UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA O rio se renova, permitindo que os erros do passado sejam corrigidos: Estado e sociedade nas iniciativas para a recuperação ambiental do Guaíba (1979-2004) Antonio João Dias Prestes Porto Alegre, 2012 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA O rio se renova, permitindo que os erros do passado sejam corrigidos: Estado e sociedade nas iniciativas para a recuperação ambiental do Guaíba (1979-2004) Antonio João Dias Prestes Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Banca Examinadora: Prof. Dr. Luiz Alberto Grijó (orientador) (PPGH/UFRGS) Profª Drª Regina Weber (PPGH/UFRGS) Profª Drª Adriana Schmidt Dias (PPGH/UFRGS) Profª Drª Marluza Marques Harres (PPGH/UNISINOS) Porto Alegre, 2012 2 Porto Alegre e a orla do Guaíba Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1521182, acessado em julho de 2012 “O rio resiste como pode, mas a natureza também tem o seu limite. E um dia, quando os moradores da cidade finalmente se dão conta, o rio está morto. Seria este um castigo merecido, mas a natureza às vezes é tolerante e dá aos humanos uma segunda chance. Porque o rio se renova incessantemente e, ao se renovar, permite que os erros do passado sejam corrigidos. O que não é, obviamente, uma empresa fácil. É preciso muito esforço, muita dedicação – e também muito dinheiro – para remediar o mal. Mas justamente porque o esforço, a dedicação e o dinheiro são necessários, este empreendimento torna-se uma medida indireta do grau de civilização de uma cidade.” (Moacyr Scliar. Recuperando o sonho. Revista Ecos. Porto Alegre, 1993) 3 Agradecimentos Agradeço ao professor Luiz Alberto Grijó, meu orientador no mestrado, por seu encorajamento, diante de uma temática de exploração ainda recente, e por contribuir de forma decisiva para esta dissertação, com sua crítica sempre atenta, segura e tranquila. Agradeço às professoras Adriana Schmidt Dias e Regina Weber, por suas valiosas críticas e sugestões durante o exame de qualificação, as quais foram muito importantes para o desenvolvimento deste trabalho, quando o mesmo ainda era pouco mais do que uma carta de intenções. Agradeço a elas, novamente, e também à professora Marluza Marques Harres, por aceitarem participar da banca examinadora do mestrado, lendo de forma atenta minha dissertação, e enriquecendo o trabalho com sua crítica, junto com seu incentivo para futuros passos na vida acadêmica e profissional na história. Agradeço a todos os professores das disciplinas cursadas ao longo do mestrado, por sua atenção e contribuições a este trabalho. Agradeço às pessoas ligadas à área de gestão de recursos hídricos e à implantação do Museu das Águas de Porto Alegre com quem conversei acerca dos temas relacionados com este trabalho, pelas valiosas informações recebidas e por seu incentivo. Agradeço à minha família e aos amigos, por seu suporte e estímulo, e também por sua paciência, ao longo desta caminhada. 4 Resumo Esta dissertação tem como objetivo investigar em que medida os esforços para a recuperação ambiental do Lago Guaíba em Porto Alegre e na sua região metropolitana decorreram de uma participação mais intensa da população local na definição das prioridades para os investimentos públicos, e de que forma tem-se dado esta participação, identificando os agentes sociais envolvidos e seus limites de atuação. Não é possível abordar este problema sem considerar uma envoltória mais ampla, que inclua as relações da sociedade local com as praias do Guaíba e o aproveitamento paisagístico de sua orla urbana, dando conta de sua historicidade. O problema é estudado a partir de diferentes perspectivas, que estão interligadas. Em primeiro plano, são destacados os processos de exercício da cidadania e de formação de uma consciência social, no que se refere à mobilização popular para o atendimento de demandas básicas de qualidade de vida, como o saneamento básico, mas também o acesso a um meio ambiente não degradado. A consolidação destes processos, de uma forma mais efetiva, é fortemente associada à capacidade dos agentes sociais nele envolvidos de obter a intervenção do Estado, por meio da aplicação de políticas públicas especificamente voltadas ao atendimento destes objetivos. Palavras-chave: Lago Guaíba, Porto Alegre, saneamento básico, recuperação ambiental, participação social, gestão de recursos hídricos, políticas públicas, história ambiental. 5 Abstract This work aims to investigate the local society role in the efforts that had been performed towards the environmental recovery of the Lake Guaíba, in the city of Porto Alegre and its metropolitan area, addressing public investments prioritization processes, and identifying the social agents involved with the subject and their limits of actuation. Local society relations with lake’s urban shoreline and beaches, in a historical perspective are also addressed. The subject is studied from different perspectives, which are interconnected. In the first plane, the processes of citizenship exercise and social conscience formation, leading to people’s mobilization towards the extension of essential services, like basic sanitation, but also requesting environmental protection and recovery measures. The consolidation of these processes strongly depends on the involved social agent’s capability to obtain State’s intervention trough public policies specifically addressed to these objectives. Key Words: Lake Guaíba, Porto Alegre, basic sanitation, environmental recovery, social participation, water resources management, public policies, environmental history. 6 Lista de Figuras Figura 1. Bacia Hidrográfica do Guaíba (SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. Porto Alegre: Secretaria Executiva do Pró-Guaíba, 1998)..........................15 Figura 2. Condições das águas do Lago Guaíba em 2000, conforme a Resolução n° 20/1986 do CONAMA (BENDATI, Maria Mercedes et. al. V-076 - Avaliação da qualidade da água do lago Guaíba (Rio Grande do Sul, Brasil) como suporte para a gestão da bacia hidrográfica, disponível em http://www.asegergs.org.br/biblioteca/saneamento-basico/avaliacaoagua, acessado em setembro de 2009)................................................................................................................19 Figura 3. Um domingo de verão nas praias do Guaíba, nos anos 1940 (Revista do Globo, Porto Alegre, 1944)..............................................................................................................86 Figura 4. A Porto Alegre praiana dos anos 1950 (Revista do Globo, Porto Alegre, 1957).......87 Figura 5. Porto Alegre vê Montevidéu e os encantos do Rio da Prata nos anos 1950 (Revista do Globo, Porto Alegre, 1950).....................................................................................89 Figura 6. O verão da alta sociedade gaúcha dos anos 1950 na praia de Torres (Revista do Globo, Porto Alegre, 1957).....................................................................................................90 Figura 7. Em plena década de 1960, uma Porto Alegre ainda praiana (Zero Hora, Porto Alegre, 1965).......................................................................................................................91 Figura 8. Vistas aéreas da orla do Guaíba, com a enseada da Praia de Belas, nos anos 1950 (Revista do Globo, Porto Alegre, 1950)............................................................................97 Figura 9. A poluição do Guaíba pelo esgoto doméstico in natura da cidade, nos anos 1960 (Folha da Tarde, Porto Alegre, 1967)............................................................................102 Figura 10. Placas de advertências sobre a poluição das praias de Porto Alegre, presentes desde o início dos anos 1970 (Folha da Tarde, Porto Alegre, 1973)......................................105 Figura 11. Manifestações do Movimento Ecologista e do Governo do Estado sobre a despoluição do Guaíba, 1980 (Zero Hora, junho 1980; Correio do Povo, julho 1980, Porto Alegre).............................................................................................................................136 Figura 12. Estrutura e Objetivos do Programa “Guaíba Vive” (Revista Ecos, Porto Alegre: DMAE, 1997)....................................................................................................................185 Figura 13. No número inaugural, a Revista Ecos anuncia o começo da recuperação do Guaíba (Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, 1993).................................................................188 Figura 14. Nos anos 1970, o Lami visto como a praia do futuro (Folha da Tarde, Porto Alegre, 1971).....................................................................................................................189 Figura 15. Prefeitura de Porto Alegre divulgando a recuperação da praia do Lami como um dos resultados do programa “Guaíba Vive” (Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, 1997)...............................................................................................................................192 Figura 16. Prefeito banhando-se na praia de Belém Novo, durante o Fórum Social Mundial de Porto Alegre (Zero Hora, Porto Alegre, 2003)...................................................194 Figura 17. O balneário de Belém Novo nos dias atuais: ruínas do antigo hotel e pequena faixa de areia (RS – Porto Alegre – Bairro Belém Novo, disponível em 7 http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1076523, acessado em março de 2012; autor: Rene Hass)................................................................................................................................195 Figura 18. Prefeitura de Porto Alegre divulgando a remodelação da orla de Ipanema como um dos resultados do programa “Guaíba Vive” (Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, 1997)...............................................................................................................................198 Figura 19. O “Dia do Guaíba” é festejado com show na praia de Ipanema, em 1998 (Zero Hora. Porto Alegre, 1998)....................................................................................................202 Figura 20. Projetos do “Pró-Guaíba” e entidades executoras (SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. Porto Alegre: Secretaria Executiva do PróGuaíba, 1998)....................................................................................................................226 Figura 21. Quadro de Usos e Fontes do Módulo I do “Pró-Guaíba” (SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. Porto Alegre: Secretaria Executiva do PróGuaíba, 1998)....................................................................................................................228 Figura 22. Parque Estadual do Delta do Jacuí (Área de Proteção Ambiental Estadual) (http://hidroviasinteriores.blogspot.com.br/2010/08/saco-de-santa-cruz-projeto-imobiliario.html, acessado em março de 2012).............................................................................................................236 Figura 23. Parque Estadual de Itapuã – Praia do Araçá e o Farol de Itapuã, ao fundo, a entrada do Guaíba na Laguna dos Patos e a Ponta da Formiga (http://www.panoramio.com/photo/7760429, acessado em março de 2012; autor: Carlos Mocelin).....237 Figura 24. Parque Estadual de Itapuã – Praia das Pombas (Revista Ecos, Porto Alegre: DMAE, 2001; autor: Paulino Menezes)...................................................................................238 Figura 25. Remoção de antigos moradores da área do Parque Estadual de Itapuã (Zero Hora, Porto Alegre, 1997)....................................................................................................239 Figura 26. Estação de Tratamento de Esgotos Cachoeirinha/Gravataí (SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. Porto Alegre: Secretaria Executiva do PróGuaíba, 1998)....................................................................................................................241 Figura 27. O BID e a continuação do Programa “Pró-Guaíba” (Zero Hora, Porto Alegre, 2004)...............................................................................................................................243 8 Lista de Quadros Quadro 1. Histórico das Prioridades Regionais do Orçamento Participativo de Porto Alegre (1992 a 2004) (Fonte: Porto Alegre (1991-2004), CIDADE – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos, Porto Alegre, 2004 apud HILGERT, Nadia Andrea. O Acesso dos pobres à terra urbanizada no Orçamento Participativo de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2005, disponível em http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/NadiaAndreaHilgert.pdf, acessado em fevereiro de 2012, p. 62)...........167 Quadro 2. Perfil dos Investimentos em Saneamento Básico em Porto Alegre (1991 a 2000) (Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre. PI 1991 a 2000 apud SILVA, Débora Bernardo da. O Planejamento Urbano e a Administração Popular de Porto Alegre: Discursos e Práticas. Dissertação de Mestrado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRGS, Porto Alegre, 2004, disponível em http://hdl.handle.net/10183/7217, acessado em fevereiro de 2012, p. 139)......................................171 9 Lista de Siglas ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental ABES-RS – Sessão Gaúcha da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental ADFG – Ação Democrática Feminina Gaúcha ADFG/Amigos da Terra – Ação Democrática Gaúcha/Amigos da Terra AGAPAN – Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural ALERGS – Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul APEDEMA/RS – Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial) BNH – Banco Nacional da Habitação CEF – Caixa Econômica Federal CEEIG – Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia do Guaíba CESB – Centro de Estudos de Saneamento Básico, do DMAE CESBs – Companhias estaduais de saneamento COMITESINOS – Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente CONRHIRGS – Conselho de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul CORSAN – Companhia Riograndense de Saneamento CPE - Comissão Parlamentar Especial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, para estudar os problemas da poluição e do meio ambiente DEP – Departamento de Esgotos Pluviais de Porto Alegre DMAE – Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre 10 DMLU – Departamento Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre DRNR – Departamento de Recursos Naturais Renováveis do Rio Grande do Sul DRH – Departamento de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul EMATER/RS – Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural FEPAM - Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FZB – Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul GPOL – Grupo de Trabalho de Controle da Poluição, do DMAE MEG – Movimento Ecológico Gaúcho METROPLAN – Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional MJDH – Movimento de Justiça e Direitos Humanos OMS – Organização Mundial da Saúde (agência da ONU – Organização das Nações Unidas) OP – Orçamento Participativo PDDUA – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre PDT – Partido Democrático Trabalhista PEDJ – Parque Estadual do Delta do Jacuí PGE (PDE) – Plano Diretor Geral para os Esgotos Sanitários de Porto Alegre PISA – Projeto Integrado Socioambiental PLANASA – Plano Nacional de Saneamento PMPA – Prefeitura Municipal de Porto Alegre Pró-Guaíba – Programa para o Desenvolvimento Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PPS – Partido Popular Socialista PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira 11 PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro ROESSLER – Movimento Roessler para a Defesa Ambiental (Novo Hamburgo – RS) SEMA/MINTER – Secretaria Especial do Meio Ambiente, vinculada ao Ministério do Interior SEMA/RS – Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul SFS – Sistema Financeiro de Saneamento SERH – Sistema Estadual de Recursos Hídricos SMAM – Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre 12 Sumário Lista de Figuras...............................................................................................................7 Lista de Quadros..............................................................................................................9 Lista de Siglas.................................................................................................................10 INTRODUÇÃO.............................................................................................................15 1. DISCUSSÃO TEÓRICA, REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E FONTES................31 1.1. História ambiental..................................................................................................32 1.2. A orla e as praias do Guaíba na historiografia sobre Porto Alegre...................37 1.3. O contexto histórico e os elementos do problema: atores sociais e conflitos de interesses envolvidos com o tema da recuperação ambiental do Guaíba.................40 1.4. Eixos teóricos para a discussão: movimentos sociais, relações entre Estado e sociedade civil e os condicionantes estruturais...........................................................49 1.4.1. Movimentos sociais: natureza e possibilidades da ação coletiva.....................50 1.4.2. Relações entre Estado e sociedade civil: possibilidades e limites para uma participação mais ampla no estabelecimento das políticas públicas.........................56 1.4.3. Condicionantes estruturais atuando nas demandas dos agentes sociais e suas implicações numa crise que não é somente ambiental...............................................64 1.5. Fontes para o trabalho...........................................................................................71 2. ANTECEDENTES (DOS ANOS 1940 AOS 1970): DE UMA CIDADE TAMBÉM PRAIANA AO GUAÍBA POLUÍDO........................................................75 2.1. A criação do gosto pelas praias (mais de mar do que de rio).............................76 2.2. A cidade e as praias do Guaíba, entre os anos 1940 e o início dos anos 1970...81 2.3. A degradação ambiental das praias de Porto Alegre, na passagem dos anos 1960 para os 1970...........................................................................................................93 3. ANOS 1980: AS POLÍTICAS PARA O SANEAMENTO BÁSICO NO PERÍODO DA DITADURA, O AMBIENTALISMO GAÚCHO E O “PROJETO RIO GUAÍBA”.............................................................................................................110 13 3.1. As políticas para o saneamento básico no Brasil durante o período da ditadura civil-militar...................................................................................................................111 3.2. A questão ambiental do Guaíba nos anos 1980 na atuação e nas memórias do Movimento Ecológico Gaúcho.....................................................................................119 3.3. O fracasso do “Projeto Rio Guaíba”: falhas de concepção, esgotamento do modelo BNH/PLANASA, resistência do DMAE e críticas dos ambientalistas......138 4. PORTO ALEGRE, 1989 – 2004: A ADMINISTRAÇÃO POPULAR, O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E O PROGRAMA “GUAÍBA VIVE”..........148 4.1. A experiência de governo da Administração Popular e o Orçamento Participativo em Porto Alegre: conjuntura histórica e esquemas interpretativos..............................................................................................................149 4.2. Os investimentos em coleta e tratamento de esgotos em Porto Alegre no período da Administração Popular: o DMAE e o Orçamento Participativo.........165 4.3. O Programa “Guaíba Vive” e o início da recuperação ambiental e urbanística da orla de Porto Alegre...............................................................................................178 5. RIO GRANDE DO SUL, 1979 – 2004: A FORMAÇÃO DOS COMITÊS DE GESTÃO DE BACIAS, A LEI DAS ÁGUAS E O PRÓ-GUAÍBA.........................204 5.1. A criação dos primeiros comitês de bacia na região hidrográfica do Guaíba e a Lei Gaúcha das Águas.................................................................................................208 5.2. O Pró-Guaíba e a recuperação ambiental na Região Metropolitana de Porto Alegre: concepção, agentes envolvidos, resultados e limites....................................221 5.3. Epílogo: os difíceis passos no sentido de transformar “mega-projetos” em políticas públicas para a gestão de águas..................................................................244 CONCLUSÃO..............................................................................................................251 FONTES.......................................................................................................................264 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................269 14 INTRODUÇÃO A cidade de Porto Alegre, grande metrópole do extremo sul do Brasil, foi criada, há duzentos e quarenta anos, às margens do Guaíba. Este corpo d’água doce, comparável às grandes baías do litoral brasileiro, como as de Guanabara e de Todos os Santos, ocupa uma superfície de 496 km2, tendo uma extensão de 50,5 km entre suas extremidades norte e sul e uma largura que passa de 6,6 km, em frente à capital gaúcha, a um máximo de 19,2 km, mais ao sul, próximo à sua entrada na Laguna dos Patos. O Guaíba é também o desaguadouro de uma das grandes bacias hidrográficas litorâneas do sul do país, cujo principal formador é o Rio Jacuí. Com 84,6 mil km², esta bacia ocupa cerca de 30% do território do Rio Grande do Sul, onde vivem cerca de 7,1 milhões de pessoas, mais de 65% da população total do estado, mais de 3 milhões na Região Metropolitana de Porto Alegre. E concentra dois terços da sua riqueza econômica, representada por grandes centros de produção industrial, como Canoas, Novo Hamburgo, Santa Cruz do Sul, Gravataí e Caxias do Sul, de serviços, como a própria capital e Santa Maria, além de regiões turísticas e de forte produção agrícola (Figura 1). Figura 1. Bacia Hidrográfica do Guaíba Estas informações já trazem uma boa ideia da importância do Guaíba para a região de Porto Alegre, e, mesmo, para todo o Rio Grande do Sul. Mas como ele pode ser definido, afinal, em termos geográficos: rio, estuário, ou lago? Antes de entrar neste tema, ainda motivo de polêmicas que escapam do terreno científico, é necessário realizar um breve trajeto histórico, o qual pode começar pelo próprio significado do 15 termo. Na língua tupi-guarani, empregada pelos povos que habitavam a região desde muito antes da sua ocupação pelos primeiros colonizadores portugueses, a expressão formada por três palavras, Gua (seio), i (água) e be (em), que levou a “Guaíba”, tinha o significado de “ponto de encontro”, ou, de uma forma mais específica, “baía de todas as águas”. Uma expressão bastante apropriada, na medida em que enfatiza o seu caráter mais de desaguadouro das águas de seus formadores, antes ponto de chegada, do que de passagem rumo à laguna e ao mar. Houve, nos primeiros tempos da colonização portuguesa da região, certa indefinição quanto aos nomes empregados para o corpo d’água compreendido entre a foz do Jacuí e dos demais formadores do Guaíba e sua entrada na Laguna dos Patos, atestada tanto pelos primeiros mapas quanto pelas narrativas de viajantes europeus como Auguste de Saint-Hilaire. A denominação de Lagoa de Viamão, ou Lagoa de Porto Alegre, foi sendo substituída pela de Rio Guaíba, mas esta também servia, inicialmente, para designar o curso inferior do Jacuí. O próprio Saint-Hilaire chegou a empregar a denominação “lago” em seu relato sobre a viagem que fez ao Rio Grande do Sul, entre 1820 e 1821. Com o passar do tempo, a designação de Rio Guaíba, aplicada apenas ao trecho entre a foz em delta do Jacuí e demais formadores e a entrada da Laguna dos Patos acabou se tornando de uso corrente. E ficou de tal forma arraigada no imaginário e nas sensibilidades, não só de porto-alegrenses e gaúchos, mas de pessoas de outras partes do Brasil, que o seu uso ainda persiste, mesmo muitos anos depois que estudos realizados por uma equipe de geógrafos e outros especialistas, atendendo a uma demanda do governo estadual, em 1981, concluíram ser lago a definição mais adequada para este corpo d’água, o Lago Guaíba.1 Os questionamentos com respeito ao Guaíba ser de fato um rio já estavam presentes, na verdade, bem antes da realização deste estudo, o que pode ser atestado, pela publicação de algumas obras, como a do geógrafo Kleber Borges de Assis, O rio que não é rio, resultante de uma série de reportagens que realizou para o jornal Correio 1 Com respeito à origem linguística tupi-guarani do termo “Guaíba”, ver: SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. Porto Alegre: Secretaria Executiva do PróGuaíba, 1998, pp. 12-13. Com respeito às sucessivas denominações que foram dadas a este corpo d’água, desde os primeiros tempos da colonização do Rio Grande do Sul, ver: (i) Idem, pp. 10-13; (ii) SAINTHILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974, pp. 40, 43, 68, 199-200; (iii) MENEGAT, Rualdo; CARRARO, Clóvis Carlos. Manual para saber por que o Guaíba é um lago: análise integrada de geologia, geomorfologia, hidrografia, estratigrafia e história da ciência. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009, pp. 92-93. Com respeito aos estudos que definiram o Guaíba como um lago, ver: Idem, pp. 71-74. 16 do Povo, em 1958. Assis expressou, então, o entendimento corrente nesta época de que o Guaíba deveria ser definido como um grande estuário, ligando o ponto de confluência de seus formadores, o Delta do Jacuí ao que era denominada, até então, de Lagoa dos Patos. Mas os estuários têm de desaguar no oceano, o que não era o caso, desde quando, há cerca de 120 mil anos, a formação de uma grande faixa arenosa constituíra esta grande laguna, isolando o Guaíba do Atlântico Sul. Luis Fernando Veríssimo já dava conta desta informação, em crônica com o mesmo título do livro de Assis. O autor indaga: “Por que o Guaíba continua sendo chamado de rio contra todas as evidências de que não é?”. E responde: “Talvez porque não se saiba exatamente como defini-lo. Seria um estuário, mas parece que o termo só caberia se ele desembocasse no mar [...] Seria uma espécie de ante-sala [...] mas espécie de ante-sala não é o que se poderia chamar de uma expressão geograficamente precisa.” E concluiu, dando pistas do forte vínculo identitário associado à ideia de rio: “Posso atestar que ele tem o andar, a majestade e o caráter dos grandes rios da Terra, mesmo que não tenha o formato.” 2 No plano cultural, o Brasil se vê como um país de grandes rios, mas não também de lagos, como é o caso, entre outros, do Canadá, Estados Unidos e Rússia. A discussão que ainda hoje persiste, em alguns meios, quanto à definição geográfica do Guaíba, apresenta, no entanto, além destes aspectos culturais, uma forte ligação com disputas em torno de suas implicações com respeito à legislação e às políticas de proteção ambiental para este corpo d’água e para as áreas situadas em suas margens, em meio à grande concentração urbana de Porto Alegre. Um ponto que tem contribuído para alimentar esta discussão é o fato de que a Lei Federal n° 4.771/1965, o Código Florestal Brasileiro, que está atualmente em fase de revisão no Congresso Nacional, contempla uma faixa de preservação significativamente maior para as margens dos rios do que para as dos lagos. O enquadramento do Guaíba como um lago, por outro lado, tem como base científica um conjunto bastante sólido de elementos, muitos dos quais exercem um papel decisivo no modo como este é capaz de dispersar e/ou acumular os dejetos que a grande área metropolitana, e toda a populosa região de sua bacia hidrográfica lhe entregam, sejam esgotos e lixo não tratados, sejam resíduos da produção agrícola e industrial. Não sendo um rio, mas sim um lago, o Guaíba não apresenta um regime de escoamento que pudesse permitir a dispersão, águas abaixo, no rumo da Laguna dos Patos, da maior parte desta grande carga poluente que recebe, 2 Ver: SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba, op. cit., p. 13. 17 sendo, assim, muito mais vulnerável a seu efeito. Um elemento da geografia física que contribui para agravar um processo social e histórico, que já se estende por mais de meio século, no qual o Lago Guaíba vem exibindo suas marcas na forma da degradação ambiental de suas águas e de suas praias. A degradação ambiental dos rios, lagos, baías, e, em menor grau, das costas oceânicas abertas, junto às áreas urbanas, resultante da poluição de suas águas e da ocupação indiscriminada de suas margens, vem sendo uma realidade bastante generalizada, decorrente dos processos de industrialização e de acelerado crescimento demográfico que ocorreram nos últimos dois séculos. É um fenômeno agudo e persistente em países que apresentam desequilíbrios estruturais em seu desenvolvimento econômico, com grandes carências sociais, dificuldades de financiamento do setor público, distribuições altamente desiguais de renda e mecanismos deficientes de participação popular nas instâncias políticas de decisão, como ainda é o caso do Brasil. Em nosso país, ocorreu a degradação dos recursos hídricos de grande parte das regiões metropolitanas, em maior ou menor grau. Foi o caso do Guaíba, especialmente na sua margem esquerda, que banha a capital gaúcha, e de alguns de seus afluentes, como os rios dos Sinos e Gravataí, na Grande Porto Alegre, em áreas com forte densidade industrial e populacional. A degradação do Guaíba não foi tão intensa quanto a que ocorreu nos rios que atravessam a Grande São Paulo, pois este ainda consegue abastecer de água, após o devido tratamento, os moradores da cidade, a pesca, embora com muitas restrições, ainda é possível, e as atividades esportivas do remo e da vela – mas não a natação – ainda são praticadas em suas águas.3 Ainda assim, vem tendo muito impacto sobre os moradores da cidade e sua região. Este processo de degradação ambiental se intensificou ao longo da década de 1960, a ponto de tornar necessária a interdição da maior parte das praias do Guaíba, em Porto Alegre, para evitar riscos à saúde dos 3 Uma avaliação recente das condições das águas do Guaíba e de seus principais formadores, junto ao Delta do Jacuí, quanto às concentrações de seus principais poluentes e às suas condições de balneabilidade, pode ser vista em relatório técnico apresentado por especialistas do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre, e da PUCRS, no XXVII Congresso Interamericano de Engenharia Sanitária e Ambiental, realizado em dezembro de 2000, em Porto Alegre. BENDATI, Maria Mercedes et. al. V-076 - Avaliação da qualidade da água do lago Guaíba (Rio Grande do Sul, Brasil) como suporte para a gestão da bacia hidrográfica, disponível em http://www.asegergs.org.br/biblioteca/saneamento-basico/avaliacaoagua, acessado em setembro de 2009. Com respeito à degradação ambiental do Guaíba, ver também: BERTÊ, Ana Maria de Aveline. Problemas ambientais no Rio Grande do Sul: uma tentativa de aproximação, pp. 71-83, BASSO, Luís Alberto. Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul, pp. 90-100, e ROSSATO, Maíra Suertegaray, DA SILVA, Dakir Larara Machado. A reconstrução da paisagem metropolitana de Porto Alegre: o tempo do homem e a degradação ambiental da cidade, pp. 107-124. In: VERDUM, Roberto, BASSO, Luís Alberto, SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes (org.). Rio Grande do Sul: paisagens e territórios em transformação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 18 banhistas, a partir de 1973. A condição atual de suas águas pode ser vista no mapa abaixo (Figura 2). Figura 2. Condições das águas do Lago Guaíba em 2000, conforme a Resolução n° 20/1986 do CONAMA4 As iniciativas governamentais para a restauração ambiental do Guaíba e de sua bacia hidrográfica têm acontecido desde o início da década de 1980. O primeiro programa voltado especificamente para este objetivo foi o “Projeto Rio Guaíba”, lançado pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1981, ainda na vigência da ditadura civil-militar. Este programa apresentava aspectos polêmicos, como a proposta de absorção do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), autarquia responsável pelos serviços de saneamento básico do Município de Porto Alegre, pela 4 A resolução n° 20/1986 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) estabelece o enquadramento dos corpos d’água em quatro classes de qualidade: Classe 1 (ótima), Classe 2 (boa), Classe 3 (regular) e Classe 4 (ruim), tomando como base o indicador IQA (índice de qualidade da água), o qual considera os valores de diversos parâmetros físico-químicos e biológicos, dos quais o mais determinante é o teor de coliformes fecais. Os corpos d’água enquadrados nas classes 3 e 4 são considerados impróprios para o banho (atividade de recreação primária, ou de contato direto), apresentando valores acima de 1000 coliformes fecais por 100 ml. de água (BENDATI, Maria Mercedes et. al., op. cit., pp. 6-7). 19 Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN), empresa estadual responsável por estes serviços no restante do Rio Grande do Sul, e o uso de áreas de preservação permanente no Parque Estadual do Delta do Jacuí para a instalação de estações de tratamento de esgotos, e foi interrompido sem produzir resultados significativos. A partir de 1989, com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à prefeitura de Porto Alegre, o governo municipal lançou o “Guaíba Vive”, seu próprio programa de recuperação, envolvendo diversas ações localizadas no âmbito do município. Neste mesmo ano, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul lançou o “Pró-Guaíba”, um programa englobando uma série de iniciativas para a recuperação e gerenciamento ambientais e o desenvolvimento da bacia hidrográfica do Guaíba e conduzido de forma integrada com os governos municipais da região, especialmente o de Porto Alegre. O contrato de financiamento do “Pró-Guaíba”, com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi assinado em 1995, depois da renegociação da dívida do Estado com o Governo Federal, e previa uma contrapartida de 40% para o Governo do Estado. A execução deste programa foi suspensa em 2004, ao término de sua primeira fase, que teve um investimento de 225 milhões de dólares, sendo que pouco mais de um terço deste total eram referentes à instalação de sistemas de coleta e tratamento de esgotos sanitários.5 No que diz respeito à despoluição do Guaíba, estes programas alcançaram resultados modestos, até o momento, com a elevação da cobertura por esgotos sanitários tratados de Porto Alegre para 27% do total em 2002, e com a recuperação plena da balneabilidade apenas da praia do Lami, situada no extremo sul da capital, fora da sua zona urbana. O “Pró-Guaíba” ainda contemplava um investimento adicional de 172 milhões de dólares, mas foi suspenso, em 2004, em função do agravamento da situação das finanças públicas do Estado do Rio Grande do Sul. Está atualmente em implantação a mais recente destas iniciativas, o Projeto Integrado Socioambiental (PISA), conduzido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA), a partir de 2007. Este programa contempla investimentos da ordem de 500 milhões de reais, financiados pelo BID e pela Caixa Econômica Federal (CEF), com contrapartida da própria prefeitura. Ele retoma as iniciativas de programas anteriores, como o “Pró-Guaíba”, e tem como objetivo, por meio de diversas obras de saneamento, elevar de 27% para 77% a cobertura por esgotos sanitários tratados de Porto Alegre, até 5 SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba, op. cit., p. 42 (Quadro de Usos e Fontes do Módulo I do PróGuaíba). 20 o ano de 2012, além de aumentar a capacidade da rede de esgotos da cidade. Estima-se que a partir da conclusão do programa ainda vão ser necessários mais 15 a 20 anos para a restauração das condições de balneabilidade na margem esquerda do Guaíba, com primeiros resultados na praia de Ipanema.6 Abre-se, deste modo, uma perspectiva para que, por volta de 2030, os porto-alegrenses possam voltar a usufruir plenamente de suas águas e praias, após um período de mais de setenta anos e de muitas gerações. O Rio Grande do Sul, situado totalmente fora da zona tropical, carrega em seu imaginário efeitos deste traço distintivo em relação à maior parte do Brasil, que desfruta de um clima mais quente, com sua população vivendo junto a exuberantes praias tropicais, ao passo que o estado gaúcho costuma se definir, por contraste, como um “território do frio”, apesar de seus verões tórridos, ainda que curtos.7 O seu litoral marítimo é uma imensa praia reta e desabrigada, coberta apenas por dunas, que se estende por centenas de quilômetros, constantemente batida pelos ventos sul ou nordeste, que fazem com que suas águas sejam quase sempre muito frias, revolvidas pelas ondas, e escuras. Mas esta costa é intensamente frequentada por multidões de veranistas, que deixam o interior e a capital do estado nestes breves períodos, a cada ano, em busca de uma vida praiana, longe do intenso calor e da rotina estressante das cidades. O fascínio dos gaúchos pelas praias de mar é tão ou mais antigo do que o dos demais brasileiros, tendo suas raízes ainda no século XIX, quando uma viagem para o litoral era quase uma aventura. E esta verdadeira comunhão coletiva, celebrada em todos os verões, por muitas décadas, ajuda a obscurecer a lembrança duma outra 6 Ver: Página virtual do Projeto Integrado Socioambiental (PISA), disponível em http://www2.portoalegre.rs.gov.br/pisa/, acessado em janeiro de 2011, e também: (i) PISA – Programa Integrado Sócio Ambiental, disponível em http://www.skyscraperlife.com/infra-estrutura-etransporte/14450-porto-alegre-rs-pisa-programa-integrado-socio-ambiental.html, acessado em janeiro de 2011; (ii) Começa nova etapa da despoluição do Guaíba (Reportagem Especial). In: Zero Hora. Porto Alegre, 8 de fevereiro de 2011, pp. 4-5. 7 O compositor Vítor Ramil usou o termo “estética do frio”, para dar conta de especificidades da arte e da cultura produzidas no Rio Grande do Sul, enquanto região relativamente afastada do centro e do norte do país, situados em zona tropical, e relativamente mais próximo dos países platinos. No texto da capa do disco Ramilonga – A estética do frio, de 1997, Ramil afirma: “O frio, símbolo do Rio Grande do Sul, o frio que inventa em nós uma contrapartida para cada característica definidora dos ‘brasileiros’: o frio definidor do gaúcho que é muito mais brasileiro do que pensa.” Já o professor de teoria literária e cronista porto-alegrense Luís Augusto Fischer, em um comentário sobre o filme Houve uma vez dois verões, intitulado Houve uma vez Porto Alegre, diz: “Nós nunca fomos leves conosco, e pelo contrário. Ser gaúcho sempre pesou – pela obrigação de defender a fronteira real ou imaginária, de ser bravo, de espantar o mundo (na linha do ‘Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra’). Sempre pesou falar o porto-alegrês, sempre pesou ter um litoral reto, desgracioso e frio.” Ver: FISCHER, Luís Augusto. Houve uma vez Porto Alegre. In: Zero Hora. Porto Alegre, 04/06/2002 (Segundo Caderno). A temática das relações identitárias entre os rio-grandenses e o Brasil é abordada pelo antropólogo Rubem Oliven (Ver: OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, Capítulos II e III, pp. 39-95). 21 realidade, muito viva até certo tempo atrás. Porto Alegre, embora distante mais de cem quilômetros do mar, foi durante muitos anos uma cidade também praiana. As praias do Guaíba, tanto na zona sul da cidade, como Ipanema, Belém Novo, Espírito Santo e Pedra Redonda, entre outras, quanto na outra margem do lago, como Alegria, Florida e Vila Elsa, na cidade de Guaíba, foram intensamente desfrutadas pelos porto-alegrenses, desde muito cedo, mas em especial no período que vai dos anos 1940 ao início da década de 1970. Nas duas margens do lago, existiam praias com águas mansas e de temperatura amena, abrigadas em pequenas enseadas e cercadas por vegetação subtropical, com figueiras e palmeiras. Mas a poluição vem impedindo as pessoas de banhar-se em quase todas estas praias de água doce, desde o final deste período. A temática da gestão dos recursos hídricos apresenta uma grande complexidade, pois se encontra na interseção entre interesses que podem ser, por sua natureza, muitas vezes antagônicos, de difícil harmonização, quais sejam o da preservação ambiental, o do crescimento econômico, e o da sobrevivência e o bem estar das populações. Os recursos hídricos são pressionados não apenas pela expansão das atividades econômicas, mas também pelo crescimento demográfico e pela concentração populacional nas áreas urbanas. Não é possível alcançar condições adequadas de preservação ambiental sem a realização de investimentos consideráveis nas infraestruturas de habitação e saneamento básico, cuja concretização, muitas vezes, acaba por representar uma forma de transferência de renda para as camadas mais carentes da população, incapazes, muitas vezes, de arcar com as tarifas necessárias para a remuneração destes investimentos. O processo de recuperação ambiental do Guaíba tem de ser avaliado levando-se em conta as mudanças que vem ocorrendo com a política de gestão das águas no Brasil. Estas mudanças estão relacionadas com o processo de redemocratização do país, e com uma crescente preocupação com as questões ambientais, a partir do início da década de 1970, quando a ONU realizou a Conferência de Estocolmo. Dentro deste cenário, a Constituição Federal de 1988 previu a criação de um Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, o qual foi instituído através da Lei Federal n° 9.433, de 1997, tendo como objetivo fornecer instrumentos legais para disciplinar tanto a apropriação, como os múltiplos usos das águas territoriais. Dentre os princípios que norteiam tal lei, destacam-se: a adoção da bacia hidrográfica como unidade físicaterritorial de planejamento, os usos múltiplos da água, o reconhecimento da água como bem econômico, sendo os seus usuários passíveis de cobrança pelo uso e/ou poluição 22 gerada, e a sua gestão descentralizada e participativa. O estado do Rio Grande do Sul exerceu um papel de liderança neste setor, até meados dos anos 1990, através de iniciativas como a criação do Comitê da Bacia do Rio dos Sinos e a Lei Gaúcha das Águas (Lei nº 10.350/1994), mas se encontra, atualmente, defasado na execução destas políticas em relação a outros estados da federação, como São Paulo.8 Ao lado disso, a volta da escolha dos prefeitos das capitais através de eleições diretas, a partir de 1985, favoreceu uma maior participação política dos seus habitantes, e, no caso de Porto Alegre, permitiu a chegada ao poder dos governos do PT e de seus aliados da Frente Popular, em 1989. Os governos petistas, que se sucederam na capital gaúcha durante dezesseis anos, inicialmente sem maioria no legislativo, implantaram um mecanismo para estimular a participação popular direta na definição de prioridades para a administração municipal, o chamado Orçamento Participativo (OP), o qual vem sendo mantido, desde então, mesmo com a alternância de partidos na Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Ocorreram avanços significativos no período posterior ao retorno do regime democrático no Brasil, embora ainda muito longe de atender a todas as necessidades, no que se refere ao saneamento básico em Porto Alegre. Houve uma ampla disseminação da rede de coleta de esgotos e o início de seu tratamento, com a perspectiva de sua extensão nos próximos anos, com o PISA. Mas persiste a necessidade, de todo modo, de se estender os serviços de coleta e tratamento de esgotos a outros municípios da Região Metropolitana e da bacia hidrográfica do Guaíba. Bem como a de assegurar a minimização do lançamento de poluentes pelas indústrias da região, tais como metais pesados, além do controle da poluição gerada pelas atividades agropecuárias e a recuperação, no que for possível, da cobertura vegetal que existia nas margens dos rios da bacia do Guaíba. Tendo a dissertação como seu tema central as interações da sociedade local com o Lago Guaíba, seu problema de investigação consiste em verificar em que medida os avanços na recuperação ambiental do grande lago, e na extensão do saneamento básico, em Porto Alegre e sua região metropolitana, decorreram de uma participação popular mais intensa na definição das prioridades para os investimentos públicos, e de que forma tem-se dado esta participação, identificando agentes envolvidos, estratégias e limites de atuação. Cabe ter em conta a existência de duas motivações diferentes, 8 Entrevista com o Eng° Civil Luiz Fernando Cybis, professor do PPG em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, e presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba entre 2005 e 2009, em 13/12/2010. 