a ambigüidade de Iara no reconhecimento da mulher enquanto provedora da família. Esses aspectos expressam-se na história de vida de Iara ao longo do tempo, tanto em sua família de origem quanto em suas vivências atuais. Tais aspectos evidenciam a concepção patriarcal de que a figura masculina é a responsável pelo sustento econômico, embora efetivamente não o seja, ao menos de forma exclusiva. 91 Família de origem: Iara, inicialmente, atribui ao pai o sustento econômico, embora a mãe igualmente contribuísse para a manutenção da família. O meu pai gostava de pescá e trabalhava assim pra fora, na fazenda, de capataz (...). Minha mãe plantava, fazia aqueles balaio de taquara...que ela vendia pra podê compra alguma coisa. Acho que arroz, açúcar... que era coisa que não tinha. Ela que sempre foi muito, muito batalhadera, guerreira ela era muito guerreira (...). Era muito assim caprichosa, quando ela ia trabalhá nas casa (de empregada doméstica), as pessoas gostavam muito dela (...). Eu acho que sou parecida com ela assim de ser trabalhadeira.. Família atual: embora Iara trabalhe no mercado informal, o sustento é percebido como sendo dado pela pensão alimentícia paga por João à filha Vanessa. O responsável, bem dizer, é a pensão que eu ganho do pai dessa minha filha que eu tenho de 14 anos. É o que ainda me dá um pouco de sustento. No momento não tô muito trabalhando, tô meia parada (...). Eu trabalho por conta, vendo churrasquinho, mas não é seguro, às vezes dá, às vezes não dá (...). Eu trabalhava na venda de churrasquinho junto com o José (o companheiro que abusou de Ana e de Vanessa). Bem dizer, nunca fui dependente dele. Só com o João que eu não trabalhava (...). Uma época eu fazia artesanato (...). Trabalho, eu não trabalhava, então ficava dependente dele, do João. Ele não aceitava que eu trabalhasse. E eu também já tinha trabalhado muito, né, desde guria... (risos). O único que concorda que eu trabalhe, na verdade mesmo, que faz assim, a maior força assim é esse aqui que eu tenho agora (Aquiles, o atual companheiro). Embora às vezes eu acho que eu até tinha que ficar em casa, porque eu trabalho desde que eu me conheço por gente. E daí eu fico vendo outras pessoas, né, que não trabalharam, que esperaram pelos filhos, no caso, a mãe dele (Aquiles) é uma que ficou esperando pelo filho, por ele, e agora que ele, bem dizer, casou , não pode dar as coisa pra ela (...). Eu acho que a mulher tem que trabalhar pra poder ter o seu dinheiro, ter as coisas, se arrumar, se sentir melhor também (...). Mas eu queria mesmo era trabalhar de cabeleireira, assim, pra me cuidar mais também e queria voltar a estudar... 3) Cuidado dos filhos: Observa-se nestes fragmentos a prescrição do papel de cuidadora, educadora e protetora da prole que é impingido à figura materna. A boa mãe cumpre com essa prescrição. Do contrário, não é considerada uma boa mãe, sendo culpabilizada por isso. O papel do pai no cuidado dos filhos parece secundário. Há, entretanto, ambigüidades e contradições que são reveladas pelas diferentes posições ocupadas tanto pela sua mãe, quanto por ela própria: ora abandonantes e descuidadas, ora carinhosas e percebidas como figuras de apoio às filhas. Família de origem: percebe-se a valorização da mãe enquanto principal cuidadora dos filhos. Ah, com a (mãe) biológica desde os quatro anos de idade eu não morei com a biológica (...). Ela abandonou nós (...). A minha família já veio desmoronada desde ali (...). Ela fugiu com o amante que se escondia atrás da árvore... (risos). 92 Depois ele me deu para uma família me criar (...). Mas ela (a mãe) disse:’Não minha filha, mas eu te dei porque, porque eu não queria vê tu sofrendo, passando fome, necessidade, e era uma família que a gente sabia que podia te dar coisas melhor’. Na verdade a coitada se enganou.... Eu sempre disse pra ela (mãe): ‘Eu podia comê pão com água, mas eu queria ter ficado contigo.’ Quando tiraram meu filho de mim, minha mãe me falou:’Vou te dar o dinheiro que eu tenho e tu vai trabalhar lá perto do seu filho (...) ficar perto do seu filho. Já que ficou longe da tua filha mais pelo menos não vai ficar longe do teu filho’ (...). Uma época ela cuidou da minha filha, a Ana, pra eu trabalhar, mas pra cuidar de criança ela era meio descuidada. Ela achava que só dar comida, ter roupa lavada, tava bom. Eu acho que tem que cuidar mais (...). Percepção do papel de seu pai: as falas de Iara não mencionam o abandono do pai como causa do “desmoronamento” da família, como se fosse natural que os pais fossem embora e deixassem os filhos aos cuidados de outrem. Fiquei com o meu pai porque quando ela (a mãe) deixô eu, ela deixo com o meu pai (...). Ele não era muito de cuidar de nós, a gente passava trabalho, não tinha alimentação e dormia nuns pelegos (...). Daí ele foi embora atrás de outra mulher(...). Meu pai eu fiquei muitos anos sem vê ele... A gente não tinha muita convivência. Família atual Percepções quanto ao seu papel de mãe: Evidencia-se claramente a valorização do cuidado em relação dos filhos, do apego e do desejo de estar conectada a eles. Percebe-se, ao longo da entrevista, sentimentos que sugerem perda, tristeza e culpa por não poder cumprir com o papel de mãe prescrito pela sociedade, ou seja, de cuidar dos filhos, sendo que Iara chora em muitos desses momentos. A minha mais velha, a Ana, eu não criei, bem dizer ela, quem criou mais foi a avó dela lá de São Paulo (...). Um pouco ela ficava comigo, um pouco com a minha mãe, um pouco no internato (...). Eu acho que não fui uma boa mãe para ela (...). Quando ela precisava eu não tava lá.... O meu guri, o Gabriel, tá agora com 21 anos, tá até na faculdade (...). Ele foi uma programação. Ele era muito apegado comigo, eu sofri muito (chora) quando eles tiraram ele de mim (...). Ele não mora comigo desde os dois anos, quem criou bem dize foi a madrinha(...). Mas ele nem me liga (...). A Vanessa eu aceitei, bem dizê eu programei (...). Prá ela eu acho que fui uma boa mãe, cuidei, amamentei, tudo (...). Nós semo amiga. Percepção do papel de pai em relação aos companheiros: o fato de os pais não conviverem ou não assumirem os filhos e filhas não tem grande destaque na falas de Iara. Há uma idealização da figura de João, que adotou Vanessa como filha, mas não aparece qualquer questionamento em relação aos pais que não assumem a paternidade. O filho Gabriel foi entregue pelo pai, Pedro, à irmã, tia paterna do menino, para ser criado. A única 93 crítica que Iara faz ao papel paterno é em relação a José não ter criado o filho Aquiles, sendo um “pai só de visita”. O meu atual companheiro (Aquiles) é filho adotivo do meu ex-companheiro, o José (...). Adotivo, bem dizer, só de nome, porque na verdade quem criou só foi a ex- mulher dele, ela que criou (...). Tinha até filhos com outra mulher, então ele era um pai de visita (...). O Pedro, o pai do Gabriel, ele me tirou ele (...). Mas quem criou o guri e cria até hoje é a tia (...). Ele é o pai da Vanessa, mas ele nem conviveu com ela, ela não considera pai (...). Esse outro, o João, que assumiu a minha filha mais nova, a Vanessa, não é o pai biológico dela, mas assumiu ela como pai (...). Ele não é o pai verdadeiro dela, mas foi quem deu o nome e quem criou e é o pai que ela ama. A análise das entrevistas confirma a segunda proposição deste estudo: a mulher foi identificada como a principal cuidadora do lar e dos filhos, responsabilizada pelo cuidado, pela proteção e pela educação dos mesmos, em detrimento da participação paterna nesses cuidados. O homem, apesar de efetivamente não desempenhar o papel de único provedor econômico, é percebido como tal. A análise dos dados permite concluir que os papéis desempenhados na família pesquisada, ao longo de três gerações, são estereotipados quanto ao gênero, percebidos de forma tradicional, hierárquica e rígida conforme os ditames patriarcais. Segundo Iara, na família de origem, o pai desenvolvia atividades como a pesca e o cuidado da fazenda como capataz, enquanto a mãe plantava e fazia artesanato. Tais atividades parecem corresponder ao modelo tradicional acerca da divisão do trabalho entre espaço público e privado entre homens e mulheres. Estudo antropológico com moradores da Ilha de Santa Catarina (Maluf, 1993) encontrou que às mulheres é permitido trabalhar em atividades circunscritas ao âmbito doméstico e às proximidades da casa, como na confecção de rendas e no artesanato. A prática do artesanato e o plantio também são apontados por Iara como atividades desempenhadas pela mãe em sua família de origem. Já os homens, trabalham na pesca longe de casa, nas embarcações ou em outras cidades (Maluf, 1993). Estes elementos foram encontrados no relato de Iara sobre a divisão do trabalho em sua família de origem, o que corresponde aos papéis tradicionais desempenhados por homens e mulheres conforme os valores patriarcais. Também em relação ao cuidado da casa há estereótipos de gênero na família pesquisada. Na família atual de Iara, os afazeres ligados ao cuidado da casa são executados de forma predominante pelas mulheres. Embora tenha um companheiro, com quem mora, é só Iara que executa o trabalho doméstico, agora que a filha não está morando com ela. Isto sugere que, quando a filha estava em casa, também ela participava no cuidado da casa. Os 94 homens não participavam efetivamente das tarefas domésticas, sendo que ela expressa claramente “os (companheiros) sempre se negaram, era a mulher que tinha que fazer. O homem não faz nada”. Não houve indícios de questionamento de Iara quanto à não participação dos homens nas tarefas domésticas, como se fosse natural e esperado que tal papel fosse desempenhado apenas pelas mulheres. Um único companheiro, João, participava de tais afazeres, “se tivesse que fazer, ele fazia”, ressalta Iara. Estas falas sugerem que o companheiro realizava atividades se necessário, não sendo, portanto, seu papel, mas algo que era percebido como uma ‘ajuda’, sendo enaltecido e admirado por isso como um “excelente marido”. Já as mulheres também participavam no sustento da casa, quer com o trabalho doméstico, quer com o trabalho remunerado. Cabe, portanto, ao gênero feminino, em especial à mãe, a responsabilidade pelos afazeres domésticos e pelo cuidado com a prole, embora também as mulheres participassem no sustento da família com seu trabalho. A visão da participante revela o estereótipo veiculado pela cultura acerca da divisão do trabalho dentro do ambiente doméstico de acordo com o sexo da pessoa (Bernardes, 1995; Hilleshein, 2004; Spina, Morita, Camargo & Cerveny, 1979; Zamberlan, Camargo & Biasoli-Alves, 1997). Em seus estudos com famílias de baixa renda, Szymanski (1992, 1997) identificou que, no modelo idealizado de família, descrito como a família nuclear burguesa, os papéis parentais baseiam-se na expectativa do pai ser o provedor material, a mãe, a provedora afetiva e, os filhos, especialmente os filhos homens, os objetos principais de cuidados. A crença de que a mãe deveria ter dedicação em tempo integral aos filhos foi encontrada em pesquisa desenvolvida com famílias por Cecconello (2003). Essa crença estruturou o modelo de mãe ideal descrito tanto pelas mães quanto pelos filhos das famílias investigadas. Tendo que desempenhar o papel de mãe e de pai ao mesmo tempo (dada a posição periférica dos pais de seus filhos), as mulheres-mães entrevistadas relataram a sobrecarga advinda da sobreposição de papéis. Conforme Fonseca (2000a, p. 125), “a penalidade do trabalho feminino na esfera doméstica nem sempre se faz minimizada pela existência de um companheiro ou marido. Parece verdadeiro reconhecer que as responsabilidades pelo trabalho doméstico tendem a sobrecarregar as mulheres”, o que se confirma aqui. Na percepção de Iara, os homens é que deveriam ser os provedores econômicos da família. A participação das mulheres no sustento econômico é invisibilizada, ou desqualificada, quer na sua família de origem, quer na sua família atual. A mãe parece apenas coadjuvante na manutenção da família, embora ela diga que “o pai não gostava de trabalhar, quem fazia tudo era a mãe, ela que era trabalhadera”. Iara destacou o fato de que seu pai não gostava de trabalhar, sugerindo que esse seria um papel esperado para o homem. O sustento 95 econômico de sua família atual é percebido como fruto das provisões da pensão de um dos excompanheiros, João, pai adotivo de Vanessa. Iara não se sente dependente economicamente de José, o quarto companheiro, em função de ter a pensão de João para seu sustento. Embora Iara também trabalhe, tanto dentro quanto fora do espaço doméstico, parece desvalorizar sua atividade profissional, não reconhecendo sua capacidade de trabalho nem sua efetiva contribuição no sustento da família. Ora diz que “trabalho, assim, não tô trabalhando, tô meio parada”, ora que trabalha com o atual companheiro. O trabalho feminino é invisibilizado e desqualficado, em especial o trabalho doméstico. A análise das falas de Iara quanto à percepção sobre papéis de gênero relativos ao mundo do trabalho, as mulheres têm posições periféricas, ficando dependentes dos homens, percebidos como os reais provedores econômicos, mesmo que não o sejam. Iara parece sentirse uma ajudante dos companheiros, eles sim, vistos por ela como protagonistas do sustento econômico. Os homens aparecem, neste caso, como provedores econômicos, mas efetivamente não o são. Embora Iara não se assuma como dependente economicamente dos companheiros, às vezes, é assim que se percebe. A crença recorrente de que o homem é o legítimo provedor da família confere uma posição de trabalhadora complementar à mulher. No Brasil, mulheres de diversas etnias e de diferentes classes sociais comandavam estâncias, trabalhando e provendo sozinhas a sobrevivência de suas famílias em vista da ausência dos maridos desde o período colonial brasileiro (Pedro, 1997). A ‘permissão’ do trabalho feminino fora do lar parece ser uma função das necessidades econômicas e políticas de cada período histórico. Já no Brasil República, os médicos higienistas contribuíram para a visão de que o trabalho feminino fora do lar levaria à degradação da família (Rago, 1997, 2001). Na atualidade, parecem coexistir valores contemporâneos e tradicionais na questão dos papéis familiares. Há uma diversidade e uma multiplicidade de experiências que começa a se tornar regra (Brasileiro, Jablonski & Carneiro, 2002). A pluralidade de mundos presentes na subjetividade de mulheres brasileiras de baixa renda circula simultaneamente com valores de gênero tradicionais e modernos pelas esferas pública e privada. Nem sempre há a figura de um homem-pai marido na vida destas mulheres mediando suas relações (Vaitsman,1997), embora as mulheres geralmente não valorizem a importância de sua posição no grupo doméstico (Salem, 1981). Os “os fatos da realidade revelam que as mulheres trabalhadoras muitas vezes são as reais provedoras do sustento familiar” (Fonseca, 2000a, p.46). Além disso, “os dados estatísticos do aumento notável na sociedade brasileira de domicílios monoparentais e onde a chefia da família é feminina, podem ser também indicadores do 96 aumento da circulação de homens e, talvez de suas dificuldades de se posicionarem como provedores e controladores de suas companheira” (Machado, 2000, p. 15). As percepções de Iara sobre os papéis familiares corresponderam à formação discursiva dominante patriarcal e burguesa, que atribuiu um maior valor às atividades masculinas em detrimento das atividades femininas (Castells, 1999; Diamond & Quinby, 1998; Fonseca, 2000a; Scott, 1986). Há, no entanto, ambivalências em suas falas. O discurso sobre os papéis familiares quanto à divisão social do trabalho entre os gêneros evidenciou as diferentes posições-sujeito (Pêcheux, 1969/1983) ocupadas por Iara, marcas da heterogeneidade e da dispersão (Foucault, 1969; Orlandi & Guimarães, 1986) de seu discurso e de sua subjetividade. Estes diferentes efeitos de sentido produzidos por Iara em seu discurso continuam capturados pela formação discursiva patriarcal, capitalista e burguesa, uma vez que é em torno desta prescrição dominante que as posições são avaliadas como normativas e legítimas. Iara ora valoriza o trabalho remunerado, quando diz que “a mulher tem que trabalhar pra poder ter o seu dinheiro, ter as coisas, se arrumar, se sentir melhor também” e que “não fica esperando pelos filhos para ter as coisas”, ora valoriza “ficar em casa, pois já tinha trabalhado muito desde guria”. Iara parece não se incomodar com João, que “não deixava que ela trabalhasse”, como se lhe agradasse essa posição. Já em relação a Aquiles, “o único que faz questão que eu trabalhe, que me dá força”, Iara mostra-se ambivalente, marcas da heterogeneidade de que fala Authier-Revuz (1982). Talvez por sentir-se já sobrecarregada com tantas outras tarefas, desde guria, ou, mais provavelmente, por não ser do seu agrado a atividade de vendedora ambulante no mercado informal, trabalho “que não é seguro”, diz ela. Parece que esse não é um projeto profissional seu, pois “queria mesmo era trabalhar de cabeleireira e voltar a estudar”, comenta Iara. Pesquisa realizada a respeito da multiplicidade de papéis e bem-estar psicológico (Possati & Dias, 2002) encontrou níveis de bem-estar elevados entre mulheres que possuem um trabalho remunerado, em contraposição a níveis mais baixos em mulheres que não trabalham. Segundo Rosenfield (1980), as mulheres só apresentam um índice mais elevado de depressão quando estão desempenhando papéis tradicionais. Em suas pesquisas, o trabalho pago foi o maior responsável pelos benefícios proporcionados à saúde das mulheres, isto porque os papéis não tradicionais implicam auto-estima e ganho em poder. No estudo de Possati e Dias (2002), com 132 mulheres brasileiras da Paraíba, que trabalham e têm filhos, o fator que mais contribuiu para explicar o índice de bem-estar psicológico foi o poder de decisão, denominado de controle percebido. O controle percebido envolve autonomia, estimulação, desafio, poder ajudar outros e ajuste do trabalho a necessidades e interesses de 97 quem o desempenha (Bullers, 1994). A amostra pesquisada tinha um nível de escolaridade superior. Estes resultados devem, portanto, ser contextualizados, fazendo-se necessários estudos que considerem outras camadas populacionais, como as famílias que vivem na pobreza, tal como a família de Iara. Ainda assim, os resultados encontrados por aqueles pesquisadores são interessantes. Segundo eles, as mulheres que são capazes de se sustentar, através de um trabalho gratificante, além da rotina do trabalho doméstico, transferem o sentimento de capacidade experimentado em seu trabalho para outras esferas da vida, sentimento que contribui para a superação de situações de impotência diante de dificuldades. Mulheres não mais dependentes do poder econômico de seus maridos podem contar com o sustento e a independência econômica proporcionados pelo seu trabalho, o que lhes amplia também a rede de apoio social configurada por sua inserção e valorização no mercado de trabalho. Apesar das evidências empíricas encontradas em sua pesquisa, Possati e Dias (2002) entendem que mitos e crenças que envolveram as conseqüências das atividades remuneradas das mulheres para sua saúde e bem-estar psicológico, legitimaram a teoria de que estas deveriam permanecer em seus papéis tradicionais. Os meios de comunicação continuam a mistificar as informações, gerando culpa para as mulheres que não se limitam à esfera doméstica no desempenho dos papéis tradicionalmente estabelecidos pela sociedade patriarcal. Tais aspectos podem ser analisados de diversas formas. A percepção das mulheres como ‘trabalhadeiras, mão de obra ideal’ foi encontrado em investigação conduzida por Fonseca (2000a), com mulheres no setor fabril. A referência a serem, tanto Iara quanto sua mãe, “mulheres trabalhadeiras”, indica a transformação de uma necessidade em virtude, revelando-se aqui, novamente, a aliança entre patriarcado e capitalismo, que busca domesticar e explorar os corpos das mulheres ao máximo. A sobrecarga das mulheres parece estar presente desde as ameríndias brasileiras que, segundo Raminelli (1997), eram comparadas aos burros de carga por carregarem todas as provisões alimentícias. A domesticação e a exploração do corpo feminino parecem suscitar resistência. Iara é resistente a trabalhar fora de casa, “por achar que já tinha trabalhado demais”. A reclusão ao trabalho doméstico e a resistência ao trabalho remunerado na esfera pública tem sido interpretada como dependência das mulheres que optam por uma posição confortável e dependente. Tal entendimento encontra-se em trabalhos como “O Complexo de Cinderela” (Dowling, 1980). Entretanto, parece-nos simplista tal interpretação, que atribui a causa da reclusão das mulheres no espaço doméstico a uma posição passiva, infantil e dependente escolhida por elas próprias. Na história de vida de Iara, talvez a atividade 98 desempenhada juntamente com os companheiros não signifique para Iara trabalho real e autônomo, uma vez que parece ser ajudante deles. Um trabalho só seu, em outra atividade através da qual, inclusive, “possa também cuidar mais de mim”, destaca ela, pode significar a necessidade de independência de Iara e a concretização de um projeto profissional próprio, ao contrário de ser ajudante do companheiro. Há, entretanto, “fortes dúvidas de residirem exclusivamente nos fatores econômicos as possibilidades de emancipação feminina. Os mesmos são vistos como necessários, mas não suficientes para a efetivação das rupturas culturais implícitas à luta das mulheres” (Fonseca, 2000a, p. 52). De toda forma, ao mencionar o desejo de “um trabalho seguro” Iara revela, ainda, a necessidade de estar incluída no mundo do trabalho de forma a adquirir garantias mínimas para o suporte de sua existência (Nardi, 2003) e de uma cidadania substantiva (Prá, 2001). A predominância da formação discursiva patriarcal na mentalidade brasileira traduz-se nas falas de Iara, que parece não acreditar em sua capacidade de trabalho, percebendo-se, por vezes, como dependente do sustento dos companheiros e necessitando da proteção econômica dos mesmos. A posição da mulher na família e na sociedade em geral, desde a colonização até hoje, mostra que a família patriarcal, rural, escravagista e poligâmica foi a matriz de nossa organização atual. A gênese das atitudes autoritárias sobre a condição feminina também no meio urbano deve ser entendida em relação aos esquemas de dominação social que caracterizam o sistema patriarcal tradicional brasileiro (D’Ávila Neto, 1994; Saffioti, 1979; Xavier, 1998). Embora o patriarcado rural tenha-se desintegrado, de diferentes formas, nas diferentes regiões do Brasil (Freyre, 1933/1984), o modelo patriarcal permaneceu na mentalidade e na vida política brasileira, talvez como uma forma moderna de patriarcado disseminado pela sociedade civil (Pateman, 1993). O paternalismo, o coronelismo e o protecionismo expressam a necessidade do povo brasileiro de ser protegido por figuras fortes, uma vez que não acreditam em suas próprias capacidades. Esses aspectos evidenciam-se através do culto sentimental ou místico do Pai, identificado com as imagens do homem protetor e providencial, e do culto, igualmente sentimental e místico, da Mãe, identificado pelo brasileiro com imagens de pessoas ou instituições protetoras, como a Igreja, a madrinha, a mãe e a Virgem Maria, Mãe de Deus – figuras que intervêm na vida política ou administrativa do país para proteger, a seu modo, filhos e afilhados (Baquero, 2001; Chauí, 1989). Se o papel previsto para os homens na família relaciona-se ao sustento econômico, o papel esperado para as mulheres é o de que sejam cuidadoras não só do lar, mas dos filhos. A ideologia da maternidade foi apregoada pelo discurso masculino desde Rousseau (Rago, 1997, 99 2001), que prescrevia às mulheres a mais bela função cívica, a maternidade. Prescrições como esta remontam aos conselhos dos pensadores gregos e dos ‘grandes filósofos’ que influenciaram o pensamento ocidental (ver Menezes, 2002; Tiburi, 2002; Ruiz, 2002). A idealização do papel materno e a conseqüente culpabilização da mãe ao afastar-se das normas patriarcais foram encontradas nas falas de Iara. O papel de educar, de dar carinho, amor e de proteger os filhos e filhas, inclusive do abuso, é atribuído predominantemente à figura materna. Iara diz que sua mãe “não era muito de cuidar”, enquanto o pai “não era muito de trabalhar”. Iara, em diversos momentos, diz “não ter sido uma boa mãe” para a filha Ana, a filha mais velha que foi abusada pelo padrasto. O fato de não ter podido criar Ana consigo, deixando-a ora no internato, ora com sua mãe biológica, ora com sua mãe adotiva parece estar relacionado à percepção de seu papel de má mãe. Revela-se aí a expectativa e a prescrição de que as mães criem e cuidem de seus filhos biológicos. Tal expectativa encontra-se também no desejo de Iara de ter sido cuidada pela mãe biológica. Em vários segmentos, enfatiza que não foi criada pela mãe, que “morar com ela mesmo nunca morou”, tendo dito à mãe biológica, que “podia comê pão com água, mas eu queria ter ficado contigo”. A mãe biológica de Iara igualmente parece sentir-se culpada por não ter criado a filha consigo, justificando-se por isso: “Não minha filha, mas eu te dei porque, porque eu não queria vê tu sofrendo, passando fome, necessidade, e era uma família que a gente sabia que podia te dar coisas melhor”. As prescrições normativas acerca do papel materno são reforçadas pela mãe de Iara que, ao perceber que a mesma estava afastando-se também do filho, dá-lhe dinheiro para que ela possa voltar a trabalhar perto dele, uma vez que já estava afastada da filha Ana. Ambas, Iara e mãe, revelam a estrutura invisível do discurso patriarcal em suas falas. Já o papel paterno não aparece, na análise do discurso de Iara, como tendo o cuidado dos filhos como forte prescrição. Iara acentua o abandono da mãe, e não o do pai, em sua família de origem, como a causa do “desmoronamento” da família. O fato de os companheiros, pais de seus filho/as não assumirem a paternidade não tem destaque nas falas de Iara. Pedro, pai de Gabriel, apesar de ter “tirado o filho de Iara, deu para a madrinha criar” e não assumiu a filha Vanessa. Iara valoriza a adoção pelo padrasto (João) de Vanessa, que, mesmo não sendo o pai biológico da menina, a adotou, e “é o pai que ela ama”, com quem está morando atualmente, diz Iara. Já José (pai de Aquiles, atual companheiro de Iara) é desvalorizado em seu papel de pai uma vez que não criou, nem conviveu com o filho, “sendo pai de visita”, diz ela. Não assumir a paternidade parece ser uma atitude natural e esperada para os homens. Já quando o fazem, em especial se não são os pais biológicos do/as filho/as, são supervalorizados e idealizados. 