23 embora complementares, para esta atuação, quais sejam, a busca pela ampliação da cobertura por coleta de esgotos, de interesse das populações mais carentes, e a busca pela despoluição do lago, que deveria ser de interesse, em princípio, dos moradores da cidade em geral. Acredito, por outro lado, não ser possível abordar este problema sem considerar uma envoltória mais ampla, que inclua as relações da sociedade local com as praias do Guaíba e o aproveitamento paisagístico de sua orla urbana, dando conta de sua historicidade. O problema deve ser estudado a partir de diferentes perspectivas, que estão interligadas. Em primeiro plano, devem ser destacados os processos de exercício da cidadania e de formação de uma consciência social, no que se refere à mobilização popular para o atendimento de demandas básicas de qualidade de vida, como o saneamento básico, mas também o acesso a um meio ambiente não degradado. A consolidação destes processos, de uma forma mais efetiva, só irá ocorrer na medida em que os agentes sociais nele envolvidos consigam obter a intervenção do Estado, por meio da aplicação de políticas públicas especificamente voltadas ao atendimento destes objetivos. Ao lado disso, devem ser considerados outros aspectos, tais como o papel cultural e social das vivências praianas, e as especificidades das praias de mar e de água doce, considerando as mudanças históricas por que passaram, e o papel das paisagens naturais e transformadas enquanto elementos identitários de cidades, regiões e nações, tendo em conta os traços específicos do Rio Grande do Sul. Considerando o acima exposto, uma precaução deve ser adotada, desde logo, para a realização deste trabalho. Não se deve assumir, como um dado a priori, a existência, entre a população residente na região de Porto Alegre, de modo geral, de uma apropriação do Lago Guaíba como elemento importante de identidade urbana e regional, além de recurso paisagístico, e, ainda menos, com a visão de suas praias urbanas como um recurso de lazer, mesmo que menos valorizado do que as praias de mar. Não se deve considerar de antemão, do mesmo modo, que a demanda pela recuperação da balneabilidade destas praias venha se constituindo na preocupação central das pessoas envolvidas com os valores e as atividades relacionadas à preservação do meio ambiente no âmbito da capital e do estado, dentro do que se poderia englobar como o “movimento ambientalista”. As diferentes formas e graus de intensidade destes envolvimentos e identificações com esta questão deverão ser, ao contrário, um dos aspectos principais a serem avaliados neste trabalho. A dissertação é estruturada em cinco capítulos, que são apresentados a seguir. 24 O primeiro capítulo tem como objetivo situar o trabalho frente às opções teóricas e à produção existente sobre o tema, sendo constituído por cinco partes. Na primeira parte, uma breve discussão teórica e metodológica com respeito às temáticas da chamada história ambiental e à sua inserção no espaço da história, e também da bibliografia existente acerca da temática da degradação e da recuperação ambientais de recursos hídricos, no Brasil. Na segunda parte, uma revisão da historiografia sobre as interações entre a cidade de Porto Alegre e o Lago Guaíba, procurando destacar os trabalhos voltados ao uso e à representação de sua orla e das paisagens praianas. A opção por este enfoque particular se prende a dois motivos: em primeiro lugar, a busca por traços de uma identificação de Porto Alegre como uma cidade também praiana, e, ao lado disso, a constatação, prévia, da existência de um grande número de obras dando conta de outros aspectos desta relação, principalmente as atividades econômicas, e eventos memoráveis, como as grandes enchentes. Na terceira parte, uma análise do contexto histórico específico do problema de investigação proposto e de seus principais elementos, quais sejam, os atores sociais e conflitos de interesses envolvidos com o tema da recuperação ambiental do Guaíba. Na quarta parte, uma discussão teórica voltada para este problema, em que são abordados três aspectos, entendidos como seus eixos teóricos: os movimentos sociais, sua natureza e as possibilidades da ação coletiva; as relações entre Estado e sociedade civil; os condicionantes de ordem estrutural para a participação e o exercício da cidadania, dentro das sociedades contemporâneas, de massas, que se caracterizam pela generalização das relações baseadas no mercado por uma elevada e crescente complexidade e fragmentação dos conhecimentos e técnicas envolvidas com o manejo dos negócios públicos. São comentadas, neste ponto, as implicações destes condicionantes estruturais no processo de degradação dos recursos naturais, em escala global, ainda em curso, não obstante os vários alertas vindos de entidades da sociedade civil e as conferências intergovernamentais sobre o tema, ao longo das últimas quatro décadas. O capítulo se encerra com uma explanação acerca das fontes utilizadas, tendo em vista os objetivos e as opções teóricas e metodológicas adotadas na dissertação. O segundo capítulo pode ser descrito como um breve preâmbulo, que tem como objetivo aportar elementos que permitam dar uma ideia do significado do Guaíba e de suas praias para os porto-alegrenses, no período de sua maior utilização, a partir dos anos 1940. E também dos impactos que foram sentidos a partir do momento em que a poluição de suas águas passou a impossibilitar o banho em suas praias, no início da 25 década de 1970, com as primeiras manifestações, na sociedade local, para cobrar iniciativas do poder público visando reverter esta situação. O capítulo é dividido em três partes. Na primeira parte, é abordado o papel das praias como elemento cultural e de sociabilidade nas sociedades contemporâneas, dando conta de sua constituição, enquanto processo histórico, que teve início na Europa, a partir do século XVIII, chegando ao Brasil no final do XIX. É comentada, também, a maior valorização que passou a ser dada às praias de mar em relação às de água doce, dentro deste mesmo processo cultural, que envolve construção e mudança de sensibilidades. Um aspecto que considero importante no contexto específico deste trabalho, principalmente quando se tem em conta que a maior parte das referências às praias do Guaíba, nas fontes escritas, contém comparações com as praias de mar, seja no litoral gaúcho, seja em outros balneários do Brasil ou do vizinho Uruguai, com o uso frequente de expressões como “quem não tem cão, caça com gato”. Na segunda parte, são abordadas as representações sobre estas praias e a cidade, produzidas ao longo deste período no âmbito da sociedade local, com base na análise de fontes jornalísticas, literárias e iconográficas do período, bem como de relatos publicados de memórias de alguns de seus frequentadores, dentro do contexto de desenvolvimento urbano da capital, com dados que permitem mostrar a intensidade de seu uso pelos moradores da cidade neste período. A última parte trata do processo de degradação ambiental do Guaíba e de sua orla urbana em Porto Alegre e entorno, nas décadas de 1960 e 1970, no contexto da emergência da questão ambiental, no período da ditadura civil-militar no Brasil. O terceiro capítulo procura avaliar as primeiras iniciativas no âmbito da sociedade e dos governos locais frente à degradação ambiental do Guaíba e de seus formadores, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no contexto de crise do regime autoritário e início do processo de redemocratização política do Brasil, nos anos 1980, período no qual o ativismo em defesa do meio ambiente passou a buscar uma maior participação nas instâncias político-partidárias. O capítulo é dividido em três partes. A primeira parte aborda o modelo adotado para o setor de saneamento básico no período da ditadura civil-militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, estruturado em torno da burocracia federal à frente do BNH (Banco Nacional da Habitação), e priorizando as companhias estaduais de saneamento (CESBs), em detrimento das entidades autônomas municipais. E o seu esgotamento, no contexto da crise do próprio regime, inicialmente econômica, e logo em seguida política, que levou à sua superação, através do processo de reabertura democrática que levou à nova Constituição Federal e à volta das eleições 26 diretas para presidente da república. Na segunda parte é abordado, muito brevemente, o segmento ambientalista no Rio Grande do Sul, tomando como referência, principalmente, as memórias que foram preservadas por seus integrantes, no que se refere a esse período, no qual ocorreram as primeiras iniciativas governamentais visando à despoluição do Guaíba. Mais do que avaliar o envolvimento de pessoas e organizações do segmento com estes esforços, o objetivo, aqui, é o de identificar de que forma e em que medida a temática da degradação do Guaíba e da busca por sua recuperação ficou registrada nas memórias do ambientalismo gaúcho, tendo-se em conta o seu caráter multifacetado e os processos de transformação por que este passou nas últimas décadas. Também estão presentes, aqui, considerações sobre as origens, motivações, trajetórias e perfis de atuação do “movimento ambientalista”, em suas diversas vertentes, nos âmbitos regional, brasileiro e internacional, a partir de sua emergência, na segunda metade do século XX. A terceira parte trata do “Projeto Rio Guaíba”, e dos fatores que levaram a seu insucesso, entre os quais o esgotamento financeiro do modelo de saneamento básico conduzido pelo regime autoritário, mas também os fortes questionamentos que sofreu, tanto por parte da prefeitura de Porto Alegre, através do DMAE, quanto de integrantes do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul, como mencionado mais acima. O quarto capítulo aborda as políticas públicas e os investimentos realizados em Porto Alegre, no período da Administração Popular, como a expansão da rede de coleta de esgotos domésticos e o programa “Guaíba Vive”, procurando identificar os principais agentes sociais envolvidos nestas iniciativas, seus resultados, limites e pontos de estrangulamento, sendo dividido em três partes. A primeira parte se inicia com uma contextualização histórica deste período e de seus antecedentes, procurando situar o caso específico da capital gaúcha nos cenários mais amplos do período, nacional, de abertura democrática e crise econômica e do Estado, e mundial, da chamada “globalização” e da ascensão dos “poderes locais”. E prossegue com breves comentários e apresentação, respectivamente, sobre os antecedentes à implantação do OP em Porto Alegre, e dos elementos institucionais presentes neste sistema, tomando como base a bibliografia específica produzida a seu respeito. Esta primeira parte é concluída com uma rápida recapitulação da bibliografia produzida sobre o governo da Administração Popular e o Orçamento Participativo em Porto Alegre, procurando enfocar as principais linhas de interpretação utilizadas pelos diferentes autores, suas fundamentações e premissas teóricas e bases empíricas, e seus pontos de convergência e desacordo. Na 27 segunda parte, são abordados os investimentos em coleta e tratamento de esgotos em Porto Alegre realizados neste período, procurando avaliar em que medida estes resultaram diretamente da escolha popular e/ou da indução por parte da prefeitura e do DMAE. São comentados os papéis exercidos pelos diferentes atores sociais envolvidos nos processos para sua priorização, entre estes os quadros técnicos e gerenciais desta autarquia e os conselheiros eleitos pelas regiões da cidade no âmbito do OP, e suas interações, bem como os efeitos redistributivos desta política pública, e seus limites. Na terceira parte, é avaliado o programa “Guaíba Vive”, considerando seus aspectos conceituais, suas implicações e motivações de ordem político-partidária e seus reflexos socioculturais e urbanísticos. O programa foi concebido como uma iniciativa da prefeitura com foco ambiental, procurando conjugar ações localizadas, na área do saneamento e controle de fontes poluidoras, com um processo de conscientização e participação da comunidade, e considerando sua integração com programas mais amplos, principalmente no âmbito estadual. São comentados os resultados do programa, sua divulgação, os limites da ação municipal e o seu esgotamento no final do período dos governos petistas, no início da década de 2000. Ao lado disso, também abordo a emergência de uma visão mais integrada dos temas da defesa do meio ambiente, da gestão de recursos hídricos e do saneamento básico, a qual passou a se expressar, em Porto Alegre, através de publicações como a Revista Ecos, lançada pelo DMAE em 1993, e que serviu como fórum de debates destes temas. O quinto capítulo aborda o processo de criação de instâncias e de mecanismos institucionais voltados para a gestão de águas, envolvendo o Estado e a sociedade civil, e o programa “Pró-Guaíba”. Ambos situados no âmbito estadual, interagindo, contudo, com as esferas local e nacional, e que eram fortemente interligados, na medida em que o programa conduzido pelo governo estadual buscou incorporar conceitos e mecanismos que já vinham sendo preconizados, e, mesmo, praticados, de forma incipiente, nos primeiros comitês de bacia formados no estado, no final dos anos 1980, como a gestão descentralizada dos recursos hídricos, nos limites das bacias hidrográficas, com a coparticipação do Estado e dos representantes da sociedade. Conceitos que também estavam incorporados, em parte, no “Guaíba Vive”, e que começariam a receber bases institucionais, inicialmente nos marcos das novas constituições, federal e estadual, e, já nos anos 1990, através das leis específicas de águas. O capítulo é dividido em três partes. Na primeira, são abordadas as etapas iniciais no sentido da formação de instâncias e mecanismos institucionais voltados para a gestão de águas no estado do Rio 28 Grande do Sul, do início dos anos 1980 a 1994. Estas compreenderam a criação dos primeiros comitês de bacia na região hidrográfica do Guaíba, no Sinos e no Gravataí, e o processo de elaboração da Lei Gaúcha das Águas, com base nos novos marcos institucionais para a gestão de águas definidos com a Constituição Federal de 1988 e com a Constituição Estadual de 1989, e sob a influência de modelos participativos e descentralizados, como o da França, e das primeiras experiências neste sentido no estado e no Brasil. Um processo que contou com ações convergentes de vários setores da sociedade civil, entre os quais o “movimento ambientalista”, e de quadros técnicos e gerenciais do Estado, ligados à temática da gestão de águas e atuando em organismos como a Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (METROPLAN) e a CORSAN. Na segunda parte, procuro avaliar o programa “Pró-Guaíba” e seus impactos no que se refere à recuperação ambiental na Região Metropolitana de Porto Alegre, considerando sua concepção, os agentes envolvidos, e seus resultados e limites, com a sua interrupção, ao final da primeira etapa, o Módulo I, em 2004. Entre os aspectos tratados estão as interações entre a prefeitura de Porto Alegre e o governo estadual, na condução do programa, em áreas como o saneamento básico, o envolvimento de setores da sociedade civil em ações como a elaboração do diagnóstico e definição de prioridades para o plano diretor de controle e administração ambiental da região da bacia hidrográfica do Guaíba. Ao lado disso, o papel representado pelas instituições internacionais de fomento, como o BID, e os condicionantes decorrentes da situação de quase permanente crise das finanças públicas do estado do Rio Grande do Sul. A terceira parte serve como um pequeno epílogo, no qual são abordados os passos mais recentes no processo de implantação efetiva da política de águas no Rio Grande do Sul, como a formação do Comitê do Lago Guaíba e o retardo na aplicação de seus instrumentos e mecanismos de gestão (outorga e cobrança, planos e agências de bacia). O que é feito, todavia, de uma forma muito breve, tendo em conta que a falta de um distanciamento temporal adequado não permite aprofundar esta análise. Ao concluir esta introdução, julgo necessário fazer algumas considerações adicionais, quanto à natureza e ao recorte temático deste trabalho. Mesmo tendo em conta o tema tratado, e suas evidentes interfaces com áreas que costumam ser vistas como muito distantes das ciências sociais, como a engenharia, e a sua considerável diversidade de fontes, não se trata de um trabalho interdisciplinar, buscando ater-se, antes, aos limites de uma produção no espaço da história. Não pretende, portanto, e nem poderia ser de outra forma, ocupar espaços que são específicos de áreas como a da 29 gestão de águas e do saneamento, nem, tampouco, aprofundar questões como a dos fatores que tem contribuído para a persistente fragilidade das condições de financiamento do setor público no estado do Rio Grande do Sul. Por outro lado, entrando no terreno das ciências sociais, a abordagem adotada não significa, por certo, abrir mão de conceitos trazidos de outras disciplinas, como a antropologia e a ciência política, mas direcionar o trabalho no sentido de uma visão um pouco mais abrangente, buscando examinar um cenário mais amplo, com suas inter-relações, ainda que em detrimento de uma análise em maior profundidade de algumas de suas partes. Muitos trabalhos têm sido produzidos, na academia, explorando em profundidade uma parte do amplo cenário que envolve as relações entre a sociedade local e o Guaíba, principalmente no que diz respeito às populações vivendo junto às unidades de conservação, em situações de conflito socioambiental. E também com respeito à participação popular na priorização de investimentos e políticas públicas no âmbito local, em especial no caso de Porto Alegre. Vários destes trabalhos têm abordado as iniciativas públicas para recuperação ambiental na região, como o “Guaíba Vive” e o “Pró-Guaíba”, geralmente restringindo o enfoque, no entanto, a seus impactos sobre o seu objeto específico de estudo. O que poderia levar a pensar que a efetiva prioridade dada a estas iniciativas seria um ponto consensual no âmbito da sociedade e dos governos na região e no país, e que sua execução dependeria apenas da existência de recursos públicos, ignorando a existência de conflitos quanto à sua destinação. A percepção da importância da recuperação ambiental da bacia hidrográfica do Guaíba, conquanto presente, não tem levado à produção de trabalhos que tomem estas iniciativas como tema central, exceto pelo viés da implantação do sistema de gestão de recursos hídricos e dos comitês de bacia no Rio Grande do Sul. E há, até o momento, uma produção muito mais considerável com respeito às questões ambientais do Vale do Rio dos Sinos, incluindo as mobilizações em torno de sua recuperação, do que à recuperação do Lago Guaíba em Porto Alegre. Cabe destacar, por fim, não obstante as considerações acima, relativas a seu caráter de produção no terreno da história, que este trabalho não deixa de ter presente, em seus propósitos, o de trazer uma contribuição no sentido da construção e do aperfeiçoamento de políticas públicas para a área de gestão de águas, no sentido da sustentabilidade social e ambiental. 30 CAPÍTULO 1. DISCUSSÃO TEÓRICA, REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E FONTES Este capítulo inicial tem como objetivo situar o trabalho frente às opções teóricas e à produção existente sobre o tema, sendo constituído por cinco partes. Na primeira parte, uma breve discussão teórica e metodológica com respeito às temáticas da chamada história ambiental e à sua inserção no espaço da história, e também da bibliografia existente acerca da temática da degradação e da recuperação ambientais de recursos hídricos, no Brasil, dando conta dos casos do Rio Tietê, em São Paulo, e da Baía de Guanabara. Na segunda parte, uma revisão da historiografia sobre as interações entre a cidade de Porto Alegre e o Lago Guaíba, procurando destacar os trabalhos voltados ao uso e à representação de sua orla e das paisagens praianas. A opção por este enfoque particular se prende a dois motivos. Em primeiro lugar, a busca por traços de identificação de Porto Alegre como uma cidade também praiana, mais do que somente situada às margens deste grande corpo d’água, e, ao lado disso, a constatação, prévia, da existência de um grande número de obras dando conta de outros aspectos desta relação, entre estes as atividades econômicas, como a pesca e os transportes, além de eventos memoráveis, como a grande enchente de 1941. Na terceira parte, uma análise do contexto histórico específico do problema de investigação proposto e de seus principais elementos, quais sejam, os atores sociais e conflitos de interesses envolvidos com o tema da recuperação ambiental do Guaíba. Na quarta parte, uma discussão teórica voltada para este problema, na qual são abordados três aspectos, entendidos como seus eixos teóricos: os movimentos sociais, sua natureza e as possibilidades da ação coletiva; as relações entre Estado e sociedade civil; os condicionantes de ordem estrutural para a participação e o exercício da cidadania, dentro das sociedades contemporâneas, de massas, que se caracterizam pela generalização das relações baseadas no mercado por uma elevada e crescente complexidade e fragmentação dos conhecimentos e técnicas envolvidas com o manejo dos negócios públicos. São comentadas, neste ponto, as implicações destes condicionantes estruturais no processo de degradação dos recursos naturais, em escala global, ainda em curso, não obstante os vários alertas vindos de entidades da sociedade civil e as conferências intergovernamentais sobre o tema, ao longo das últimas quatro décadas. No que diz respeito aos movimentos sociais e às possibilidades de ação autônoma dos indivíduos frente às estruturas sociais, foram tomados por referência, nesta discussão teórica, autores como Alain Touraine, Raymond 31 Williams, Pierre Bourdieu, Michel de Certeau e E. P. Thompson, bem como Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos. Do mesmo modo, no que se refere às relações entre estado e sociedade civil, autores como Bourdieu, Jürgen Habermas e Iris Marion Young. Finalmente, no que diz respeito aos condicionantes estruturais para a participação política, tomo como referência Cornelius Castoriadis. O capítulo se encerra com uma explanação acerca das fontes utilizadas, tendo em vista os objetivos e as opções teóricas e metodológicas adotadas na dissertação. 1.1. História ambiental A história ambiental é uma área de estudos que veio a se definir, de forma estruturada, apenas recentemente, a partir de trabalhos de historiadores de países de língua inglesa. Ela pertence à disciplina da história, dentro das ciências humanas, e, conquanto apresente interfaces com as ciências da natureza, não deve ser confundida com a história natural, designação por vezes utilizada para definir um conjunto de disciplinas desta área, como a geologia e a biologia evolutiva, que tratam de fenômenos na escala geológica de tempo, muito mais ampla do que a da história da humanidade, usando o método indutivo próprio das ciências experimentais, e não se ocupam da ação humana no planeta. Em História e meio ambiente, o historiador Marcos Lobato Martins apresenta uma visão geral desta nova área, explorando aspectos como seus suportes teórico-metodológicos, possíveis fontes e as suas relações com os diferentes espaços e abordagens da disciplina, como a história social, a econômica e a cultural. De forma bem ampla, a história ambiental pode ser caracterizada pela ênfase que coloca no fato de que as sociedades humanas estão inseridas na natureza, e na existência de interações recíprocas entre estes dois agentes, através de mecanismos de “co-evolução”, que podem envolver escalas de tempo mais amplas. Ela considera como pressuposto que os fatos ecológicos são indissociáveis dos fatos sociais, sendo, como estes, em última análise, históricos, e, ao lado disso, como decorrência metodológica, na necessidade de uma interdisciplinaridade muito maior da história com outras ciências, não apenas na área das humanas, mas também das chamadas ciências da natureza.9 É interessante 9 MARTINS, Marcos Lobato. História e meio ambiente. São Paulo: Annablume / Faculdades Pedro Leopoldo, 2007, pp. 17-54. Como mostra este autor, um bom exemplo desta abordagem interdisciplinar pode ser visto nas obras do historiador norte-americano Warren Dean, que tratam de temas como a interação entre as diferentes sociedades humanas e a Mata Atlântica, e as tentativas de cultivo da seringueira para a produção de borracha na Amazônia brasileira, na primeira metade do século passado. Em ambas as obras, o autor procura evidenciar a influência marcante de fatores ecológicos no desenvolvimento histórico, assim como os efeitos da atividade humana nos ecossistemas. No primeiro caso, ao longo de um período de mais de dez milênios, desde o início da ocupação humana do atual 32 observar, como assinala Martins, que a história ambiental não pode ser caracterizada como um espaço disciplinar autônomo, como, por exemplo, a história econômica e a história cultural. Isto decorre de que, ao contrário das instâncias do “econômico” e do “cultural”, por exemplo, que podem ser entendidas como dimensões específicas da realidade histórica, o conceito de “ambiente” engloba uma rede complexa de elementos naturais (físicos e biológicos) e sociais (econômicos, demográficos, culturais, jurídicos, etc.), o que impede a delimitação de “objetos ambientais” específicos. Um dos primeiros formuladores da história ambiental foi o historiador norteamericano Donald Worster, para quem esta abordagem pretende representar-se como uma ruptura frente a uma visão com amplo curso nas ciências humanas, em suas várias correntes (não somente a marxista). Visão esta em que as influências do meio natural sobre as sociedades humanas tendiam a ser fortemente subestimadas, e que surgiu como uma reação ao extremado determinismo da maior parte do pensamento científico ocidental no século 19, que serviu para justificar a dominação europeia e branca do mundo com base em fatores geográficos e biológicos.10 No entanto, o papel da natureza e das influências mútuas entre as sociedades e o meio-ambiente tem estado presente no pensamento e nas obras de muitos historiadores, de diversas correntes e filiações teóricas, como é o caso da Escola dos Annales. Isto é especialmente verdadeiro para os representantes da primeira geração dos Annales, como Marc Bloch e Lucien Febvre, que sofreram forte influência de Paul Vidal De La Blache, e sua geografia humana centrada no possibilismo, ou seja, na influência do meio-ambiente sobre o homem como um fator importante, mas não determinante, na configuração e evolução das paisagens e dos “gêneros de vida”, e da sua segunda geração, como Fernand Braudel, que colocou o Mar Mediterrâneo como o “protagonista principal” de sua maior obra, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. E todos estes autores assinalaram a estabilidade dos espaços regionais e a grande escala temporal necessária para modificáterritório brasileiro, mas mostrando os efeitos da maior intensidade de exploração da mata, a partir da chegada dos colonizadores europeus. No segundo caso, num cenário de curto prazo, onde são identificadas as diferenças, relativamente pequenas, entre os ecossistemas no Brasil e no Sudeste Asiático, as quais levaram, conforme o autor, ao fracasso da experiência de cultivo da borracha no Brasil, e ao seu sucesso nesta outra região (Ver: DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, e DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989). Nessa mesma parte de sua obra, Martins discorre sobre as possibilidades de interação entre a história ambiental e a geografia, e estabelece um diálogo com a obra do geógrafo Milton Santos, no que diz respeito aos limites dos estudos regionais, e do próprio conceito de região, dentro de um contexto de crescente globalização, alavancada pela instância econômica, mas que se estende a outras esferas do mundo social (Ver: SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1978). 10 WORSTER, Donald apud DRUMMOND, José Augusto, op. cit., pp. 178-180. 33 los, uma realidade, porém, que vem sendo alterada dramaticamente a partir da revolução industrial e tecnológica.11 A emergência da história ambiental como uma linha autônoma de estudos no âmbito da história só ocorreu, no entanto, a partir das últimas décadas do século 20, e está ligada ao contexto da grande crise ambiental, que se evidencia na passagem dos anos 1960 para os 1970, levando ao florescimento dos movimentos ambientalistas, e, às primeiras iniciativas intergovernamentais a este respeito, como a Primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada pela ONU em Estocolmo, Suécia, no ano de 1972. No Brasil, sua introdução nos meios acadêmicos ainda é relativamente recente, cabendo citar o artigo publicado por José Augusto Drummond, em 1991, História Ambiental: Temas, Fontes e Linhas de Pesquisa. Neste trabalho, o autor relacionou as principais direções temáticas que vinham sendo seguidas nos trabalhos de história ambiental. Para Drummond, estas linhas temáticas seriam: (a) origens e efeitos de políticas ambientais e da “cultura” científico-administrativa de organismos governamentais com responsabilidade sobre o meio-ambiente; (b) usos conflitivos de recursos naturais por povos com diferenças culturais acentuadas, ou por grupos sociais distintos dentro de sociedades complexas; (c) valores culturais coletivos relativos à natureza e ao meio-ambiente (incluindo práticas e saberes); (d) ideias de personalidades destacadas, como escritores ou militantes ambientalistas, sobre a natureza e as questões ambientais; (e) casos notáveis de degradação ambiental.12 Um quadro similar é apresentado por Marcos Lobato Martins, que acentua o caráter mais empírico do que teórico dos trabalhos que vem sendo produzidos nesta área, fato relacionado por este historiador à inexistência de um objeto específico de estudo para a mesma e à abrangência e complexidade dos processos envolvidos, que ainda estão requerendo um maior nível de elaboração teórica para esta abordagem da história. Observando-se alguns dos trabalhos que vem sendo produzidos no âmbito da história ambiental, pode-se constatar a presença de todas estas linhas temáticas, em maior ou menor grau, e de uma forma entrelaçada. Muito destes tem lidado com os 11 MARTINS, op. cit., pp. 20-22 e 40-41. Também Karl Marx não deixava de ver o homem como parte integral da natureza, “o homem vive da natureza, isto é, a natureza é o seu corpo” (MARX, Karl. Early Writings. Nova York: Vintage, 1975, p. 328 apud Idem, p. 19). Entre os brasileiros, as obras de Sérgio Buarque de Holanda e de Caio Prado Júnior, o primeiro dialogando com os Annales, e o segundo, marxista, já davam conta do papel importante das interações entre sociedade e natureza na formação histórica do Brasil (Ref.: DUARTE, Regina Horta. História & natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, pp. 88-92). A autora cita Monções (1945) e Visão do paraíso (1954), de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior. 12 WORSTER, Donald apud DRUMMOND, José Augusto, op. cit., p. 189. 34 impactos da atividade humana sobre o equilíbrio frágil de determinados ecossistemas, e dos efeitos daí decorrentes nas próprias sociedades. Um bom exemplo neste sentido é o trabalho de Donald Worster sobre a degradação ambiental decorrente da exploração agrícola intensiva em áreas do meio-oeste dos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século 20. Outros trabalhos dão mais ênfase às transformações nos valores e significados culturais e nas relações mantidas pelas sociedades com determinados tipos de paisagens e recursos naturais, como rios, lagos e praias. Estas abordagens não se distinguem muito, na verdade, das normalmente utilizadas por historiadores sociais e da cultura. Como exemplos de autores que exploraram este viés da história ambiental podem ser citados Simon Schama, em Paisagem e memória, e Alain Corbin, em Le Territoire du Vide – L´Occident et le désir du rivage (1750-1840).13 Estas duas vertentes da história ambiental encontram-se, integradas, no livro do historiador Janes Jorge, Tietê, o rio que a cidade perdeu – São Paulo: 1890 a 1940, que trata, dentro de um enfoque que alia a história social à ambiental, do processo de degradação deste rio e de seus afluentes.14 O rio Tietê foi intensamente utilizado até meados do século 20, para o lazer e os esportes dos paulistanos, mas também para a subsistência de suas camadas mais pobres, com o uso de suas margens e várzeas para a pesca e a caça. O autor mostra como o projeto de urbanização de São Paulo empreendido por suas elites entrou em choque com os povoadores das várzeas do rio, ex-escravos expulsos do centro da cidade, logo seguidos por imigrantes italianos e portugueses, ocupados com a extração e o transporte de areia e argila para uso na construção civil. E como o Tietê foi sendo dominado pela força dos interesses ferroviários, da industrialização, incluindo a produção de energia hidroelétrica, e degradado pelo esgoto e o lixo resultantes do 13 SCHAMA, Simon. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, e CORBIN, Alain. Le Territoire du Vide – L´Occident et le désir du rivage (1750-1840). Paris: Flammarion, 1988 (a edição brasileira, O território do vazio – a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 está esgotada). Schama buscou correlacionar a inclinação de uma sociedade pelo respeito à natureza, ainda que não somente à “original”, intocada pelo homem, mas também, e muito, à paisagem por ele transformada, à sua experiência histórica concreta de interação com a mesma, no sentido de ser necessário conhecer em profundidade o ambiente em que se vive para poder respeitá-lo. Corbin, por sua vez, empreendeu o estudo dos usos, das sensibilidades, do imaginário, e das relações de convivência dos povos ocidentais com o mar e suas praias, com todo o processo radical de mudança por que passaram desde o período do Renascimento até o século 19, mostrando ser esta nova sensibilidade, de certa forma, uma reação a um estilo de vida crescentemente emparedado nas grandes cidades e nas rotinas estressantes da economia capitalista industrial. 14 JORGE, Janes. Tietê, o rio que a cidade perdeu – São Paulo: 1890 a 1940. São Paulo: Alameda, 2006. O livro foi publicado a partir da tese de doutorado (no PPG em História da USP) defendida pelo autor em 2005. Com respeito aos impactos do projeto de urbanização conduzido pelas elites paulistanas na configuração espacial da cidade, na passagem do s. 19 para o 20, ver, pp. 46-52. Com respeito às alterações no curso do Tietê e seus afluentes, provocadas pela empresa concessionária de eletricidade, e seus efeitos para a cidade de São Paulo, ver pp. 72-84. 35 crescimento demográfico da capital paulista. Sobre o Rio de Janeiro, há uma tese de doutorado em urbanismo, A (in) sustentabilidade da metrópole contemporânea. O programa de despoluição da Baía de Guanabara sob a ótica das interseções entre “justiça ambiental” e “projeto ecológico”, de Victor Andrade Carneiro da Silva. O autor analisa os impactos sociais diferenciados do Projeto de Despoluição da Baía de Guanabara (o PDBG), conduzido em conjunto pelos governos federal, estadual e do município do Rio de Janeiro, e similar, em muitos aspectos, ao Programa Integrado Socioambiental (PISA), conduzido pela prefeitura municipal de Porto Alegre. Este trabalho, conquanto não se trate de história ambiental, traz em seus capítulos iniciais uma interessante discussão a respeito das interações entre os desequilíbrios ambientais e socioeconômicos, e discorre sobre os conceitos de sustentabilidade e justiça ambiental. Conforme o autor, este último conceito refere-se à busca por uma maior equidade na distribuição de amenidades ambientais (recursos naturais de uso público para lazer e esportes) e por uma menor assimetria na participação dos diversos setores da sociedade nos processos decisórios.15 O trabalho aporta um aspecto muito significativo sobre a temática ambiental, qual seja, os seus componentes socioeconômicos, mostrando como os impactos, tanto da degradação como dos projetos de recuperação, tendem a ser mais agudos para as comunidades menos favorecidas, que são as que tendem a apresentar os piores indicadores socioambientais.16 15 SILVA, Victor Andrade Carneiro da. A (in) sustentabilidade da metrópole contemporânea. O programa de despoluição da Baía de Guanabara sob a ótica das interseções entre “justiça ambiental” e “projeto ecológico”. Tese de Doutorado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2006, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp079377.pdf, acessado em abril de 2009. Com respeito à noção de sustentabilidade, Victor Carneiro da Silva cita o trabalho de HOGAN, D. J. A Qualidade Ambiental Urbana, oportunidades para um novo salto. In: Revista São Paulo em Perspectiva. julho-setembro, 9 (3): 17-23, 1995. O autor refere-se, também aos trabalhos de RYN, S., COWAN, S. Ecological Design. 1a ed. Washington D.C.: Island Press, 1996 (pp. 1-2). O conceito de justiça ambiental, por sua vez, para o autor, engloba uma temática emergente nas metrópoles contemporâneas relativa às iniquidades na distribuição de amenidades ambientais e assimetrias na participação dos diversos setores da sociedade nos processos decisórios (p. 1). É interessante observar, aqui, a presença do conceito de amenidade ambiental, bastante adequado para caracterizar, por exemplo, o acesso das populações a recursos naturais, como as praias, em boas condições de uso, quanto à limpeza de suas águas e faixas de areia, e sua conservação geral (p. 1). 16 Idem, pp. 327-371. Com relação ao seu objeto específico de pesquisa, isto se reflete na maior vulnerabilidade ambiental das áreas periféricas, como os subúrbios situados às margens da baía de Guanabara, tanto em termos da degradação das águas, que permanecem impróprias para o banho, quanto do impacto da instalação das estações de tratamento de esgotos na orla próxima aos mesmos, mas beneficiando, principalmente, os bairros próximos, habitados por pessoas de mais recursos. Esta situação contrasta com a dos bairros de classe média situados na orla de Niterói, dentro da baía, como Icaraí, cujos habitantes vem sendo beneficiados, de acordo com o autor, pelas obras de saneamento, tendo suas praias despoluídas, sem o ônus da presença das estações de tratamento. E também com a dos bairros da orla oceânica, bem servidos por saneamento e com suas praias limpas, mesmo com o envio dos esgotos não tratados para o mar aberto, por meio de emissários submarinos. 36 1.2. A orla e as praias do Guaíba na historiografia sobre Porto Alegre A produção historiográfica sobre Porto Alegre abordando o tema das relações da sociedade local com o Guaíba ainda é relativamente rarefeita. Tem se dado, na mesma, uma maior ênfase às funções do lago na defesa da cidade, no seu abastecimento e nos transportes, e, algumas vezes, às manifestações populares como as festas de Nossa Senhora dos Navegantes, com suas procissões fluviais, além do registro da vida nas comunidades de pescadores das ilhas vizinhas do Delta do Jacuí. A grande enchente de 1941, que levou ao alagamento de boa parte do centro da cidade e de importantes bairros, como Menino Deus e Navegantes, suscitando a implantação de obras para o combate às cheias, como o aterro da enseada da Praia de Belas, o sistema de diques e de estações de recalque, e o polêmico muro na Avenida Mauá, que isolou o centro da cidade do cais do porto, também é frequentemente abordada. Mas o registro da utilização das praias fluviais para o banho e da sua orla como espaços públicos para a diversão e lazer dos habitantes de Porto Alegre é quase inexistente nesta historiografia, fato que talvez seja sintomático, em si mesmo, da baixa identificação, ao menos das camadas mais influentes da sociedade, com a visão de Porto Alegre como uma cidade também praiana, senão litorânea. Podem ser citadas, neste sentido, três obras de divulgação, nas quais a presença da atividade praiana aparece de forma apenas episódica, quais sejam, Porto Alegre: Guia Histórico, de Sérgio da Costa Franco, Memória Porto Alegre: espaços e vivências, coordenado por Sandra Jatahy Pesavento, e Porto Alegre – de aldeia a metrópole, de Luiz Carlos da Cunha Carneiro e Rejane Penna. No primeiro, em forma de dicionário com verbetes, as praias são citadas brevemente apenas enquanto bairros da cidade (mesmo assim, nem todas), enquanto que os dois últimos, com extensas observações sobre a vida social e cultural da cidade, reservam apenas um ou dois parágrafos sobre o tema.17 Ao lado destes, Crônica de um 17 No segundo com uma clara referência aos banhos como lazer dos mais pobres, em contraposição ao uso do rio pelos mais favorecidos para a vela e o remo, e, no último, uma referência ao período final do século 19, com os banhos da elite na orla central da cidade, e outra já aos anos 1950 e 1960, no contexto do processo de poluição do rio e de crescimento da cidade para os novos bairros da zona sul: (i) FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1988, pp. 44-45, 66-67, 329-332 e 409-410. Verbetes relativos, respectivamente, à antiga praia do Arsenal (na ponta da península central, hoje a região da Usina do Gasômetro), Belém Novo, Praia de Belas e Tristeza; não são mencionadas as praias de Ipanema, Guarujá e Pedra Redonda. (ii) PESAVENTO, Sandra Jatahy. (coord.). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS; Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1991, p. 72. Aqui, a referência aos banhos no Guaíba pelas camadas mais populares da capital gaúcha é localizada no período entre 1920 e 1945: “As elites locais [...] investiam na ‘glamourização’ da cidade, freqüentando bailes e festas do Clube do Comércio; sessões de cinema, divertindo-se no Jockey Club e no Yacht Club [...] Já os menos favorecidos não acompanhavam essa visão da cidade”. De forma diferente, eles se encontravam nas rinhas de galo e nas casas de batuque [...] 37 rio é um interessante trabalho que aborda a relação dos porto-alegrenses e gaúchos com o Guaíba ao longo da história, mostrando a presença deste no imaginário, através da literatura, e as atividades de esportes e lazer na sua orla, ilustradas com fotografias.18 Existe, por outro lado, uma produção historiográfica de cunho mais local e memorialístico, sobre os bairros balneários da zona sul de Porto Alegre, como Revelando a Tristeza, de Roberto Pellin, e a História dos bairros de Porto Alegre, 19 produzida pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Conquanto apresente dados muito interessantes sobre estes espaços, a mesma não permite ter-se uma visão destes a partir da cidade como um todo, servindo mais como fontes de dados que como referências bibliográficas. Mas a evolução histórica dos bairros balneários da zona sul de Porto Alegre, em suas relações com a cidade, é tratada no livro sobre Belém Novo, da série Memória dos Bairros,20 editada pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Este trabalho aborda o processo de criação e consolidação da atividade balneária neste bairro, distante cerca de 30 quilômetros do centro de Porto Alegre, entre as décadas de 1930 e 1950, seguido de sua decadência, nas duas décadas seguintes, em grande parte devida à crescente poluição do lago, mas também a outros fatores, como o crescimento das periferias pobres da capital, e o acesso facilitado ao litoral marítimo do estado. Para tanto, seus autores, entre os quais o historiador Érico Pinheiro Fernandez, recorrem a um grande número de testemunhos de moradores e antigos veranistas do local. Deste autor, há também um artigo sobre o mesmo tema, em Porto Alegre em destaque: história e cultura.21 O recurso à história oral é uma opção teóricometodológica bastante efetiva, nestes trabalhos, conseguindo ultrapassar os limites da nos carnavais de rua; nos cafés no subúrbio e no Mercado Público, nos botequins da Ilhota, nos banhos no Guaíba e na festa de Navegantes. (iii) CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha, PENNA, Rejane. Porto Alegre – de aldeia a metrópole. Porto Alegre: Marsiaj Oliveira; Officina da História, 1992, p. 82 e 143. Trecho nesta página: “A cidade ainda tinha balneários às margens do Guaíba, já em franco processo de poluição, mas ainda longe de transformá-lo em cloaca imprestável.” 18 CARVALHAL, Tania Franco, TIMM, Edgar e TIMM, Liana. Crônica de um rio. Porto Alegre: Riocell, 1987. O texto é da professora de teoria literária Tania Franco Carvalhal, com fotografias de Edgar Timm e ilustrações de Liana Timm, arquitetos. A obra apresenta fotografias de banhistas nas praias do Guaíba, bem como de praticantes do remo, nos anos 1930, retiradas de acervos familiares (pp. 24-25). 19 CENTRO DE PESQUISA HISTÓRICA / Coordenação de Memória Cultural / Secretaria Municipal de Cultura / Prefeitura Municipal de Porto Alegre. História dos bairros de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, (http://www.lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/historia_dos_bairros_de_port o_alegre.pdf, acessado em abril de 2007), pp. 11-13, 31-34, 40-41, 47-48, 60-61, 79-83, 105-109. 20 CRUZ, Cassius Marcelus, FERNANDEZ, Érico Pinheiro e GOMES, Rodrigo de Aguiar. Belém Novo (Memória dos Bairros). Porto Alegre: UE / Secretaria Municipal da Cultura, 2000. 21 FERNANDEZ, Érico Pinheiro. Zona Sul de Porto Alegre: pensar hoje o que será ontem. In: DORNELLES, Beatriz (org.). Porto Alegre em destaque: história e cultura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, pp. 245-270. 