100 Apesar das transformações nos papéis familiares em nossa sociedade, legitimadas, inclusive, por alterações legais (ver DeSouza & Baldwin, 2000; Dias, 2004a; Rocha, 2003; Verucci, 1998b), conclui-se que estereótipos sexistas permanecem tanto no discurso científico (Gomes e cols., 2002), quanto no imaginário social. Discursos estes que parecem estar capturados pela formação discursiva patriarcal e que engendram as subjetividades dos sujeitos (Butler, 2000, 2003) através da ciência e da mídia, dispositivos disciplinares, disciplinantes e normatizantes (Foucault, 1975/2002, 1979/2002, 1999). Investigação recente (Szapiro & Féres-Carneiro, 2002) sobre a maternidade como produção feminina independente, destaca que a maternidade, questionada pelos movimentos feministas a partir da década de 60, passou a ser entendida como obstáculo à igualdade entre homens e mulheres. A maternidade passou a significar não mais um destino, mas uma opção livre e autônoma. Influenciada pelo discurso feminista, ressaltam as autoras, a maternidade seria uma condição da qual toda mulher deveria tentar escapar, uma vez que representaria a submissão feminina à opressão masculina. A produção independente, como situação ideal de independência da mulher diante do homem, seria, na interpretação daquelas pesquisadoras, expressão do imaginário feminino constituído no interior do discurso feminista sobre a opressão masculina. Os resultados da investigação apontaram, entretanto, que todas as mulheres entrevistadas associaram a experiência de ser mãe a um estado de completude para a mulher. Falcke e Wagner (2000) demonstraram o poder e o valor que os mitos sociais têm na vida e na conduta das pessoas. A concepção de mãe expressa pelas cinqüenta mulheres pesquisadas, mães e madrastas, correspondeu ao mito do amor materno incondicional, revelando um forte legado transgeracional relativo aos papéis de gênero. O casamento e a maternidade ainda são vistos como importantes fontes de realização feminina, sendo que à mulher é atribuída a responsabilidade pela mediação das relações afetivas na família. O fracasso nesta tarefa é geralmente vivenciado como culpa pela mulher que, não acreditando e sua capacidade de manter-se sozinha, e desejando manter a família unida, acaba por submeterse, inclusive, a relações violentas (Cardoso, 1997a; Narvaz & Koller, 2003; Ravazzola, 1997, 1999), elementos encontrados também neste estudo. Iara e sua mãe percebem-se como ‘mães más, negligentes e abandonantes’, por não terem podido criar seus filhos e filhas. Nessas falas, identificamos a formação discursiva que produz discursos sobre papéis normativos às mulheres pela ordem patriarcal. Para Telles (1997), O discurso sobre a natureza feminina que partiu do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão definiu a mulher, quando maternal e dedicada, como força do bem, daí os sentidos negativos e condenatórios do feminino identificados nas falas de Iara. 101 A impossibilidade de cumprir com os papéis esperados pela sociedade, reforçados pelos mitos do amor materno (Badinter, 1985; Falcke & Wagner, 2000; Rago, 1997) e pelos discursos que postulam a maternidade como experiência fundamental ao sentimento de completude das mulheres (Szapiro & Féres-Carneiro, 2002) é vivenciada como incapacidade e com culpa por Iara e por sua mãe. A culpa, a tristeza e o sofrimento expressos por essas mulheres denunciam a interpelação ideológica (Pêcheux, 1969/1983) que produz armadilhas ao refluxo psicologizante (Keil, 2001), segundo o qual os indivíduos são levados a atribuírem a si a culpa pela sua condição social. A condição de pobreza não remete, nas falas de Iara, à estrutural desigual e sexista imposta pelo capital e pelo patriarcado (Saffioti, 1979, 1988, 2001; Toledo, 2003). O desejo de Iara de “voltar a estudar” pode estar associado, segundo Fonseca (2000a, p. 166), ao “mito da escolarização”, idéia segundo a qual o estudo levaria à mobilidade social e à superação da condição de pobreza, estratégia capitalista que remete ao indivíduo a responsabilidade por sua condição. Diversas estudiosas de gênero (Fonseca, 1997, 2000b; Harding, 1987; Scott, 1986; Strey, 2000) apontam a contribuição da ciência positivista liberal, incluindo-se aqui a psicologia, na construção de discursos sexistas estereotipados quanto aos papéis de gênero. Esses discursos, baseados em concepções essencialistas (Diamond & Quinby, 1998) negam a historicidade da construção dos papéis de gênero e legitimam mitos normativos às mulheres, a partir de uma suposta natureza feminina. Discursos estes que, capturados pela formação discursiva patriarcal, atuam como dispositivos disciplinares, disciplinantes e normatizantes (Foucault, 1975/2002, 1979/2002, 1999), engendrando subjetividades assujeitadas a papéis estáticos e sexistas (Butler, 2000, 2003) através da ciência e da mídia. Além disso, ao depositarem individualmente na figura da mulher-mãe-trabalhadora a responsabilidade pelo sustento e pelo cuidado dos/as filhos/as, e por sua condição de pobreza e dominação, tais discursos, individualistas, biologizantes e psicologizantes (ver Gomes e cols., 2002; Guareschi, Comunello, Nardini & Hoenisch, 2004; Strey, 2000), mascaram as relações de dominação historicamente construídas no seio da família (Strey, 1998), isentando os homens, o Estado e a comunidade em geral de sua responsabilidade social (Narvaz, 2002, 2003; Silva, 1993). Tanto Iara quanto sua mãe expressam claramente a dificuldade econômica e a falta de apoio social como fatores que contribuíram à ruptura dos laços familiares, em especial à impossibilidade de cuidarem dos filhos e filhas e à permanência em relações conjugais violentas. Pesquisas que envolveram famílias em situação de violência (Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Meneghel e cols., 2002) confirmam a importância dos fatores de apoio nos 102 casos de violência, suporte necessário para a superação da condição de risco e submissão (Brito & Koller, 2002; Garmezy & Masten, 1994; Koller, 1999; Robinson & Garber, 1995; Rutter, 1987; Simons & Johnson, 1996). Investigações realizadas com mulheres vítimas de violência doméstica (Cardoso, 1997a, 1997b) indicam que a dependência financeira dos parceiros e a falta de apoio da família extensa e da comunidade eram percebidas pelas mulheres como mantenedoras de sua posição de desvalia, isolamento e submissão aos abusos sofridos. Fatores de risco em nível macrossistêmico, como a pobreza e a violência na comunidade, contribuem para o abuso e os maus tratos na infância (Garbarino & Barry, 1997; Garbarino & Eckenrode, 1997; Luthar, 1999; Nunes, 1999). Estes fatores estão presentes na história de vida de Iara ao longo das gerações. A associação entre pobreza e violência tem sido, no entanto, problematizada por discursos científicos (ver Gomes e cols., 2002; Guareschi, Comunello, Nardini & Hoenisch, 2004) que entendem estar implícita nesta associação a criminalização e a estigmatização das famílias pobres. Estudos (Cecconello, 2003; Yunes, 2001) demonstram que, embora pobreza e violência sejam percebidas como fatores de risco, não produzem, necessariamente, resultados negativos, observando-se atitudes protetivas e capacidade de resiliência nas famílias pobres. Dar visibilidade à pobreza como fator que predispõe à vulnerabilidade social e de gênero, não implica discriminar ou estigmatizar as famílias pobres de forma linear e causal. Trata-se, isto sim, de desvelar a violência estrutural imposta pela pobreza às famílias, em especial às mulheres chefes de família, uma vez que são elas as principais vítimas da “feminização” da pobreza: “dentre o mais de um bilhão de pessoas da população mundial que se encontra em extrema condição de pobreza, 70% são mulheres” (Prá, 2001, p.177). Discursos que questionam a associação entre violência e pobreza podem estar capturados por interesses capitalistas e burgueses que, ao minimizar os efeitos da pobreza sobre as famílias, naturalizam esta forma perversa de violência estrutural (Minayo, 1994; Odalia, 1993; Toledo, 20003). Para Violante (1997, p. 60), “a miséria é psicotizante”. A pobreza é uma forma de violência estrutural, social, simbólica e de gênero que condena, em especial as mulheres (Bedregal, 2002; Garretas, 2004; Prá, 2001), a sobreviver, a viver no nível da necessidade e do imediato. Articulam-se, assim, pobreza, violência e exclusão. A pobreza é uma forma de violência (Levisky, 1997) que se articula ao fenômeno da exclusão. Exclusão, independentemente da polissemia atribuída ao termo (ver Nardi, 2003), não é algo abstrato, mas sim uma realidade cotidiana de opressão, um modo de expropriação e de dominação engendrado por nossa formação social capitalista (Guareschi, 2004b). Nessa linha de argumentação, também Hutz, Koller e Bandeira (1996) entendem que a miséria afetiva, 103 decorrente da miséria econômica, afeta a capacidade das famílias para lidarem com as situações adversas. Como denuncia Violante (1997): “O desemprego é um problema social, mas não é menos verdadeiro que, ao atingir o sujeito concreto, ele se torna um problema pessoal. Ao concretizar-se na exclusão de pessoas do mercado de trabalho, o desemprego não está mais abstratamente nas estatísticas sociais, mas traz suas dramáticas conseqüências para dentro de casa, levando a família a sofrer privações de necessidades básicas do corpo” (p. 55-56). A exclusão gerada pela pobreza fragiliza os laços sociais, o que dificulta o acesso a recursos de suporte social (Castel, 1998; Keil, 2001; Nardi, 2003). Sem instrução, em condições de trabalho precárias e sem o efetivo apoio dos companheiros ou do Estado para o cuidado e o sustento de si e de seus filho/as, a precarização profissional e a desqualificação social de Iara e de sua mãe associam-se aos mecanismos excludentes da pobreza. O desejo de Iara de trocar de atividade profissional a fim de ter “um trabalho mais seguro, através do qual possa cuidar mais de si” sugere a necessidade de Iara de sentir-se protegida pelos benefícios, mesmo que mínimos, da sociedade salarial, o que lhe permitiria um relativo controle de seu projeto de vida (Nardi, 2002a). O emprego parece ser percebido por Iara como um suporte necessário para sua existência e para sua identidade. Conferindo-lhe direitos e cidadania, afastada dos imperativos da sobrevivência e da dependência dos companheiros, a proteção do Estado Social permite que as pessoas possam apropriar-se de suas próprias vidas e, assim, tornarem-se proprietárias de si mesmas (Castel, 1998; Nardi, 2003). O feminismo denomina empoderamento (Leon, 2000), ao processo segundo o qual as mulheres adquirem habilidades para fazer coisas, definir suas próprias agendas e controlar suas próprias vidas. As mulheres necessitam, portanto, ser empoderadas. Iara, ao invés de ser protegida pelo Estado de bem estar social que, no Brasil, sequer de fato existe (Keil, 2001), revela-se duplamente despossuída de si mesma, explorada e dominada tanto pelo patriarcado quanto pelo capitalismo (Fonseca, 2000a; Lerner, 1999; Millet, 1970; Saffioti, 1988). Sentindo-se invalidada, desqualificada, desfiliada, não-filiada ou excluída, quaisquer que sejam as denominações polissêmicas adotadas para a exclusão (ver Castel, 1998; Keil 2001; Nardi, 2002a, 2002b, 2003), Iara denuncia, através de sua história de vida, a história coletiva das mulheres. Como diz Matos (2002, p.111) “A história coletiva e individual são inseparáveis (...). No instante atual se inscreve o passado mais remoto, assim como a cicatriz individual é ferida histórica”. A análise da segunda proposição deste estudo revelou, através da história de vida de Iara, a história coletiva das mulheres, vítimas do capitalismo imperial, neoliberal, militarista e 104 depredador, uma das formas mais elaboradas do patriarcado (Bedregal, 2002; Garretas, 2004). Encontrou-se, ao longo das três gerações da família de Iara, uma forte adesão aos modelos estereotipados de gênero, com estruturas hierárquicas e distribuição rígida de papéis dentro da família, em especial no que se refere ao cuidado da casa e à divisão das tarefas domésticas, ao sustento econômico e ao cuidado dos filhos. O modelo da família patriarcal nuclear burguesa efetivamente influenciou o desenvolvimento dos papéis de gênero na família ao longo das três diferentes gerações da família pesquisada. Estes papéis, naturalizados e reproduzidos de geração em geração, foram engendrados por valores que primam pela tradição, pela hierarquia e pela obediência das mulheres e das crianças ao homem-pai (Narvaz & Koller, 2004a, 2004b). Os dados apontaram para outras formas de vitimização feminina, entre elas a pobreza (Prá, 2001) e o aprisionamento das subjetividades e dos corpos a papéis estereotipados de gênero (Butler, 2000, 2003). Estes achados, entretanto, não foram unívocos. Embora a atribuição dos papéis de gênero na família pesquisada tenha, predominantemente, correspondido aos ditames impostos pela ordem patriarcal, os papéis vividos foram heterogêneos. Tanto em relação à divisão das tarefas domésticas, ao cuidado da casa e dos filhos, quanto ao sustento econômico a ordem patriarcal foi, em muitas situações, subvertida. Os homens, percebidos como provedores econômicos, efetivamente não o são, ao menos de forma exclusiva. As mulheres também contribuem com seu trabalho ao sustento econômico da família, ainda que desvalorizem sua capacidade de trabalho. Os homens, mesmo não sendo os principais cuidadores dos filhos, por vezes, foram destacados como fonte de apoio, tanto econômico quanto de cuidado e proteção, em especial diante do abuso da filha. As mulheres, às quais são atribuídos os papéis de cuidado do lar e dos filhos e das filhas, são ora descuidadas, abandonantes, negligentes e culpadas, ora afetivas, protetivas e importante fator de apoio na família. Tais aspectos evidenciam, através da heterogeneidade mostrada (Authier-Revuz, 1982; Mutti, 2003; Orlandi & Guimarães, 1986) no discurso de Iara, a heterogeneidade constitutiva dos sujeitos que, ocupando diferentes posições (posições-sujeito) em relação à formação discursiva dominante, apresentam-se plurais. Os papéis prescritos a homens e a mulheres são engendrados por discursos. Os papéis familiares aparecerem entrelaçados aos papéis de gênero no discurso de Iara. Estes papéis são formações ou invenções (Berger & Luckmann, 1966; Butler, 2003) que são sempre relacionais, inscritas em determinado contexto histórico, econômico, social e político (Scott, 1998). O Brasil, fruto da miscigenação advinda da colonização, caracteriza-se por uma “frouxidão da estrutura social, por uma falta de hierarquia e por uma falta de coesão, que não 105 é um fenômeno moderno” (Holanda, 1995, p. 33). Essa falta de estrutura e um certo gosto pela anarquia (Holanda, 1995) conferem ao povo brasileiro, uma heterogeneidade constitutiva e uma certa facilidade para desfazer-se das identidades de gênero (Rolnik, 1998 a, 1998b). Os papéis de homens e de mulheres, ao menos no Brasil, não podem, portanto, ser compreendidos com base em divisões binárias, excludentes e estáticas dos discursos de gênero. Devem, ainda, ser compreendidos dentro da classe social e do contexto étnico em que se inscrevem uma vez que “nossa fundação e nossa história são pontuadas por mestiçagens. Habituados a nascer e renascer das misturas, somos constitutivamente híbridos” (Rolnik, 1998, p. 67). Proposição III – A terceira proposição deste estudo sugere que o relacionamento familiar nas famílias incestuosas é marcado por diversas formas de violência, caracterizando-se por uma distribuição desigual de poder, cabendo ao homem-pai-marido as decisões quanto às regras a serem seguidas pela família, que deve submeter-se ao poder masculino patriarcal. O poder patriarcal, ao mesmo tempo em que prescreve a obediência e a submissão nas famílias incestuosas, suscita resistências. As mulheres-mães das vítimas de incesto e suas filhas podem ocupar diferentes posições diante das violências sofridas, ora de submissão, ora de resistência. Subunidade de Análise – Submissão e Resistência: compreende as diversas posições, de submissão e de resistência, ocupadas por Iara, ao longo de sua história de vida, diante dos abusos sofridos tanto por ela quanto pelas filhas. Esta subunidade foi dividida em duas Categorias, quais sejam, 1) Submissão e, 2) Resistência. As posições de aceitação e de silenciamento da participante diante dos abusos sofridos por ela e pelas filhas caracterizam a Categoria de Análise denominada Submissão. Os fatores e processos identificados na análise dos dados que contribuíram à posição de silenciamento e de submissão da participante aos abusos sofridos por ela e pelas filhas foram: vivências de violência na infância de origem; a re-vivência do abuso sexual sofrido em sua infância e a falta de modelos de família protetiva; as estratégias de culpabilização das vítimas, acusadas de sedutoras pelo perpetrador do abuso; o desejo de manter a família unida; a dependência emocional e econômica dos parceiros abusadores; o medo do companheiro abusivo, geralmente violento fisicamente com a mulhermãe das vítimas de incesto e abusador de álcool; a prescrição de obediência e submissão engendrada pelo poder patriarcal; e, a falta de apoio familiar, comunitário e/ou social. Estes fatores e processos apareceram articulados em nossa análise, dos quais emergiram Subcategorias, que foram: Violência conjugal e alcoolismo; Transmissão transgeracional; Falta de modelo de família protetiva; Dependência econômica e/ou afetiva do companheiro abusivo; Desejo de manter a família unida; Obediência aos ditames patriarcais e Falta de 106 Recursos de Apoio. A Categoria de Análise nomeada Resistência compreende as diversas formas de enfrentamento da participante às violências sofridas por ela e pelas filhas. As formas de resistência identificadas envolveram várias formas de transgressão aos ditames patriarcais impostos à participante e às suas filhas, entre eles a fuga, a separação dos companheiros, a traição dos mesmos e a denúncia das violências sofridas. Esses aspectos originaram a Subcategoria de análise denominada Transgressão aos ditames patriarcais. Contribuíram ao engendramento da posição de resistência os recursos de apoio familiar, comunitário, institucional e social disponíveis à participante e às suas filhas, elementos que deram origem à Subcategoria de Análise intitulada Recursos de Apoio. A descrição destes aspectos pode ser visualizada na Tabela 1, apresentada no início deste Capítulo. Os resultados relativos à terceira proposição deste estudo foram encontrados na análise da história de vida da participante articulados uns aos outros e, são, por isto, apresentados aqui de forma conjunta. Os resultados que remetem à terceira proposição deste estudo são exemplificados a seguir na forma de recortes de falas significativas da participante, sendo discutidos, posteriormente, de forma integrada à luz do referencial teórico estudado. Subunidade de Análise –Submissão e Resistência. Categorias: 1) Submisão e, 2) Resistência. Configurações familiares da infância: Vítima de várias formas de violência, a infância de Iara foi marcada pela miséria econômica e afetiva. Família de origem biológica: com os pais, Iara vivenciou abandono e negligência. Bem, eu na verdade não fui criada com a minha mãe, nem com o meu pai, né. A minha mãe abandonou nós, né,.Quando era pequena, não tive carinho, amor. (...). Quando eu fui morar com minha mãe de novo, quando minha mãe adotiva me devolveu, eu tava com uns 18 anos(...). Quando eu tava grávida, fui prá lá (com a mãe) bem dize pra trabalhar (...).Ela saía e não deixava nada em casa, eu passei fome quando tava grávida. Meu pai não cuidava da gente, da alimentação, a gente dormia por cima duns pelegos. Depois o pai também foi embora quando tratou de arranjar outra mulher (...). Eu levei muitos anos para vê ele (...). A gente não tinha muita convivência. Eu sei que meu pai bebia e não gostava de trabalha (...). Ele brigava com a mãe, mas nunca vi ele bater nela. Eles já não se acertavam, ela disse que ele não era um homem suficiente, na cama, pra ela. Então ela achou que tinha que procurar outro(...). Ela fugiu com o amante que falava com ela atrás da árvore (risos). E bugra, já viu, né! Sangue de bugra é muito.. muito quente. Então ela foi à luta (risos). Iara foi testemunha da violência do avô paterno, abusador de álcool, contra a avó, o que também caracteriza a violência cometida contra Iara ao testemunhar a violência . Meu avô chegava bêbado em casa... e batia na avó. A avó não fazia nada. Em nós não. A gente corria e se escondia, né (risos). A relação com a minha vó era boa, né. Era pequenininha, eu me lembro que ela me levava e me botava sentadinha no colo dela, pra pesca”. 107 Tanto o avô paterno quanto o tio foram referidos por Iara como abusadores sexuais, sendo que Iara foi vítima de abuso sexual pelo tio paterno. Meu avô era bem dize um estuprador, um tarado nato, que eu digo, né(...). E diz que abusava de todas as filhas também...só não abusou de uma que fugiu com o namorado antes dele (o pai) abusar dela (risos). Eu também fui abusada, foi meu próprio tio. Nessa idade antes da minha mãe me pegar, né, quando a gente foi mora com o pai lá na casa do meu avô...morava esse tio também, morava tudo junto...eu tinha uns quatro, cinco anos, não me lembro bem.... Ele devia ter uns dezesseis anos (...).Tanto que eu me criei achando que eu era ‘mulher’. A gente tinha que obedece (...). E ele (o tio) sempre dizia ‘Não, tu não conta pra ninguém’. Falava pra mim que isso acontecia, que era normal, só que pai e mãe, no caso, vó e vô não podiam saber (...). Ele era assim um excluído da família, não foi só comigo, ele fez com outras também... A minha mãe eu não sei, vai vê ela também foi, né, abusada, porque ela tinha muito medo que acontecesse comigo.... A obediência como valor aprendido na infância é destaca por Iara. A gente quando era pequena, não tinha essa de dizer não, a gente tinha que obedecer (...). Os filhos têm que manter uma obediência, né, uma obediência ao pai e à mãe (...). No relacionamento com a mãe biológica, além do abandono e da falta de carinho vivenciados na infância, Iara diz ter conseguido resgatar aspectos afetivos na relação com a mãe em sua adolescência e na vida adulta. Nos fragmentos abaixo selecionados, revelam-se as diferentes posições ocupadas por sua mãe na história de vida de Iara: ora abandonante e descuidada, ora carinhosa e percebida como figura de apoio à filha. Iara ressalta semelhanças entre ela e a mãe no que concerne à capacidade de trabalho e de luta e em relação à sexualidade. A sexualidade da mãe, considerada “transgressora” é, no entanto, criticada pelo irmão de Iara. Quando eu voltei a morar com ela, lá pelos 17 anos, a gente saía, ía nos bailes e ninguém dizia que era mãe e filha, era assim que nem duas amigas, a gente disputava até os namorados! (risos). Ela era o meu apoio (...). Uma época ela ficou com a minha filha mais velha para eu trabalhar(...). E ela me aconselhou e me deu dinheiro pra eu voltar pra Porto Alegre ficar perto do meu filho, já que a minha outra filha tava com a avó em São Paulo. Ah, eu acho que a minha relação com ela (a mãe) era boa. Pra mim ela era muito carinhosa, né, mas eu não sei se, assim, tu aquilo que ela não pôde talvez me dá, quando pequena, tanto que eu disse que seu eu chegasse lá eu sentava no colo dela e ficava (...). Sempre que eu pude eu sempre sentava no colo dela, então buscava aquilo que eu não tinha quando eu tava crescendo, eu busquei e acho que encontrei. Tenho saudade dela, mas a gente conseguiu resgatá... (...). Hoje eu entendo ela (...). Acho que sou parecida com ela, assim de ser trabalhadera, guerreira (....). E ela gostava de homem mais novo, né,. Quando eu perguntava o que ela queria com um gurizinho: Ela dizia: ‘Vô curtir a vida!’ (risos). E quando ela morreu ela morreu feliz por que ela encontrou um homem bom que cuidou dela (...). O meu irmão, acho que ele se criô também achando assim que mulher quando faz certas coisa, ela é sem-vergonha. Tanto que a minha mãe, ele nunca aceitava que a minha mãe tivesse namorado. Quando a minha mãe ficou doente ele disse: ‘Isso aí é porque ela tem namorado’ (...). 108 Ele é meio moralista. Certas coisa na casa dele não se ouve, então, agora que ele é evangélico, mais ainda! Família substituta: Iara foi vítima de negligência, de violência física e emocional enquanto morava com a família substituta. A influência da igreja católica também aparece como fator que prescreve a obediência dos filhos na família. Nas falas abaixo, evidencia-se a negligência de que Iara foi vítima. Eu não tinha quase roupa e nem cama pra dormi eu tinha (...). A violência física é ressaltada por Iara como a pior lembrança da infância. Eu tenho só lembranças ruins da minha infância... Acho que pior lembrança é essa de apanhá, né, qualquer coisa, apanhá Eu acredito que se eu não apanhasse, talvez eu teria me criado com essa família, né. Teria estudado, que adorava estuda. Só que como eu achava que eu apanhava muito(...). Mas eu, eu, como é que vou dizer, não tinha direito nenhum, né? Sem defesa nenhuma (...). Mas a sogra do filho da mulher que eu morava que me orientou que eles não tinham o direito de me bater, ela disse pra eu ir lá no Juiz, pra eu ir lá toda lanhada fala com o juiz. Várias formas de abuso emocional são identificadas nos segmentos a seguir. Eles me consideravam como uma escrava, a neguinha, a suja, aquela pessoa (...). Não me tratavam como da família (...). A minha melhor lembrança era quando chovia. Chovia, eu ia buscá um cavalo num campinho e eu ficava na chuva, né,me molhava. Eu sentia o cheiro do cavalo. Gostava de senti, né, a natureza. Foi só o que eu sei assim de bom que eu vivi ....e dum Natal que eu ganhei só que depois estragaram meu Natal. Foi o meu primeiro Natal que eu ganhei, e o último, porque uma vez eu estraguei um brinquedo e eles disseram assim que eu nunca mais ia ganhar um natal. E eu nunca mais ganhei (...). Eles diziam pra mim:’ A tua mãe é uma china, ela deve tá chineando por aí’. Hoje eu sei que eles diziam pra mim não querê ficá com ela, sabê dela. Então eles trabalharam na minha mente assim: ‘Não, ela é uma china, tu não tem que gostar dela porque ela não presta’. Eles disseram: ‘Olha doutor, ela quer ser que nem a mãe dela. A mãe dela era assim, mulher à toa (...). Uma mulher que não pode ter uma filha mulher porque era uma mulher da vida’(...). A obediência também aparece como uma prescrição a ser seguida na família substituta. Iara foge dos maus tratos da família substituta, recorrendo ao Juizado de Menores. Alguns trechos revelam a violência institucional a que Iara foi submetida. Eles eram assim, muito da igreja, tinha que obedece, tudo, né (...). Eu peguei um dia e fugi, né? Inventei que ia vender umas redezinhas de botar no cabelo que eu fazia de crochê e fui no Juizado de Menores. (...). Saí correndo que hoje eu podia ganhar as Olimpíadas, uma medalha (...). E tinha as perninhas bem fininhas! (risos). Lá no Juizado eles diziam que eu tinha que levar eu mesma a intimação pra eles irem lá falar com o Juiz, mas eu tinha medo de apanhar mais ainda! Aí eu fiquei lá no Juizado sentada um tempão, até que apareceu essa senhora que queria uma menina pra criar (...). Aí eles me passaram para ela, a de São Paulo. 109 Mãe adotiva: apesar de sentir-se cuidada nessa relação, Iara foi vítima de negligência, de abuso físico e emocional também com a mãe adotiva. Iara parece não identificar algumas dessas relações como de violência. O castigo físico é visto como forma de disciplinamento, embora sua fala sugira certa ambivalência quanto à adequação dessa forma de educação. O abuso emocional configura-se na medida em que Iara foi tratada como um objeto, uma mercadoria: como não era bem da idade que a mãe adotiva queria, esta resolveu “experimentar criar a menina”, dizendo que a “devolveria” quando ela tivesse certa idade. Aí que eu fui morar com essa que eu chamo de mãe (...). O Juizado de Menores me passou pra ela. Morei com ela uns anos. Essa senhora tava procurando justo uma menina pra trabalhar na casa dela. Ela diz criar, mas é pra morar na casa dela, ela queria uma menina pequena. Ela não me adotou, só me levou... ela não quis me adotar porque eu já era grande. Aí ela dizia: ‘Ah, mas é muito grande. Mas eu vou experimentar.’ E experimentou. Mas ela disse:‘Quando tu tiver uma certa idade eu vou te devolver pra tua mãe legítima.’ E quando eu tinha 17 anos foi quando ela me devolveu para minha mãe legítima. Ela me dava laço, mas ela nunca, como é que eu vô te dizê, ela me dava sabe, mas ela dizia assim: ‘Sempre que eu te der em ti, é pra te ensiná.’ Embora eu achava que apanhá não era o jeito... E daí o Natal nunca veio, né. Minha boneca, eu sonhava ganhá uma boneca. E a minha boneca durante anos foi uma boneca que eu achei no lixo. Iara é assediada sexualmente pelo dentista, vizinho de porta da mãe adotiva, observando-se aqui a negligência pela falta de proteção da mãe adotiva. A minha primeira relação mesmo foi com um dentista, eu tinha uns 17 anos (...).Ele era assim vizinho de porta da minha mãe adotiva (...). Eu me abria com ele, conversava, aí ele foi pegando todos os meus problemas (...). Eu acho que eu era muito carente (...).Uma vez ele me perguntou:‘Tu não gostaria de tê um apartamento, uma casa pra ti morá, roupas boa pra vesti, tudo?’ Aí eu disse: ‘Mas tu acha que isso é fácil de tê?’ Ele disse: ‘Claro que é. Se tu quisé, né. Se tu quisé tu pode ter, eu posso te dar tudo isso.’ E eu achava que não era mais virgem por causa do abuso do meu tio (...). Aí eu comecei a me interessá, digo: ‘Bom vou ganhar alguma coisa, vou conseguir progredir na vida, vou melhorar, né.’ Daí ele começou o ritual pra começá tudo, né, vou tirando a minha roupa (...). Mas eu não gostava dele,né. Então uma coisa assim que aconteceu no interesse de ganhar alguma coisa. Família atual: incluem-se aqui os relacionamentos vividos por Iara em cada uma das cinco diferentes configurações familiares relatadas em sua história de vida atual. Cada configuração é composta por diferentes membros, envolvendo, cada uma delas, o companheiro e o filho e/ou as filhas com os quais Iara conviveu em diferentes momentos de vida. A fim de facilitar a compreensão, serão apresentadas as percepções de Iara sobre os relacionamentos vivenciados em cada uma dessas configurações. Configuração familiar 1: morando em São Paulo com a mãe adotiva, aos 17 anos de idade, Iara relaciona-se com Paulo e engravida da filha mais velha Ana. Iara é, então, “devolvida” pela mãe adotiva e volta a morar em Porto Alegre. Com a mãe biológica, que trabalha como prostituta, Iara diz “passar fome”. Iara pensa inicialmente em abortar, mas decide manter a 110 gestação e volta para São Paulo a fim de que Paulo assuma com ela a gravidez. A relação com Paulo dura cerca de dois anos, sendo marcada pelo álcool e pela violência, ao que Iara resiste fugindo da cidade. No início eu rejeitei ela (Ana) no útero,e tentei abortá ela Mas depois que a minha barriga deu uma tremedeira, eu pensei que queria ficar com ela. Eu tava morando, mais trabalhando, né, lá na minha mãe biológica, mas ela saía e eu ficava sem nada e passei fome e ela na barriga(...). Eu conversava com ela na barriga . Aí eu resolvi voltar pra São Paulo procurar o pai, né, ele tinha que assumir. Mas depois que ela nasceu, virou meu xodozinho... Eu e o Paulo moramos juntos uns dois anos. Eu comecei a desconfiar que ele usava drogas porque ele era tão bom ao mesmo tempo ele me dava, já queria agredir(...). Bebia, daí um dia eu peguei ela (Ana), arrumei um dinheiro e fugi, fugi lá do estado de São Paulo pra cá. Configuração familiar 2: Iara vai trabalhar em Santa Maria e relaciona-se com Pedro, engravidando de Gabriel. A relação com Pedro é identificada por Iara como boa, exceto pela bebida. Comentários de Pedro com conotação sexual em relação à filha Ana são destacados por Iara. A fim de proteger Ana de possíveis abusos, leva a menina para morar com a mãe adotiva em São Paulo, mantendo consigo o filho Gabriel. Em função das agressões e do alcoolismo, Iara separa-se de Pedro e vai trabalhar em Viamão. Pedro “tira o filho Gabriel de Iara, entregando-o para a irmã criá-lo, em Porto Alegre”. Mesmo estando separada de Pedro, volta a relacionar-se sexualmente com ele, engravidando de Vanessa, a filha caçula. Eu fiquei com ele uns quatro anos mais ou menos. Ah, eu e ele, ele sem a bebida, ele era maravilhoso. Era uma pessoa muito boa, muito boa. Mas se ele bebia estragava. Tratava bem tudo, mas se bebia eu era tratada à base de cachorro, não podia abrir a boca. Aí eu enfrentava ele, mas sabia que ele não tava no normal dele. Foi quando eu comecei a desconfiar que ele tava usando droga. Pensei que ele podia me pegar, me matar ou matar minha filha, qualquer coisa (....). Eu desconfiava porque ele bebia e falava que ia pegar nela, na perereca dela. Mas nunca soube se ele abusou ou não, acho que não... Aí eu pensei: ‘Vou me mandar embora’. Aí eu fugi com ela e levei ela lá para São Paulo para a minha mãe adotiva cuidar dela. O Gabriel foi uma programação, o pai queria (...). Ele era muito apegado a mim (...). Depois o Pedro me tirou meu filho, dizia que eu não tinha condições de criá ele, e deu para irmã ele criá (...). Eu sofri muito(...).Eu gostaria assim, já que ele sabe que eu sou a mãe dele, eu gostaria que pelo menos assim, que ele me ligasse para dizer: Oi, tudo bem? Hoje é teu aniversário, parabéns, né? Então eu não vejo nenhum interesse dele em me procurar, então eu me afastei, né? Mas aí eu armei uma armadilha, se diz aí, arrumei um esquema pra mim engravidar da minha menina, já que ele não deixava pegar o Gabriel (risos). Daí eu comecei a me encontrar com ele e engravidei da Vanessa. Ela também foi uma programação, o pai queria (...). Configuração familiar 3: Separada de Pedro, Iara relaciona-se com João. A filha Ana, nessa época, ficava ora aos cuidados da avó adotiva, ora aos cuidados de Iara, ora no internato, ora com a avó biológica. O filho Gabriel estava sendo criado pela tia paterna. Em uma das brigas com João, Iara volta para Santa Maria, relaciona-se com Pedro e engravida de Vanessa, “pois 111 queria ter um filho consigo.” Iara volta a morar com João, já grávida de Vanessa. João, mesmo não sendo pai biológico de Vanessa, casa legalmente com Iara e adota a menina como filha. Iara, a fim de ter uma casa e uma família, permanece com João, submetendo-se a uma relação que não lhe satisfaz, o que caracteriza violência emocional. Nessa relação, Iara é também abusiva com João. Com esse casei, casei sim, de papel passado. Eu casei com esse que, bem dizer adotou como pai a minha pequena, a Vanessa. Eu morava na casa dele, quando eu engravidei da Vanessa, mas que não é dele, é do Pedro... foi quando eu fui morar em Viamão, eu queria ter uma casa, ter uma família. Já que eu não tinha, queria ter uma família (...). Aí eu busquei a Ana ela tava com uns 7 anos mais ou menos, lá de São Paulo, pra morar comigo, quando a Vanessa nasceu (...). A avó dela dizia que ela queria morar comigo e eu também, agora eu podia, tinha uma casa, uma família (...). Só que eu não tinha relação com ele, eu não gostava dele, mas ele dizia: ‘Não, mas eu amo por nós dois. Vamos tentando, vamos tentando.’ Tentamos vários tempos, tentamos bastante. Eu não conseguia ser uma mulher carente, né? Eu não conseguia me satisfazer com ele. Satisfazer na vida sexual principalmente. Então se eu tivesse que trair ele com outra pessoa eu traía. Então, não respeitava, não achava que era pra mim.. Mas ele era bom pra mim, um excelente marido, ajudava em casa, se precisava faze alguma coisa, ele fazia. Só que daí eu reagi ao contrário, em vez dele ser ruim pra mim, eu é que era ruim pra ele. Eu agredia ele, eu maltratava ele. Batia nele depois ficava louca de pena. Ele ficava quietinho em um canto, daí eu ia lá pedir desculpas... Daí voltava tudo ao normal. Com esse eu que era danada... (risos). Configuração familiar 4: Iara, nesta época, casada com João, morava em Viamão, com ele e com as filhas. Ana estava com cerca de 10 anos de idade, e Vanessa ainda era bebê. José, que também tinha uma companheira, era ex-presidiário e estava foragido na casa de uma prima, conhecida de Iara. Iara passa a relacionar-se com José, que expulsa João de casa, convivendo então com Iara e com suas filhas. José mora com Iara durante cerca de quatro anos, período em que abusou da filha Ana, dos 10 aos 14 anos de idade. Ana, aos 15 anos, foge de casa e denuncia José no Conselho Tutelar, sendo levada para um Abrigo de Meninas. Já separado de Iara, e novamente foragido em função da denúncia de Ana, José continuou com as ameaças e agressões à Iara, e abusou, recentemente, de Vanessa. As diversas formas de violência perpetradas denunciam o poder e o controle exercidos pelo padrasto-marido sobre a família. Ele já tinha sido preso por assalto à mão armada, ele era violento e uma vez me deu uma facada no braço (...).Por ele ser um cara mau,né, tinha todo o controle... da nossa vida. Eu não me sentia, como é que eu vou dizer, eu não tinha força pra reagir. Se eu reagisse, eu apanhava também. Ele dizia: “Se tu reagir qualquer coisa tu sabe, né? Eu já fui cadeeiro, tu sabe que se eu te pegar, se tu não aceitar o que eu quero, eu vou mesmo é ter que te dar uma cotovelada, eu te estrupo, eu te furo e tu vai ter que aceitar” E ele gostava de falar das outras mulheres pra mim, tipo assim, fazer ciúme, né .Uma vez ele me forçou a ter relações com ele. Ele não morava mais lá, nós já tava separado e eu já tava com o filho dele, o Aquiles, mas de vez em quando ele ia, se achava no direito porque 112 o filho dele tava agora morando lá, né. E ele dizia que eu era prostituta, e que semvergonha ia ser sem-vergonha sempre (...). As enteadas, Ana e Vanessa, também foram vítimas de abusos perpetrados pelo padrasto, além de testemunharem as violências sofridas pela mãe. Elas viam quando ela me agredia, quando ele me esfaqueou, elas tavam em casa. Ele (José) maltratava, dava de laço, ele judiava da Ana (...). Batia. Dava, se tivesse com alguma coisa, ele dava (...).E daí ele botava ela, se ela não quisesse fazer alguma coisa, se começasse a chorar, botava ela de joelho, até no milho, na tampinha de garrafinha. Tudo ele botava ela de castigo no banheiro. Aí um dia ele me disse que ia me mostrar como a Ana deixava ele abusar dela e ele me deixou bêbada e me mostrou, fez eu ver ele ter relações com ela. Ele fazia ela (Ana) ter relação com ele, mesmo que ela não quisesse. A Vanessa viu, quando tinha quatro anos, viu o que ele fazia com a mais velha (...). Depois ele fazia nós ter relação tudo junto, assim, tipo casais trocados, eu, ele e o filho dele, o Aquiles, que ia lá em casa de visita (...). E depois fazia nós ter relação com a guria (Ana) junto também. Eu sempre correspondia sexualmente, né, quando ele queria. Não tinha motivo para ele abusar da guria (...). José atribui à Ana a provocação do abuso e à Iara a culpa pela não revelação da filha dos abusos que vinha sofrendo, estratégia típica de culpabilização das mulheres usada pelos abusadores. Ele falava pra mim que era ao contrário, que era ela que queria, ficava com ela porque ela dava confiança. Ele sempre dizia: ‘Não, é ela que dá em cima de mim, é ela que tira a roupa perto de mim, vem em cima’ (...). Ele dizia: ‘Ela não te conta porque ela tem medo que tu é muito braba, que tu dá nela, ela tem medo que tu vai dar nela’. Na verdade eu era mesmo (...). Ana foi maltratada emocional, física e sexualmente também pela mãe. Iara diz ter rejeitado a filha, não ter acompanhado seu desenvolvimento e ser abusiva com ela, o que teria afetado a relação de apego mãe-filha. Iara atribui à falta de apego a não revelação do abuso de Ana. Eu era muito assim de dá-lhe laço, de pegar uma vara, um chinelo, um pau, sei lá, e dá-lhe laço. Então talvez ela não conseguiu contar por causa dessas minhas atitudes... Eu perguntava para ela se tava acontecendo alguma coisa, mas ela nunca me contou nada.A Ana ficava quieta, ela não falava nada, ela agüentava tudo calada. Eu falei pra ela que eu rejeitei ela no útero (...) e tentei aborta ela (...). Com a mais velha, eu não fui aquilo, de acompanha, e tudo... Quando ela precisava de mim eu não tava lá (...). Deixava ela no internato, na minha mãe (...) eu via ela a cada quinze dias, achava que ela já tava acostumada, que ela não ia sentir falta de mim (...) não tinha o mesmo apego, 113 ela ia com qualquer um, ela não era apegada a mim (...). Eu acho que é por isso que ela não se abria comigo (...). Iara salienta os sentimentos de confusão, de raiva e de rivalidade em relação à filha Ana. No início, quando o José me dizia que ela era mulher e que ela deixava ele ter relação com ela, eu sempre defendia ela. Eu dizia: ‘Não é, ela é minha filha mocinha, não pode ser verdade’. Eu não queria acreditar, era uma confusão na minha cabeça (...). Mas depois, quando eu vi, eu pensei:Por que ele foi pegar justo a minha filha? Eu fiquei muito revoltada (...). Eu simplesmente me sentia traída porque ela não me contou do abuso (...).Fiquei com raiva por ela ter escondido (...). Ele tratava mais ela como mulher dele, assim, de chegar e dar um beijo primeiro nela, de trazer um doce, assim, que eu (...). Nós competia, discutia que nem duas mulher. Não era que nem mãe e filho, né? Então se tornou uma coisa assim, eu... se ela viesse pra me agradar, me dar um beijo eu não aceitava. Ela era a outra, não era a minha filha. Eu via ela como uma rival e passei a maltratar ela. Eu tentava pressionar ela pra ela sair de casa. Tanto que foi um tempo que eu arrumei uma senhora pra levar ela lá de casa, eu tirei ela de dentro de casa e ele tentava buscar sempre. Iara percebe-se como não sendo boa mãe e nem amiga para a filha. Sente-se culpada por ter participado do abuso sexual junto com José e por não ter defendido a filha dos abusos. Eu acho que eu não fui uma amiga pra minha filha (Ana).Eu acho que foi sujo o que aconteceu entre nós. Principalmente porque entre mãe e filha, nunca poderia ter acontecido, né. Filha, mãe, né, filha e mãe e outra pessoa, acho que era muito sujo (...). Ela disse que não me perdoaria. Eu disse pra ela: ‘Mas e se eu morrê amanhã?’ ‘Se tu morrê, morreu’, ela disse pra mim. Eu disse: ‘Mas eu não posso morrê sem o teu perdão’, eu disse pra ela.‘Eu quero o teu perdão, quero que tu me perdoe’. Eu sei que talvez eu não fui uma boa mãe. Vanessa também foi vítima de abuso sexual. Na infância, presenciou, inclusive, o abuso da irmã Ana. Iara atribui novamente a si a culpa pelo abuso de Vanessa. E talvez por eu não ter feito nada na época, talvez teja acontecendo novamente com a mais nova... Já faz mais de dois anos que ele (José) não vai na minha casa, mas ele sempre achou no direito de ir lá em casa por que era o pai do meu atual companheiro (Aquiles). E eu não conseguia dizer: ‘Não, tu não vem mais aqui. Ele não ia aceitar.’ Mas só que eu não tava assimilando o que ele tava tentando...(abusar de Vanessa). Ele (José) tentou abusar da Vanessa também, mas não fez, graças a deus, a gente acordou a tempo. Embora eu orientava ela pra não acontecê o que aconteceu comigo e com a irmã dela. Tem gente que diz que é karma, né, vai vê aconteceu com a minha mãe também, não sei, mas ela tinha medo disso (...). Em relação à filha Vanessa, Iara considera-se boa mãe, enfatizando o apego entre elas, embora Vanessa também não tenha lhe revelado prontamente o abuso. 114 Pra Vanessa eu acho que eu fui uma boa mãe. A Vanessa foi programação minha que eu queria ligá tudo, então eu mesma programei, né. O pai dela queria. Amamentei até 2 anos. Acho assim que foi maravilhoso. O carinho de amamenta, o primeiro passo, tudo, é diferente o apego que eu tenho com ela (...). Embora que essa aqui (Vanessa) também, se eu não descobrisse, ela não iria contar também. Não sei o que ele prometeu fazer pra ela. (...). Eu fiquei espiando um dia e vi ele tentando ela lá no portão e aí eu perguntei e ela me falou Ela não me contou porque ele ameaçava com faca. Ele ameaçava que ia me pegar ia maltratar nós, eu e o meu companheiro, dizia que ia esfaquear, ou matar nós dois. Ela se importa comigo e fica preocupada, tem medo que ele vai lá e faça alguma coisa, tanto que ela disse pra mim hoje: ‘Tu não maltrata ele (José). Sempre que ele vim te visitar, trata bem dele.’ Ela tem medo por mim. A Vanessa não me culpou do abuso. Ela foi morar com o pai mas ela me liga, a gente continua em contato(...). Nós semo amiga (...). Em outra fala, ainda em relação à Vanessa, Iara acredita que “salvou ela do abuso mesmo e que agora está fazendo o que não fez em relação à Ana”. Eu acredito que eu salvei ela do abuso mesmo, assim, agora eu sei, como tu me explicou (a pesquisadora) que só tentar já é abuso,mas digo do abuso mesmo, do estupro. Porque com ela eu conversei, explicquei, tudo (...) pra não deixar acontecer (...) e agora eu tô correndo, fazendo tudo, denúncia, tudo o que eu não pude fazer da primeira, agora eu tô fazendo (...). Iara vai ressignificando a culpa pela não revelação do abuso das filhas a partir de sua própria experiência de abuso na infância, resgatada pela pesquisadora durante a entrevista. Eu fiquei pensando naquilo que tu me disse (a pesquisadora), que eu também fui abusada e não contei...Eu acho que é muito difícil mesmo contá (...). Por a própria educação de acha que é nojento, que é proibido, é que a pessoa esconde. Talvez seja por isso mesmo que a gente vai escondendo, não fala. Iara não sentia força para reagir aos abusos de José. Além do medo, a paixão e o sentimento de pena em relação ao companheiro, que “já havia sofrido tanto”, influenciaram a atitude de Iara de não denunciar as violências sofridas tanto por ela quanto pela filha Ana. Eu era doente, apaixonada por ele, que ali eu tinha encontrado o homem do meu sonho, né? Era Deus no Céu e ele na Terra prá mim, era meu ídolo. Sempre tive pena dele. Sempre tive pena por que eu acho assim que uma pessoa que é presa, ela sofre muito, ela é muito judiada, maltratada. Então já que ele fugiu de lá, pra que que eu vô fazê ele volta pra cadeia, né... Sempre achava assim, coitado, né, sofreu... Sempre lá sem família, né. Não teve, nunca criou família, nunca adquiriu a família dele (...).Ele foi criado assim com, né, sempre bem dizê a mãe quebrava as coisa e ele tem a mesma mania que a mãe, se ele pegá uma coisa, ele quebra... As ameaças de José e a falta de proteção legal, de apoio familiar e comunitário/institucional também contribuíram à atitude de Iara de não denunciar o companheiro. 115 Quando eu soube do abuso, no início, eu queria que ele fosse embora, achei que ele queria ficar com ela (...). Mas ele dizia que não queria ficar com ela, que tinha ficado só porque ele era homem e que mulher não manda homem embora. (...). E eu não tinha pra onde ir (...). Uma vez eu tentei viver na casa de uma comadre minha que era madrinha da minha filha. Até o compadre também já tava querendo, também bebia, já começou a largar umas piadas de lado, dizia ‘Ah, a comadre é bonita’. Aí eu pensei , não vai dar certo esse negócio aqui, daí eu tô bem bela aqui, uma hora, e esse homem chega aqui querer me agarrar (...). Eu não aceitava, né? Tava parando, morando de favor na casa dela. Aí eu fui me embora.” E ele dizia: ‘Não adianta me denunciá que 24 horas, proteção 24 horas tu não vai te’. Eu já fiz com Fulana, com Beltrana e ninguém fez nada, não aconteceu nada.’ E a gente tinha medo, porque ele era capaz de tudo, matá, botá fogo na casa (...). E eu não tinha ninguém aqui.. Meu irmão tava morando longe, não tinha mais pai... Diferentes posições são ocupadas por Iara diante das situações de abuso sofridas pelas filhas. Ao recorrer à delegacia, quando Ana fugiu de casa, Iara, ao invés de receber apoio, foi culpabilizada, vítima de violência institucional e de gênero na própria delegacia. Na época, da Ana, eu não fiz nada, eu não reagi (...). Não me senti com força por não conhecer lei. por não entender, se eu poderia ter pegado, no caso, na época, ter pegado e ter ido na polícia, ou numa delegacia de mulher, ou numa coisa assim e denunciar o que ele tava fazendo, ou procurar alguma coisa. Eu não sentia força. Não conhecia o que conheço agora. Eu até uma vez fui numa delegacia da outra vez, quando a Ana saiu de casa, porque eu queria recuperar a minha filha, mas eles até debocharam de mim e disseram que iam me dar Viagra pra eu falar tudo, porque eu era cúmplice dele, ele era foragido e disseram que eu era da quadrilha. Aí eu me senti pior e não fui mais. Recursos de apoio familiar, comunitário, institucional e legal foram fundamentais à Iara no engendramento de estratégias de resistência e de enfrentamento da violência. Com o acesso a recursos capacitados que lhe orientaram sobre direitos e proteção, Iara sentiu-se mais fortalecida, conseguindo “fazer diferente com Vanessa”. Se eu pudesse, se eu tivesse força, pra ter feito, eu teria feito, posto ele na cadeia. Lá teriam mandado matar. Se tivesse modo de tirar ele de mim eu sei que não teria acontecido isso. E sei se ele for pra cadeia vai acontecer, né? Até mesmo porque tem tanta gente que morre, por que que ele não morre? Agora eu sei o que tem que fazer. Não adianta botar os sentimentos em primeiro lugar. Agora, com a Vanessa, eu tô fazendo diferente, denunciando, tudo. Tô conseguindo proteger ela (...). Eu nunca soube brigar, eu sempre fui de apanhar, até no colégio quando pequena eu apanhava, era bichinho do mato.Eu apanhava e não revidava. E a professora não fazia nada também... Mas a Vanessa já é diferente, ela não baixa a cabeça (risos). Agora tem mais informação, tem programa na Tv, tudo, agora é diferente (...).Porque eu me criei achando que sexo era feio, sujo, não se falava nisso, era assim, tabu. Tanto que ser mãe de filho eu achava que era uma coisa suja. A gente se cria com isso, um tabu, sexo como uma coisa ruim (...). Tanto é que pra mim a virgindade era importante.Eu vejo aqueles desfiles na Tv de vestido de noiva, acho lindo, eu sempre quis casar de branco, na Igreja, tudo.Eu não casei de branco, por que não era mais virgem, como a minha mãe queria, que eu casasse na Igreja e de branco. Eu não queria que acontecesse comigo, ser mãe solteira, mas eu nem sabia o que era menstruação, quando eu fiquei, achei que tinha me cortado, que tinha feito alguma coisa errada, sei lá (risos) 116 Por isso agora com a Vanessa eu converso tudo com ela, sexo, camisinha, até abuso. Eu digo: Hoje em dia, esses rapaz que ficam com as guria, só querem fica, porque na verdade as meninas não tão preparadas pra tê uma relação. Eu disse pra ela: ‘Na verdade um rapaz vai só te sujar, porque vocês não sentem nada. Os guris vão lá e dizem ‘Ah, fiquei com a fulana.’ Depois saem a contam pra todo mundo e dão risada. Tu só tem que faze se tu quisé, com quem tu gostá’, eu digo pra ela. Lá na Delegacia da Mulher elas me disseram agora que se eu não denunciá, eu posso sofrer dano, assim, por ser cúmplice e até ser presa (...). Aí o investigador me disse que muitas mulheres não denunciam porque têm medo de denunciá (...). Mas elas têm que acreditar, que saber a lei e que tem uma proteção, que tem alguém que vai ajudar elas a (...).. Lá no Conselho também, agora me orientaram, assim, direito e disseram que agora eu tava no caminho certo vindo aqui na terapia ... Só espero ainda poder falar com a minha filha Ana um dia.. Configuração familiar 5: Aquiles, filho adotivo de José, convivia com a família de Iara. Chegaram a ter relações sexuais a pedido de José. Aquiles passou a conviver mais com a família quando foi trabalhar perto da residência de Iara, consertando bicicletas. Iara e Aquiles envolvem-se sexual e emocionalmente, até que pai e filho discutem e José decide que vai embora. Iara vive, atualmente, com Aquiles, que a apóia na denúncia de abuso de José, mesmo sendo seu pai. A filha Vanessa, em função do abuso de José, foi morar com o pai adotivo, João, mas segue em contato com Iara. O apoio conjugal aparece como importante fator na recuperação da auto-estima e da força de Iara. Ele (Aquiles) ia lá só de visita no início, aí o José queria ver a gente tendo relação, tipo casais trocados (...). Mas depois ele disse que não queria que o José ficasse vendo e que ele queria ficar comigo, que não era direito o jeito que o José me tratava, que ele queria me assumir, ter responsabilidade, tudo. Aí o José foi embora e ele ficou morando lá (...). Ele me ajuda bastante. Eu fico na frente dele chorando que nem uma criança. Choro, choro, choro. (...) Ele me dá apoio, me dá força, me valoriza, diz que tudo isso vai passar... Os homens com quem eu convivi sempre me tratavam como prostituta, por eu ter vários companheiros.Mas ele não, ele diz: 'Não, tu não é essa mulher, assim, uma prostituta....Tu bonita, tu tem muitos valores, tu não sabe o valor que tu tem... é que muitos não te mostraram pra ti o valor, eles mostraram um lado que tu tem, que eles enxergavam, eles achavam que era isso daí... por que eles não entendem de personalidade das pessoas. Ele disse que se precisasse ele ia lá e testemunharia ao meu favor contra o José, porque ele acompanhou tudo e ele não gostava de ver ele maltratar eu e a Ana. Apesar de Iara demarcar o apoio do atual companheiro que, segundo ela, não é abusivo, a obediência da mulher e do(a)s filho(a)s ao homem-marido ainda aparece em sua fala. Quando tem uma pessoa mesmo de caráter, se o homem é um homem de caráter eu acho que a pessoa... os filhos... têm que manter certo respeito (...). Acho que de primeiro sim, pensava muito que tinha que obedecer, tinha que ser em primeiro lugar, ele, o marido. Sempre eles que tomavam a decisão (...). Eles que decidiam tudo (...). Eu obedecia (...). Não, em um casal tem que ser tudo de comum acordo. Não concordo que tem que obedecer... ninguém é dono de ninguém (...). Mas até hoje se eu saio eu digo onde vô, assim. Eu sou uma mulher obediente (risos). 117 A análise do discurso de Iara revela que as relações vivenciadas ao longo de sua história de vida foram (e ainda são) marcadas por diversas formas de violência, o que confirma um dos aspectos da terceira proposição deste estudo, qual seja, a de que o relacionamento familiar nas famílias incestuosas é marcado por diversas formas de violência. Iara foi (e ainda é) vítima de várias formas de violência ao longo de sua história de vida. Na infância, Iara sofreu negligência, abandono e abuso emocional em todos os núcleos familiares vividos. A negligência e o abandono expressaram-se na falta de cuidados, de alimentação e de proteção. Segundo ela, “o pai não cuidava direito, não tinha alimentação, dormia nuns pelegos”. A mãe, que a “abandonou”, não lhe deu “amor nem carinho” na infância. A falta de proteção da família de origem, em especial dos avós, sob aos cuidados de quem Iara foi deixada, evidenciou-se no abuso sexual perpetrado pelo tio paterno de Iara em sua infância. Quando viveu com a família substituta, foi vítima de negligência, de abuso físico e emocional, sendo chamada de “neguinha, suja e tratada como escrava, apanhando muito”. Em sua adolescência, foi abusada emocionalmente pela mãe adotiva que “experimentou” criar Iara, dizendo-lhe que “era muito grande para ser adotada e que seria devolvida mais tarde”. Esta forma de violência não parece ser identificada por Iara. Abuso emocional é descrito na literatura (Koller, 1999) como humilhação, degradação, isolamento, terrorismo, corrupção, exploração e agressão verbal. O abuso emocional foi vivido por Iara também ao presenciar as agressões do avô paterno, “que batia na avó, sendo que esta não regia”, bem como ao presenciar as agressões verbais entre o pai e a mãe. No momento em que a criança testemunha a violência conjugal, também passa a ser vítima de violência, dado o dano psicológico que isso produz (De Antoni & Koller, 2000). Na adolescência, Iara admitiu que, “por carência emocional, e por interesse material, achando que já não era mais virgem em função do abuso sexual cometido pelo tio”, submeteu-se ao assédio sexual do dentista que consultava, em quem confiava, “vizinho de porta da mãe adotiva”. Retornando a morar com a mãe biológica, aos 17 anos, grávida, Iara disse “ter passado fome”. Embora as diversas formas de violência a que foi sujeita na família de origem biológica e na família substituta sejam facilmente destacadas por Iara, a violência física vivida na relação com a mãe adotiva é percebida a partir de diferentes posições. O castigo físico é entendido por Iara como forma de educar, ao mesmo tempo, diz que “não achava que esse era o jeito”. Identificam-se aí diferentes posições-sujeito em seu discurso de Iara, marcas de heterogeneidade mostrada (Authier-Revuz, 1982) que remetem à heterogeneidade constitutiva de sua subjetividade. A formação discursiva patriarcal desvela-se na medida em que o castigo físico como forma de disciplinamento é percebido por Iara como prática educativa legítima. 