38 historiografia mais comum sobre a cidade, a qual, mesmo quando focada nos aspectos sociais e culturais, tendia a esquecer-se da grande diversidade de cenários de Porto Alegre, ao menos, especificamente, destas vivências praianas. As quais se caracterizavam não apenas pelo banho dos veranistas, mas também por várias outras atividades, como a pesca, generosa, que era feita tanto por alguns destes quanto por muitos moradores permanentes do local, que se organizavam em colônias, e tinham nela um importante meio de subsistência e renda, tal como ocorria nas ilhas do Delta do Jacuí. Uma parte da produção acadêmica recente, tanto no campo da história quanto de outras disciplinas, como o urbanismo, tem enfocado o desenvolvimento urbano de Porto Alegre no século 20, incluindo as relações da cidade com o Guaíba, mas também nela o tema do uso das praias tem sido pouco abordado. Cabe mencionar as obras seguintes: Rio-centro, de Thiago Muradas Bulhões, Cidade fotografada: memória e esquecimento nos álbuns fotográficos – Porto Alegre, décadas de 1920 e 1930, de Zita Rosane Possamai, e A cidade em busca da modernidade: fotorreportagens sobre Porto Alegre na Revista do Globo (1950-1960), de Charles Monteiro.22 Focado no tema da reconversão da área do antigo cais do porto para atividades culturais e de lazer, o trabalho de Bulhões explicita um dado interessante: o afastamento de grande parte da população da capital da orla praiana, em função da distância geográfica e da centralização do sistema de transporte urbano no perímetro central da cidade. O autor comenta a situação de relativo isolamento dos moradores da cidade, exceto os da zona sul, em relação ao Guaíba, apontando, também, para o fato de que, mesmo na zona sul, à exceção de Ipanema, Guarujá e parte de Vila Assunção, boa parte da orla não está diretamente acessível à população. Os trabalhos de Possamai e Monteiro trazem outra 22 (i) BULHÕES, Thiago Muradas. Rio-centro. Dissertação de Mestrado, PPG em Arquitetura, UFRGS, Porto Alegre, 2004, disponível em http://hdl.handle.net/10183/6138, acessado em janeiro de 2011, pp. 5052; (ii) POSSAMAI, Zita Rosane. Cidade fotografada: memória e esquecimento nos álbuns fotográficos – Porto Alegre, décadas de 1920 e 1930. Tese de Doutorado, PPG em História, UFRGS, Porto Alegre, 2005, disponível em http://hdl.handle.net/10183/5251, acessado em janeiro de 2011. No item referente às fotografias sobre a paisagem urbana, a autora constata a grande predominância na escolha, por parte dos editores dos álbuns sobre Porto Alegre, de paisagens ordenadas pela ação humana, como parques, jardins e praças, pp. 243-251; (iii) MONTEIRO, Charles. A cidade em busca da modernidade: fotorreportagens sobre Porto Alegre na Revista do Globo (1950-1960). In: VII Encontro Estadual de História ANPUH/RS História, Memória e Testemunho, 2004, Pelotas. Anais do VII Encontro de História ANPUH/RS História, memória e testemunho. Porto Alegre: ANPUH/RS, 2004. V. 1 CD-R. p. 1-12. Cabe notar, no entanto, que houve uma seleção, por parte do autor, de fotorreportagens abordando a verticalização do centro da cidade e a instalação de grandes avenidas e prédios com monumentalidade, sem a inclusão da paisagem da zona sul e das praias, a qual é explicável a partir de sua intenção, manifesta no título, já que estas ainda se apresentavam com características bucólicas e exclusivamente residenciais. 39 constatação interessante: a orla fluvial, com as praias da zona sul da cidade, esteve praticamente ausente do registro fotográfico de Porto Alegre, enquanto paisagem urbana, ao longo das décadas de seu maior crescimento, entre 1920 e 1970, em grande contraste com o destaque dado à verticalização do centro da cidade, às novas avenidas e viadutos, aos parques, aos novos bairros residenciais da elite, aos estádios de futebol e à ponte móvel sobre o Guaíba. O trabalho de André Huyer, A ferrovia do riacho: um caminho para a urbanização da zona sul de Porto Alegre, por outro lado, serve como uma fonte documental e iconográfica sobre a constituição da zona balneária de Porto Alegre, na primeira metade do século XX, apresentando um rico acervo de mapas, fotografias e peças de publicidade sobre os novos lançamentos residenciais nos balneários do Guaíba. Estas últimas, em especial, surgem como um contraponto à visão destas praias como um local valorizado apenas pelas camadas mais populares, por vezes presente em matérias da imprensa local, especialmente na Revista do Globo, entre as décadas de 1940 e 1960. O trabalho de Cícero Castello Branco Filho, A orla do Lago Guaíba no município de Porto Alegre-RS: análise ambiental urbana e proposta de revitalização, por sua vez, apresenta um breve histórico dos planos urbanísticos para a cidade, desde o de 1914 até o primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), de 1999, e suas visões e impactos sobre a orla do Guaíba.23 1.3. O contexto histórico e os elementos do problema: atores sociais e conflitos de interesses envolvidos com o tema da recuperação ambiental do Guaíba O contexto histórico no qual está situado o problema em estudo, qual seja o do grau e natureza do envolvimento de diferentes segmentos da sociedade local nas iniciativas para a recuperação ambiental do Lago Guaíba, pode ser caracterizado por dois aspectos principais, cujas linhas gerais são descritas a seguir. Como um primeiro aspecto, o processo intensivo de crescimento populacional e industrialização na região ribeirinha do lago, em especial na sua margem esquerda, onde fica a cidade de Porto Alegre, e na sua região metropolitana, cujas maiores cidades se localizam junto às margens de seus afluentes Sinos e Gravataí. Este ocorreu principalmente entre as décadas de 1950 e 1980, num cenário de crescimento econômico que não levou à 23 (i) HUYER, André. A ferrovia do riacho: um caminho para a urbanização da zona sul de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, PPG em Planejamento Urbano e Regional, UFRGS, Porto Alegre, 2010, disponível em http://hdl.handle.net/10183/29131, acessado em setembro de 2011; (ii) CASTELLO BRANCO FILHO, Cícero. A orla do Lago Guaíba no município de Porto Alegre-RS: análise ambiental urbana e proposta de revitalização. Dissertação de Mestrado, PPG em Geografia, UFRGS, Porto Alegre, 2005. 40 superação do subdesenvolvimento. O qual se caracterizou pela persistência de grandes desigualdades socioeconômicas e por uma baixa capacidade de participação e deliberação políticas por parte do conjunto da sociedade civil frente ao Estado e aos setores com maior influência sobre o este, como o empresariado e a tecnoburocracia voltados ao crescimento econômico através da industrialização e do agronegócio exportador, agravadas durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985). Ao lado disso, o advento de uma maior preocupação com o meio ambiente e com a conservação e/ou a preservação dos recursos naturais, que ocorreu com maior intensidade a partir do final da década de 1960 e início da década de 1970, a nível mundial (Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, da ONU, em 1972). Preocupações neste sentido já vinham ocorrendo no Brasil, e, em particular, no Rio Grande do Sul, pelo menos desde o final da década de 1950, mas tomaram um novo impulso a partir de meados da década de 1970, tanto como resultado de pressões externas, como um aspecto de difusão cultural para certos setores da sociedade civil, mas também a partir do Estado, em função de demandas neste sentido por parte de agências internacionais de fomento, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (BIRD), como em função de fatores internos. Entre os quais estiveram, no caso específico, as reações aos impactos causados na população local por empreendimentos como a fábrica de celulose Borregaard, especialmente pela poluição do ar, e a degradação acentuada de rios como o Sinos e o Gravataí e do próprio Lago Guaíba, resultando em diminuição da pesca, perda da balneabilidade das praias, eventos de mortandade de peixes, e na percepção de ameaça ao abastecimento de água potável. Mas manifestações neste sentido também se colocaram, neste primeiro momento, como um canal de oposição possível, pois sem caráter classista ou político-partidário, frente ao Estado autoritário em seu período de maior intensidade. Ao lado disso, já num segundo momento, passa a ocorrer um movimento no sentido de tratar-se a gestão dos recursos hídricos de uma forma mais integrada, e voltada para o conceito amplo de sustentabilidade, através do qual a sua exploração econômica tem de ser equilibrada com os demais usos, implicando na busca da preservação da qualidade das águas, o qual foi influenciado tanto por fatores internos quanto externos, a exemplo do sistema de gestão de águas implantado na França, tendo impacto na elaboração das novas constituições federal, de 1988, e do Rio Grande do Sul, de 1989, onde passou a ser incluído o conceito de gestão integrada e participativa dos recursos hídricos por bacias hidrográficas. 41 Pode-se dizer, em resumo, que houve, no período em estudo, uma passagem de uma visão dominante que prescrevia os benefícios do crescimento econômico e da urbanização aceleradas, sem maiores preocupações com os seus custos indiretos e seus impactos no meio ambiente, para uma visão com mais nuances. Ou, pelo menos, para a coexistência entre aquela primeira, do crescimento “a todo custo”, com outras, mais preocupadas com o aumento da qualidade de vida, aí incluindo a preservação e/ou recuperação dos recursos hídricos e a universalização do saneamento básico (tratamento e abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, coleta e tratamento do lixo urbano), e com a redução dos desequilíbrios socioeconômicos, para a qual esta última é também um importante elemento. É mais do que razoável pressupor que nenhuma pessoa ou grupo social se posicione, em princípio, contra a preservação ou recuperação da qualidade das águas de um rio, lago ou mar. Existem, por outro lado, disputas quanto aos usos de um curso d’água, entre os quais, por exemplo, captação para lavouras irrigadas, pesca, turismo ou lazer, e diferentes formas de ocupação das margens, tais como parques urbanos, parques naturais, áreas de preservação, usos residenciais e/ou comerciais, etc. O fato de que todos os integrantes de uma sociedade sejam, em princípio, favoráveis à preservação ou recuperação da qualidade das águas de um rio, lago ou mar, não significa, contudo, que tenham a mesma disposição a considerar esforços neste sentido como uma prioridade de tal modo relevante que justifique o seu apoio, quer como elemento de decisão nos processos eleitorais, quer como destinação de investimentos a serem cobertos por tributos e/ou tarifas, quer como causa a ser defendida em qualquer tipo de ativismo ou militância. É razoável pressupor, ao lado disso, que as pessoas vivendo em comunidades ou áreas urbanas carentes de serviços básicos de infraestrutura, tais como o abastecimento de água potável e o esgotamento sanitário, as quais são, na maior parte, carentes em recursos financeiros e instrução formal, tendam a se mobilizar para a obtenção destes serviços junto ao poder público, por meio de suas lideranças comunitárias e/ou através de representantes eleitos nos legislativos estadual e municipais. As demandas no sentido da preservação e/ou recuperação da qualidade das águas que banham uma grande cidade, como as do Lago Guaíba em Porto Alegre, por outro lado, assim como outras como da manutenção da qualidade do seu ar, apresentam características que as tornam diferentes das acima citadas, na medida em que afetam um universo muito maior de pessoas, mas com uma intensidade bem menor do que a da 42 carência de infraestrutura básica e de habitação, e de empregos e serviços de saúde, educação, transporte e segurança, ressalvados os casos extremos, de comprometimento da qualidade da água potável e do ar. É razoável pressupor, deste modo, que o interesse mais firme e determinado no atendimento desse tipo de demanda (como a preservação e/ou recuperação da qualidade das águas do Lago Guaíba) fique limitado a um universo bem mais restrito de pessoas e grupos e/ou organizações, dentro ou fora do setor estatal. Dentro deste universo poderiam ser encontradas pessoas ligadas a diversos segmentos, por vezes com mais de uma filiação, que são elencados a seguir, sem ordem de importância. Há os quadros técnico-científico-burocráticos ligados aos serviços de saneamento básico (tratamento e abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, coleta e tratamento de lixo urbano), prestados por empresas e autarquias municipais e estaduais. Os quadros técnico-científico-burocráticos ligados aos órgãos de proteção ambiental das administrações diretas municipais e estaduais. Os quadros técnico-científico- burocráticos ligados aos órgãos de planejamento e desenvolvimento urbano e regional dos governos municipais e estaduais. A comunidade acadêmica e científica ligada aos institutos de ensino e pesquisa das universidades da região, em áreas como recursos hídricos, engenharia ambiental, geografia, ecologia, planejamento urbano e regional, economia e desenvolvimento rural, ciências humanas, entre outras. Os integrantes e simpatizantes de organizações não governamentais (ONGs) ligadas à conservação e/ou preservação do meio ambiente, de variadas naturezas e abrangências. Integrantes do segmento de imprensa especificamente voltado à cobertura das questões ambientais e à defesa de causas desta natureza, geralmente em órgãos ou agências específicas, à parte dos grandes veículos (área do “eco jornalismo”). Integrantes e lideranças de associações comunitárias de áreas ribeirinhas, especialmente de pescadores artesanais. Além destes, outros segmentos poderiam ser citados, como o dos associados de clubes náuticos e o ligado às atividades turísticas, as quais têm uma baixa expressão na cidade de Porto Alegre e região metropolitana. É possível identificar, com base numa primeira análise, a existência, efetiva ou potencial, de vários conflitos de interesses envolvendo as temáticas da gestão dos recursos hídricos, do saneamento básico, da gestão do desenvolvimento urbano e da proteção do meio ambiente, na bacia do Lago Guaíba. Estes são a seguir relacionados, sem preocupação com uma ordem de importância. A pressão de setores da sociedade em geral em favor de um maior controle e de uma minimização dos impactos 43 ambientais das atividades econômicas dos setores industrial e agropecuário, em especial, (i), a qual se traduz em atividade legislativa e de fiscalização, esta exercida através dos órgãos ambientais e/ou do poder judiciário e do ministério público, e que resulta, em termos gerais, na incorporação aos custos de produção destas empresas das medidas necessárias para tanto, as quais, de outra forma, seriam transferidas para o conjunto da sociedade (externalização de custos). A pressão dos setores mais carentes da sociedade, geralmente vivendo em áreas da periferia dos centros urbanos, para a realização de investimentos públicos em infraestrutura, como abastecimento de água e coleta de esgotos, mas também habitação e regularização fundiária, e outros (pavimentação de ruas, transporte, postos de saúde, etc.), (ii), os quais têm de competir por prioridade com demandas formuladas por outros setores da sociedade. A pressão de setores da sociedade em geral em favor da realização de investimentos para permitir a recuperação da qualidade das águas do lago e de seus afluentes na bacia, principalmente através da expansão da capacidade de tratamento dos esgotos domésticos e do processamento adequado do lixo urbano, (iii), investimentos esses que têm de competir por prioridade com outras demandas, inclusive as relacionadas às políticas de incentivos fiscais para a atração de novas fábricas, bem como necessitam ter a sua operação viabilizada, através da cobrança de tarifas relativamente elevadas para o poder aquisitivo de grande parte dos usuários, e/ou através de subsídios, com custo a ser transferido para o conjunto da sociedade via aumento da carga tributária. Ao lado disso, as disputas com respeito ao regramento urbanístico a ser seguido para as áreas junto à orla do Lago Guaíba, (iv), geralmente polarizadas entre uma visão favorável a uma ocupação mais intensiva, com edificações para fins comerciais e residenciais, e outra mais favorável à preservação destas áreas sob a forma de parques públicos, a primeira promovida pelos setores ligados à indústria imobiliária, mas com apoio significativo em outros setores da sociedade, geralmente justificado com base no desenvolvimento econômico e na geração de empregos, e a segunda defendida principalmente por setores ligados ao ativismo ambientalista, mas também com significativo apoio em amplos setores da população local. E também as disputas com respeito aos modelos de manejo a serem adotados nas áreas destinadas à proteção ambiental, no interior da região metropolitana de Porto Alegre, como o Delta do Jacuí, o Lami e Itapuã, (v), envolvendo, principalmente, a manutenção dos direitos dos ocupantes anteriores à sua implantação, muitas vezes populações definidas como “tradicionais” (pescadores artesanais, comunidades indígenas, etc.), frente a uma visão 44 preservacionista mais rígida, por vezes adotada pelos órgãos estatais responsáveis pela gestão destas áreas, com o apoio de setores do segmento ambientalista, aí incluída uma parte dos quadros acadêmico-científicos locais, ao passo que os interesses dessas populações são defendidas por outros setores do segmento ambientalista, favorável a uma visão mais conservacionista, e pela parcela correspondente dos quadros acadêmicocientíficos – tratam-se, aqui, de conflitos que podem ser enquadrados como tendo um caráter socioambiental. Ao lado destas disputas, ainda podem ser identificados outros conflitos de interesse, que dizem mais respeito às alternativas de gestão do setor de saneamento básico, à fiscalização dos investimentos neste setor e aos impactos ambientais decorrentes das obras de expansão da capacidade de tratamento dos esgotos domésticos urbanos. Há, por um lado, (vi), disputas com relação aos modelos a serem seguidos para os serviços de saneamento básico, envolvendo as opções entre empresas concessionárias destes serviços com controle público ou privado de seu capital, e, concomitantemente, entre o controle destas concessionárias por parte dos municípios, isoladamente ou em consórcios regionais, tendo em conta que a Constituição Federal de 1988 confere ao nível municipal o poder concedente sobre estes serviços, ou por parte de empresas e/ou autarquias com capital controlado pelos estados, conforme o modelo estruturado no período da ditadura civil-militar. Tratam-se, em resumo, de disputas quanto ao caráter público ou privado das concessionárias e quanto ao nível incumbido de sua gestão, se municipal ou estadual. Estas disputas se revestem, muitas vezes, de um caráter políticopartidário, o qual transcende o espaço da gestão do saneamento básico, e interferem de modo significativo na condução das políticas públicas deste setor. E ocorrem também, (vii), disputas com respeito às opções adotadas especificamente para a realização dos investimentos (projetos e obras) visando à expansão da capacidade dos sistemas de saneamento básico, em especial de coleta e tratamento de esgotos domésticos, tanto com respeito à busca por alternativas com menores custos globais, quanto com respeito à fiscalização dos processos de licitação e do cumprimento dos custos e prazos contratados, e, por outro lado, com respeito aos impactos ambientais das próprias opções adotadas para a expansão destes serviços, envolvendo, entre outros pontos, as alternativas de localização das estações de tratamento e as tecnologias empregadas nas mesmas. O primeiro desses pontos envolve a fiscalização do executivo e das empresas contratadas por parte da sociedade civil, quer através do legislativo, ministério público e judiciário, quer através de associações profissionais e de ONGs interessadas no tema. 45 Ao passo que o último envolve, mais especificamente, além de associações profissionais e integrantes do segmento técnico-científico-acadêmico, grande parte das ONGs envolvidas na proteção ao meio ambiente, e seus integrantes, identificando-se, aqui, um ponto de potencial conflito de interesses entre grupos de perfis de formação profissional por vezes próximos, com viés técnico-científico, mas ligados, de um lado, ao setor do saneamento básico, no governo e nas empresas concessionárias, e, de outro, ao ativismo ambientalista. Pode-se voltar, neste momento, ao problema de estudo proposto nesta dissertação, qual seja o de avaliar o grau e a natureza do envolvimento de diferentes segmentos da sociedade local nas iniciativas para a recuperação ambiental do Lago Guaíba, no período compreendido entre o início da década de 1980 e os primeiros anos da década de 2000. O foco mais específico deste problema de pesquisa passa por identificar os principais agentes sociais envolvidos com as demandas no sentido de promover a preservação, mas, principalmente, a recuperação da qualidade das águas do Lago Guaíba, em condições sustentáveis, e, junto a estas, como uma de suas précondições, as demandas no sentido de universalizar os serviços de coleta de esgotos domésticos (mas também do lixo urbano) na região de sua bacia hidrográfica, seus objetivos e formas de atuação, e as principais resistências enfrentadas por estes agentes no decorrer do período. Neste sentido, fica bastante claro que o desenrolar destes processos combinados de recuperação ambiental e de extensão dos serviços de saneamento básico vem ocorrendo como o resultado de enfrentamentos de natureza social e política, em torno da priorização e aplicação de políticas públicas, e não simplesmente como uma decorrência “natural” da gestão pública frente a um contexto de permanente restrição orçamentária – o qual não pode ser desprezado, mas, ainda menos, usado como único fator justificativo, ficando bastante claro, também, que os conflitos de interesse com maior relevância para o problema de estudo são os que foram acima relacionados como (ii) e (iii), quais sejam: a pressão dos setores mais carentes da sociedade, geralmente vivendo em áreas da periferia dos centros urbanos, para a realização de investimentos públicos em infraestrutura, como abastecimento de água e coleta de esgotos, e a pressão de setores da sociedade em geral em favor da realização de investimentos para permitir a recuperação da qualidade das águas do lago e de seus afluentes na bacia, principalmente através da expansão da capacidade de tratamento dos esgotos domésticos e do processamento adequado do lixo urbano. Os conflitos elencados como (vi) e (vii), referentes aos modelos para a gestão do setor de 46 saneamento básico e à fiscalização dos investimentos nesta área, incluindo os impactos ambientais das obras necessárias, respectivamente, podem ser caracterizados, por sua vez, como localizados no interior da parcela da sociedade interessada, em princípio, na concretização das demandas por universalização do saneamento básico e pela recuperação ambiental do Guaíba. O que