118 Outra posição-sujeito é mostrada através do discurso transverso de Iara, ao mostrar-se duvidosa quanto a esta forma ‘deseducativa de educar’. Revela-se nesta formação discursiva a naturalização e banalização da violência, que associa disciplina com castigo corporal em diversas práticas educativas (Narvaz & & Koller, 2004b). Esta associação contribui a diversas formas de submissão e de reprodução da violência, inclusive sexual, uma vez que a obediência das crianças e adolescentes ocorre também em relação aos abusos sexuais incestuosos (Felipe, 1999; Narvaz & Koller, 2004a). A análise do discurso de Iara evidenciou que a prescrição de obediência esteve presente em sua história de vida desde a infância. A análise destes dados sustenta a terceira proposição deste estudo em outro dos aspectos postulados, isto é, o de que, nas famílias abusivas, a obediência é fator que predispõe à submissão às situações de violência no contexto das relações familiares. Segundo Iara, desde pequena, aprendeu a obedecer. A prescrição da obediência é destaca em várias de suas falas, sendo que “a gente tinha que obedecer”, diz ela, referindo-se, inclusive, ao abuso sexual perpetrado pelo tio. Pesquisa de Fontes (1993) com crianças vítimas de abuso sexual identificou que a ênfase na obediência existente nas práticas educativas leva muitas crianças a consentir e a aceitar avanços sexuais dos adultos e a manter silêncio se um adulto proíbe a revelação. Fontes (1993) acredita que a ideologia da total obediência aos adultos, particularmente aos pais, e a larga aceitação de castigos corporais como disciplina contribuem à vitimização e à submissão ao abuso sexual. A aceitação geral de castigos corporais oportuniza aos agressores intimidar e ameaçar as crianças, que se submetem ao abuso e ao segredo em função do medo de serem fisicamente punidas por seus pais. Uma das participantes do estudo de Fontes (1993) relatou que, como ninguém interferia para parar as surras que ela levava do pai, também não interfeririam para parar as violações sexuais. A mãe e os vizinhos freqüentemente testemunhavam as surras do pai contra a menina entrevistada, mas, segundo esta, não intervinham porque um pai é considerado ‘autorizado’ a punir os filhos e filhas como ele pensa ser adequado. Articulam-se, assim, obediência e submissão a várias formas de violência, inclusive ao abuso sexual, o que se confirma nos relatos de Iara. Na história de vida de Iara, a família parece ter sido a matriz da internalização dos mecanismos de submissão, a mais funcional das agências psicológicas da sociedade (Adorno & Horkheimer, 1966; D’Incao, 1989; Reich, 1966). A família burguesa, através da reprodução dos valores de submissão e obediência, auxilia o Estado a formar indivíduos obedientes, passivos, conservadores e sem espontaneidade: “a família nuclear moderna, não é um abrigo do mundo impiedoso, mas um lugar de cálculo instrumental, egocêntrico e estratégico assim 119 como lugar de trocas geralmente exploradoras de serviço, trabalho, dinheiro e sexo, para não mencionar lugar, freqüentemente, de coerção e violência” (Benhabib & Cornell, 1987, p.171). A relação autoridade/família tem a função essencial de fixar, desde a infância, a necessidade do domínio e da dependência (Reich, 1966, 1998; Reis, 1985). A família enquanto instituição disciplinante das relações pais-filhos/as é descrita por Foucault (1979/2002): “Estes métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares já existiam, como os conventos, os exércitos e as oficinas. A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta um conjunto de instrumentos, de técnicas; é uma anatomia do poder, uma tecnologia. Pode ficar a cargo de instituições especializadas. As relações intrafamiliares, essencialmente as células pais-filhos se disciplinaram” (p. 118). A obediência aparece no discurso de Iara como aprendida na infância e reforçada, mais tarde, pela participação nos grupos da igreja. A mediação institucional da Igreja aparece no discurso de Iara como legitimadora da prescrição da obediência aprendida na família. Para Luthar (1999), crenças religiosas atuam como uma fonte de apoio, às quais as pessoas recorrem em momentos de angústia. Estudo desenvolvido por Cecconello (2003) encontrou que o envolvimento de pais com a religião e a comunidade religiosa pode atuar como um importante fator de proteção para o desempenho de práticas educativas eficazes em famílias pobres, produzindo resultados positivos em crianças e adolescentes. Já Yunes (2001) entende que a religião pode favorecer aspectos de acomodação e de aceitação a realidades adversas vividas pelas famílias, o que se constitui em fator de vulnerabilidade ao invés de ser fator de proteção que promova resiliência em famílias pobres. Nas vivências de Iara, os valores de obediência, veiculados tanto pela igreja quanto pelas famílias com as quais conviveu consistiram em fator de risco (Koller, 1999), uma vez que legitimaram várias formas de abuso. A igreja e a família aparecem na análise do discurso de Iara como mecanismos disciplinares e disciplinantes à submissão dos corpos e das subjetividades (Butler, 2000, 2004) às relações de violência. De acordo com Foucault (1975/2002, p. 175): “Há, na sociedade, uma ramificação dos mecanismos disciplinares, em que grupos religiosos e associações de beneficência desempenharam esse papel de disciplinamento das populações”. Esta política de coerções sobre o corpo e sobre a subjetividade das vítimas de violência implícita na violência física e na obediência é descrita por Foucault (1975/2002): “Forma-se uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação de seus gestos, de seus comportamentos. Uma anatomia política que é uma mecânica do poder: 120 define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, para que se operem como se quer. A disciplina fabrica corpos dóceis, submissos e exercitados; aumenta as forças do corpo em termos de utilidade econômica e diminui essas forças em termos de obediência; dissocia o poder do corpo. A coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. Essas operações se encontraram esparsas em instituições que se apóiam e convergem” (p. 119). As relações marcadas pela obediência e pela violência aparecem ao longo das gerações na história de vida de Iara que, vítima de violências em suas famílias na infância, parece reproduzir essa forma de relação com seus filhos e filhas. O filho Gabriel não pôde ser cuidado por Iara, que também não foi cuidada/criada por sua mãe biológica. As filhas de Iara também não puderem ser protegidas dos abusos do padrasto, tal qual Iara não foi protegida em sua infância dos abusos sexuais do tio e nem das outras formas de violências que sofreu. Assim como Iara não revelou o abuso sofrido em sua infância, também as filhas tiveram dificuldade de revelar o segredo imposto pelo abuso sofrido e, conforme Iara, “a Ana aguentava tudo quieta”. Iara sugere, ainda, ao relatar os abusos do avô paterno com suas filhas (tias de Iara), que também sua mãe possa ter sido abusada, “pois ela tinha muito medo que acontecesse isso comigo, vai ver ela foi abusada também”, menciona ela. Os resultados encontrados sustentam outro elemento postulado na terceira proposição deste estudo, ou seja, a hipótese da transmissão transgeracional de padrões aprendidos nas famílias abusivas, tanto de violência física quanto de violência sexual. Esta hipótese é enfatizada pela literatura (Azevedo & Guerra, 1989; Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Famularo & cols., 1994; Haz, Castillo & Aracena, 2003; Herman, 1991; Narvaz & Koller, 2004b). O risco de repetição da experiência de negligência e de educação severa na infância tem sido demonstrado em diversas investigações (Belsky, 1980; Ferrari, 2002; Patterson & Capaldi, 1991; Simons & Johnson, 1996; Simons, Whitbeck, Conger & Chyi-In, 1991). Pesquisas res por Haz, Castillo e Aracena (2003, p. 809) revelam “uma taxa de transmissão transgeracional de violência física de adultos maltratados em sua infância cerca de seis vezes maior que a taxa de violência intrafamiliar na população em geral”. Embora existam poucos achados acerca da questão da transmissão transgeracional da violência sexual, pesquisas (Amendola, 2004; Araújo, 2002; Correa, 2000; Fuks, 1998; Narvaz, 2002b, 2003; Narvaz & Koller, 2004a; Sattler, 1993, 1994) referem que muitas das mães das vítimas de incesto também foram abusadas na infância. Estas mães não receberam apoio de suas próprias mães, mostrando-se, na vida adulta, dependentes, emocional e/ou economicamente dos companheiros. McCloskey e Bailey (2000) afirmam que meninas cujas mães foram sexualmente abusadas têm 3,6 mais chances de serem também sexualmente vitimizadas. 121 A transmissão da herança psíquica transgeracional tem no mecanismo de identificação a base para o processo de subjetivação do indivíduo, na qual “o Eu é constituído pelo discurso do meio social, mediatizado por um meio psíquico organizado pelo desejo e pelo discurso dos pais” (Violante, 1997, p. 58). O processo de transmissão transgeracional baseia-se no pressuposto de que todo o indivíduo, ao nascer, se insere em uma história preexistente, da qual ele é herdeiro e prisioneiro. O indivíduo não pode inventar totalmente sua própria história, uma vez que se insere naquela que lhe foi delegada. Sua identidade será construída a partir deste legado e a partir do lugar que lhe foi designado em seu grupo familiar e social (Andolfi & Angelo, 1989; Correa, 2000; Groissman, 1996). A perspectiva transgeracional no desenvolvimento do indivíduo e da família propõe que, em todas as famílias, há uma transmissão, de uma geração à outra, de padrões que configuram identidades, comportamentos, sentimentos e percepções (Eiguer, 1988). As experiências do sujeito, em especial as vivências em sua família de origem, vão engendrar os significados que serão atribuídos às suas experiências e irão configurar um ‘mapa de mundo’ (Elkaim, 1990). A transmissão transgeracional deve ser entendida como aprendizagem de padrões que ocorre através da socialização (Narvaz & Koller, 2004a), não estando presentes, necessariamente, elementos biológicos/genéticos nesta dinâmica. Compreender os legados familiares, sobretudo no que se referem a modos apreendidos e aprendidos de produção de relações violentas, não significa, absolutamente, justificar a violência e a não-proteção das famílias abusivas, em especial das mulheres-mães das vítimas de incesto. Além disso, é fundamental destacar que a compreensão do fenômeno da transmissão transgeracional violência (Narvaz, 2002b, 2003; Narvaz & Koller, 2004a) não está assentada em uma perspectiva linear, causal ou determinista. Esta tem sido uma das críticas (ver Azambuja, 2004; Gomes e cols., 2002) à hipótese da transmissão transgeracional no que se refere à explicação para os maus tratos na infância. Este parece ser um aspecto controverso na literatura, uma vez que estudos recentes (Grossi, Casanova & Starosta, 2004) identificaram a repetição do ciclo da violência na vida adulta em um terço das crianças que sofrem violência. Apesar da incidência da repetição ser um fator muito presente (Belsky, 1980; Ferrari, 2002; Patterson & Capaldi, 1991; Simons & Johnson, 1996; Simons, Whitbeck, Conger & Chyi-In, 1991) na história de vida de homens e mulheres que sofreram violência em suas infâncias, inclusive abuso sexual, são muitos e heterogêneos os processos de subjetivação produzidos no percurso de elaboração dessas experiências (Araújo, 1996, 2002). Como explica Elkaim (1990): 122 “A história tal como a concebo não é linear nem tampouco causal. A vida de uma pessoa não está, para mim, submetida a uma repetição mecânica que tenha por origem o traumatismo do passado. Os elementos históricos são necessários mas não suficientes para explicar a aparição de problemas no cotidiano (....). O destino de um sistema pode ser totalmente modificado se uma possibilidade de amplificação é dada a um elemento aparentemente anódino” (p. 15). Padrões aprendidos são produzidos e reproduzidos através da mediação discursiva e institucional da família, da escola, do mundo do trabalho e da mídia, entre outras instâncias, que ocorrem no cotidiano concreto das relações sociais. Tais relações estão inscritas em um determinado contexto, que é sempre histórico e construído, podendo, assim, ser (des)construído (Narvaz & Koller, 2004a, 2004b). Uma vez que “homens e mulheres reproduzem a ordem social e cultural na qual se engendram, podendo reelaborá-la e recriá-la dentro de contextos e conjunturas específicas” (Fonseca, 2000a, p. 18), em cada repetição, há a possibilidade de novas reconfigurações das experiências vividas, que podem ser invertidas e subvertidas (Butler, 2000, 2003). A partir da apropriação e da reflexão sobre os padrões de relação que têm (re)produzido, os sujeitos podem (des)naturalizar e (des)construir formas de relação que se ‘impunham’ como profecias, mitos ou missões em suas matrizes familiares (Andolfi & Angelo, 1998; Groissman, 1996). Embora não exista um vínculo causal direto entre o passado e o presente, a história passada está inscrita no presente, por isso, elementos históricos não podem ser subestimados (Elkaim, 1990). A articulação do psíquico ao social inscrita na transmissão transgeracional de padrões aprendidos de relação, entre eles, de padrões abusivos, é expressa por Violante (1997): “A família não pode proteger a criança contra as injunções hostis do meio social durante muito tempo. Ainda que os mais próximos sejam os mais importantes na formação de nosso psiquismo, os fatores sociais, ao se presentificarem no ambiente psíquico familiar e no meio circundante, desempenham papel fundamental na constituição do sujeito, ou melhor, nas suas possíveis ‘escolhas’, no seu projeto identificatório” (p. 59). Iara não menciona em sua história de vida um adequado modelo de proteção com o qual pudesse se identificar (Levisky, 1997). Iara não foi protegida, quer pelas famílias com as quais conviveu, quer pelo contexto comunitário e social no qual sua subjetividade foi engendrada. O processo de subjetivação (Foucault, 1995), através do qual Iara constitui-se enquanto sujeito, foi (e ainda é) marcado por várias formas de violência. Inscrevem-se, na formação de sua subjetividade, todas as categorias e formas de violência descritas por Libório e Sousa (2004). Alguns dos efeitos produzidos na subjetividade de Iara, em muitas situações, aparecem como efeitos de assujeitamento (Foucault, 1995), de anulação, de anestesiamento subjetivo, de paralisia e de anomia (Banchs, 1995; Corsi, 2003; Sawaia, 1995). Tais efeitos 123 talvez tenham comprometido suas capacidades tanto afetivas e cognitivas quanto seu potencial para ações afirmativas no enfrentamento das violências impostas a ela e às filhas (Koller, 1999; Narvaz & Koller, 2004a). A análise dos dados sugere que a capacidade de ação protetiva de Iara ficou comprometida, daí, talvez, a dificuldade de cuidar-se, tanto a si, quanto a seus filhos/as. A falta de cuidados e de proteção aparece no discurso de Iara em vários momentos na entrevista, referindo-se tanto a ela própria “querer se cuidar mais”, quanto à tristeza e à culpa por não ter criado e cuidado de Gabriel e por estar afastada de Ana (aspectos discutidos na segunda proposição deste estudo). Em especial a filha Ana, a primogênita de Iara, foi vítima de várias formas de violência, tais como negligência, abusos físicos e emocionais. Ana foi vítima de abuso sexual não só pelo padrasto, mas também por Iara, na medida em que esta participou do abuso sexual junto com o companheiro José. A submissão de Iara a esta forma de violência sugere os estados de paralisia (Zuwick, 2001) e de submissão aos rituais e às manipulações do perpetrador da violência (Furniss, 1993; Góngora, 2000; Hirigoyen, 2000; Martín, 2000), associados a mecanismos hipnóticos (Perrone & Nanini, 1998) e à lavagem cerebral (Sluski, 1996). Estes estados são encontrados no relato de Thomas (1988), uma sobrevivente de incesto perpetrado pelo pai. Segundo ela, seus gestos eram comandados pelo pai, como se ela já não mais existisse, como se fosse um fantasma cujos comandos do cérebro haviam sido roubados pelo pai. A dificuldade de Iara de dizer não aos abusos sofrido, tanto por ela quanto pelas filhas, principalmente pela filha Ana, é representada pela fala de Thomas (1988, p. 144): “Já não sei mais dizer não a um homem”. Estes elementos sustentam a terceira proposição deste estudo no que se refere à falta de modelo de família protetiva das mulheres-mães das vítimas de incesto. Tal experiência de vitimização e de não proteção na infância destas mulheres parece contribuir para a dificuldade de, na vida adulta, protegerem suas filhas, uma vez que também elas não foram protegidas dos abusos, inclusive sexuais, vividos em sua infância. Tais vivências foram encontradas no relato de nossa participante, provavelmente constituindo-se em fatores que engendraram uma das posições-sujeito (Pêcheux, 1969/1983) ocupadas por Iara em sua história de vida, ou seja, a de submissão diante da violência sexual cometida contra suas filhas. Os resultados encontrados nesta investigação apontam para a articulação de vários fatores e processos inscritos na dinâmica da submissão às violências sofridas por Iara e à dinâmica da não- proteção das filhas, em especial de Ana. Dentre esses fatores e processos destacam-se as violências sofridas na infância e a falta de um modelo de família e de mãe protetivas ou de um cuidador não-abusivo capaz de proporcionar apoio emocional e adequado 124 modelo de interação social nos casos de violência doméstica (Muller, Goebel-Fabri, Diamond & Dinklage, 2002). A falta destes modelos talvez esteja associada, na história de vida de Iara, à repetição da experiência de negligência e de educação abusiva vivenciadas e sua infância, aspecto encontrado em várias pesquisas (Belsky, 1980; Ferrari, 2002; Patterson & Capaldi, 1991; Simons & Johnson, 1996; Simons, Whitbeck, Conger & Chyi-In, 1991). O risco de repetição é postulado aqui através da hipótese da transmissão transgeracional de padrões aprendidos, tanto de violência física quanto de violência sexual, tal como descrito em trabalhos anteriores (Narvaz, 2002a, 2002b, 2003; Narvaz & Koller, 2004a, 2004b). Os resultados apontam, ainda, que as desigualdades de gênero, de classe social e de etnia, inscritos nas formações sociais patriarcais e capitalistas modernas contemporâneas (Pateman, 1993; Saffioti, 1979, 1988, 2001; Toledo, 2003), são fatores e processos presentes na dinâmica da violência sexual, da qual Iara e suas filhas foram vítimas. Articulam-se, dessa forma, diversos elementos que parecem ter contribuído à posição de assujeitamento e de submissão às violências sofridas pelas mulheres, ao longo das gerações, da família pesquisada. A história de vida de Iara remete, assim, à subordinação e à dominação histórica do gênero feminino (Cardoso, 1997b; Narvaz & Koller, 2004a, Strey, 2004). A transmissão transgeracional da violência, em especial da violência sexual contra o gênero feminino, é uma transmissão histórica de padrões abusivos contra mulheres e meninas. A violência, enquanto forma de relação que pressupõe dominação, expropriação e abuso de poder (Corsi, 2003; Foucault, 1995; Guareschi, 2004b; Ravazzola, 1997, 1999) é uma forma histórica de relação. Concebida como uma violação dos direitos humanos (Dornelles, 1989), em especial de grupos historicamente oprimidos, curiosamente chamados ‘minorias’, aponta Guareschi (20004 a), a violência tem sido reproduzida ao longo das gerações. As principais vítimas da violência sexual, são as meninas e as mulheres (Browne & Finkelhor, 1986; Finkelhor, 1994; Koller; Nunes, 1999; Werba e Strey, 2001). Tais violações são violências de gênero e violação dos direitos humanos das meninas e das mulheres (Negrão, 2002, 2004; Oliveira, 2004; Strey & Werba, 2001). A violência de gênero é comparável, segundo Werba (2002), à tortura. A violação sexual foi, inclusive, uma das técnicas de tortura utilizada contra as mulheres por ocasião da ditadura no Brasil, ao lado da humilhação e da degradação da subjetividade feminina (Coimbra, 2004). A transmissão transgeracional da violência sexual talvez possa, dentro desta linha de argumentação, ser renomeada. À semelhança das proposições alternativas oferecidas por Guareschi (2004 a, 2004b) a diversas expressões, tais como formações sociais e modos de produção, em substituições a termos classicamente utilizados como sociedade e sistemas, a 125 expressão ‘transmissão transgeracional da violência sexual’ já foi re como ‘transmissão transgeracional da violência de gênero’ (ver Narvaz & Koller, 2004a). A fim de eliminar quaisquer efeitos de linguagem que possam atribuir relações causais e deterministas ao polissêmico fenômeno da transmissão transgeracional, intergeracional (Azevedo & Guerra, 1989; McCloskey & Bailey, 2000) ou multigeracional (Habigzang & Caminha, 2004) da violência, proponho, neste estudo, a expressão “transmissão transgeracional histórica da violência”. O deslocamento teórico implícito nesse construto tem a finalidade de ampliar a visibilidade dos processos históricos imbricados em sua conceituação. O deslocamento conceitual proposto fundamenta-se na constatação de que, ao longo da história, a violência de gênero tem sido reproduzida através de gerações. As gerações parecem ter esquecido que os modos de relação entre os humanos e a institucionalização de papéis (Berger & Luckmann,1966) daí advindos foram construídos, produzidos (Guareschi, 2004 a, 2004b), ou inventados. Ao gênero feminino é prescrito, ao longo da história, a obediência e a submissão aos desejos masculinos. Tais prescrições são encontradas desde a filosofia antiga até os pensadores dito ‘iluministas’ (Arendt, 1998, 2003; Carvalho, 2002; Matos, 2002; Menezes, 2002; Tiburi, 2002). Na atualidade, investigações (Falcke & Wagner, 2000; Spina, Morita, Camargo & Cerveny, 1979; Szymanski, 1992, 1994, 1997, 1998; Wagner & Bandeira, 1996; Zamberlan, Camargo & Biasoli-Alves, 1997) indicam a permanência de estereótipos sexistas em diversas configurações familiares brasileiras que correspondem ao discurso patriarcal. A prescrição da obediência e da submissão às mulheres e às crianças, em especial às meninas, foi amplamente historiada (D’Ávila Neto, 1994; Del Priore, 2001; Diamond & Quinby, 1998; D’Incao,1989; Muraro, 1997; Rago, 1997, 2001; Soihet, 1997; Strey, 1988, 2000, 2001). Valores que prescrevem a hierarquia, a obediência e a submissão do feminino ao masculino (enquanto categoria social) foram identificados em pesquisas recentes (Amendola, 2004; Carrasco, 2003; Cardoso, 1997 a, 1997b; Cecconello, 2003; De Antoni & Koller, 2000; Meneghel & cols., 2003) que envolveram famílias, mulheres e meninas brasileiras vítimas de violências. Sustenta-se, também desta forma, a hipótese da transmissão transgeracional da violência sexual ou transmissão transgeracional da violência de gênero (Narvaz & Koller, 2004a), uma vez que as vítimas preferenciais da violência sexual pertencem ao gênero feminino (Werba & Strey, 2001), o que se confirmou em nossa investigação. Uma vez que uma fala é um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social (Brandão, 1993), as falas de Iara representam não só sua história de vida individual, mas a história de muitas mulheres brasileiras e pobres vítimas de várias formas de violência. Como 126 refere Matos (2002, p.111) “A história coletiva e individual são inseparáveis (...). No instante atual se inscreve o passado mais remoto, assim como a cicatriz individual é histórica”. Feridas de infância explicitamente mostradas por Iara em suas falas parecem continuar a produzir sofrimento em sua subjetividade. Iara chora na entrevista ao relembrar diversas passagens de sua vida, bem como sua entonação de voz e sua expressão facial denotam a tristeza da menina “que até hoje espera a boneca prometida”, que diz só “ter lembranças ruins da infância, e que a pior delas era apanhar por qualquer coisa”. Cicatrizes inscritas no corpo e na subjetividade de uma mulher que um dia também foi criança e que lembra do “Natal que não teve, dos pelegos onde dormia e que era tratada como escrava, não como pessoa, a neguinha, a suja”. Além da violência de gênero (Werba & Strey, 2001), Iara foi (ainda é) vítima das desigualdades de classe e de etnia que configuram a violência social e estrutural (Minayo, 1994; Odalia, 1983) das famílias, em especial das mulheres (Prá, 2001) que vivem na miséria afetiva decorrente da miséria econômica (Hutz, Koller & Bandeira, 1996). As violências sofridas na infância não são apenas lembranças ruins para Iara. São realidades concretas que continuam a fazer parte do seu cotidiano. Iara seguiu sendo submetida a várias formas de violência perpetrada por seus companheiros, homens violentos e abusadores de álcool. Iara foi vítima de abuso emocional e de violência física em quase todas as relações conjugais que estabeleceu. Iara foi, ainda, vítima de violência sexual por José, abusador de suas filhas, “que a forçava a ter relações sexuais com ele”. As relações desiguais de poder que marcaram os relacionamentos conjugais de Iara podem ser identificadas também na obediência aos companheiros, “que decidiam tudo, e ela obedecia”. Segundo Iara, “se o homem for um homem de caráter, deve ser obedecido”. Submeteu-se, assim, às determinações dos companheiros quanto a trabalhar ou não, e aos desejos e fantasias sexuais do abusador de suas filhas. Encontram-se, no entanto, contradições em seu discurso. Ora diz que “a mulher não tem que obedecer ao marido, pois ninguém é dono de ninguém”, ora diz “ser uma mulher obediente”, ao referir-se à relação com Aquiles, o atual companheiro, que determina que ela trabalhe, mesmo que Iara não concorde muito com isso (ver discussão desses aspectos sobre a relação de Iara com a questão do trabalho na segunda proposição deste estudo). Os ditames patriarcais que prescreveram à Iara a obediência à família na infância, parecem ter engendrado em sua subjetividade a idéia de que, desde menina, “não tinha direitos, sem defesa nenhuma”, comenta ela, ao referir-se aos abusos sofridos na família substituta. As violências sofridas por Iara como vítima e como testemunha da violência na infância (De Antoni & Koller, 2000; Koller, 1999) caracterizam a socialização violenta e 127 autoritária