não significa que não tenham um papel considerável no desenrolar destes processos, uma vez que dizem respeito a aspectos críticos, como os custos e prazos incorridos, inclusive pelas descontinuidades decorrentes das mudanças de grupos político-partidários no poder, e pela necessária discussão das alternativas, em termos econômicos, ambientais e urbanísticos. Cabem os seguintes comentários com relação aos demais conflitos anteriormente identificados. Em primeiro lugar, o controle da poluição industrial e das atividades agropecuárias – enumerado como (i), conquanto ainda apresente sérias deficiências, não se constitui no ponto mais crítico, em termos gerais, para a recuperação das águas do Guaíba, como tem sido o caso da falta de saneamento básico (tratamento de esgotos domésticos e do lixo urbano), e, ao lado disso, tende a ser visto, pela população em geral, como um custo a ser imposto a terceiros (às indústrias e ao agronegócio), ao contrário do custo deste último. Ao lado disso, as disputas com respeito ao regramento urbanístico a ser seguido para as áreas junto à orla do Lago Guaíba, se mais construções ou mais parques públicos – o item enumerado como (iv), não estão diretamente relacionadas ao problema da recuperação da qualidade de suas águas. Conquanto possam revelar alguns aspectos peculiares com respeito às relações da sociedade local com o lago, e da presença nesta de posições políticas muito polarizadas. De um lado, uma posição explícita em favor do “embelezamento” da orla sem tocar no ponto que seria fundamental para isso, a despoluição das águas, e de outro, por vezes, a busca por uma “sacralização” da mesma, com o afastamento das pessoas, sem tampouco destacar a tarefa e os benefícios da despoluição. Finalmente, as disputas com respeito aos modelos de manejo a serem adotados nas áreas destinadas à proteção ambiental, o ponto enumerado como (v), também ficam fora do foco principal do problema, conquanto não devam ser desprezadas as contribuições que a vivência das populações ribeirinhas, como a dos pescadores artesanais, junto ao Lago Guaíba, pode trazer para o estudo e para as próprias iniciativas para sua recuperação ambiental. É possível, deste modo, chegar aos principais agentes sociais envolvidos com estes processos, tanto pelo lado da formulação das demandas, quanto pela resistência às mesmas, quer de uma forma mais explícita, quer, principalmente, de uma forma 47 indireta, por meio da passividade e/ou indiferença; entre os primeiros, podem ser destacados, sem preocupação com sua ordem de importância. Há os líderes ou representantes de associações de moradores localizadas em áreas carentes de serviços de infraestrutura, como os de coleta e tratamento de esgoto e lixo urbano, (i), comunidades e lideranças estas que não necessariamente darão apoio a todas as iniciativas no sentido de estender as redes de coleta e de tratamento de esgotos, na medida em que vejam seus custos como demasiado altos, o mesmo valendo para os demais moradores das cidades da região, inclusive os de maior poder aquisitivo. Os agentes técnico-científicoburocráticos ligados, principalmente, aos serviços de saneamento básico, (ii), mas também aos órgãos de proteção ambiental das administrações diretas municipais e estaduais e aos órgãos de planejamento e desenvolvimento urbano e regional dos governos municipais e estaduais. Os integrantes e simpatizantes de organizações não governamentais (ONGs) ligadas à conservação e/ou preservação do meio ambiente, (iii), especialmente as envolvidas com a temática da preservação, conservação e recuperação dos recursos hídricos, incluindo, também, os “eco jornalistas” ligados a esta temática. Integrantes dos quadros acadêmicos e científicos de institutos de ensino e pesquisa das universidades da região, (iv), envolvidos com as temáticas socioambiental e da gestão de recursos hídricos. Outras pessoas da sociedade local envolvidas de alguma forma mais próxima com estas demandas, (v), tais como escritores, artistas, jornalistas ou simpatizantes em geral, bem como membros dos legislativos estadual e municipais eleitos como representantes de um ou mais destes setores e/ou de posições favoráveis a estas demandas. A identificação dos agentes sociais em posição de resistência a estas demandas não é muito fácil, especialmente porque esta dificilmente se manifesta de forma explícita, tanto no que diz respeito à universalização do saneamento básico quanto à recuperação ambiental das águas. É possível, neste ponto, chegar à hipótese principal de trabalho para este estudo: esta consiste, em poucas palavras, em creditar os avanços que foram alcançados em termos de recuperação ambiental das águas do Lago Guaíba, ao longo das últimas três décadas, menos ao resultado de uma mobilização de setores mais amplos da sociedade local, do que à ação dos segmentos mais diretamente envolvidos com a demanda e com a sua execução, tais como o corpo técnico-científico-burocrático ligado às políticas de gestão de águas e aos serviços de saneamento básico, e de alguns ativistas e simpatizantes, na sociedade civil e no Estado. Esta suposição inicial, se confirmada, servirá como um indicador de que a mudança nas visões dominantes com respeito às 48 relações entre crescimento econômico e cuidados com o meio ambiente, citada no item relativo ao contexto histórico, ainda necessita ser um tanto relativizada, ao menos no caso específico em estudo, e, mais especialmente, sempre que o discurso em favor da preservação da natureza necessite, para se transformar em ação, da disposição da sociedade para aceitar os seus custos. 1.4. Eixos teóricos para a discussão: movimentos sociais, relações entre Estado e sociedade civil e os condicionantes estruturais Uma vez levantados os principais agentes sociais envolvidos e o seu contexto histórico específico, bem como estabelecidas as hipóteses iniciais de trabalho para o problema em estudo, é possível definir os fundamentos teóricos mais adequados para o seu desenvolvimento. O trabalho de pesquisa e interpretação se desenvolveu, deste modo, em torno de três eixos, quais sejam: os movimentos sociais, as relações entre o Estado e a sociedade civil e os condicionantes determinados pelas estruturas sociais, econômicas e culturais vigentes, nos âmbitos global e local. O primeiro destes pontos diz respeito ao papel dos movimentos sociais compreendendo, no caso específico, tanto os de natureza comunitária, como as associações de moradores, ou outros agrupamentos visando o aumento da inclusão social através de políticas públicas de caráter distributivo, quanto os de natureza mais temática, como as associações que constituem o ativismo ambientalista, em suas diversas vertentes e formas de atuação, mas também o das associações técnicas profissionais e das comunidades científicas e acadêmicas. O segundo se refere às relações que se desenvolvem entre o Estado e a sociedade civil, procurando levar em conta o papel das diversas instâncias que atuam em suas interfaces, apresentando características próprias, como os partidos políticos, bem como os segmentos técnicos e burocráticos estatais, e o grau e a natureza da permeabilidade existentes entre esses dois polos sociais. O terceiro ponto diz respeito ao papel representado por certas características estruturais presentes nas sociedades contemporâneas, como a generalização das relações baseadas no mercado, o papel crescente de formas tecnoburocráticas de dominação e a prevalência de um individualismo que tem se revelado uniformizador, as quais operam no sentido de limitar o leque de possibilidades de transformação, entre estas as que poderiam contribuir para a redução dos desequilíbrios de ordem social, regional e ambiental.24 24 CASTORIADIS, Cornelius. Figuras de lo pensable (Las encrucijadas del laberinto VI). México: Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 155. Neste ponto de sua obra, o autor caracteriza as sociedades 49 1.4.1. Movimentos sociais: natureza e possibilidades da ação coletiva O conceito de movimento social vem sendo utilizado por diversos autores no âmbito das ciências humanas associado à possibilidade de existência de ações coletivas num sentido mais amplo do que o estritamente relacionado à conquista e ao exercício do poder no âmbito do Estado. No entender de Alain Touraine, os movimentos desta natureza podem ser definidos como “ações coletivas que visam modificar o modo de utilização social de recursos importantes em nome de orientações culturais aceitas na sociedade considerada.” O mesmo autor também considera que, de acordo com a definição anterior, “um movimento social deve ter um programa político porque faz apelo a princípios gerais ao mesmo tempo que a interesses particulares”, e dá como exemplos deste perfil de atuação os movimentos operários, de libertação nacional, das mulheres e, no período mais recente, dos ecologistas. 25 Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer, por sua vez, situam os movimentos sociais no contexto da experimentação de novas práticas de democracia em sociedades com passados coloniais ou autoritários recentes e fora dos centros hegemônicos do sistema capitalista, tais como a Índia, a América Latina e os países do sul da Europa. Estes autores, tomando como referência Raymond Williams26, para quem a cultura é uma dimensão presente nas instâncias econômicas, sociais e políticas, os caracterizam como “inseridos em movimentos pela ampliação do político, pela transformação de práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção na política de atores sociais excluídos”. 27 Uma vez alcançada uma definição dos movimentos sociais, em termos amplos, é possível discorrer sobre os elementos que impulsionam este tipo de ação coletiva, e contemporâneas, liberais e materialmente afluentes, como “sociedades de capitalismo burocrático e fragmentado.” 25 TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Petrópolis, RJ: Vozes, 1996, pp. 83-84. 26 WILLIAMS, Raymond. Culture. Glasgow: Fontana, 1981 apud. AVRITZER, Leonardo, SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 53. O autor britânico mostra a ampliação do significado da palavra cultura, no transcorrer do período em que ocorreram profundas transformações nas estruturas sociais, econômicas e políticas, caracterizadas como as revoluções industrial e democrática: “A quinta palavra, cultura, transforma-se, de maneira semelhante, no mesmo período crítico. Anteriormente significara, primordialmente, “tendência de crescimento natural” e, depois, por analogia, um processo de treinamento humano. Mas este último emprego [...] alterou-se, no século dezenove, no sentido de cultura como tal, bastante por si mesma. [...] Mais tarde ainda, ao final do século, veio a indicar ‘todo um sistema de vida, no seu aspecto material, intelectual e espiritual’ [...] A evolução da palavra cultura dá testemunho de numerosas reações importantes e continuadas, a essas alterações de vida social, econômica e política e pode ser encarada, em si mesma, como um especial tipo de roteiro, que permite explorar a natureza destas mesmas alterações.” (WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade 1780-1950. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1989, p. 18.). 27 AVRITZER, Leonardo, SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit., p. 53. 50 sobre os que os condicionam e lhes dão limites. O principal aspecto a ser considerado aqui diz respeito ao balanço entre os papéis desempenhados pelos agentes sociais e pelas estruturas em que estes estão inseridos. Existe um amplo consenso, entre autores com diferentes filiações teóricas, no sentido de ver os indivíduos e os coletivos como agentes sociais dotados de certo grau de autonomia, o qual é condicionado, no entanto, pelas estruturas vigentes, em seus vários aspectos, não apenas o econômico, mas também o social, o político e o cultural.28 Estas visões da realidade social dotada de mais nuances permitem deixar de lado tanto as abordagens que sobrevalorizam o papel de determinados indivíduos, como agentes das transformações históricas, em detrimento do peso das estruturas, quanto as que concentram todo o protagonismo nestas últimas. Cabe observar que estas duas abordagens, quer valorizando os indivíduos, quer as estruturas, entre estas as classes sociais, acabam, muitas vezes, por subordinar suas atuações a princípios ou “leis” generalizantes, de caráter teleológico, que trariam a evolução histórica já pré-determinada em si mesmos, tais como a “necessária” superação do capitalismo e da burguesia pelo comunismo, através da revolução proletária, ou suas contrapartidas, como a “necessária” vitória da economia de mercado e da democracia liberal, deixando muito pouco espaço para o imprevisto no devir histórico.29 O caráter relacional dos fenômenos que podem ser apreendidos no âmbito das ciências sociais é um ponto ressaltado por diversos autores, entre os quais Pierre Bourdieu. No prefácio de Razões práticas: Sobre a teoria da ação, o sociólogo francês 28 Entre estes podem ser citados vários autores ligados, de uma forma bastante ampla, à história cultural, como os marxistas britânicos E. P. Thompson e Christopher Hill e o italiano Carlo Ginzburg, um dos formuladores da chamada micro-história, bem como alguns dos integrantes da Escola dos Annales, como Lucien Febvre e Marc Bloch, mas também o filósofo Michel de Foucault, o antropólogo Clifford Geertz e o sociólogo Pierre Bourdieu. Uma apresentação e breve discussão acerca das principais abordagens que tem sido utilizadas na área usualmente definida como história cultural, englobando estes autores, com suas diversas abordagens, podem ser vistas em HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 1-29 (Apresentação: história, cultura e texto). Um ponto em comum que pode ser encontrado entre estes autores consiste no reconhecimento de que as instâncias cultural e socioeconômicas mantém entre si relações mais íntimas do que simplesmente as de causa e efeito. Esta posição se contrapõe tanto a uma visão marxista “clássica” (papel determinante da base socioeconômica) quanto a uma visão oposta, apresentada por alguns autores da chamada “história das mentalidades”. 29 Com respeito à apropriação pela disciplina da história de concepções teleológicas e de conceitos transplantados das ciências naturais, por vezes sem a necessária crítica, ver: CATROGA, Fernando, Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto Editora, 2003, pp. 125-126 e 129-130, e também COLLINGWOOD, R. G., A ideia de História. Lisboa: Editorial Presença, 2001, pp. 226-227, 231 e 234. Entre estes conceitos pode ser destacado o de evolução, que foi formulado por Charles Darwin, no contexto da biologia, como um processo com alto grau de aleatoriedade, e, portanto, sem qualquer conotação de direção ou sentido pré-determinados, mas que foi apropriado, no âmbito das ciências sociais, como no caso de algumas interpretações marxistas, e também do positivismo, como a expressão de leis históricas, frente às quais o devir surge apenas como a “desenvolução” de um plano previamente traçado. 51 apresenta o que entende serem os pilares do trabalho nesta área de conhecimento. O primeiro destes, para Bourdieu, consiste numa filosofia científica relacional, necessária para ultrapassar o senso comum, ainda que esclarecido, que prevalece no pensamento corrente no mundo social, vinculado antes a “realidades” substanciais (indivíduos, grupos como “classes”) do que às relações objetivas, intangíveis, e que necessitam ser conquistadas, construídas e validadas por meio do trabalho científico. O segundo, numa filosofia da ação, ou disposicional, condensada num núcleo de conceitos fundamentais (campo, capital, habitus),30 que tem como ponto central a relação, biunívoca, entre as estruturas objetivas (dos campos sociais) e as estruturas definidas por ele como incorporadas (ou seja, do habitus), e que se opõe tanto às teses que consideram os agentes como meros epifenômenos das estruturas, quanto às que sustentam a prevalência de indivíduos dotados de plena autonomia e movidos por uma racionalidade sempre consciente.31 Mas é necessário dizer que esta construção teórica de Bourdieu, conquanto apresente um grande valor operativo para o trabalho envolvendo as relações entre os agentes sociais e as estruturas, não deixa de sofrer reparos de ordem teórica, por parte de autores como Michel de Certeau, em obras como A invenção do cotidiano, em especial quanto ao seu uso do conceito de habitus. Para o historiador francês, Bourdieu lança mão do habitus, de certa forma, como uma maneira de sustentar a explicação da história pelas estruturas, na medida em que o mesmo opera como um “mármore” no 30 Em O poder simbólico, o autor apresenta os conceitos de poder simbólico, capital simbólico (em suas várias formas), campo social, e habitus. Ver: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, pp. 7-16 (Capítulo I – Sobre o poder simbólico) e pp. 59-73 (Capítulo III – A gênese dos conceitos de habitus e campo). No primeiro capítulo, Bourdieu procura mostrar o papel dos instrumentos de dominação simbólica, como as ideologias, dentro de um contexto mais complexo, no qual “as diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais” (p. 11), não sendo assim, produções diretas e não mediadas das classes dominantes, mas tampouco totalidades autossuficientes, sujeitas a uma análise em si mesmas (p. 13). No terceiro, ao discorrer sobre a genealogia do conceito de habitus, justifica a sua adoção, como empréstimo de autores de outras disciplinas, como a filosofia e a linguística: “parece-me, com efeito que, em todos os casos, os utilizadores da palavra habitus se inspiravam numa intenção teórica próxima da minha, que era a de sair da filosofia da consciência sem anular o agente em sua verdade de operador prático de construções de objeto” (p. 62), e da mesma forma, justifica a adoção do conceito de campo como uma decorrência do uso do modo de pensamento relacional como método científico, e da ruptura que este proporciona com o senso comum na análise do mundo social: “também aqui a noção serviu primeiro para indicar uma direção à pesquisa, definida negativamente como recusa à alternativa da interpretação interna e da explicação externa, perante a qual se achavam colocadas todas as ciências das obras culturais [...] A dificuldade que é particular à aplicação deste modo de pensamento às coisas do mundo social provém da ruptura com a percepção comum [...] por este exigida” (p. 65). 31 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996, pp. 9-10. 52 qual o peso destas fica gravado nos indivíduos, através de um processo de interiorização.32 O tema da autonomia dos indivíduos frente às limitações em seus horizontes conceituais determinadas pela cultura e meio social em que estão inseridos é explorado por autores como Lucien Febvre e Carlo Ginzburg, em trabalhos como O problema da descrença no século XVI e O queijo e os vermes.33 No primeiro, o historiador francês procurou mostrar a impossibilidade de um pensamento ateísta no meio cultural da Europa do século XVI, mesmo por parte de um integrante da elite intelectual daquela sociedade, e crítico de seus valores e instituições, em especial a Igreja, como François Rabelais, lançando mão, para tanto, do conceito de “aparelhagem mental”, com o sentido de acervo conceitual disponível naquela sociedade, no qual não estava incluída a ideia do ateísmo, ou seja, da descrença, tendo em vista que todas as cosmovisões então compartilhadas partiam da existência de Deus como princípio, e que a religião estava entranhada em todas as instâncias da vida em sociedade.34 Ginzburg tratou de um tema semelhante, sendo o seu personagem, contudo, pertencente às camadas populares da sociedade, e com o seu foco nas reinterpretações que este fazia das informações recebidas de diversas fontes, eruditas e populares, e nos limites dados por sua formação e pelo meio social e cultural circundante a suas elaborações conceituais, e também à sua própria atuação, mesmo sendo ele uma pessoa com traços de especial singularidade e disposição crítica.35 32 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, pp. 125-126. De acordo com o autor, “Nos termos em que o problema se coloca para ele, Bourdieu deve encontrar alguma coisa que ajuste as práticas às estruturas e que no entanto explique também os desníveis entre elas. [...] Ele a encontra num processo [...] a aquisição: é a mediação procurada entre as estruturas que a organizam e as “disposições” que ela produz. Essa “gênese” implica uma interiorização das estruturas (pela aquisição) e uma exteriorização do adquirido (ou habitus) em práticas. [...] Segundo esta análise, as estruturas podem mudar e tornar-se um princípio de mobilidade social (é mesmo o único). O adquirido não. Não goza de movimento próprio. É o lugar de inscrição das estruturas, o mármore onde se grava a sua história. Nada aí se passa que não seja o efeito de sua exterioridade.” 33 FEBVRE, Lucien. O problema da descrença no século XVI. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.): Febvre: história. São Paulo: Ática, 1978, 1ª. Ed. 1942, pp. 29-78; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 34 Sobre o conceito de “aparelhagem mental”, ver: FEBVRE, Lucien, op. cit., p. 55. Sobre as limitações dadas pelas estruturas aos agentes sociais, na visão deste autor, ver: Idem, p. 53: “Falar de racionalismo e de livre pensamento, referindo-se a uma época onde, contra uma religião de domínio universal, os homens mais inteligentes, mais sábios e mais audaciosos eram verdadeiramente incapazes de encontrar um apoio seja na filosofia, seja na ciência: é falar de uma quimera.” 35 Nesta obra, Carlo Ginzburg dialoga com Lucien Febvre, partindo da análise feita por este sobre Rabelais e a impossibilidade da descrença no século XVI. Mas contrapõe ao que entende ser, neste, uma abordagem que buscaria traços de uma “mentalidade” comum a todos os segmentos de uma dada sociedade, a procura por traços de uma “cultura” específica de um dos segmentos, no caso estudado, do moleiro Menocchio, a dos camponeses. Ver: GINZBURG, Carlo, op. cit., pp. 27-28. 