da família patriarcal burguesa, matriz de submissão e de passividade (Reich, 1966, 1933/1998; Reis, 1985). Essa socialização talvez tenha contribuído para a naturalização da violência nas relações conjugais vividas por Iara. A naturalização da violência, não só do abuso físico enquanto forma de disciplinamento (Narvaz & Koller, 2004b), mas também dos abusos conjugais evidencia-se quando Iara conta, sem nenhum tom de questionamento em sua voz, que “o vô batia na vó, mas ela não fazia nada”. À semelhança da avó, Iara foi vítima de violência física conjugal e, mesmo tentando separar-se dos companheiros, voltava a conviver com os mesmos. O ciclo da violência conjugal doméstica tem sido descrito em vários trabalhos (Grossi, 2001; Gregori, 1993; Walker, 1989). As tentativas de separação do companheiro violento e a reconstituição da família foram identificadas como formas de resistência à violência conjugal em pesquisas com mulheres vítimas de violência (Camargo, 1998; Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Fontana & Santos, 2001; Meneghel & cols., 2003). Contudo, muitas destas mulheres agredidas por seus companheiros, mesmo após tentativas de separação, retornam a conviver com os mesmos ou, ainda, a violência volta a repetir-se com um novo companheiro. Estes elementos confirmam-se também aqui. Iara, mesmo separandose dos companheiros, voltava a conviver com eles e, ao estabelecer uma nova relação, a violência conjugal continuava presente em seu cotidiano. Segundo Koller (1999), conviver com a violência imposta pela socialização desigual e sexista de gênero desde tenra idade faz com que as práticas abusivas sejam naturalizadas e banalizadas. Essa aprendizagem acontece a partir da vivência de relações abusivas, como ator, vítima e testemunha da violência nas relações familiares e sociais (Koller, 1999). Testemunhar violência de forma reiterada pode conduzir a crenças de que a violência é um componente ‘normal’ em uma relação conjugal, de que não há outros tipos possíveis de relação entre homens e mulheres e que estas devem se submeter. Mulheres que sofrem violência conjugal na vida adulta apresentam maior probabilidade de haver testemunhado violência doméstica em suas infâncias. Os papéis estereotipados de gênero veiculados pela cultura através da família tornam invisível tanto a produção e a reprodução da subordinação feminina (forma de violência simbólica e de gênero), quanto a violência física. Estas violências são naturalizadas e reificadas (Berger & Luckmann, 1966). Institucionalizadas pela cultura sexista através da prescrição de papéis sociais e familiares, a regra da subordinação e da obediência são absorvidas como fazendo parte da dinâmica familiar e como algo que não poderia ser evitado (Cardoso, 1997a, 1997b; Giberti & Fernandez, 1989; Koller, 1999; Strey, 2000). Além disso, a naturalização e a institucionalização das relações violentas facilita a passividade e a submissão das mulheres, das crianças e adolescentes às situações de violência 128 sofridas, que sequer são identificadas como tal (Ravazzola, 1997, 1999). Experiências reiteradas de violência de baixa e média intensidade, tais como a “violência da socialização cotidiana e a lavagem cerebral” (Sluski, 1996, p. 236), geram distorções cognitivas através das quais as vítimas incorporam os valores dos opressores de forma não crítica, o que remete ao fenômeno da violência sutil, invisível e simbólica (Bourdieu, 1999) inscrita e naturalizada no cotidiano de Iara. A submissão diante da violência e a permanência das mulheres em relações abusivas têm sido interpretadas como consentimento, aquiescência ou passividade. A aparente passividade das mulheres diante da violência é oriunda da paralisia, do medo e do pânico do agressor, assinala Zuwick (2001). Iara explicita que, em especial José, o quarto companheiro, abusador de suas filhas, “era um homem violento, ex-presidiário, capaz de tudo”, tendo ameaçado Iara de morte. Evidencia-se aqui que a posição de submissão de uma mulher-mãe de vítimas de incesto está associada a repetidas vivências de violência ao longo de sua historia de vida, relações violentas assentadas em ditames patriarcais que prescrevem, há séculos, a obediência e a submissão das mulheres aos desejos e abusos masculinos através da violência e do medo. As bases da violência intrafamiliar nas crenças instituídas no sistema interrelacional e transgeracional familiar são denunciadas por Azevedo e Guerra (1989): “Entre os deveres sagrados da esposa está a obediência total ao marido (...), que a usa para satisfazer seus desejos sexuais de acordo com suas necessidades (...). Os elementos mais vulneráveis dentro da casa são as mulheres que, as quais, por ignorância, medo e submissão à autoridade não ousam protestar” (p. 60). Há teorias (Gregori, 1993; Grossi, 1989) que defendem, no entanto, noções como as da circularidade e da complementaridade de papéis entre homens e mulheres sugerindo, explícita ou implicitamente, que as mulheres são responsáveis ou mesmo culpadas pelas violências que sofrem. Trabalhos que situam as mulheres como cúmplices de seus agressores (Gregori, 2003; Grossi, 2001) são alvo de críticas (ver Saffioti, 2001) e revelam ambigüidades, nos quais “a posição das mulheres oscila entre ser passivo, coisa e cúmplice do agressor” (Saffioti, 2001, p.127). Tais teorias remetem aos discursos científicos, incorporados pelos discursos sociais (Fonseca, 2000b; Possati & Dias, 2000; Strey, 2000), de culpabilização e de provocação feminina (Narvaz, 2004 a; Ravazzola, 1997, 1999). Discursos que atribuem às mulheres a provocação de situações de violência como metáfora comunicacional (Gregori, 2003), ou a conivência, mesmo que inconsciente (Grossi, 2001) na produção de relações violentas, parecem desconsiderar que, nas situações de violência, não se pode atribuir igual responsabilidade a pessoas que têm diferentes percentuais de poder em 129 uma relação. A consideração das diferenças de poder em relações de violência foi destacada por pesquisadoras e terapeutas feministas de famílias e de casais a partir de seus estudos e de suas práticas clínicas (Burck & Daniel, 1994; Goldner, 1985, 1988; Hare-Mustin, 1987; McConaghy & Cottone, 1988; Narvaz & Koller, 2004a; Perelberg, 1994; Werba, 2004; Werba & Strey, 2001). Cabe retomar a sistematização feita por Foucault (1995, 1999) acerca da diferença entre relações de poder e de dominação. Os abusos não são relações de poder, mas de dominação. Nos abusos, o poder está congelado, vertical, estático e não há possibilidade de inversão ou de resistência, uma vez que a resistência só é real para sujeitos livres (Foucault, 1995, 1979/2002). Apesar de certa negligência aos aspectos de gênero nos ditos e nos escritos de Foucault (1999, 1975/2002), crítica a que seu trabalho tem sido submetido (Diamond & Quinby, 1998; Narvaz & Nardi, no prelo), estas noções são importantes ferramentas para a problematização da circularidade e da complementaridade das relações de violência entre homens e mulheres, tais como as relações que se desvelam ao longo da história de vida de Iara. Entretanto, “a tese de Foucault deve ser situada dentro dos seus devidos limites: o homem condicionado, adestrado pelos poderes, é o privilegiado, o europeu. Não é o colonizado, não é o proletário do Terceiro Mundo (assim como não era o proletário europeu do Século XIX). Estes, o poder não pensa sequer em domesticar: domina-os – e muito de cima” (Lebrun, 2003, p. 21-22). A dominação se dá, então, de forma assimétrica, desigual, linear e vertical. A metáfora do senhor e do escravo, ou do prisioneiro e do carcereiro, encontradas em Hegel e Nietzche oferece um exemplo do equívoco a que a circularidade do poder pode conduzir. Tal noção de circularidade confunde o entendimento das relações assimétricas, atribuindo complementaridade a pessoas que não a tem (Burck & Daniel, 1994; Hare-Mustin, 1987; Ravazzola,1998, 1999). Ao salientar o "poder dos fracos" nas relações complementares são mantidos os abusos de poder fora de foco, alheios à consciência crítica. Embora controvertida, a noção de "poder dos fracos" parece interessante para compreendermos os modos pelos quais às mulheres, em diferentes sociedades, é oferecido o exercício do poder apenas na esfera doméstica e como elas são socializadas para isto. Faz-se necessário considerar que a noção circular de poder e a idéia de Focault de que “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta” (Foucault, 1995, p. 248) parece servir aos interesses de alguns mais do que de outros (Goldner, 1985,1988; Jones, 1994; Perelberg, 1994). Assim, para “compreender o porquê de a mulher 130 permanecer com quem a agride, torna-se necessário desvelar essa realidade oculta que oprime cotidianamente a mulher e a mantém no pólo da subordinação” (Cardoso, 1997b, p.136). No discurso de Iara evidencia-se a prescrição patriarcal de obediência aos pais, na infância, e aos homens, na vida adulta. Essa prescrição aparece naturalizada em suas falas ao dizer “que se um homem for de caráter, tem que obedecer” e que “ela é uma mulher obediente” ao atual companheiro. A análise destes dados permite concluir que, no engendramento da posição de submissão de Iara às violências sofridas, as questões da obediência, do poder patriarcal e da reprodução de padrões aprendidos desde a infância tiveram papel importante. Além destes fatores, a presença de alcoolismo na dinâmica das relações violentas confirma-se no relato de Iara. Segundo ela, os companheiros que faziam uso abusivo de álcool (Paulo, Pedro e José) eram também violentos. Paulo, o primeiro companheiro, “era bom, mas ao mesmo tempo me dava, já queria agredir, quando bebia”; Pedro, o segundo companheiro, “sem a bebida era maravilhoso, mas se bebia, estragava, eu era tratada à base de cachorro, não podia abrir a boca”; e José, o quarto companheiro, que abusou de Ana e de Vanessa, “esse por qualquer coisa batia, agredia, me cortou até com um facão e dava na guria também, na Ana”, menciona Iara. O álcool desencadeava situações de violência, em especial se “eu reagisse, tinha que ficar quieta”, comenta ela. João, o terceiro companheiro, “este era bom para mim, eu que batia nele, eu que era danada”, diz ela. Este companheiro, segundo Iara, não a agredia fisicamente, e não fazia uso abusivo do álcool. Estes resultados dão sustentação à associação entre alcoolismo e violência conjugal. O alcoolismo tem sido descrito na literatura (Bolger, Thomas & Eckenrode, 1997; Kashani & Allan, 1998) como uma variável relacionada com a violência conjugal. Estudo recente de Cecconello (2003) com famílias pobres encontrou que o consumo de álcool pode desencadear conflitos e discussões, ocasionando situações de violência. Da mesma forma, algumas pessoas utilizam o álcool como uma permissão ou desculpa para justificarem seu comportamento abusivo, o que também foi encontrado neste estudo. Iara atribui ao álcool a violência dos companheiros, enfatizando, em algumas situações, que “ele era bom, mas se bebia estragava”. Também a participação de Iara no abuso sexual de Ana é justificada pelo uso do álcool. Conforme relato de Iara, “José a embriagou para que ela visse como Ana permitia o abuso”. Para Kashani e Allan (1998), o alcoolismo é uma variável intimamente relacionada à violência conjugal. Já Bolger, Thomas e Eckenrode (1997) encontraram que a maioria das mães que sofre violência conjugal maltrata seus filhos, do que se depreende a relação indireta entre alcoolismo e abusos infantis. A associação entre alcoolismo, violência conjugal e incesto é descrita por Bass e Davis (1988), cuja estimativa é a de que cinqüenta por 131 cento das vítimas de incesto e 74% das mulheres de famílias alcoólicas provêm de lares alcoólicos, sendo física, sexual e emocionalmente abusadas, o que se confirma aqui. Iara também vem de um lar em que o avô e o pai eram abusadores de álcool, sendo que o avô era violento com a avó. Já quanto ao pai, Iara diz: “não lembro se ele batia na mãe, só lembro que eles brigavam muito, discutiam”. Esse fato, de toda forma, constitui-se em testemunho de violência verbal, o que também é uma forma de violência contra as crianças (De Antoni & Koller, 2000). A associação entre violência conjugal, alcoolismo e permanência das mulheres em relações violentas tem sido descrita na literatura (Cardoso, 1997a, 1997b; Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Meneghel & cols., 2003). Nascimento e Justo (2000) encontraram que o principal motivo que leva o indivíduo a utilizar o álcool é a necessidade de esquecer problemas, principalmente problemas afetivos como a infidelidade da mulher na relação conjugal. Isto sugere, mais uma vez, a responsabilização da figura feminina pelo comportamento abusivo masculino, no caso, pelo abuso do álcool pelo parceiro. A relação entre alcoolismo e violência é, entretanto, tema controverso, sendo questionada por Gomes e colaboradores (2002). Em sua experiência com homens agressores e perpetradores de incesto com suas filhas Madanes (1987) conclui que não se pode atribuir ao alcoolismo a explicação para a violência, alertando contra a associação indiscriminada entre alcoolismo e incesto. Essas problematizações sobre alcoolismo e violência remetem à questão do controle (ou descontrole) das emoções e dos comportamentos das pessoas que abusam do álcool. Nas falas de Iara, o alcoolismo parece justificar e atenuar comportamentos abusivos, tanto dos companheiros quanto o seu próprio. Em seu relato, parece natural e esperado que, alcoolizadas, as pessoas cometam atos abusivos. Estas vivências talvez tenham sido naturalizadas por Iara a partir da convivência, desde a infância, com o pai e com o avô, que eram abusadores de álcool e, na vida adulta, com os companheiros. Outros aspectos podem ser entendidos como violência e relacionados ao alcoolismo, tais como os elementos encontrados nas investigações de Cecconello (2003) e Yunes (2001). Essas investigações com famílias em situação de vulnerabilidade revelaram que o alcoolismo do homem-pai-padrasto sobrecarrega as mulheres-mães na família. Tal sobrecarga é decorrente do desemprego do homem-pai gerado pelo alcoolismo, o que obriga as mulheres esposas de alcoolistas a prover sozinhas a família, encontrando-se, muitas vezes, em situação de pobreza. Além disso, há a sobrecarga emocional das mulheres de alcoolistas, uma vez que o apoio conjugal e parental fica inviabilizado ou, no mínimo, empobrecido. O alcoolismo traz importantes prejuízos ao desenvolvimento da família, que fica empobrecida em suas relações 132 afetivas e tem sua vida limitada e “controlada” pelo membro alcoólico. Investigação (ver Steinglass, 1993), sobre o impacto do alcoolismo na família com uma amostra de trinta e um alcoólicos e seus cônjuges, revelou que o impacto psicológico do alcoolismo é muito maior para os membros não alcoolistas da família do que para os que bebem. O controle do membro alcoólico sobre a família é evidenciado no comportamento de João, o quarto companheiro, violento com Iara e abusador de suas filhas: “por ele ser um cara mau, né, tinha todo o controle...da nossa vida”. Em outra fala, Iara explicita as ameaças de morte feitas por José e o medo dela e das filhas, pois “ele era capaz de tudo, já tinha sido preso por assalto à mão armada”. Desvela-se aí, novamente, a questão do poder masculino patriarcal nas famílias abusivas e incestuosas. Alcoolismo, violência e incesto aparecem articulados, na análise do discurso de Iara, à formação discursiva patriarcal. Nas formações sociais patriarcais os homens têm o poder de controlar as mulheres, de dispor de suas vidas e de seus corpos, tais como os senhores feudais dispunham da vida dos/das filhos/as, podendo vendê-los como escravos/as e tendo o direito de vida e de morte sobre a mulher e os filhos (Engles, 1884/1964; Osório, 1997; Prado, 1991). Reis e soberanos das antigas formações sociais eram os proprietários do corpo de um condenado, que se “tornava coisa do rei, sobre o qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder” (Foucault, 1975/2002, p. 91). Talvez a história da apropriação dos senhores feudais, dos reis e dos soberanos sobre os corpos e as vidas de suas famílias e sobre os destinos dos condenados possa ser metaforicamente reeditada no controle dos corpos das mulheres e das meninas, sobretudo nos casos de violência e de incesto. A gênese da violência contra a mulher, a rígida divisão dos papéis sexuais e o controle sobre seus corpos têm sido atribuídos ao patriarcado e à família monogâmica burguesa (Engels, 1884/1964; Lerner, 1999; Millet, 1970; Pateman, 1993; Saffioti, 1979, 1988, 1992). Apesar das problematizações feitas ao patriarcado (ver Aguiar, 1997), a tese de Pateman (1993) sobre a permanência de um ‘patriarcado moderno’ encontra sustentação nesta investigação. A disponibilidade dos corpos das mulheres e das meninas aos desejos masculinos encontra-se ao longo das gerações da família de Iara. Os homens aparecem, nas falas de Iara, como seres hiper-sexuais que não podem se controlar, devendo ser atendidos em todas suas necessidades, o que é descrito por Ravazzola (1997, 1999) como o mito da hiper-sexualidade masculina. Iara menciona ter atendido às fantasias sexuais de José, o companheiro abusador das filhas, “de ter relações com nós duas, tipo casais trocados”. Em outro momento, relata que foi forçada por José a ter relações sexuais com ele. Segundo ela, na medida em que sempre atendeu às necessidades sexuais de José, “não tinha motivo para ele abusar da filha 133 nem mesmo para ele ficar falando de outras mulheres, para fazer ciúmes”. Como se o não cumprimento com os deveres de esposa na satisfação das necessidades sexuais do parceiro pudesse justificar diversas formas de violência, em especial o adultério ou o abuso sexual da filha. Tanto a figura do avô quanto a do tio paterno são claramente associadas à hipersexualidade masculina. Na percepção de Iara, o avô era “um abusador nato, que abusou de todas as filhas, menos de uma, que fugiu com o namorado”, enquanto o tio “era um excluído da família abusou de mim e de outras também”. Iara menciona que José havia traído a primeira mulher, como se isso fosse natural e esperado para os homens. Os abusos e a infidelidade masculina são banalizados e naturalizados, como se fossem constitutivos da sexualidade masculina, aos quais as mulheres devem se submeter. Essa associação entre abuso, poder e gênero já havia sido apontada por Foucault (Bravo, 1994): “O poder e o domínio masculino favorecem estilos de relação de imposição sobre os mais fracos. Os abusos e suas conseqüências (como a prostituição) seriam uma reprodução do funcionamento de sistemas humanos macrossociais, onde os homens e os adultos, aproveitando-se abusivamente do seu poder, utilizam as crianças e as mulheres para satisfazer suas necessidades e resolver seus conflitos” (p. 144). No discurso de Iara, há uma maior valorização da figura masculina, percebida como salvadora e protetora, o que corresponde aos ditames patriarcais da supremacia masculina desde o início dos tempos, como diz Bourdieu (1999), quando o universo foi dividido de forma binária, estabelecendo-se às “coisas sexuadas masculinas” um maior valor. Tal valorização remete aos discursos presentes nos contos de fadas (Bettellheim, 1997), nos quais as mulheres são salvas pelos príncipes. Por meio do romantismo da cavalaria, conta Strey (2004), constrói-se uma imagem frágil e indefesa da mulher, como na imagem romântica das ‘damas’ à espera do herói da cavalaria. O pai e o irmão de Iara, à semelhança dos príncipes ou do caçador dos contos de fada (ver Bettellheim, 1997), são percebidos como figuras que poderiam defendê-la dos abusos masculinos. O pai de sua filha Vanessa é quem a acolheu na infância da ‘orfandade’ e a adotou e é quem a protege de José na atualidade. Parece que Aquiles foi o “salvador” de Iara, uma vez que ele é quem define a saída de José de casa. Iara menciona que Aquiles “não queria que José ficasse vendo nós ter relação e que ele queria ficar comigo, que não era direito o jeito que o José me tratava, que ele queria me assumir, aí o José foi embora”. O namorado da tia paterna foi o “salvador” , que “fugiu com a tia antes que o pai pegasse, um tarado nato”, o avô de Iara. O dentista que assediou Iara sexualmente em sua adolescência é identificado como a figura que lhe possibilitaria “ter coisas e progredir na vida”. Tal qual a Gata Borralheira, que triunfa sobre a pobreza e sobre os maus tratos da 134 madrasta (como os maus tratos que Iara sofria em sua infância e em sua adolescência) casando-se com o Príncipe e transformando-se em Cinderela (ver Bettellheim, 1997), o discurso de Iara parece capturado pela formação discursiva patriarcal milenar de desqualificação das capacidades das mulheres, daí Iara acreditar que só através dos homens é que pode ser protegida ou “ter coisas e progredir na vida”. Desvela-se também aqui a ideologia patriarcal de valorização do masculino em nossa sociedade. Os homens, detentores de poderes, força e prerrogativas, podem proteger ou, então, ‘servir-se das’ mulheres e das crianças de acordo com sua vontade. Estudos (D’Incao,1989; Fonseca,1995a, 2000; Zaluar,1993) encontraram que, nas famílias brasileiras, a mulher deve ser virgem antes do casamento e deve se controlar, enquanto o homem deve usufruir ao máximo da sexualidade a fim de manter o culto à virilidade masculina. A lógica encontrada nessas famílias, tanto da classe média urbana paulista, quanto nas vilas de periferia de Porto Alegre ou nas comunidades violentas e controladas por traficantes no Rio de Janeiro é a de que a masculinidade está associada à virilidade e à violência, inclusive sexual. Nestes estudos, as mulheres são percebidas pelos homens como “piranhas e, se deu para um, tem que dar pra todos, na marra” (Zaluar, 1993, p.137). Associada à sexualidade normatizada pelo discurso patriarcal está a idealização do amor romântico, invenção do individualismo burguês, que dissociou afeto de sexo e estabeleceu diferentes padrões morais para as sexualidades masculina e feminina (D’Incao, 1989; Reich, 1966; Reis, 1985). O amor romântico aparece nos relatos da participante, Segundo Iara, permanecia na relação como o companheiro abusador da filha, porque gostava dele: “como eu gostava muito dele, gostava até de mais... (chora). Então quando a gente gosta a gente faz certas coisa que envergonha até a sociedade. Então eu concordei de...participar do abuso (...).Até por que ele dizia que ela que provocava (...). Como eu era apaixonada por ele, era doente por ele, e fazia tão pouco tempo que a gente tava junto, eu não enxergava que não era assim (...)”, expressa ela num tom de confissão e de arrependimento. Inscreve-se aqui a dependência emocional do parceiro abusivo e a prescrição milenar de que as mulheres atendam, satisfaçam e agradem aos homens, ao que Iara parece ter obedecido. A idealização da figura masculina imposta pela sociedade patriarcal propicia a dependência das mulheres à figura masculina, o que favorece a dependência emocional do parceiro, abusivo ou não, o que foi encontrado na análise discurso de Iara. Iara verbaliza que “estava apaixonada por José, que tinha encontrado o homem dos seus sonhos, que era doente por ele, era Deus no Céu e ele na Terra, era o meu ídolo”. A idealização e a dependência 135 emocional de Iara ficam evidentes nestas falas. A dependência das mulheres aos homens abusivos deve ser entendida no contexto da mentalidade patriarcal brasileira, segundo a qual principalmente as mulheres necessitam de figuras que as protejam (Baquero, 2001; Chauí, 1989). Em famílias pobres do Norte e do Nordeste do Brasil, Azevedo e Guerra (1989) relatam que homens, pais e padrastos abusivos justificam “servir-se” sexualmente das filhas por serem eles que “dão o que comer”. À semelhança da tutela do antigo senhor feudal as meninas e as suas mães submetem-se ao jugo patriarcal do provedor dadas às condições miseráveis de vida desta região do país. Além da ‘proteção econômica’, Fonseca (2001) relata que as mulheres necessitam de uma figura masculina dentro de casa para sentirem-se seguras contra a violência da comunidade. Neste estudo, realizado em uma vila de periferia de Porto Alegre, tal qual a comunidade onde reside Iara, as mães preferem entregar as filhas, mesmo que bem meninas, aos traficantes que dominam a vila pois, se não o fizerem, elas serão tomadas à força, colocando em risco não só as filhas como toda a família. Resultados semelhantes são relatados por Zaluar (1993) em pesquisa sobre a dinâmica da sexualidade e dos papéis de homens e de ‘mulheres de bandidos’ em vilas onde impera o tráfico e a violência no Rio de Janeiro. Muitas vezes as mulheres são obrigadas a escolher entre o parceiro, mesmo que não fisicamente abusivo, e os filhos oriundos de outras relações, pois nem sempre os novos parceiros dispõem-se a criar os filhos que não são seus (Fonseca, 2001). Nas investigações com mulheres vítimas de violência conjugal (Cardoso, 1997a, 1997b) a dependência financeira dos parceiros e o desejo das mulheres de manterem a família unida são fatores que propiciam a submissão e a permanência em relações abusivas. Paradoxalmente, estes mesmos homens que são idealizados como ‘cavaleiros heróis e salvadores’ são os mesmos algozes das ‘damas’ a quem deveriam proteger. As mulheres fogem da violência e da pobreza da comunidade e buscam refúgio no lar e na figura protetora de um homem. As mulheres e as meninas vítimas de violência e as mães das vítimas de incesto, como é o caso de Iara e de suas filhas ao invés de serem ‘salvas’ pela figura masculina idealizada do homem-pai-padrasto são vitimadas pelo suposto herói. Encontram não o herói, mas o vilão e o algoz como no conto da ‘Bela e a Fera’. A ‘Fera’ fora o marido prometido à ‘Bela’, que se sujeitou ao medo que sua aparência feia e agressiva lhe causavam. Com paciência e dedicação, a Bela transformou a ‘Fera’ num belo príncipe. A mágica da dedicação, da paciência e do amor incondicional que transforma homens abusivos em príncipes está impregnada no imaginário social das mulheres, em especial das mulheres vítimas de homens abusivos e alcoolistas que acreditam que o ‘amor cura’, aspecto também reforçado pela Igreja, em especial pela Igreja Evangélica, da qual Iara fez parte durante um 136 período da sua vida. Mas finais felizes parecem sempre ocorrem nos contos de fada que, aliás, talvez não devessem mais ser contados às crianças, ao menos das formas classicamente contadas (Bettellheim, 1997). Iara e as filhas, ao fugirem da miséria econômica encontraram a miséria afetiva. A miséria econômica aparece associada à miséria afetiva (Hutz, Koller & Bandeira, 1996). A violência estrutural (Libório & Sousa, 2004; Minayo, 1994; Odalia, 1983) da pobreza imposta em especial às mulheres (Prá, 2001) favorece a dependência econômica do parceiro. Apesar das pertinentes problematizações (Cecconello, 2003; Gomes & cols., 2002; Guareschi & cols. 2004; Yunes, 2001) à associação entre violência e pobreza, estes aspectos conjunturais e macroestruturais não podem ser desconsiderados na compreensão da dinâmica das famílias incestuosas, sobretudo no que tange ao papel das mulheres-mães das vítimas de incesto que não protegem as filhas do abuso do parceiro com o qual convivem. A dependência emocional de Iara ao parceiro abusivo parece desempenhar importante papel na posição de submissão e de não-proteção da filha Ana diante do abuso cometido. A não-proteção de Iara é concebida aqui não como culpa, mas como a