53 Outro aspecto relevante para a constituição de coletivos enquanto agentes sociais, como movimentos, diz respeito aos processos de formação de suas identidades, os quais passam pelo compartilhamento de experiências e de memórias. A importância da formação de uma memória coletiva como um elemento de coesão social foi enfatizada por autores como Émile Durkheim e Maurice Halbwachs, em trabalhos como Representações individuais e representações coletivas e Memória coletiva e memória individual.36 Michael Pollak toma Halbwachs como ponto de partida, mas, em trabalhos como Memória, esquecimento, silêncio, procura explorar as tensões existentes entre a memória coletiva e as memórias individuais, contrapondo o papel uniformizador e, muitas vezes, destruidor e opressor da primeira, enquanto recurso utilizado para a afirmação das identidades nacionais, regionais ou étnicas, à função de resistência representada pelas últimas, muitas vezes expressões subterrâneas de parcelas subjugadas e subordinadas de uma sociedade, e destacando a existência de um continuado processo de “negociação” entre ambas.37 Dentre os trabalhos que procuram mostrar a formação das identidades coletivas como parte crucial dos processos históricos envolvendo as relações de dominação e resistência entre distintos grupos de uma mesma sociedade pode-se destacar A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson.38 O autor parte do conceito de classe como fenômeno histórico concreto, e não como uma “estrutura” estática e existente a priori, que surge determinada pelas relações de produção, porém não de forma automática, mas a partir da experiência vivida, de luta, identificação dos interesses comuns e do campo oponente, a qual termina por se traduzir na formação do que o autor define como uma consciência de classe, incorporada aos valores culturais específicos deste agrupamento social, só a partir deste momento e na relação com os demais agrupamentos, passando a existir como classe. Ele situa a formação da classe operária inglesa no período inicial da industrialização, entre a década de 1780 e 1832, ano que identifica como o do surgimento do operariado na vida política inglesa, e procura valorizar a atuação e as lutas dos primeiros movimentos de resistência dos 36 DURKHEIM, Émile. Representações individuais e representações coletivas [1898]. In: Sociologia e Filosofia. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense, 1970, pp. 13-42; HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e memória individual. In: A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, pp. 29-56 [1ª. Ed. 1925]. 37 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n° 3, pp. 3-15, 1989. Disponível em www.cpdoc.fgv.br-revista-arq-43.pdf, acessado em outubro de 2008. 38 THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1ª. Ed. 1963]. 54 trabalhadores, mesmo quando malsucedidos, ou sem conexão direta com as formas de luta e organização posteriores.39 É interessante lembrar, aqui, as críticas feitas por Thompson, quanto à interpretação do seu tema de pesquisa por outras correntes da historiografia inglesa, já a partir do recorte temporal de sua obra, centrado no início da revolução industrial, como a “fabiana”, que veria nos trabalhadores apenas vítimas passivas do “laissez-faire” (o liberalismo econômico que norteou a industrialização na Grã-Bretanha), a da ortodoxia dos historiadores econômicos empíricos, com sua preocupação exclusiva com séries estatísticas demonstrativas de melhoria contínua de poder aquisitivo, sem abordar outros aspectos, como qualidade de vida e crescimento das desigualdades, e a chamada por Thompson de “Progresso do Peregrino”, conjunto de explicações de uma linha socialista ou socialdemocrata, que visava identificar e valorizar, no seu entender, as raízes e protagonistas da vitória do estado de bem estar social britânico (“welfare state”), vigente do período posterior à Segunda Guerra Mundial até a crise social e econômica que abriu campo para o seu desmantelamento, a partir do final dos anos 1970. Nas duas primeiras, Thompson critica a incapacidade de identificarem o papel dos trabalhadores enquanto agentes conscientes das transformações sociais e da história, vistos por estas, ao contrário, como números ou alvos passivos. Na terceira, dentro da qual estava a maior parte dos historiadores marxistas britânicos, o autor critica o que entende como uma leitura da história à luz de preocupações posteriores, e não do que de fato ocorrera. Vê nela a valorização somente dos “vitoriosos” (no sentido de terem antecipado a evolução posterior), e o esquecimento do que define como “becos sem saída”, das causas perdidas e dos próprios perdedores da história.40 Concluo, assim, esta breve discussão sobre a natureza e o alcance dos movimentos sociais, enfatizando o seu caráter relacional, enquanto fenômenos sociais, 39 40 Idem, Vol. I: Prefácio, p. 12. Idem, Vol. I: Prefácio, pp. 12-13. Thompson procura mostrar, em contrapartida, que o impacto das transformações trazidas pelo advento do regime industrial, no sentido de aprofundar as transformações econômicas, com a concentração dos meios de produção nos capitalistas industriais, em detrimento de pequenos produtores tradicionais, ao lado da ameaça para as elites britânicas – novas e tradicionais – representada pelo exemplo da Revolução Francesa de 1789, contribuíram para um aumento da pressão política e econômica sobre os diversos segmentos de trabalhadores, com cerceamento de direitos e intensificação da exploração. O autor procura mostrar, também, como isto se refletiu tanto no surgimento de uma consciência da exploração intensificada por parte da nova classe de capitalistas industriais, vistas como os oponentes (“eles”), que consegue identificar em testemunhos de trabalhadores da época, como no aumento da agitação popular, a partir da década de 1810, com a proliferação da atividade sindical, a imprensa radical, o movimento em prol das jornadas de trabalho de dez horas, culminando o com a crise revolucionária de 1831-32 e os diversos movimentos que constituíram o cartismo, com suas reivindicações de aumento da participação política e extensão do direito de voto. (Idem, Vol. II: Capítulo 1, Exploração, pp. 23-28) 55 aspecto que tanto contribui para a formação das identidades destes agentes e de seus projetos quanto demarca sua liberdade de atuação frente às estruturas com que interagem. 1.4.2. Relações entre Estado e sociedade civil: possibilidades e limites para uma participação mais ampla no estabelecimento das políticas públicas Cabe neste momento fazer uma breve discussão acerca dos papéis representados pelo Estado e pelos diversos segmentos que compõe a sociedade em que este se inscreve no que diz respeito ao que se poderia chamar, num sentido bastante amplo, dos assuntos de governo, e, mais especificamente, do estabelecimento de políticas públicas. O seu objetivo não consiste tanto em avaliar de um modo mais exaustivo a capacidade que os mecanismos e instâncias de participação e representação política existentes têm, ou poderiam ter, de atender às demandas dos diversos segmentos da sociedade frente a critérios de legitimidade e de eficácia, os quais, de qualquer forma, teriam de ser discutidos, em especial o último. Mas antes, tendo em vista o problema central proposto, buscar elementos que permitam avaliar o quanto as políticas públicas que vem sendo conduzidas na área de estudo, com seus ritmos e priorizações, não deixam de ser, malgrado as deficiências presentes nestes mecanismos de operacionalização da democracia, o resultado das pressões dos diversos agentes sociais, quer diretamente, através de movimentos e associações envolvidas com a temática, quer de forma mais difusa, através de sua introdução como pauta nos programas de governo e nos meios de comunicação. É necessário, neste momento, buscar uma definição para o conceito de “sociedade civil”. Jean L. Cohen e Andrew Arato, em Sociedad Civil y Teoría Política a caracterizam como uma esfera autônoma em relação ao Estado e ao sistema econômico (“mercado”), englobando as diversas associações voluntárias de caráter privado e os espaços de interação informal (“esferas públicas”), e colocando em marcha um processo de institucionalização social em torno da vigência de direitos fundamentais, tais como o da liberdade de opinião e de associação.41 A presença, no interior de um dado corpo social, de uma “sociedade civil” estaria condicionada, nestes termos, à existência de certo grau de autonomia de seus agentes, individuais ou coletivos, em relação ao Estado e ao “mercado”. Não obstante, o conceito de “sociedade civil” que aqui utilizo busca 41 COHEN, Jean L., ARATO, Andrew. Sociedad Civil y Teoría Política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, pp. 456-457. 56 englobar, tão somente, o conjunto dos diversos agentes individuais e coletivos, fora do âmbito direto do Estado, aí incluindo, entre outros, os sindicatos de trabalhadores, as associações de empresários, as associações comunitárias e as ONGs, sem entrar no mérito quanto à existência desta autonomia, a priori, para as situações específicas em estudo. Uma análise um pouco mais aprofundada sobre o papel do Estado e o seu grau de autonomia face aos grupos sociais detentores de maior poder econômico excede os propósitos desta discussão, cabendo aqui apenas lembrar alguns dos seus aspectos gerais, que foram levantados por David Held em Modelos de democracia. A questão da autonomia da instância do político, ou de sua subordinação ao econômico, é abordada por Held quando analisa a discussão entre os teóricos marxistas acerca do Estado, com uma corrente, majoritária, que entendia ser este um instrumento absoluto da classe dominante, ao passo que outra reconhecia no mesmo, ainda que subordinado aos interesses desta, certa autonomia.42 Não se trata de uma discussão já encerrada, muito ao contrário, importando aqui ressaltar as diferentes implicações em termos políticos de cada uma destas interpretações com respeito aos papéis do Estado e da sociedade onde este se insere e à autonomia da instância do político frente ao econômico. Isto na medida em que a primeira contempla a possibilidade de mudanças na ordem social apenas com a tomada do Estado, com a substituição da classe dominante pela via revolucionária, enquanto que a segunda contempla esta possibilidade por meio de transformações que podem ocorrer tanto fora como no interior deste, que atua também como espaço de mediação dos conflitos entre diferentes segmentos sociais, perspectiva esta em que pretendo situar este trabalho. A existência de certo grau de autonomia do Estado, e da instância do político é reconhecida e problematizada por diversos autores, entre os quais Pierre Bourdieu, que procura dissecar os elementos constituintes do que define como campo político, o qual vê como dotado de regras e mecanismos próprios de funcionamento e auto-reprodução, porém de forma alguma dissociado dos outros campos, notadamente o econômico.43 42 HELD, David. Modelos de democracia. Madrid: Alianza Editorial, 1993, pp. 163-166. Entre os integrantes desta segunda corrente estava Antonio Gramsci, que defendia, através de sua teoria da hegemonia, que o Estado deveria ser um campo de luta para as classes proletárias, e mostrava a ameaça do seu domínio pela burocracia. O autor observa, aqui, que, além dos marxistas, Max Weber também fazia uma crítica ao poder da burocracia (uma “jaula de ferro”). Held procura mostrar como a ideia de primazia absoluta do econômico levaria ao fim da possibilidade de disputa política, uma vez realizada a revolução socialista. (Idem, pp. 169-171) 43 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, pp. 133-161 (Capítulo VI – Espaço social e a gênese das “classes”) e pp. 163-207 (Capítulo VII – A representação política. 57 Entre os pontos principais levantados por Bourdieu, sempre tendo em conta que a sua análise foi feita no contexto dos países onde o capitalismo industrial e a democracia política de representação tiveram o seu desenvolvimento inicial, mais especificamente a França, cabe destacar: (i) a concentração do capital político, ou seja, das competências sociais e técnicas exigidas para a participação ativa no jogo político, nas mãos de um corpo de profissionais, é tanto maior quanto piores forem as condições de acesso do restante da população aos instrumentos materiais necessários para a mesma, especialmente o tempo livre e o capital cultural;44 (ii) o monopólio da produção e da imposição dos interesses políticos instituídos que é exercido pelas lideranças das máquinas partidárias produz a universalização de seus interesses, tomados, assim, como sendo os interesses não expressos dos mandantes, mas pode resultar, como reflexo da percepção de impotência, num efeito de negação da eficácia da política e dos seus agentes.45 Este mesmo tema foi abordado por Cornelius Castoriadis, porém com outro viés. Enquanto Pierre Bourdieu procurou centrar suas análises antes no interior de cada campo social, no caso em questão o político, do que na sociedade como um todo, o filósofo político e economista francês de origem grega realizou uma análise centrada nas possibilidades e limites para o exercício da democracia, da participação política, e da autonomia das pessoas nas sociedades contemporâneas, sob o contexto do capitalismo e da ideologia do progresso, em obras como Figuras do pensável (as Elementos para uma teoria do campo político). Com respeito a estas relações de interdependência, diz o autor: “Seria um erro subestimar a autonomia e a eficácia específica de tudo o que acontece no campo político e reduzir a história propriamente política a uma espécie de manifestação epifenomênica das forças econômicas e sociais de que os atores políticos seriam, de certo modo, os títeres. Além de que isso seria ignorar a eficácia propriamente simbólica da representação e da crença mobilizadora que ela suscita pela força da objetivação, equivaleria ainda a esquecer o poder propriamente político de governo que, por muito dependente que seja das forças econômicas e sociais, pode garantir uma eficácia real sobre essas forças por meio da administração das coisas e das pessoas.” (Idem, p. 175). 44 Idem, pp. 164-165. Diz o autor: “O que implica que a divisão do trabalho político varia em função do volume global do capital econômico e cultural acumulado numa formação social determinada (o seu “nível de desenvolvimento”) e também em função da estrutura, mais ou menos dissimétrica, da distribuição deste capital, particularmente do cultural. É assim que a generalização do acesso ao ensino secundário esteve na origem de um conjunto de transformações da relação entre os partidos e os seus militantes ou os seus eleitores.” 45 Idem, pp. 168-169. Diz o autor: “E isto passa-se sem que nada permita fazer a prova completa de que os interesses assim universalizados dos mandatários coincidam com os interesses não expressos dos mandantes, pois os primeiros têm o monopólio dos instrumentos de produção dos interesses políticos, quer dizer, politicamente expressos e reconhecidos, dos segundos. Nada, a não ser esta forma de abstenção ativa, a qual tem raízes na revolta contra uma dupla impotência, impotência perante a política e todas as ações puramente seriais que ela propõe, impotência perante os aparelhos políticos: o apolitismo, que assume por vezes a forma de um antiparlamentarismo [...] é fundamentalmente uma contestação do monopólio dos políticos que representa o equivalente político do que foi, em outros tempos, a revolta religiosa contra o monopólio dos clérigos.” 58 encruzilhadas do labirinto VI). Castoriadis começa por retirar o foco da discussão das formas direta e representativa da democracia, procurando mostrar a própria inexistência, de fato, desta, na medida em que a esfera pública, nas sociedades atuais, se converteu numa esfera privada, propriedade de uma oligarquia política. Ao criar-se um pequeno corpo político que existe separado do resto, este não pode, assim, no seu entender, fazer outra coisa que não seja cuidar seus próprios poderes e interesses, e compor-se com os outros poderes reais formados na sociedade, especialmente os econômicos.46 Ao lado disso, uma igualdade efetiva das pessoas frente à política deveria pressupor o acesso à informação, e a capacidade de julgar, o que exige, além da educação, que estas tenham o tempo disponível na medida do necessário para informar-se a respeito dos temas.47 Com respeito à representação, o autor lembra que, sendo esta uma delegação irrevogável, o representante deveria existir apenas para expressar a vontade do representado, mas, de fato, com o sistema representativo, a coletividade entrega um mandato irrevogável, por um largo período, a representantes que podem atuar produzindo situações irreversíveis, de tal modo que eles mesmos determinam os parâmetros e a temática de sua reeleição.48 Em sua análise centrada nas sociedades contemporâneas, onde prevalecem o sistema que é definido como o da economia de mercado, e a democracia de matriz liberal, Castoriadis identifica a presença de uma mescla das normas de classificação das pessoas por sua condição financeira e por sua posição nas hierarquias burocráticas existentes em suas diversas instâncias organizacionais.49 O autor procura mostrar as consequências desta hierarquização de natureza burocrática no que diz respeito à 46 CASTORIADIS, Cornelius, op. cit., p. 153. Sobre este ponto, diz o autor: “Previo, pues, a toda discusión sobre la cuestión democracia directa o ‘democracia representativa’, constatamos que la democracia actual es cualquier cosa salvo una democracia, ya que la esfera pública/pública es, de hecho, una esfera privada, y constituye la propiedad de la oligarquía política y no del cuerpo político.” 47 Idem, p. 153. Sobre este ponto, diz o autor: “Pero, cuando decimos ‘igualdad significa la igualdad efectiva de participación de todos’, no se habla, evidentemente, del solo hecho de acceder a la información. En este caso está implicada la capacidad efectiva de juzgar – lo que conduce directamente a la cuestión de la educación -, así como está implicado el tiempo necesario a la cuestión de la información y de la reflexión – cuestión que conduce, también de manera directa, al asunto de la producción y de la economía.” 48 Idem, p. 157. Neste ponto, Castoriadis faz uma apreciação bastante severa da democracia representativa de fato existente nestas sociedades, e da própria capacidade destas em discuti-la: “No hay filosofía de la representación sino una metafísica implícita; tampoco hay análisis sociológico. ¿Quién representa a quién y de qué manera lo representa? Han caído en el olvido, sin discusión alguna, las críticas a la democracia representativa iniciadas con Rousseau, considerablemente ampliadas desde entonces y convalidadas por la observación más superficial de los hechos políticos contemporáneos. Se ha borrado el hecho de la alienación de la soberanía de los que delegan en los delegados. Esta delegación debe ser, supuestamente, limitada en el tiempo. Pero apenas instaurada, se termina todo.” 49 Idem, pp. 154-155. 59 legitimidade para o exercício do poder político, que tende a ser vista por amplas parcelas da população, neste contexto, como derivada de um saber associado a estas posições nas hierarquias organizacionais, o qual, muitas vezes, se coloca à frente de um saber político de ordem mais intuitiva, sustentado em elementos como a capacidade de julgamento, a prudência e o aprendizado pela experiência.50 O filósofo alemão Jürgen Habermas, por sua vez, consegue evidenciar muitos dos problemas da democracia de fato existente nas sociedades contemporâneas, por meio do contraste de suas características com as do modelo alternativo de democracia deliberativa, por ele proposto em obras como Direito e democracia: entre factidade e validade. O modelo proposto por Habermas parte de sua teoria da ação comunicativa, e pode ser caracterizado por uma ruptura, tanto com o marxismo, com sua ênfase no papel da economia e da luta de classes, quanto com a teoria sistêmica ou funcionalista, dos liberais. Busca formular uma teoria sociológica da democracia e a construção dum outro modelo desta, normativo, a ser composto pela articulação entre elementos dos modelos liberal e republicano de democracia.51 Reconhece a centralidade dos conflitos sociais, ainda que não necessariamente de ordem econômica, e dá grande importância para a existência e/ou construção de alguma forma de estabilidade social através do que define como ação comunicativa.52 E entende que o consenso, necessário, não nasce de mecanismos coercitivos, mas sim do diálogo, a ser realizado no que o autor define como “esfera pública”, com a utilização de práticas discursivas, visando à reorganização das relações entre estado e sociedade.53 O modelo deliberativo considera a existência de 50 Idem, p. 155. Neste ponto, diz o autor: “La disociación del saber y del poder constituye una idea confusa en varios aspectos, que adquiere su sentido aparente sólo por oposición a La República de Platón y a las pretensiones del régimen estalinista [...] Los reyes de Francia eran monarcas no por el hecho de saber, sino porque Dios lo había dispuesto de esta manera. [...] la política [...] no es una cuestión de epistéme sino de dóxa [...] Y al afirmarlo, no agotamos el asunto, ya que todas las dóxai no son equivalentes, y existe un tipo de saber en política que no es ciencia sino una cuestión de juicio, de prudencia y de verosimilitud [...] En cuanto a la realidad contemporánea, tiende más bien a llevar a cabo lo opuesto a esta disociación. Se puede apreciar esta tendencia en toda estructura jerárquico burocrática, en la que el director, el profesor titular o el jurado de examen tienen necesariamente la razón (el poder pretende detener el saber). Se pone de manifesto, además, en la actitud de la población, en la medida en que se interesa por la política. ¿Por qué motivo éste o aquél es bueno para dirigir (el Estado, el partido, etcétera)? Porque sabe: el (seudo) saber legitima el poder.” 51 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factidade e validade. Volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 18-20. 52 Idem, p. 21. Neste ponto, Habermas estabelece as bases para seu modelo de democracia deliberativa, com que vê como uma composição de elementos dos modelos liberal e republicano, com uma redução do papel central atribuído por este ao Estado, como sede da soberania popular. 53 Idem, pp. 21-22. Sobre este ponto, diz o autor: “A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento [...] os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas. Essas comunicações [...] que acontecem dentro e fora do complexo parlamentar e de suas corporações – formam arenas nas quais pode acontecer uma formação 60 uma cidadania consciente, o que requer várias pré-condições, e influi de modo informal na esfera política, mas dá legitimidade ao sistema político através das eleições. 