dificuldade de Iara de perceber e de acreditar no relato da filha e, inclusive, de ter participado do abuso junto como José nas “sessões de casais trocados”. Sessões essas nas quais participou também o atual companheiro de Iara, Aquiles. Articulam-se, assim, dependência econômica e emocional, ambas, tributárias da dominação patriarcal e capitalista (Bedregal, 2004; Garretas, 2002; Saffioti, 1979, 2988, 2001; Toledo, 2003), na dinâmica da submissão feminina, tanto das filhas quanto das mães das vítimas de incesto. Atrelada às questões estruturais res, a dependência emocional de Iara ao parceiro abusivo deve ser analisada também do ponto de vista da construção de sua subjetividade. Nesse sentido, apesar das críticas (Cooper, 1987; Gallop, 1982; Kehl, 1992, 1998; Marcuse, 1955/1978, 1965/1997; Masson, 1984; Reich, 1933/1998,1966) às concepções de Freud (1921/1967), em “Psicologia de las massas” ele descreve a complexa dinâmica que ocorre no fenômeno de idealização, quase hipnótico, das massas ao líder, percebido como detentor de poderes. Este fenômeno, segundo ele, estaria presente também no apaixonar-se, em que o ego se dissolve e anula suas capacidades perceptivas da realidade. Apaixonar-se, dentro desta perspectiva, é um estado doentio. Iara verbaliza estas expressões, dizendo que “era doente por José, que estava apaixonada e não enxergava o que estava acontecendo”. Iara, cuja subjetividade já fora tão assujeitada (Butler, 2000, 2003; Foucault, 1975/2002, 1975/2002, 1995), constituiu-se enquanto indivíduo em contextos de violências e de rupturas de vínculos 137 ao longo de toda sua história de vida. Para esta mulher-mãe, reconhecer o abuso da filha implicaria separar-se do companheiro, mais uma perda para quem teve sua vida marcada por abandonos e perdas. A negação e a não-proteção parecem, na análise do discurso de Iara, remeter a todos estes aspectos, numa complexa e perversa dinâmica que parece ter contribuído para a negação e para a recusa do relato de abuso da filha. Outro aspecto a ser considerado nesta compreensão é a possibilidade, segundo falas de Iara, de que ela tenha acreditado na sedução e/ou na aceitação do abuso por parte de Ana, o que foi explicitamente dito por José. Ana parecia ter alguns privilégios por parte do abusador, que “tratava mais ela (Ana) como mulher dele, assim, de dar um beijo primeiro nela, de trazer um doce”, comenta Iara. Talvez num processo identificatório (Levisky, 1997; Violante, 1997), esta mulher-mãe possa ter atribuído à filha o desejo de “conseguir coisas”, tal qual Iara admitiu ter-se submetido ao assédio sexual do dentista em sua adolescência. Receber coisas do abusador ou ter privilégios, se é que possam assim ser denominados, foram encontrados em vários estudos (Azevedo & Guerra, 1989, 1995; Fontes 1993; Furniss, 1993; Gabel, 1997) com vítimas de abuso sexual e são estratégias do abusador que confundem as vítimas (Hirigoyen, 2000; Perrone & Nanini, 1998) e as mantêm em silêncio e submissas ao abuso, dificultando a revelação do segredo. Ana, ao não contar à mãe o que estava acontecendo, parece ter sido interpretada como conivente, como quem estava aceitando e, talvez, gostando da situação imposta pelo abusador, aspecto que pode estar presente na dificuldade de Iara em acreditar e proteger a filha do incesto. A dificuldade de Iara de perceber, acreditar e proteger a filha Ana do abuso remete ainda à estratégia de culpabilização da vítima pelo abusador identificada neste estudo. José atribui à Ana a sedução, a provocação e, portanto, a culpa pelo abuso sofrido, valendo-se da prerrogativa de “que é homem”. Conforme Iara, José dizia “não, eu não quero ficar com ela (a filha mais velha). Eu só fiquei com ela porque eu sou homem”. Além da vítima, também a mãe é culpabilizada pela não-revelação do abuso das filhas, não só de Ana, mas de Vanessa. José atribui a Iara a culpa pela não-revelação do abuso dizendo que Ana não lhe contou sobre o abuso porque “Iara era braba e batia na filha”. Esse desvio da responsabilidade do agressor é identificado no relato de Iara. O discurso de provocação da vítima e de cumplicidade e de culpabilização da figura materna pelo abuso da filha (Narvaz, 2003; Narvaz, 2004a, 2004b) é um discurso capturado pelas formações ideológicas patriarcais e burguesas que prescrevem à mãe o papel de proteção dos filhos, isentando o homem-pai-padrasto de sua responsabilidade (Ravazzola, 1997, 1999; Zuwick, 2001). Iara revela a captura de seu discurso e a internalização da culpa pelo abuso de Ana. Atribui à falta de apego e de intimidade, bem 138 como às violências cometidas contra a filha à não-revelação pela filha do abuso cometido pelo padrasto. Este processo pode ser analisado como mais uma armadilha do refluxo psicologizante (Keil, 2001) imposta pela sociedade patriarcal às mulheres. A violência contra Ana, a dificuldade de Iara de demonstrar afeto e de posicionar-se ao lado da filha na defesa contra os abusos sofridos sugerem a existência de distúrbios na relação de apego, segundo destacou a própria participante. Problemas de apego têm sido relacionados às várias formas de violência doméstica e familiar, estando comumente sobrepostas às várias formas de abuso, tais como a negligência, o abuso físico, o abuso sexual e o abuso emocional (Farinatti, Biazus & Leite, 1993). Segundo Farinatti e colaboradores (1993), os maus tratos constituem-se em distúrbios ou na ausência de interação da criança com seus pais, sendo que problemas na relação de apego entre a mãe e a criança são considerados fatores de risco para a violência doméstica. Delgado e Fisberg (1990), em artigo sobre a Síndrome da Criança espancada, retratam o espancamento intencional do bebê pelos pais, geralmente pela mãe, como condição de risco para a criança. Estes autores enfatizam que a negligência e os maus tratos são vinculados à rejeição do bebê por mães jovens, solteiras ou separadas, despreparadas para o casamento e para a maternidade. Esses saberes científicos parecem engendrar e legitimar as percepções de Iara, de sua mãe e do padrasto abusador acerca do papel da mãe nas falhas da relação de apego com a filha vítima de abuso. Iara enfatiza ter rejeitado Ana e tentado abortá-la, pergunta que não estava prevista no roteiro de entrevista, sendo incluída ao final da entrevista por iniciativa de Iara. A rejeição da filha Ana e a tentativa de aborto da mesma que, na percepção de Iara, remetem ao papel de ‘mãe má’, não podem ser compreendidas de forma isolada. Silva (1993) enfatiza que as relações instáveis incrementam o aborto provocado. Outros fatores e outros atores, além da mãe, devem ser incluídos na questão da aceitação/rejeição da gravidez e da tentativa de abortamento. Na esfera individual, os homens têm escapado à responsabilidade pelo aborto. No plano social, o Estado e a sociedade isentam-se de sua participação, seja na efetivação de políticas públicas de proteção integral à saúde reprodutiva da mulher, seja reconhecendo que são os padrões morais impostos pela sociedade patriarcal que incitam ao aborto (Silva, 1993). O discurso de culpabilização da vítima, acusada de sedutora e de ter provocado o abuso, estratégia utilizada por José para livrar-se da responsabilidade de seus atos abusivos, engendra na relação de Iara e da filha sentimentos de rivalidade e de disputa. A ambivalência, a rivalidade e a raiva são expressas claramente por Iara ao dizer que “eu passei a ver ela (Ana) não como filha, mas como a outra, como uma rival. Aí eu passei a judiar dela e tentei até afastar ela de casa, mas ele (José) sempre buscava ela de volta (...). E eu fiquei com raiva 139 dela por ela ter escondido”, admite Iara. Estes sentimentos de ambivalência e de rivalidade entre mãe e filha nos casos de incesto têm sido amplamente discutidos. Estudos (Amendola, 2004; Araújo, 1996, 2002; Felipe, 1999; Furniss, 1991; Saffioti, 1999) demonstram que a mãe sente-se confusa diante da suspeita ou constatação de que o companheiro abusa sexualmente da filha. Ambivalente também em relação à filha, a mãe sente raiva e ciúme, ao mesmo tempo em que atribui a si a culpa por não protegê-la. Na verdade, a mãe é igualmente vítima da violência familiar. Negar, desmentir a filha ou culpá-la pela sedução é uma forma de suportar o impacto da violência, da desilusão e da frustração diante da ameaça de desmoronamento da família. Em qualquer das situações, o desmentido materno, a afirmação de que nada aconteceu, é o pior que pode acontecer a uma criança que revela o abuso sexual. A negação da mãe, segundo os referidos autores, pode estar ainda relacionada com uma cumplicidade silenciosa, freqüente em casais com conflitos sexuais, onde a criança ocupa um lugar (função sexual) que não é dela, desviando ou amenizando o conflito conjugal. O silenciamento da mãe é percebido como forma de manter a homeostase familiar, havendo um acordo tácito entre o casal sobre o desvio da sexualidade do pai em relação à filha, apesar do aparente segredo (Flores & Caminha, 1994; Furniss, 1993; Sattler, 1993). Já para Felipe (1999), são raros os casos de incesto na família acerca do qual as mães não têm conhecimento, silenciando e, inclusive, oferecendo a sexualidade das filhas como forma de se livrarem do sexo imposto e garantirem seu sustento econômico. Segundo Saffioti (1999): “a mãe sempre ‘sabe’, independentemente de seu grau de cultura, quando o marido está usando sexualmente a filha. Trata-se, todavia, de um conhecimento inconsciente. Ela intui, mas não tem provas. Ela sabe, mas não quer saber. O conhecimento está presente, mas, como causa muito sofrimento, é empurrado para o inconsciente (...). É , portanto, um saber inconsciente, por maior que seja a sensação de contradictio in subjecto que essa expressão possa causar. Não tem coragem de confirmar esse conhecimento indesejado, que provoca muita dor, seja fiscalizando a filha, seja conversando com ela e fazendo aberturas para que a menina fale” (p. 137). A confusão, a ambigüidade, a dissociação e a negação da realidade estão presentes não só nas crianças vítimas, mas também nas mães, sobretudo se foram vítimas de abuso sexual em sua infância, como é o caso da participante deste estudo. Iara explicita em suas falas essa confusão: “no início, eu sempre defendia ela, eu não queria acreditar, era uma confusão na minha cabeça”, diz ela. A dificuldade das mães em perceber o que ocorre com suas filhas, antes que cumplicidade silenciosa, pode ser uma forma de evitar a dolorosa reexperimentação dos abusos vividos em suas infâncias, que parece retornar através do abuso da filha. A revelação deste abuso parece catalizar a revivência de vitimização na infância das 140 mães, que voltam a re-experimentar sintomas de estresse pós-traumático numa espécie de ‘incesto revisitado’ (Green, Coupe, Fernandes & Stevens, 1995; Laird, 2002). O impensável, o abuso da mãe na infância, durante muito tempo negado, parece retornar através do abuso da filha. Alguns sintomas acentuam-se à medida que o indivíduo encontra-se em situações que recordam ou simbolizam o trauma original, entre eles, a dissociação do pensamento, a negação da realidade e a anulação dos sentimentos. Nos casos de incesto, a dificuldade de verbalização ocorre pela falta de acesso ao evento traumático dada a intensidade da emoção que acompanha a re-experimentação do trauma vivido (Correa, 2000; Silva, 2000; TilmanOstyn, 2000). Mulheres que sofreram abuso sexual na infância, como é o caso de Iara, tornam-se mais vulneráveis para estabelecer relações com homens abusivos, o que parece comprometer a capacidade de proteger a si próprias e às filhas do abuso sexual (Narvaz, 2003; Narvaz & Koller, 2004a). A dificuldade de Iara em perceber o abuso que Ana vinha sofrendo, uma vez que esta “agüentava quieta, não falava nada”, pode estar relacionada a estes fatores. Além de serem percebidas como passivas, acusadas de permanecerem em relações violentas e de não protestarem contra os abusos sofridos, as mulheres e meninas têm, ainda, sido vistas como provocadoras, sedutoras e, portanto, culpadas pela violência que sofrem (Jones, 1994; Koltuv, 1986; Ravazzola, 1999; Vigarello, 1998; Zuwick, 2001). As meninas, ao buscarem carinho e afeto da figura masculina, recebem sexo e são culpabilizadas por isso. Estes elementos são sugeridos por falas de Iara, nas quais José atribui a sedução à Ana, a menina vítima. Iara conta que José “dizia que ela que queria, ela que dava confiança, que tira a roupa perto de mim e vem em cima”, no que Iara parece ter acreditado: “Depois, quando eu vi, eu fiquei revoltada e simplesmente me senti traída porque ela não me contou do abuso. Aí eu passei a tratar ela mal e nós competia que nem duas mulher, ela era a outra, não era a minha filha, era como uma rival”. É crucial entender que, mesmo diante de um possível comportamento sedutor da menina/adolescente, cabe ao adulto delimitar as fronteiras adequadas da experiência erótica. Como diz Neuter (1993, p.205), “apesar de seus comportamentos sedutores, que constituem uma demanda de reconhecimento de sua existência, de sua desejabilidade, de sua feminilidade, o que a filha demanda ao seu pai é que ele encarne o interdito.” As vítimas de abuso sexual jamais podem ser responsabilizadas pelo abuso sofrido (Amazarray & Koller, 1998; Furniss, 1993; Gabel, 1997; Madanes, 1991; Narvaz, 2004a, 2004b). A veiculação dos discursos que postulam as teorias da provocação, da conivência e cumplicidade femininas (ver Narvaz, 2004a, 2004b), segundo as quais as mulheres e meninas, sedutoras, provocam a sexualidade masculina e são culpadas pelas violências que sofrem, 141 parece ter influenciado a percepção de Iara sobre o abuso da filha. Mãe e filha passaram a ser rivais ao invés de vítimas, mantendo o abusador fora de foco e, portanto, na impunidade. Nestes discursos, há um desvio implícito de responsabilidade do verdadeiro agressor (Ravazzola,1999), dinâmica segundo a qual “a vergonha de que deveria ser portador aquele que a agrediu volta-se contra a mulher e a silencia, tornando-a parte da rede que sustenta a dominação” (Zuwick, 2001, p. 89). O discurso de provocação da vítima e de culpabilização das mães de que se vale José ao atribuir a não-revelação do abuso à falha no apego entre mãe e filha sustenta-se em discursos científicos (Delgado & Fisberg, 1990; Farinatti e cols.,1993). Entretanto, a lógica destes discursos não se aplica à relação de Iara com a filha Vanessa, que parece ser uma boa relação, segundo Iara: “mesmo estando no pai dela, ela liga para mim (...) ela se importa comigo e fica preocupada que ele (José) possa fazer alguma coisa contra mim (...). Nós semo amiga”, diz ela. Mesmo que não tenha sido boa mãe para Ana, tendo falhas na relação de apego com ela, Iara se percebe como boa mãe para Vanessa. Já que “tinham lhe tirado dois filhos e queria ter um perto de si”, resolve engravidar de novo. Em relação à Vanessa, que foi desejada e programada, Iara parece sentir-se boa mãe. Os atributos de boa mãe aparecem no discurso de Iara ao dizer que planejou, amamentou e acompanhou o desenvolvimento desta filha, conversando sobre tudo com ela, inclusive sobre sexo e sobre abuso. Apesar da intimidade, do apego, enfim, de Iara ter desejado, cuidado e acompanhado o desenvolvimento de Vanessa, esta também foi abusada por José e não revelou prontamente o abuso que vinha sofrendo à mãe. A entrevistadora lembra Iara que também ela fora abusada em sua infância e não revelou o abuso à família, ao que Iara complementa dizendo que ela sabe como é difícil falar nisso, pois é “um assunto feio, sujo, um tabu e as ameaças deixam a gente com medo”. A partir da reflexão proporcionada pela entrevista, Iara vai desconstruindo seu discurso monológico de culpabilização e parece dar-se conta de que “se a Vanessa não falou do abuso, é porque tinha medo e foi ameaçada”. Ao final da segunda entrevista, Iara diz “é, eu salvei ela do abuso mesmo, assim como tu me explicou que só tentar já é abuso, agora eu sei, mas eu digo assim, do estupro mesmo, porque eu conversei muito com ela e agora eu tô fazendo tudo, denunciando e tudo”. Mesmo não sendo desconsideradas as questões de rejeição e de falta de apego entre mãe-filha na dinâmica da violência doméstica, tais explicações têm sido criticadas (Gomes e cols., 2002; Guareschi, Comunello, Nardini, & Hoenisch, 2004). Devem, assim, ser problematizadas, uma vez que remetem às formações discursivas ideológicas inscritas nos discursos de culpabilização e cumplicidade das mães das vítimas de incesto, isentando os homens, o Estado e a sociedade em geral da responsabilidade pelo cuidado e pela proteção 142 das crianças e adolescentes (Narvaz, 2003). A não revelação do abuso não pode ser atribuída apenas à falta de apego ou a distúrbios do vínculo mãe-filha. Pesquisas (Furniss, 1993; Herman, 1991; Laird, 2002; Langdon, 1993; Mason, 2002; Miller, 1994; Thomas, 1988) demonstram a dificuldade da revelação nos casos de abuso sexual associados a diversos aspectos tais como: os tabus que cercam a sexualidade, a vergonha, o medo, a culpa, o receio de que a revelação não seja bem acolhida e a vergonha de outros estigmas advindos da violação sexual, o que se confirma nesta investigação. Alguns obstáculos à revelação de abusos foram descritos por Fontes (1993), entre eles: idéias de que os homens têm pouco controle sobre os impulsos sexuais; a idéia de que as crianças abusadas pecaram; a censura às mulheres que buscam o divórcio; a crença de que a revelação causará muita raiva em algum membro da família e matará o abusador; e a tendência cultural de resolver problemas sem a ajuda das instituições sociais. Os tabus que envolvem a sexualidade (Fontes, 1993) relatados como fatores que dificultam a revelação do segredo do abuso confirmam-se na análise do discurso de Iara. A valorização da virgindade e da fidelidade da mulher aparece em vários momentos. O preconceito e controle em relação à sexualidade e aos corpos das mulheres, bem como em relação ao adultério e à prostituição são tributários das formas patriarcais e monogâmicas de organização familiar (Engels, 1964; Reich, 1966; Schelsky,1968). Segundo os ditames patriarcais, às mulheres é prescrito, natural e esperado que sejam virgens, recatadas e fiéis, o que foi encontrado por Fonseca (1995a) em investigações com famílias pobres. Abusada pelo tio na infância, Iara “cresceu achando que era prostituta (...) as pessoas com quem eu fique eles me consideravam uma prostituta”, devido a ter vários companheiros. A valorização da virgindade feminina e os tabus em relação à sexualidade parecem ser valores internalizados desde a infância por Iara, tanto pelos conselhos da mãe biológica quanto pelos valores e práticas ditados pelas famílias com as quais Iara viveu. Segundo ela, em sua infância, “não se falava de sexo, pois isso era feio, sujo”. Mesmo tentando não reproduzir o modelo aprendido em relação ao tabu do sexo, Iara parece reproduzir os valores patriarcais aprendidos em sua história de vida. Embora ressalte que conversa com a filha Vanessa, “para não acontecer com ela o mesmo que aconteceu comigo e com a mais velha”, referindo-se ao abuso sexual, Iara transmite à filha prescrições em relação à sexualidade. Os conselhos que Iara dá à filha enaltecem a virgindade feminina, bem como reforçam os estereótipos de gênero, em que os homens querem usar as mulheres para satisfazerem suas necessidades: “Na verdade um rapaz vai só te sujar, porque vocês não sentem nada. Os guris vão lá e dizem: ‘Ah, fiquei com a fulana!’ Depois saem a contam pra todo mundo e dão risada”. Percebe-se também nela o 143 preconceito quanto a ser mãe solteira, bem como a valorização da virgindade: “queria ter casado de branco, de vestido de noiva, bem como a avó certamente gostaria de ter visto a neta casar na Igreja”, ressalta ela. A família e a igreja aparecem novamente como instituições mediadoras das normas patriarcais a serem internalizadas. Tais regras prescrevem a obediência e normatizam a sexualidade das mulheres. A percepção da sexualidade da mãe de Iara como ‘desviada’, numa interpretação claramente pejorativa, foi evidente em várias falas da participante. Iara conta que a família adotiva dizia que “a minha mãe era uma prostituta, uma mulher da vida, um tipo de mulher que não podia ficar com uma filha mulher, e que eu ia ficar igual a ela”. Iara menciona, ainda, que “eles trabalharam assim na minha mente, mas hoje eu sei que era só para eu não procurar ela”, referindo-se às concepções que lhe foram impingidas acerca da mãe biológica. A influência da Igreja, em especial da Igreja Evangélica, é associada ao moralismo do irmão que, segundo Iara, não queria que a mãe namorasse e atribuía a doença da mãe (hipertensão, ao que parece, pelos sintomas relatados por Iara), ao exercício da sexualidade. Estes discursos revelam a captura da formação discursiva patriarcal que discrimina de forma sexista as possibilidades de exercício da sexualidade, destituindo das mulheres o direito ao prazer. Para Reich (1988), a fixação da inibição, dos medos sexuais e a repressão sexual resultam em posturas conservadoras e reacionárias que impedem os indivíduos de tomar consciência de sua situação social. Essa falta de consciência é evidente no caso de Iara, o que pode ter contribuído para sua posição de submissão e de silenciamento diante dos abusos sofridos pela filha Ana. Imposições do agressor para que a vítima não revele o abuso foi relato em várias pesquisas (Amendola, 2004; Correa, 2000; Fontes, 1993; Narvaz & Koller, 2004a; Penn, 1988; Silva, 2000; Zuwick, 2001) como fator que contribui à submissão e ao silenciamento das mulheres-mães e das vítimas de incesto. O medo do abusador foi identificado na análise do discurso de Iara como tendo importante papel na submissão, tanto dela quanto das filhas aos abusos cometidos por José. Iara menciona que, por ser pai de Aquiles, José sentia-se no direito de freqüentar a casa da família, mesmo já estando separado de Iara. Fugitivo da polícia, ex-presidiário, José era um homem violento que “não aceita ser mandado embora por mulher e é capaz de tudo”, comenta Iara. José já havia agredido Iara por diversas vezes, inclusive com uma faca, e seguiu com ameaças. O medo do parceiro abusivo evidencia-se em suas falas e denuncia o controle que os homens abusivos parecem ter sobre os corpos e as subjetividades das mulheres, o que facilita a submissão através da sujeição invisível: 144 “Os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa ‘economia política’ do corpo. O corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as regulações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhes sinais. Esse investimento político do corpo está ligado à sua utilização econômica; é como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação (...); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia (...) pode ser calculada, pensada, sem usarse sobre ele a força ou a violência; pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror e no entanto continuar a ser de ordem física. Pode haver um ‘saber’ sobre o corpo (...). O que se poderia chamar a tecnologia política do corpo, tecnologia difusa, impossível de localizá-la quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho do Estado (...) trata-se de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições” (Foucault, 1975/2002, p. 26). A vergonha também foi identificada (Fontes, 1993; Laird, 2002; Roure, 2001) como um dos fatores que leva crianças e adultos vítimas de abuso sexual a manterem silêncio absoluto sobre o abuso. A alta valorização da virgindade engendra nas meninas que foram abusadas a percepção de que estão ‘danificadas’ ou ‘destruídas’. Muitas meninas e famílias não denunciam as violações sofridas às autoridades para escapar deste estigma e tentam manter o segredo ou lidar com a situação do abuso sem recorrer aos recursos da comunidade. A negação da mãe diante do abuso e a relutância em denunciar a violência sofrida pela filha é entendida por Roure (2001) como forma de defesa ao estigma de família agressora, o que confirma aspectos da investigação de Fontes (1993). A estigmatização e a violação da subjetividade das famílias ao denunciar o abuso seria, dentro desta perspectiva, uma forma de revitimização institucional e social. A negação e o silenciamento da mãe diante do abuso da filha seriam, segundo estas autoras, uma forma de proteção da sua identidade de mãe e da identidade da filha, que ficariam aprisionadas ao papel de vítimas. A recusa da mãe em reconhecer e denunciar o abuso pode, assim, ser uma atitude protetiva, “em função dos processos de significação aos quais as famílias denunciadas são submetidas. Significações cujos efeitos acredito produzir deslocamentos identificatórios e identitários, tanto dos pais, considerados agressores como dos seus filhos considerados como supostas vítimas (...). Intervenção que, ao publicizar e tornar visíveis relações supostamente vividas na intimidade familiar, parece-me produzir o rompimento e a resignificação de laços aí existentes (...). Um dos muitos efeitos produzidos pelos discurso sobre a violência doméstica tem sido o discurso da família agressora (...). A visibilidade diante do outro que determina que a mãe defronte-se com o abuso de suas filhas. A partir 145 do olhar do outro ela se depara com significações que lhe constituem e lhe determinam sua verdade” (Roure, 2001, pp. 61-67). A recusa em acreditar no relato das vítimas de abuso sexual não ocorre apenas pela mãe das vítimas. Profissionais que atuam em diversos segmentos, tais como na saúde, na educação e nos sistemas de garantias de direitos da infância e da adolescência, despreparados tecnicamente (Brino & Williams, 2003) e influenciados pela crença de que as crianças mentem e fantasiam sobre o abuso, tendem a desacreditar e a invalidar a tentativa de revelação. O tabu da sexualidade perpassa todo o tecido social, dificultando o acolhimento da revelação do abuso sexual não só pelas mães das vítimas de incesto, mas pela comunidade social e científica, o que é uma forma de (re)vitimização (Fontes, 1993; Gabel, 1997; Narvaz, 2004a, 2004b; Zuwick, 2001). Através destas instituições é que são disseminados os discursos de vitimização e de culpabilização das mulheres à violência que sofrem. Estes discursos foram identificados por Iara quanto tentou, segundo ela, buscar auxílio na delegacia por ocasião da fuga de Ana de casa. Iara explicita o preconceito da delegacia que, segundo ela insinuou ser cúmplice de José por este estar foragido da polícia e que “iam me dar Viagra pra eu falar”, conta ela. Sem o apoio familiar, pois “já não tinha mais pai e nem mãe e o irmão morava longe”, Iara tenta buscar ajuda nos recursos da comunidade mas, ao invés de ser protegida, é vítima da violência institucional e revitimizada. A falta de apoio conjugal, inviabilizada no caso de Iara, aliada à falta de suporte institucional, comunitário ou social parecem ter contribuído à sua posição de silenciamento diante do incesto da filha Ana. Iara tenta ir embora de casa, já que José se recusava a sair e vai morar com uma comadre, onde também é assediada. Sem apoio familiar e comunitário, “não tendo para onde ir”, recorre à delegacia onde é mal acolhida. O abusador, em uma estratégia de intimidação, ameaça Iara dizendo que “ele já fez e aconteceu com outras e nunca aconteceu nada e que ela não iria ter proteção 24 horas”. Desvelam-se nestas falas a falta de suporte comunitário, o despreparo e o preconceito das redes sociais e dos sistemas legais que deveriam cumprir com o papel de acolhimento, de adequada escuta e de proteção integral das mulheres vítimas de violência (Brito & Koller, 2002; Oliveira, 2004; Roure, 2001; Strey, Werba & Starosta, 2004). Amendola (2004) relata situações em que os conselheiros tutelares recomendam às mães de vítimas de incesto que não se separarem dos companheiros, mesmo que abusivos. Cecconello (2003) comenta que a reação das mulheres à violência varia de uma atitude passiva à tentativa de separação, que muitas vezes acaba em acomodação após consulta com a psicóloga do posto de saúde local, que as aconselham a não deixarem a família e propõe-se a tentar ajudar as coisas a melhorarem. Fontes (1993) identificou que crianças e adultos 146 desconfiam e temem instituições que deveriam ser de proteção, tais como as escolas, a polícia, a justiça e o sistema de saúde e de assistência social. Temer que tais organizações possam machucar ou prejudicar algum membro da família inibe algumas crianças de revelar o abuso sexual e pode também inibir adultos de denunciar às autoridades a ocorrência de abusos. Estes elementos confirmam-se aqui. A falta de confiança nos recursos de apoio e o sentimento de pena por José que, se fosse denunciado, seria novamente preso é verbalizada por Iara: “sempre tive pena dele, por que já tinha sido preso e uma pessoa que é presa sofre muito, é muito judiada, maltratada”. Nessa dinâmica, talvez possa estar incluída a identificação de Iara com a dor, o sofrimento, os maus tratos, o abandono dos quais ela e José parecem igualmente ter sido vítimas na infância: “ele foi criado sem família, sofreu, nunca adquiriu a família dele e a mãe quebrava as coisas, ele tem a mesma mania da mãe”, justifica ela. A análise destes dados indica que a falta de apoio familiar, comunitário, institucional e legal contribui para a permanência das mulheres nas situações de violência e para a submissão das mães diante do abuso da filha. Iara verbaliza claramente esta posição quando diz que “Na época do abuso da Ana eu não fiz nada, eu não reagi (...). Não me senti com força por não conhecer lei”. Ainda assim, ao invés de serem considerados todos estes aspectos na complexa dinâmica do silenciamento e da submissão diante do incesto da filha de uma mulher-mãe, vitimada desde a infância e vítima da sociedade patriarcal e capitalista na qual suas posições são engendradas, nos discursos que veiculam pelo imaginário científico e social (Flores & Caminha, 1994; Felipe, 1999; Furniss, 1993; Saffioti, 1999; Sattler, 1993), essas mulheres, das quais Iara é representante, são consideradas coniventes, cúmplices e culpadas. Para Azevedo e Guerra (1989, p. 60), “há uma tendência em responsabilizar a mãe por tudo o que acontece na família, daí acusá-la de fraca, negligente, incapaz, imatura ou mesmo conivente nos casos de abuso sexual incestuoso”. Contradizendo alguns destes discursos, a maioria das mães parece não estar ciente de que o abuso sexual ocorre (Zavaschi, Teitelbom, Gazal, & Shansis, 1991) e, quando sabem, são elas as que mais denunciam os abusos intrafamiliares. Sattler (1994) refere que 76% das denúncias de abuso sexual são feitas pelas mães, embora em trabalho anterior (Satler, 1993) postule a conivência materna diante do abuso. Paradoxalmente, no mesmo trabalho em que Saffioti (1999) afirma que as mães sempre sabem do abuso e sugere a cumplicidade materna, mesmo que inconsciente, a autora estima que “64, 5% das denúncias são feitas majoritariamente pelas genitoras, cifra compatível com estatísticas internacionais. As vizinhas têm papel importante neste contexto, denunciando o abuso sexual incestuoso em 13,3% dos casos” (Saffioti, 1999, p. 131). 147 A questão da submissão das mulheres às violências que sofrem e do silenciamento das mães das vítimas de incesto diante do abuso das filhas é, portanto, campo tenso de debate, o que “abre lugar para performances dissonantes e desnaturalizadas” (Butler, 2003, p. 210). Neste estudo, os papéis de homens e de mulheres parecem dissonantes, tensos e heterogêneos. Especificamente no que tange ao papel das mães das vítimas de incesto na dinâmica da família incestuosa, há vários e conflitantes discursos. Posições paradoxais são expressas por uma mesma autora em trabalhos diferentes (Satler, 1993, 1994) ou em um mesmo trabalho (Saffioti, 1999). Essa heterogeneidade talvez represente a heterogeneidade constitutiva das mulheres-mães e dos discursos que as constituem ou, ainda ressonâncias (Elkaim, 1990) da confusão das famílias incestuosas sobre os discursos científicos. Marcas da heterogeneidade desvelaram-se também no discurso de Iara, ainda que capturado pela formação discursiva dominante patriarcal. Deslizamentos de sentidos revelam posições-sujeito ora de submissão, ora de resistência desta mulher-mãe ao longo de sua história de vida. Os resultados desta investigação indicam que a posição-sujeito de submissão da participante foi engendrada por diversos elementos, entre eles: as violências vividas desde a infância, a prescrição de obediência ao poder patriarcal, a reprodução de padrões abusivos através das gerações, a vitimização na vida adulta pelos companheiros abusadores de álcool e violentos na relação conjugal, a dependência econômica e/ou emocional do parceiro abusivo e a falta de apoio familiar, comunitário e institucional. Tal submissão apareceu associada ao silenciamento e à não-proteção da filha diante do abuso sofrido. No entanto, a análise dos dados apontou para outra posição-sujeito ocupada pela participante, isto é, a posição de resistência. A pluralidade de experiências relatada por Iara evidenciou a heterogeneidade, tanto de seu discurso, quanto de sua subjetividade, uma vez que a subjetividade é constituída no discurso (Butler, 200, 2003). Foram identificadas várias situações nas quais os ditames patriarcais foram transgredidos, encontrando-se aí posições de resistência que parecem ter sido suscitadas pelo mesmo poder patriarcal que as engendrou. Confirma-se, assim, a terceira proposição deste estudo, qual seja, a de que, apesar da prescrição da obediência, o poder patriarcal suscita formas de resistência nas vítimas à opressão por ele imposta. A análise do discurso de Iara denota que “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta” (Foucault, 1995, p. 248). Ao longo das gerações da família de Iara, identificamos que, embora as mulheres não detenham o poder, elas têm poderes. O poder não é, portanto, apenas coercitivo ou repressor, mas produtivo, heterogêneo, e atua através de “práticas e técnicas que foram inventadas, aperfeiçoadas e se desenvolvem sem cessar. Existe 148 uma verdadeira tecnologia do poder, ou melhor, de poderes, que têm cada um sua própria história” (Foucault, 1999, p.241). A pluralidade de poderes coexiste nas tramas das relações familiares e sociais com o poder patriarcal. As formas específicas de poder feminino que ocorrem nas famílias e nas comunidades locais têm sido, no entanto, tradicionalmente ocultadas pelos discursos históricos oficiais, inclusive pelo discurso científico, ao que as teóricas do gênero têm procurado resgatar (Del Priore, 2001; Diamond & Quinby, 1998; Fonseca, 1989; Maluf, 1993; Perrot, 1988, 1998). Como diz Foucault (1995, 1999), o poder também é criativo, gerativo e a subversão é uma parte do poder, seu contrapoder, sua autosubversão. Estes elementos estão presentes na história de vida de Iara e demonstram que submissão e resistência sempre estiveram presentes na vida das mulheres (Strey, 2000). Na infância, foram os ditames patriarcais de obediência e de validação do castigo físico como forma de disciplinamento que fizeram com que Iara “achando que apanhava muito, fugisse e fosse ao Juizado de Menores”, conta ela. Mesmo pensando que “não tinha direitos, sem defesa nenhuma”, o apoio recebido “da sogra do filho da mulher que eu morava, me orientou que eles não tinham o direito de me bater, ela disse pra eu ir lá no Juiz toda lanhada”, foi importante no agenciamento da estratégia de fuga esboçada por Iara. Ela conta rindo que: “Eu peguei um dia e fugi, inventei (...) e saí correndo(...). Podia ganhar as Olimpíadas, até uma medalha (...) E tinha as perninhas bem fininhas”. A posição de resistência é acompanhada pelo riso e a expressão “ganhar uma medalha” denotam que Iara sentiu-se vitoriosa diante da fuga do poder abusivo ao qual estava submetida. A filha Ana também fugiu dos abusos da família na infância. Sobretudo se apoiadas, até por estarem vitimadas é que as meninas engendram estratégias de resistência aos abusos sofridos. Na adolescência, apesar do assédio do dentista, Iara confessa que “eu não gostava dele, mas era no interesse de ganhar alguma coisa”, o que também revela uma forma de transgressão à prescrição da sexualidade recatada e pudica às meninas segundo os ditames patriarcais. Na vida adulta, a transgressão dos valores patriarcais em relação à sexualidade, à monogamia e à fidelidade foi encontrada na análise do discurso de Iara que, não estando satisfeita sexualmente, procurou um amante. Tal atitude é tomada também pela mãe, que “fugiu com o amante que se escondia atrás de uma árvore”. As transgressões da mãe em relação em relação à sexualidade normativa, preferindo homens mais jovens, e dizendo que “quer curtir a vida”, é destacada nas falas de Iara. Também o direito ao prazer e o rompimento com o papel tradicional feminino restrito à procriação, característicos da família burguesa patriarcal (D’Incao,1989; Reich, 1966; Reis, 1985) são marcados pelas falas de Iara, referindo-se ao “sangue quente, de bugra”, dela e da mãe. Essas percepções, embora possam 149 representar discursos religiosos e higienistas que tinham por objetivo regular os costumes sociais e as populações, também podem ser entendidas como resgate do direito ao prazer destituído das mulheres pela família monogâmica burguesa (D´1ncao, 1989; Reis, 1985). Nos discursos higienistas, as mulheres brancas são vistas como respeitáveis e assexuadas, enquanto as mestiças, as negras e as índias, seres exclusivamente sexuados. As perversões sexuais marcaram a representação dos índios pelos colonizadores e historiadores que chegavam ao Brasil (Leite, 1993; Raminelli, 1997). Entretanto, tais ‘perversões’ podem ser entendidas como transgressões às normas patriarcais, heterossexuais e fálicas, há muito tempo e em muitos lugares, ao longo da história, como foi largamente demonstrado (Greene,1991; Maluf,1993; Perrot,1988,1998; Rago, 1997; Schumaher, 2000). Costumes, tradições e práticas religiosas, em especial as religiões afro-brasileiras, entre elas o candomblé, contribuíram à libertação das mulheres, ao menos em alguns aspectos. Para Landes (2002), as mães de santo representam a força criadora do poder feminino. Também a Igreja católica, embora associada às elites brasileiras por séculos, na década de 70, volta-se às necessidades das massas, influenciada pela Teologia da Libertação (Boff, 1992). Formam-se, assim, grupos comunitários, chamados comunidades eclesiásticas de base, dedicados à ação política e social, freqüentemente liderados por mulheres, papéis que exprimem seu poder nas comunidades locais (DeSouza & Baldwin, 2000). Mães de santo, benzedeiras e bruxas capazes de fazerem feitiços e através dos rituais de possessão espiritual, as mulheres “possuídas” outorgavam-se o direito de transgredir as normas patriarcais impostas, seja desobedecendo aos maridos, seja tomando atitudes consideradas masculinas, como sair à noite sozinhas, viver sem um homem na família ou enfeitiçarem os instrumentos de trabalho dos homens de sua comunidade (Maluf, 1993). Estes conteúdos encontram-se presentes na história de vida de Iara e na mitologia há séculos (Bulfinch, 2001; Koltuv, 1986; Rinne, 1988; Rodrigues, 1995; Tiburi, Menezes & Eggert, 2002). Os mitos de Lilith (Koltuv, 1986), das índias Javaé (Rodrigues, 1995), de Medéia e das Bacantes (Rinne, 1988), bem como as narrativas sobre bruxas e bruxarias (Maluf, 1993) falam que as mulheres se insurgem contra o poder patriarcal, abandonam seus lares, seduzem os homens, traem os maridos, judiam das filhas, cometem incesto com os filhos e os matam. Na análise desses mitos e dessas diversas práticas e costumes religiosos desvelam-se poderes, transgressões e insubordinações femininas, geralmente associadas a mulheres e a mães ‘más’. O controle masculino teria surgido como tentativa de dominação dos poderes femininos: “A necessidade da domesticação do feminino, no sentido de colocar o selvagem dentro dos 150 limites do domus, a casa, deve-se ao fato de que as mulheres eram vistas como perigosas e ameaçadoras” (Tiburi, 2002, p. 45) Para Bachofen (1861/1987), é a violação aos direitos da mulher que provoca a sua resistência. Foi a opressão masculina que gerou a revolta das mulheres e a instaurou o matriarcado. Foram os abusos que geraram revolta em Ana e em Iara, fazendo com que fugissem das suas famílias na infância. Iara, diante das violências físicas e das discussões com os parceiros conjugais, separava-se deles, voltava para um ex-amante ou “ia passar uns tempos com a mãe para refrescar a cabeça”, diz ela. A sexualidade feminina demonstrou-se não só objeto de controle, mas também protagonista na reivindicação do direito ao prazer. Os homens, desqualificados em seu papel sexual ao não satisfazerem as mulheres, são traídos e abandonados, como o pai de Iara, traído e abandonado pela mãe, e João, o companheiro que não a satisfazia sexualmente. O controle masculino sobre o corpo e sobre a fertilidade feminina, bem como a violência de “terem tirado o filho de uma mãe por não ter condições de cria-lo” é evidenciado no comportamento de Pedro, pai de Gabriel e de Vanessa. Entretanto, o poder patriarcal representado pelo companheiro é sabotado por Iara que “faz uma armadilha” para engravidar de Pedro, vingando-se dele já ele tinha lhe “tirado o filho e entregue para a madrinha criar”. Segundo conta ela, “aí eu armei uma armadilha, arrumei um esquema pra engravidar da minha menina, já que ele não deixava pegar o Gabriel (risos). Daí eu comecei a me encontrar com ele e engravidei da Vanessa.” Os homens não têm as mulheres sob domínio. Iara demonstrou que o controle sobre seu corpo, sobre sua sexualidade, sobre sua fertilidade e sobre seu desejo de ser mãe estava sob seu domínio. Iara explode, assim, com o discurso patriarcal da dominação e da vitimização feminina. As mulheres não são apenas vítimas da violência masculina. Na relação com João, inverteram-se os papéis. Era Iara quem “maltratava ele, eu que era a danada, batia nele e depois pedia desculpa ficava com pena”, conta ela num tom de voz que expressão um misto de arrependimento, vergonha e satisfação. João foi traído e submeteu-se à traição de Iara assumindo inclusive a filha que não era dele. Também os homens podem ser dependentes emocionais das mulheres e vítimas de violência conjugal. Iara não é só vítima do incesto da filha. Ela também participou nas “sessões de casais trocados” em relações sexuais que envolviam pais e filhos e filhas. Iara aparece nestes relatos como também abusadora de sua filha ou, no mínimo, como transgressora das normas sexuais normatizadas por nossa cultura, em especial no que tange à sexualidade feminina, que deve ser recatada e pudica. Estes elementos aparecem nos mitos de Lilith (Koltuv, 1986), em ‘Medéia’ e nas ‘Bacantes’ (Rinne, 1988) e nas orgias das bruxas pesquisadas por Maluf (1993). Talvez os mitos 151 representem as explicações sobre a ordem social (Strey, 1998) que não podem circular livremente na realidade, ficando apenas no imaginário mítico. De toda forma, tais mitos significam que essas posições ocupadas pelas mulheres, mesmo que reprimidas pelo poder patriarcal, têm um lugar na constituição dos discursos e das subjetividades. As diferentes possibilidades de subjetivação feminina estão presentes nos discursos encontrados nesta investigação, basta resgatar e dar visibilidade aos poderes femininos e às possibilidades de transgressão e de resistência que as mulheres têm desenvolvido ao longo da história nas mais variadas culturas. Assim, “paralelamente à imagem do belo sexo, surgem as figuras das bruxas. No fundo, as feiticeiras disputavam um grau de conhecimento que escapava ao poder masculino; por isso era ameaçador” (Menezes, 2002, p. 17). A possibilidade de transgressão ao poder patriarcal representada pelas feiticeiras e pelas bruxas não aparece só em mitos. Talvez por isso que, segundo Alves (2001), no imaginário popular circule a frase “No creyo en las bruxas, más que las hay, las hay”. Pesquisa (Fonseca, 1997) documental em arquivos históricos brasileiros de processos legais relativos à violência contra as mulheres revelou que nem todas as mulheres eram vítimas. Desde a época colonial, muitas mulheres, mães e pobres abandonavam o lar e mudavam de cidade para escapar ao juiz, para desafiar a autoridade do marido ou, quem sabe, simplesmente para realizar um projeto de felicidade pessoal e fugir com um novo amor ou um novo amante. Estas mulheres moviam processos de divórcio para se protegerem da violência doméstica e para resgatar os filhos que lhe haviam tomado. Em muitas famílias, a matrifocalidade era o eixo do grupo doméstico, tendo os ‘maridos’ eventuais um papel secundário. Contrariando Lèvi-Strauss (1908/1982), parece que nestas famílias eram os homens que circulavam entre as mulheres. Na família de Iara, esta circulação de homens é evidente e, inclusive, é ela quem ‘troca’ o pai abusivo pelo filho Aquiles, protetor e não violento, segundo ela, que a apóia e a valoriza. Aquiles é 20 anos mais jovem que Iara. Ela conta, rindo, que “agora entende e vê que é parecida com a mãe que gostava de curtir a vida com os gurizinhos”. Nossa estrutura social parece fundar em relações de dominação e expropriação que caracterizam um Brasil que foi violentado (Narvaz & Koller, 2004a). Nosso país nasce da violência da exploração de seus recursos naturais, de seu povo, de sua cultura, de sua língua, de suas tradições e de seus costumes, tendo sido, inclusive, o último país a abolir o tráfico humano e a escravatura. O silenciamento da língua nativa, dos costumes e da cultura dos povos colonizados, bem como a utilização das mulheres e crianças índias como objeto de satisfação sexual são símbolos deste estupro institucionalizado (Cezar, 2000). Por outro lado, 152 esse mesmo estupro institucionalizado, oriundo da dominação imposta pela colonização (Holanda, 1936/1995), conferiu ao nosso povo uma ‘hibridização antropofágica’ (Rolnik, 1998a). A miscigenação advinda da colonização constitui um povo que tem uma certa facilidade para desfazer-se de identidades homogêneas e incorporar, antropofagicamente, diversos traços. Uma vez que “nossa fundação e nossa história são pontuadas por mestiçagens. Habituados a nascer e renascer das misturas, somos constitutivamente híbridos” (Rolnik, 1998a, p. 67). O incesto pode ser compreendido como uma reprodução, no âmbito doméstico, desse estupro institucionalizado (Cezar, 2000). Os homens reproduzem na esfera interpessoal a violência constituinte das relações macrossociais (Bravo, 1994) que conferiram, ao longo da história e nas mais variadas culturas, prerrogativas de propriedade masculina sobre os corpos das mulheres, tal qual os reis, soberanos e os senhores feudais outrora tiveram sobre seus escravos, sobre suas famílias e sobre seus condenados (Engels, 1884/1964; Foucault, 1975/2002). Essa transmissão transgeracional histórica vem reproduzindo não só relações de poder e de dominação, mas também discursos estereotipados, binários e hierárquicos de gênero (Butler, 2000, 2003; Scott, 1986) através dos quais os corpos e as subjetividades feminina e masculina são habitados e engendrados. Essa miscigenação e hibridização foram encontradas na análise do discurso de Iara, cuja heterogeneidade de posições ocupadas, ora de submissão, ora de transgressão e de resistência, revelam a heterogeneidade das mulheres e do povo brasileiro. Ao longo da história de vida de Iara, os papéis vividos por homens e mulheres na família pesquisada evidenciaram as possibilidades de subversão e de transgressão da ordem patriarcal que prescreve a submissão das mulheres aos desejos masculinos e aos valores de virgindade, de fidelidade e de monogamia (Engels,1884/1964; Reich, 1966; Schelsky, 1968). Também o papel materno é percebido de forma heterogênea. Se, por um lado, a mãe biológica de Iara é culpabilizada por não ter criado a filha, por outro, é vista como importante fonte de apoio ao cuidar de Ana para Iara poder trabalhar, ao dar-lhe dinheiro e conselhos para que Iara estivesse perto do filho Gabriel e, ainda, por “dar-lhe colo”, literalmente, quando Iara diz ter resgatado a relação com a mãe na vida adulta. Não há, portanto, como demarcar uma única posição na percepção do papel materno quer de Iara em relação à sua mãe biológica, quer de Iara em relação a seu filho e filhas. Embora Iara não tenha tido um bom vínculo e nem tenha sido uma mãe efetivamente protetiva para a filha Ana, verbaliza “que com a Vanessa foi diferente, que foi uma boa mãe, que é amiga dela e que agora está denunciando, fazendo tudo”. Iara percebe-se, na relação com Vanessa, uma mãe protetiva e destaca que “a Vanessa é diferente, ela não baixa a cabeça (risos)”. Iara sugere, orgulhosa, que Vanessa é diferente 153 dela “porque eu na infância apanhava e não sabia me defender, e a professora não fazia nada também”. Iara ocupou, assim, diferentes posições-sujeito em seu papel de mãe diante do abuso das filhas ao longo de sua história de vida. O papel materno deve ser compreendido como heterogêneo. As mulheres, meninas ou mães não são boas ou más, de forma absoluta ou essencialista, mas desempenham seu papel dentro do contexto das condições concretas de existência de que dispõem e da rede de apoio com a qual podem contar (Brito & Koller, 2002). Iara destaca que em sua infância “a professora não fazia nada também”, quanto ao fato de Iara “apanhar e ser um bichinho do mato”, o que revela a falta de preparo da escola (Brino & Williams, 2003; Fontes, 1993) em perceber sinais de possíveis abusos cometidos contra as crianças e a falta de apoio do sistema educacional. Ao mesmo tempo, sua fala sugere que, agora que “está protegendo a Vanessa” esta, tendo apoio e modelo de mãe protetiva, “não baixa a cabeça”. A análise do discurso de Iara aponta, em vários segmentos que o apoio e a informação sobre sexualidade, direitos e leis de proteção obtidos nos recursos de suporte comunitário, institucional e social foram fundamentais ao engendramenrto da posição de resistência agora ocupada diante do abuso de Vanessa. “Agora tem mais informação, tem programa de tv e eu converso sobre tudo com a Vanessa, sobre sexo, camisinha, até abuso”, conta ela. “Lá no Conselho (tutelar) agora me orientaram direito e disseram que agora eu tava no caminho certo vindo aqui na terapia (...) e o investigador da Delegacia da mulher me disse que muitas mulheres não denunciam porque têm medo, mas elas têm que acreditar, que saber a lei e que tem uma proteção, que tem alguém que vai ajudar elas”, menciona Iara. O apoio conjugal de Aquiles, o atual companheiro, que se dispôs a depor a favor de Iara, mesmo contra o pai é também valorizado por ela. Inscreve-se aqui o apoio conjugal, familiar, comunitário e institucional como fator de apoio e de suporte necessário para a superação da condição de risco e submissão (Amendola, 2004; Brito & Koller, 2002; Garmezy & Masten, 1994; Koller, 1999; Robinson & Garber, 1995; Rutter, 1987). Diversas pesquisas que envolveram mulheres em situação de violência (Cardoso, 1997 a, 1997b; Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Meneghel & cols., 2003) confirmam a importância dos fatores de apoio nos casos de violência. Para que seja rompido o ciclo da violência, é necessário que exista uma rede articulada de apoio à mulher agredida, que nem sempre silencia, bem como uma escuta competente que possa realmente acolher sua denúncia e oportunizar a ela e a sua prole adequada proteção (Camargo, 1998; Miller, 1994; Penn, 1988; Soares, 1999; Strey, Werba & Nora, 2004). 154 Foram criados, nesse sentido, vários mecanismos legais de proteção à infância e à adolescência nas últimas décadas, entre eles o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). No que tange às mulheres, ainda que o Brasil seja signatário de vários documentos que preconizam a eliminação de todas as formas de discriminação e de violência contra as mulheres (Negrão, 2002, 2004; Prá, 1997, 2001), a cidadania, para as mulheres, ainda é ficção (Carvalho, 2002; Dias, 2004b). Há que se distinguir cidadania formal, garantida pela Lei, de cidadania substantiva, definida como a capacidade efetiva do exercício dos direitos formais (Prá, 2001). Mesmo sendo pioneiro na criação das Delegacias da Mulher, na década de 1980, o Estado brasileiro ainda tem uma rede de apoio e de cuidados ineficiente às mulheres. A maioria das Delegacias da Mulher trabalha com parcos recursos humanos e quase sem apoio institucional, sendo poucas as brasileiras privilegiadas com o acesso a tais equipamentos, precários e inexistente em mais de 90% das cidades brasileiras (Oliveira, 2004; Strey, Werba & Nora, 2004). Os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes desconhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brino & Williams, 2003), estando igualmente despreparados e sem apoio institucional para cumprirem com a doutrina de proteção integral à infância e à adolescência. Também nos sistemas de saúde há despreparo e preconceito quanto às mães das vítimas de incesto. Pesquisa recente (Amendola, 2004) denuncia o papel que os laudos psicológicos podem cumprir como instrumentos de condenação prévia destas mulheres. Segundo esta pesquisadora, há mães protetivas que denunciam os abusos das filhas e há outras que são as “mães que choram, que não realizam denúncia aos Conselhos Tutelares ou à polícia e permanecem sobre a mira dos homens que anteriormente ameaçaram e violentaram seus filhos” (Amendola, 2004, p. 151). Este estudo revelou ainda a dificuldade das psicólogas que lidam com violência doméstica às quais é imposta a denúncia dos casos, conforme as leis brasileiras. Ao mesmo tempo, estas profissionais devem ser continentes das projeções e das confusões das mães das vítimas de incesto, devolvendo-lhes de forma elaborada a confusão a fim de auxiliá-las a elaborarem seus conflitos. Conforme Hirigoyen (2002), muitos psicólogos têm sua capacidade de resistência limitada diante do esgotamento psíquico que envolve o trabalho com a violência. Nesse sentido, penso que muitos deles adotam posições condenatórias das mulheres-mães das vítimas de incesto por estarem capturados pelos discursos patriarcais que invadiram a ciência psicológica (Strey, 2000). Talvez como forma de defesa à confusão que a heterogeneidade da subjetividade humana suscita, adotar uma postura unívoca de condenação, ou mesmo de absolvição, mas sempre de julgamento das mães das vítimas de incesto possa reconduzir à estabilidade das certezas que marcam a segurança da 155 ciência positivista (Chalmers, 1983). Talvez seja mais confortável, menos ansiogênico defender-se “das novas figuras do caos, das mutações da subjetividade contemporânea” (Rolnik, 2001, p. 25) através de algumas estratégias de defesa que “têm em comum basear-se numa mesma concepção de caos, de ordem e de relação entre ambos. O niilista, estaria do lado do caos, entendido como negativo da ordem; já o romântico e as minorias, xiitas ou não, estariam do lado da ordem, associada a equilíbrio, variando apenas as suas figuras. Ora, se há um combate a ser travado, seu alvo é a própria polaridade ordem/desordem. No campo da subjetividade isso implica combater o regime identitário, não em nome de uma subjetividade pulverizada, mas para dar lugar a um outro princípio de individuação” (Rolnik, 2001, p. 28). Discursos homogeneizantes e culpabilizantes sobre o feminino e, no caso, sobre uma mulher-mãe de vítimas de incesto parecem ter a função de manter as mulheres no pólo da dominação, servindo à lógica patriarcal. Discursos condenatórios, principalmente, das mães circulam pela ciência psicológica (Fonseca, 1997b; Strey, 2000) há muito tempo e ainda na atualidade (Delgado & Fisberg, 1980). Tais teorias estigmatizam as mulheres, homogeneizando-as como co-autoras e culpadas pelos abusos sofridos, tanto por elas quanto pelas filhas. Às mães negligentes, não protetivas ou sexualmente não responsivas aos desejos sexuais dos maridos são atribuídos vários distúrbios psiquiátricos, rotuladas de doentes mentais (Miller, 1994; Miller, 2002). O discurso sobre violência doméstica tem sido o discurso da família agressora, cujos efeitos produzem não só a significação da família brasileira como “monstruosa, perversa, doente, mas produz determinadas práticas de intervenção e de atendimento (...) marcadas pelo conceito de defesa e proteção (...) que se constituem em sistemas de controle” (Roure, 2001, pp. 63-65). Inscreve-se aqui o papel normatizante das disciplinas, entre elas a psicologia, ao servir como mecanismo disciplinar e de punição: “o juiz não julga mais sozinho, proliferando uma serie de instâncias anexas. Um saber, técnicas, discursos científicos se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir (...). Um exército de técnicos veio substituir o carrasco, entre eles os psiquiatras, médicos e psicólogos e educadores, guardas e capelães. O laudo psiquiátrico, a antropologia criminal e o discurso da criminologia, introduzindo as infrações no campo do conhecimento científico, dão ao mecanismo da punição legal um poder justificável, não mais apenas sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que fizeram, mas sobre o que são e serão, ou possam ser (...) julgando não mais os crimes, mas a alma dos criminosos” (Foucault, 1975/2002, pp. 20-25). Apesar da necessidade de dar visibilidade aos fatores que contribuíram ao engendramento da posição de submissão da mulher-mãe pesquisada, a percepção 156 estereotipada, unívoca e homogeneizante (Mutti, 2003; Pêcheux, 1969/1983) de uma mulhermãe de vítimas de incesto pode operar a favor da subordinação das mulheres (Millet, 1970; Strey, 2000; Zuwick, 2001). Há discursos que podem repetir-se contra sua própria origem (Butler, 2000, 2003; Foucault, 1995) e continuar capturados pela formação discursiva original, ou seja, o discurso patriarcal homogeneizante da dominação e da vitimização feminina. Nesse sentido, perceber as mulheres apenas e sempre como incapazes de agir ou de reagir pode funcionar como discurso que as mantêm numa posição de subordinação, o que facilita a dominação (Strey, 2000, 2004; Studart, 1994). Há, portanto, que se explodir com a lógica patriarcal homogeneizante e unívoca implícita no discurso da vitimização e, por extensão, da dominação feminina. As mulheres são plurais, tensas, heterogêneas e se constituem enquanto sujeitos em um campo político de relações marcado por posições que deslizam entre o ‘livre assujeitamento’ (Butler, 2000, 2003; Foucault, 1995, 1999; Orlandi, 1988; Pêcheux, 1969/1983) e a resistência. Coexistem ambas as posições na história de vida de Iara. Os recursos de apoio e de suporte social foram necessários (Brito & Koller, 2002; Cardoso, 1997a, 1997b; Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Narvaz & Koller, 2004a) para a superação da condição de risco e de subordinação que caracterizaram sua posição-sujeito de submissão. Nesse contexto é que deve ser compreendida a posição de uma mulher-mãe de vítimas de incesto diante do abuso das filhas. No caso investigado, a mesma mulher-mãe ocupou diferentes posições diante do incesto das filhas, aparecendo associadas a estas diferentes posições diversos aspectos, dentre eles a presença de recursos de apoio como fatores facilitadores da posição de resistência. Ao ser apoiada, Iara “reagiu, denunciou, agora está fazendo tudo e, se pudesse, voltaria atrás e faria diferente, esperando que essa ‘terapia’ que está fazendo possa auxiliála a resgatar a relação com a filha Ana”. Cabe aqui ressaltar que o contexto de uma investigação também pode ser um contexto de apoio (Cecconello, 2003; Szymanski, 2001; Yunes, 2001) e de empoderamento (Leon, 2000). No contexto reflexivo e respeitoso da entrevista, consoante com as epistemologias feministas (Harding, 1986) a participante parece ter-se sentido apoiada e valorizada. Conforme Szymanski (2001), a simples escuta da entrevistadora pode ser interpretada como fonte de apoio, especialmente quando promove reflexão sobre sua história de vida, o que se confirma aqui. Nesse sentido, entendo que, nesta investigação, a pesquisadora pôde servir como modelo alternativo de ‘cuidador não abusivo’ e de recurso de apoio, oferecendo informações, resgatando as capacidades e as competências de Iara, auxiliando-a a refletir sobre discursos incorporados de culpa que foram re-significados ao longo da entrevista, na qual explicita que “eu fiquei pensando naquilo que tu me disse (a pesquisadora), 157 que eu também fui abusada e não contei...Eu acho que é muito difícil mesmo conta”. Na segunda entrevista, que durou cerca de três horas, a participante parecia não querer terminar a entrevista. Essa impressão foi confirmada por diversas falas. Em uma dessas falas, Iara chorou, mencionando ter ficando emocionada com o agradecimento feito pela pesquisadora e pela equipe pelo fato de “termos aprendido muito com ela”. Também o comentário feito pela pesquisadora sobre Iara ser “uma mulher lutadora e corajosa, dispondo-se a falar de temas tão difíceis” foi importante, segundo ela: “vi que eu era uma lutadora mesmo e que estava pretendendo mudar de profissão e trabalhar como cabeleireira, um sonho antigo, pois assim poderia se cuidar mais”. Em outro momento, aludindo às entrevistas realizadas para a coleta de dados, disse que “essa ‘terapia’ estava lhe fazendo muito bem”. Em função disso, Iara buscou terapia com uma psicóloga no posto de saúde perto de sua residência, a fim de poder continuar a conversar e a desabafar, pois isto a ajudava a sentir-se aliviada. Ao final do processo, a pesquisadora colocou-se à disposição para acompanhar o caso junto à instituição na qual Iara e a filha Vanessa estão sendo atendidas, caso fosse do interesse de Iara, ao que ela agradeceu, parecendo sentir-se, mais uma vez, apoiada e valorizada. 158 Capítulo IV CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo, que não foi realizado “nem para dar nem para ter sossego” (Fonseca, 2000a, p. 15) tratou de temas controversos, tais como organizações familiares, incesto, patriarcado, poder, papéis familiares e de gênero. As reflexões tecidas ao longo desta investigação construíram-se com o objetivo de compreender as diferentes posições, ora de submissão, ora de resistência assumidas por uma mulher-mãe de vítimas de incesto que teve sua história de vida marcada por diversas formas de violência. Os resultados apontaram que a concepção de família desta mulher-mãe correspondeu aos ditames patriarcais da família normativa, organização patriarcal, nuclear, monogâmica e burguesa, ainda que não tenha sido este o modelo de família efetivamente vivido em sua história. O desejo de ter uma família e de manter a família unida encontrado no relato da participante parece ter sido um dos fatores que contribuiu à posição de submissão a várias formas de violência vividas por ela e por suas filhas. A análise do discurso desta mulher-mãe revelou também que a prescrição dos papéis familiares ao longo das configurações de família vividas foi ditada pelos ditames patriarcais, segundo uma divisão rígida e tradicional de papéis na família, com diferentes funções previstas para o homem e para a mulher, em que o homem tem a função de provedor e chefe da família e a mulher tem a função de cuidar do lar e dos filhos. Apesar destas prescrições, os papéis efetivamente vividos foram heterogêneos, ora cumprindo, ora subvertendo a ordem patriarcal. A análise dos dados encontrou, neste estudo, que o relacionamento familiar nas famílias incestuosas foi marcado por diversas formas de violência, caracterizando-se por uma distribuição desigual de poder, cabendo ao homem-pai-marido as decisões quanto às regras a serem seguidas pela família que se submeteu ao poder masculino patriarcal. O poder patriarcal, ao mesmo tempo em que prescreveu a obediência e a submissão na família pesquisada, suscitou resistências. As mulheres-mães das vítimas de incesto e suas filhas ocuparam, assim, diferentes posições diante das violências sofridas, ora de submissão, ora de resistência. A compreensão das diferentes posições de uma mulher-mãe de vítimas de incesto diante dos abusos sofridos por ela e pelas filhas sugere que diversos aspectos devem ser considerados. Foram identificados alguns fatores e processos que contribuíram à posição de 159 silenciamento e de submissão da participante aos abusos sofridos, entre eles: vivências de violência na família de origem; a re-vivência do abuso sexual sofrido em sua infância e a falta de modelos de família protetiva; as estratégias de culpabilização das vítimas, acusadas de sedutoras pelo perpetrador do abuso; o desejo de ter uma família e de manter a família unida; a dependência emocional e econômica dos parceiros abusivos; o medo do companheiro abusivo, que era violento fisicamente fazia uso de álcool; a prescrição de obediência e submissão engendrada pelo poder patriarcal; e, a falta de apoio familiar, comunitário e/ou social. A posição de resistência da participante e de suas filhas às violências sofridas que foram desveladas nesta investigação envolveu várias formas de transgressão aos ditames patriarcais a elas impostos, tais como fuga, a separação dos companheiros, a traição dos mesmos e a denúncia das violências sofridas. Contribuíram ao engendramento da posição de resistência a revolta causada pela opressão do poder patriarcal e o acesso a recursos de apoio familiar, comunitário, institucional e social competentes e efetivos disponíveis à participante e às suas filhas, inscrevendo-se, também como fator de apoio, o contexto desta investigação. Os resultados encontrados evidenciaram a complexidade de fatores envolvidos na compreensão da história de vida de uma mulher-mãe de vítimas de incesto e indicaram, ainda, a associação entre ditames patriarcais e capitalistas na produção do fenômeno da violência nas famílias incestuosas. Tais ditames parecem ter engendrado discursos sobre a culpabilidade e a conivência materna diante do incesto da filha, discursos estes que, incorporados pelas disciplinas, entre elas, a psicologia, reforçam o discurso patriarcal homogeneizante da vitimização e da dominação feminina. Ao dar visibilidade às formas de resistência das mulheres diante dos abusos sofridos, este estudo explode com a lógica patriarcal homogeneizante da dominação das mulheres como vítimas assujeitadas. A mulher-mãe participante desta investigação mostrou-se plural, heterogênea, tensionada entre a submissão e a resistência em sua história de vida. As diferentes posições ocupadas por uma mulher-mãe diante do incesto da filha devem ser situadas dentro do contexto histórico das relações de poder e de dominação. Precisamos, portanto, avaliar que condições as mulheres-mães acusadas de cúmplices têm para vencer o complô do silêncio que cerca o fenômeno do incesto, no qual desempenham igualmente o papel de vítimas (Azevedo & Guerra, 1995; Laird, 2002; Miller, 1994). As mulheres não podem ser culpabilizadas pelas violências que sofrem, não sentem prazer com a violência e nem sempre silenciam diante dos abusos sofridos (Cardoso, 1997a, 1997b; Narvaz, 2000a, 2002b; Ravazzola, 1997, 1999; Zuwick, 2001). Não são apenas vítimas as mães e suas filhas vítimas de incesto. São também sobreviventes e têm, ao longo da história, articulado estratégias de resistência à dominação masculina (Grossi, 160 2001; Herman, 1991; Miller, 1999; Strey, 1998). Embora caiba também às mulheres-mães buscar soluções para o problema, sob o risco de serem tuteladas e, com isso, cristalizarem uma posição de vitimismo (Gregori, 1993), faz-se fundamental a existência de uma rede de apoio que as auxilie a romper com o ciclo de isolamento e segredo típicos das situações abusivas (Cardoso, 1997a, 1997b; Cecconello, 2003; Dutton, 1997; Giberti & Fernandez, 1989; Góngora, 2000; Martín, 2000; Meneghel & cols., 2003). Os resultados encontrados confirmam a importância dos recursos de apoio nos casos de violência já encontrados em outras investigações (Cardoso, 1997a, 1997b; Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Meneghel & cols., 2003). As mulheres denunciam, pela transgeracionalidade de sua vulnerabilidade, não só sua história individual ou familiar, mas a história coletiva do gênero feminino (Narvaz & Koller, 2004a). Iara representa muitas mulheres-mães, brasileiras, mestiças, pobres e vítimas da violência cotidiana da dominação patriarcal e da violência estrutural da pobreza (Saffioti, 1979, 1988, 2001; Prá, 2001). Cabe lembrar que “a história coletiva e individual são inseparáveis (...). No instante atual se inscreve o passado mais remoto, assim como a cicatriz individual é ferida histórica” (Matos, 2002, p. 111). Embora uma fala seja um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social (Brandão, 1983), este estudo tem limitações, uma vez que foi baseado em um único caso, sendo que as informações coletadas ocorreram a partir de um único membro de uma família incestuosa, ou seja, da mulher-mãe das vítimas de incesto. Novas investigações relativas à temática das famílias incestuosas são necessárias, envolvendo outras mulheres-mães de vítimas de incesto de diferentes classes sociais e de diferentes etnias. Pesquisas que envolvam a participação de outros membros de famílias incestuosas, tais como vítimas, irmãos das vítimas e perpetradores do abuso também são recomendadas. Estudos que investiguem a percepção de profissionais que trabalham com famílias e incesto igualmente são interessantes a fim de explorarem os discursos e as práticas que têm sido desenvolvidas, principalmente, pelos profissionais dos sistemas de saúde, da educação, do sistema legal e da assistência social. O conhecimento produzido ao longo desta pesquisa está impregnado de discursos e, como diz Foucault (1975/2002): “de relações de ‘poder-saber’ que não devem ser analisadas a partir de um sujeito de conhecimento livre das tramas do poder. Ao contrário, é preciso considerar que o sujeito que conhece, os objetos que conhece e as modalidades de conhecimento são efeitos dessas implicações do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito do conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder- 161 saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento” (p. 27). Não há, portanto, uma Verdade absoluta, mas diferentes formas de conceber a realidade conforme as filiações teóricas de cada pesquisador (Habermas, 1982) e as possibilidades discursivas e históricas de cada tempo (Foucault, 1969; Pêcheux, 1969/1988). Contudo, a busca da ‘Verdade’ sempre esteve presente na história (Nietzsche, 1860/ 2000), e é a ‘Vontade de Saber’(Foucault, 1990a) que move a ciência e a presente investigação. Este pensador reconhece a dominação de algumas minorias, entre elas as mulheres (Foucault, 1995), e entende ser necessário que tais minorias lutem por sua libertação. No entanto, para ele, o trabalho de um intelectual estaria em problematizar a realidade e questionar as formas próprias de pensar e atuar em cada tempo e, assim, participar na formação de uma atividade e de uma consciência política. O problema político essencial para o intelectual seria, então, o de desvelar o sistema de poder que interpreta, proíbe e invalida os discursos e os saberes das massas que, segundo ele, já sabem, não necessitando do intelectual para saber (Foucault, 2000): “o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar libertar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém, nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposta há vários” (Foucault, 1995, p. 239). Contudo, “sem o poder para colocá-las em prática, as verdades não tem nenhuma utilidade. Elas permanecem acadêmicas” (Reich, 1933/1988, p. 307). Se, enquanto psicólogas, não somos chamadas a intervir diretamente nos mecanismos que engendram as estruturas injustas de poder, podemos, enquanto pesquisadoras, contribuir para o desvelamento dos processos subjetivos que sustentam, viabilizam e legitimam essas estruturas (Martín-Baró, 1997), compromisso que assumimos com o presente estudo. Conforme Martín-Baró (1997), “o trabalho do psicólogo deve ser definido em função das circunstâncias concretas da população a que deve atender (...) e pressupõe que (...) recoloque seu conhecimento e sua práxis ao assumir a perspectiva das maiorias populares e opte por acompanhá-las no seu caminho histórico em direção à libertação” (p. 7). Confesso que tentei finalizar estas considerações com a proposta de Martin-Baró (1997), mas Iara, que é uma “guerreira e batalhadeira que nem a mãe” invadiu minha escrita e se impôs aqui através de suas falas. Penso que ela quer nos lembrar (a mim e aos prováveis leitores e leitoras deste estudo) de algumas dores causadas por feridas e cicatrizes que ela traz consigo, que são individuais mas também históricas, como diz Matos (2002). Suas falas talvez sejam um convite para que nós (eu e outros pesquisadores e pesquisadoras) possamos estar 162 comprometidos/as com as mulheres, que um dia também foram meninas e que “não têm lembranças boas da infância, cujas lembranças são as de apanhar e a da boneca que prometeram no Natal, mas que nunca veio”. As falas de Iara certamente seguirão para muito além desta pesquisa e ecoarão ao longo da minha história de vida. Estas falas provavelmente se impuseram aqui para que eu jamais esmoreça na luta contra a ordem patriarcal e capitalista da dominação, da exploração e da competição perversa e possa continuar tentando “liberar a vida lá onde ela é prisioneira” (Deleuze & Guatarri, 1997, p. 23). 163 Referências Adorno, T. M. & Horkheimer, M. (1966). 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Porto Alegre: Edipucrs. ANEXO A ROTEIRO DE ENTREVISTA I. Rapport inicial: Apresentação da entrevistadora e da equipe de pesquisa. Explicitação dos objetivos da entrevista e do estudo. Leitura e discussão do Consentimento Livre e Esclarecido e da Autorização para gravação das entrevistas junto com a participante da pesquisa. II. Entrevista propriamente dita: Dados biodemográficos Nome: Idade: 189 Filiação: Escolaridade: Ocupação: Situação conjugal: Residência: Número de filhos: 1) Fale-me um pouco sobre o que é família para você e quem é sua família 2) Fale-me sobre sua história de vida, sua infância, sobre seus pais, sobre sua família. Descreva como era sua família e como eram os relacionamentos familiares 3) Fale-me de sua vida escolar 4) Fale-me de sua adolescência, amizades, namoros e descoberta da sexualidade 5) Fale-me de sua entrada na idade adulta, trabalho, casamento ou companheiros 6) Fale-me de sua vida atual, de sua família atual, da sua relação com seu companheiro, da sua relação com seus filhos/as 7) Fale-me um pouco de sua relação com sua filha que foi vítima de abuso sexual desde que ela nasceu 8) Fale-me sobre a situação do abuso de sua filha, como foi, com quem foi, como você ficou sabendo, quando, o que você sentiu e pensou ao saber do abuso - como se deu a revelação do abuso? - já havia suspeita de que o abuso estivesse ocorrendo? Como? Há quanto tempo? - você já sabia do abuso antes da revelação? - quais os sentimentos e pensamentos suscitados pelo evento? - quais as atitudes tomadas imediatamente após a revelação? - o agressor foi afastado do lar? - a vítima foi afastada do lar? - você teve que sair da casa onde residia? - a revelação afetou sua relação com sua filha? de que forma? - a revelação afetou a relação com os outros filhos? De que forma? - a revelação afetou sua relação com sua família extensa? Como? - a revelação afetou a relação com o companheiro abusador? de que forma? - a experiência afetou sua auto-imagem enquanto mulher e enquanto mãe? Como? - a revelação afetou as condições concretas de sua vida? de que formas? - quais os recursos acessados após a revelação? familiares? comunitários? legais? - você teve algum tipo de apoio quando soube da situação do abuso? De quem? 190 - que dificuldades você encontrou nesse processo? - como você descreveria sua situação de vida atual? - se você pudesse voltar atrás no tempo, faria algo diferente? O quê? Por quê? - 9) Você foi vítima de alguma forma de violência na sua infância? E na adolescência? E na sua vida adulta? Fale-me um pouco sobre isso, sobre o que você sentiu, se você contou isso para alguém, se acreditaram em você, se você teve apoio de alguém - 10) Alguém mais em sua família foi vítima de alguma forma de violência? De que forma? - 11) Você acha que o fato de ter vivido alguma destas formas de violência tem alguma relação com o que aconteceu com sua filha e com a atitude que você teve diante da situação de abuso que ela sofreu? - 12) Você gostaria de dizer alguma outra coisa que não foi perguntada e que acha importante? - 13) Como você se sentiu respondendo a estas questões? III. Finalização: Gostaríamos de agradecer sua disponibilidade de participar destas entrevistas. Certamente sua contribuição vai ser importante para entendermos o que acontece nas situações de abuso sexual e, com isso, propormos algumas medidas que possam auxiliar a sociedade e as famílias, em especial às meninas vítimas de incesto e suas mães no enfrentamento deste tipo de violação de seus direitos. ANEXO B TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Pesquisa: Quem são as mães das vítimas de incesto? Problematizando a cumplicidade materna diante do abuso sexual da filha Coordenadora: Mestranda Martha Giudice Narvaz, sob a Orientação da Dra. Sílvia Helena Koller. 1. Natureza da pesquisa Você é convidada a participar desta pesquisa, que tem como finalidade investigar as histórias de vida, as atitudes, percepções e sentimentos passados e atuais das mulheres cujas filhas sofreram abuso sexual incestuoso. A pesquisa procura ainda identificar possíveis abusos 191 sexuais sofridos por você ou outros membros de sua família, bem como investigar a que recursos de apoio você recorreu ao saber do abuso sofrido por sua filha. 2. Participantes da pesquisa A participante da pesquisa será uma mulher adulta, mãe de meninas e/ou adolescentes do sexo feminino que tenham sido vítimas de incesto. 3. Envolvimento na pesquisa Ao participar deste estudo você deve permitir que um membro do grupo de pesquisa deste projeto entreviste você. As entrevistas podem ser em sua residência ou em sala previamente determinada nas dependências do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas de Porto Alegre onde serão coletados os dados para este trabalho de pesquisa. O local, a duração e o número de entrevistas são flexíveis conforme sua disponibilidade e interesse, levando também em consideração o tempo para você contar a história da sua vida a partir das questões que serão feitas a você. São previstas até 03 entrevistas com cada participante, com a duração aproximada de 90 minutos cada uma delas. O tempo de duração e o número de entrevistas respeitarão seu interesse e disponibilidades. Como se trata de um tema que pode trazer lembranças e sentimentos talvez desconfortáveis, você terá apoio psicológico durante e mesmo depois das entrevistas, se você o desejar. Você poderá ser encaminhada também a algum serviço pública para atendimento, que poderá ser realizado no próprio Hospital onde serão feitas as entrevistas com você, ou em um posto de saúde perto de sua residência, se você preferir. Você tem a liberdade de recusar a participar e pode ainda se recusar a continuar participando em qualquer fase da pesquisa, sem qualquer prejuízo para você. Sempre que quiser você poderá pedir mais informações sobre a pesquisa. Poderá entrar em contato com a coordenadora da pesquisa através dos telefones 3316-5150 ou 9969-3763, ou com o Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas, localizado na Av. Independência, 661, em Porto Alegre, pelo telefone 3226-9264. 4. Sobre as entrevistas As entrevistas serão marcadas com antecedência. Serão solicitadas informações tais como, idade, emprego, composição de sua família de origem e de sua família atual. Serão feitas perguntas sobre sua história da vida, desde sua infância até sua vida atual e sobre seus sentimentos, seus pensamentos e atitudes diante do abuso sexual de sua filha. 192 5. Riscos e desconforto A participação nesta pesquisa não traz complicações legais, talvez, apenas, a mobilização de alguns sentimentos diante da temática que será abordada. Os procedimentos utilizados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética na Pesquisa com Seres Humanos conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos utilizados oferece riscos a sua dignidade. 6. Confidencialidade Todas as informações coletadas neste estudo são estritamente confidenciais. As gravações e os relatos de pesquisa serão identificados com um código, e não com o seu nome. Apenas os membros do grupo de pesquisa terão conhecimento dos dados. Se você der a sua autorização por escrito, assinando a Permissão para utilização das entrevistas gravadas, os dados poderão ser utilizados para fins de ensino e durante encontros e debates científicos. 7. Benefícios Ao participar desta pesquisa você não deverá ter nenhum benefício direto. Entretanto, esperamos que este estudo traga informações importantes sobre as questões relativas às vivências das mães diante do abuso sexual de suas filhas no Brasil. No futuro essas informações poderão ser usadas em benefício de outras mães e suas filhas. 8. Pagamento Você não terá nenhum tipo de despesa por participar desta pesquisa, bem como nada será pago por sua participação. Entretanto, você receberá cópias dos relatórios da pesquisa contendo os resultados do estudo se você desejar. Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto meu interesse em participar da pesquisa. Nome da participante da pesquisa Local e Data 193 Assinatura da participante da pesquisa Coordenadora da Pesquisa Martha Giudice Narvaz 194 ANEXO C Permissão para utilização de gravação em audiotape Eu, por meio desta, autorizo a pesquisadora Martha Giudice Narvaz e as integrantes de seu grupo de pesquisa, a utilizarem os dados contidos nas gravações em fita cassete realizadas comigo durante as entrevistas que fazem parte deste estudo. A permissão é para que as gravações e os dados nelas contidos possam ser utilizados em encontros científicos para ilustrar aspectos das questões envolvidas nos casos de abuso sexual, em debates entre grupos de pesquisa ou ainda para fins didáticos. Eu estou ciente de que as pessoas envolvidas na pesquisa, a começar pela participante que será entrevistada, não serão identificadas pelo nome, exceto na medida em que eu estiver falando algum nome de meus familiares durante a entrevista. Nome da participante da pesquisa Assinatura da participante da pesquisa Local e Data 195