54 O núcleo do processo discursivo é a capacidade argumentativa das partes, visando à construção dos consensos sociais. Prevê o estabelecimento de espaços que possibilitem o desenvolvimento destes processos argumentativos, como fóruns para debates públicos, com a articulação de diversos elementos da esfera pública, incluindo os parlamentos. Críticas às deficiências do modelo de democracia representativa de matriz liberal, com propostas para seu aperfeiçoamento, foram formuladas também por Iris Marion Young, em trabalhos como Representação política, identidade e minorias. Esta filósofa e cientista política norte-americana trabalha com a ideia de cidadania partindo da existência da desigualdade como um pressuposto. Identificada com as lutas do movimento feminista, seu pensamento caracteriza-se por trabalhar com as diferenças existentes em termos de vivências e posições dos agentes sociais, e por mostrar os efeitos positivos decorrentes da possibilidade de representação de pessoas com diferentes perspectivas, conceito por ela incorporado para o âmbito político. Young vê o reconhecimento da existência das diferenças não como um problema, mas como uma forma de avançar no entendimento e na prática democráticas, na medida em que “conceber a representação como um relacionamento diferenciado entre atores plurais dissolve o paradoxo posto pela situação na qual uma só pessoa representa as experiências e opiniões de muitas outras”.55 A autora identifica a necessidade do mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de matérias relevantes para toda a sociedade [...] Como no modelo liberal, as fronteiras entre ‘Estado’ e ‘sociedade’ são respeitadas; porém, aqui, a sociedade civil, tomada como base social de esferas públicas autônomas, distingue-se tanto do sistema econômico, como da administração pública.” 54 Sobre as condições necessárias para o exercício da política deliberativa, ver: Idem, pp. 28-30. Entre os aspectos relacionados por Habermas se encontra o acesso às informações: “São especialmente relevantes, do ponto de vista ‘público’, questões referentes à distribuição desigual das fontes das quais depende a percepção concreta dos direitos iguais de comunicação e participação.” 55 YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. In: Lua Nova, São Paulo, 67: 139-190, 2006, p. 148, disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67.pdf/,acessado em dezembro de 2010. A autora questiona, neste ponto, a ideia de que seria necessária uma identidade completa entre os representados e o representante: “Se aceitamos o argumento de que a representação é necessária e, ao mesmo tempo, admitimos a visão de que uma deliberação democrática requer co-presença de cidadãos e de que a representação só é legítima se o representante é de algum modo idêntico aos eleitores, temos então um paradoxo: a representação é necessária mas impossível. Há uma maneira de sair desse paradoxo, que implica conceitualizar a representação sem se pautar por uma lógica identitária. Compreender seriamente a natureza descentralizada das democracias de massa em larga escala requer descartar imagens de co-presença dos cidadãos e a idéia de que os representantes devem estar presentes pelos cidadãos. Em vez disso, é preciso conceber a discussão e a deliberação democráticas como processos mediados e dispersos ao longo do espaço e do tempo. A representação política não deve ser pensada como uma 61 desdobramento da representação em dois momentos distintos, o da “autorização”, através das eleições, e o da “prestação de contas”, ao longo dos mandatos, embora não aprofunde a análise dos mecanismos para o seu funcionamento.56 Young não atribui centralidade aos mecanismos de representação, e propõe a construção de formas de articulação desta com a participação, vendo nestas uma maneira de reconstruir a concepção política da sociedade, transformando seus integrantes de eleitores em um público de cidadãos, dentro de uma esfera pública efetivamente atuante e influente no estabelecimento das políticas públicas.57 Em contraponto à ênfase dada por Habermas à busca de consensos, Iris Marion Young não trabalha com a ideia de “bem comum”, entendendo que os consensos, na maior parte das vezes, não podem e não devem ser alcançados. A autora vê o espaço democrático como espaço de disputas, mas também de coexistência entre diferenças. Ela vê a necessidade das minorias melhorarem sua representação, para defenderem seus interesses de modo mais efetivo, e, do mesmo modo, aponta a necessidade de se garantir espaços, na esfera pública, para a expressão e a valorização das diferenças. Neste sentido, procura agregar aos interesses e às opiniões, como fontes para a representação, a perspectiva social, por ela definida como um ponto de vista derivado das posições e experiências de cada grupo social, o qual condiciona mas não determina a forma com que os agentes enxergam a realidade social. Young vê o enriquecimento do processo democrático como o resultado do aporte aos debates das diferentes perspectivas sociais existentes, as quais, numa sociedade complexa, podem ser, em cada indivíduo, múltiplas, e, dentro de cada grupo social, contrapostas, como, por exemplo, a das mulheres frente aos homens, dentro das classes trabalhadoras ou dentro das etnias situadas em posições desfavorecidas. Procurei, nesta breve explanação, identificar alguns elementos significativos no que diz respeito às possibilidades e limites, no plano teórico, para a capacidade de interferência de setores mais amplos da sociedade nos assuntos de governo, e, de uma forma mais específica, no estabelecimento de políticas públicas, tais como as relativas à gestão ambiental e ao saneamento básico, pontos que compõem o tema deste trabalho. Esta capacidade de interferência pode ser definida, num sentido mais amplo, como um indicador de participação política, podendo englobar, com este sentido, tanto relação de identidade ou substituição, mas como um processo que envolve uma relação mediada dos eleitores entre si e com um representante.” 56 Idem, pp. 151-152. 57 Idem, pp. 153-155. 62 mecanismos da democracia representativa quanto da participativa, ou combinações de ambos. Devem ser destacados, por um lado, os elementos que representam entraves para que esta capacidade de interferência possa se realizar de uma forma mais efetiva, seja por reduzir o interesse de um número maior de pessoas pela atividade política e pelos assuntos de governo, seja por dificultar o acesso destas às instâncias de participação política e às informações e às capacitações necessárias para um melhor entendimento e formulação das agendas trazidas para as discussões e deliberações. Entre estes a existência de uma dinâmica própria do campo político, que perpassa suas organizações, como os partidos e as instâncias de governo (os três poderes e a tecnoburocracia que atua na administração pública), e que se caracteriza pela existência de certa autonomia e capacidade de auto-reprodução de seus quadros, que não excluem a influência dos detentores do poder econômico, para os quais, muitas vezes, atuam como mediadores. E também a falta de preparo e de tempo para a discussão de agendas complexas e entremeadas por terminologias pouco acessíveis a leigos, por parte de um número maior de pessoas, para a participação nas instâncias políticas, quando não de disposição para tanto, o que é agravado frente à percepção da incapacidade deste sistema político em atender às suas expectativas e demandas. Também devem ser destacados, por outro lado, alguns elementos que podem atuar no sentido de potencializar a participação de um maior número de pessoas e de movimentos sociais nas instâncias políticas existentes, e favorecer um aumento da sua capacidade de interferência no estabelecimento das políticas públicas. Estes podem se constituir em mecanismos a serem instituídos com o objetivo de permitir uma maior responsabilização dos mandatários, tanto nos poderes executivo quanto nos legislativos, frente aos seus mandantes (os eleitores), de tal modo que a delegação a esses conferida não se transforme numa espécie de carta branca que só necessita ser revalidada a cada nova eleição. E também na criação de instâncias de participação direta da sociedade, através da delegação de atribuições específicas, por parte do poder público, a conselhos ou comitês, com diversas abrangências territoriais ou temáticas, com a presença de representantes da sociedade civil, escolhidos por meio de processos com regramentos bem definidos. Mas é necessário ressaltar, aqui, que o maior ou menor sucesso destes mecanismos, quanto aos objetivos acima definidos, está ligado à propensão existente no Estado em acolher e incentivar a atuação dos mesmos, o que depende não apenas da orientação política do grupo partidário no poder, mas de uma disposição dos agentes 63 estatais para dar aos participantes um maior acesso às informações necessárias, promovendo ações de treinamento, aumentando a transparência dos processos, e, não menos, tendo abertura para ouvir as ponderações trazidas por pessoas dotadas de perspectivas sociais e de visões de mundo diferentes das suas. E está ligado, também, à existência na sociedade civil de um número significativo de agentes sociais, sejam pessoas ou associações e movimentos, em condições de participar efetivamente nestes processos, o que pressupõe certo acúmulo anterior de experiência e organização no trato de demandas frente ao Estado. A separação entre Estado e sociedade civil, tendo em vista o exposto acima, não se constitui numa linha tão nítida, mas, antes, numa interface dotada de certa fluidez. Cabe, assim, antecipar alguns dos pontos da discussão que será feita mais adiante, sobre o problema de fundo deste trabalho. Por um lado, no que diz respeito à condução das políticas públicas desenvolvidas na área da infraestrutura urbana, como o saneamento, o fato de serem desenvolvidas no âmbito de tecnoburocracias estatais, a exemplo dos quadros do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE), da Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN) e da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (METROPLAN), não exclui a possibilidade de as mesmas sejam, de alguma forma, a resultante da composição das demandas da sociedade civil, mediadas pelos governos, e das próprias demandas e interesses deste segmento da burocracia estatal. E por outro lado, o fato de que os objetivos pretendidos por representantes de movimentos e associações nas instâncias participativas, como o OP de Porto Alegre, tiveram, muitas vezes, caráter muito específico e/ou limitado, não deve ser visto apenas, ou essencialmente, como um indicador de paroquialismo ou de uma espécie de “alienação” política, mas, ao contrário, de certo modo, como um indicador de sua autonomia frente ao Estado e aos partidos políticos. 1.4.3. Condicionantes estruturais atuando nas demandas dos agentes sociais e suas implicações numa crise que não é somente ambiental Nos dois itens anteriores procurei discutir alguns aspectos relevantes com respeito à formação e atuação de movimentos sociais e à capacidade de interferência de parcelas mais amplas da sociedade no estabelecimento de políticas públicas, frente às barreiras incorporadas no sistema político, tais como os mecanismos de auto-reprodução dos quadros político-partidários e da tecnoburocracia administrativa, mas também às oportunidades possibilitadas pela adoção de instâncias voltadas para a participação e 64 para a fiscalização dos mandatários. Foi possível identificar, assim, a existência de espaços para esta participação, ainda que dentro de limites relativamente estreitos, determinados, em boa medida, por fatores como a falta de tempo e de informações suficientes para influir no estabelecimento e na discussão das pautas para debate, relacionados, por sua vez, às condições socioeconômicas a que a maior parte da população está submetida. Cabe, por outro lado, abordar um terceiro aspecto, o qual diz respeito ao papel que é representado por certas características estruturais presentes nas sociedades contemporâneas, como a generalização das relações baseadas no mercado, no sentido de restringir e condicionar estas formas de participação nos assuntos públicos. Uma discussão aprofundada sobre estas características, e, mesmo, uma definição mais precisa do que seriam estas sociedades contemporâneas, de um ponto de vista antropológico, além do histórico, está muito além dos objetivos deste trabalho, sendo possível, aqui, apenas discorrer sobre alguns pontos, a partir da análise realizada por Cornelius Castoriadis, em Figuras do pensável (as encruzilhadas do labirinto VI). Os efeitos da estrutura capitalista burocrática no funcionamento global e político destas sociedades, para este autor, devem ser avaliados não a partir do poder direto dos muito ricos sobre os governos, mas, sim, das estruturas antropológicas que correspondem às estruturas socioeconômicas, das estruturas psicossociais do homem contemporâneo, de sua maneira de atuar e de inserir-se na sociedade, e do que o funcionamento mesmo dessa sociedade tende a produzir e reproduzir em termos de suas condutas.58 Castoriadis concorda com a visão corrente de que o individualismo é um elemento definidor destas sociedades, mas mostra que o indivíduo que emerge com o capitalismo moderno é um indivíduo muito particular, cujo conteúdo concreto é definido pelo uso de suas liberdades para uma série de atividades aparentemente inofensivas, e ligadas ao ato de consumir, cujo conjunto se traduz num padrão de extrema uniformidade. Para ele, a ideologia liberal contemporânea oculta a realidade sócio-histórica do regime estabelecido, e oculta o fundamento e a correspondência antropológica de toda a política e de todo o regime, uma questão que obcecava a todos os filósofos políticos precedentes, de Platão a Kant. E o conteúdo antropológico do indivíduo contemporâneo não é outra coisa que a expressão da realização concreta do imaginário social central da época, que molda o regime, seus valores, aquilo pelo qual 58 CASTORIADIS, Cornelius, op. cit., pp. 162-163. 65 vale a pena viver ou morrer, seu impulso, seus afetos, e quais os indivíduos escolhidos para permitir a existência concreta de tudo isso.59 Castoriadis mostra que este imaginário é, cada vez em maior medida, o imaginário central capitalista, expansão ilimitada do pretendido domínio supostamente racional – de fato, do domínio da economia, da produção e do consumo, e cada vez menos o imaginário da autonomia e da democracia. A inovação capitalista, sendo orientada por este imaginário, encaminhase a certos sentidos, excluindo outros. É, assim, tecnológica, produtiva, comercial, financeira, quase não existindo nas perspectivas política, artística, cultural e filosófica, argumenta o autor.60 Castoriadis discorre, em seguida, sobre a economia capitalista, procurando mostrar que o “triunfo da economia de mercado sobre a planificação” esconde o fato de que onde existe capitalismo não há mercado concorrencial, mas apenas um pseudomercado, um oligopólio, totalmente imperfeito e irracional, não existindo racionalidade nos custos de produção, tanto do trabalho quanto do capital. O autor procura mostrar que a atribuição (destinação) dos recursos produtivos no sistema capitalista (e a sua organização) estão subordinadas a um fim que não é racional e nem mesmo razoável: a expansão infinita do (pseudo)-domínio (pseudo)-racional, concretamente, a expansão infinita da produção, justificada pela expansão ilimitada do consumo como fim em si mesmo.61 O filósofo greco-francês conclui sua argumentação traçando um quadro sombrio, porém realista, sobre as perspectivas dos regimes de oligarquia liberal, nos países ricos, mas que pode ser estendida, com as devidas nuances, para países como o Brasil. Em 59 Idem, pp. 162-164. Sobre as características deste individualismo, diz o autor: “Se pasa por alto, lisa e llanamente, el imaginario social dominante a partir del cual está estructurado el individuo contemporáneo. [...] Como si este individuo estuviera completamente indeterminado o como si existiera un individuo em sí y para sí que surgiera con la pretendida democracia. En realidad, el que adviene con el capitalismo moderno es un individuo muy particular [...] son hombres y mujeres del capitalismo de este siglo XX que termina. No nos toca considerar al inconsciente más profundo de ellos, ni tampoco podemos hacerlo; basta considerar sus manifestaciones sociales, sus actividades, sus inclinaciones, la manera en que crían a sus hijos, etcétera.” E sobre o conteúdo de sua autonomia, que Castoriadis vê como antes suposta do que real: “[la ideología circulante] Pretende otorgar-le – o reconocer-le – la autonomía más amplia posible, sin tratar un segundo la cuestión del contenido de esta autonomía y de su uso [...] Se comprueba que el individuo contemporáneo utiliza las libertades que le otorga el régimen para llevar a cabo actividades aparentemente inofensivas: ir a los supermercados [...] Sin embargo, es legítimo preguntarnos [...] qué pasaría si este individuo otorgara otro contenido a su autonomía [...] Pero fundamentalmente, lo que conviene a este individuo en autónomo no tiene, por supuesto, ninguna característica individual [...] se trata de lo social lisa y llanamente [...] Hace lo que aprendió o lo que está inducido a llevar a cabo, y en este preciso momento [...] la mayoría de los hogares en Francia está a punto de apagar su televisor [...] y de ir a la cama al unísono.” 60 Idem, p. 166. 61 Idem, pp. 167-168. 66 primeiro lugar, de acordo com Castoriadis, são irrisórias as medidas tomadas ou consideradas para deter a destruição causada pelo enorme desenvolvimento produtivo e econômico dos últimos 150 anos, condicionado à destruição (consumo) irreversível das reservas naturais ou acumuladas na biosfera desde centenas de milhões de anos. Para ele, falar, de dominação do homem sobre o mundo por ele criado (a “antroposfera”) não faz outra coisa do que reproduzir a velha ilusão cartesiano-capitalista-marxista do homem dono e senhor da natureza. E, no entanto, diz Castoriadis, esta destruição é necessária para a própria sobrevivência do sistema.62 Segundo ele, o capitalismo se desenvolveu usando, de modo irreversível, uma herança histórica criada por épocas anteriores, a qual não é mais capaz de reproduzir, constituída por valores tais como integridade, honestidade, esmero no trabalho e responsabilidade. Castoriadis pensa que a emergência de um tipo antropológico de indivíduo que já não tem relação com aquele que criou o próprio regime, nem no plano político nem no plano econômico, através da auto-reprodução contínua do sistema e dos seus componentes liberais representa um questionamento gravíssimo para o futuro de um projeto de autonomia, cuja realização irá requerer uma atitude das pessoas radicalmente oposta à vigente.63 Para o autor, o imaginário do progresso, tanto o capitalista liberal quanto o marxista, já não sobrevive senão como uma casca vazia de todo seu conteúdo valorativo, só restando, de fato, a busca por cada vez maiores produção, consumo e lucro, bem como uma atitude supersticiosa do homem contemporâneo frente à tecnologia, similar à do homem primitivo frente à magia. Sendo assim, para Castoriadis, o renascimento do projeto de autonomia requer um verdadeiro terremoto, sendo necessário destruir a representação do mundo como objeto de um domínio crescente, e seus impulsos e afetos.64 Conquanto carregadas de um tom pessimista, as ponderações deste autor não podem ser deixadas inteiramente de lado, ao menos como um alerta sobre a profundidade dos desafios que se apresentam no horizonte próximo. Com efeito, as 62 Idem, p 175. O autor apresenta os seguintes dados: 800 milhões de pessoas, vivendo nos países centrais, detêm o acesso aos padrões de consumo elevados, com uma renda per capita em torno de 20 mil US$/ano, enquanto 4,7 bilhões de pessoas vivem no restante do mundo, com uma renda per capita de apenas 500-600 US$/ano, sendo a distribuição de renda muito mais desigual nos países periféricos. Entre os autores que trataram da temática do crescimento econômico, das desigualdades sociais e regionais, bem como das ameaças do modelo vigente à manutenção do equilíbrio ambiental no longo prazo e na escala planetária, e da busca de modelos alternativos, podem ser citados o economista brasileiro Celso Furtado e o sociólogo e economista franco-polonês Ignacy Sachs. Ver: FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, e SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 63 Idem, p. 178. 64 Idem, pp. 179-180. 67 imensas dificuldades e impasses que necessitarão ser enfrentados, no sentido de buscar o equilíbrio entre demandas por maior qualidade de vida, especialmente para as populações mais desfavorecidas, em quadro de grandes desigualdades sociais e regionais, e a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais, têm sido objeto de reflexões nas várias áreas do conhecimento, não apenas nas ciências humanas. É o caso de Ignacy Sachs, em Caminhos para o desenvolvimento sustentável, publicado em 2000. Nesta obra, o sociólogo e economista franco-polonês procura fazer uma análise dos impactos que a percepção da crise ambiental, em escala planetária, vem exercendo nas dimensões ética e epistemológica, além de realizar um diagnóstico de seus efeitos sobre a sociedade e a natureza, numa perspectiva temporal mais alargada, fora dos limites da análise que é normalmente realizada pela economia. O autor busca evidenciar a existência de relações mais complexas entre os sistemas econômico – antes visto como fechado – e ecológico, e explicita a necessidade de incorporar novas dimensões para o desenvolvimento, através dos critérios de sustentabilidade, não apenas econômica, mas também social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, e política (nacional e internacional).65 Ignacy Sachs também mostra os problemas e os limites a serem enfrentados, no caminho de uma civilização mais equitativa e sustentável no longo prazo, tais como a necessidade de manter o crescimento econômico, mas em novas bases, para a redução da pobreza, o papel restritivo do mercado, e a divisão do mundo entre um Norte rico e consumidor dos recursos não renováveis e um Sul pobre e que abriga boa parte destes, inclusive as grandes florestas tropicais ainda existentes. Em seguida, com relação ao impacto da percepção da crise ambiental em relação à ética e à epistemologia das ciências, não apenas as naturais, mas também as humanas, colocando em cheque as concepções da economia clássica, mas representando também um desafio para a própria disciplina da história: Desenvolvimento e direitos humanos alcançaram proeminência na metade do século, como duas idéias-força destinadas a exorcizar as lembranças da Grande Depressão e dos horrores da Segunda Guerra Mundial, fornecer os fundamentos para o sistema das Nações Unidas e impulsionar os processos de descolonização. A onda de conscientização ambiental é ainda mais recente [...] A opinião pública tornou-se cada vez mais consciente tanto da limitação do capital da natureza quanto dos perigos decorrentes das agressões ao meio ambiente, usado como depósito. A Revolução ambiental [...] teve conseqüências éticas e epistemológicas de longo alcance, as quais influenciaram o pensamento sobre o desenvolvimento. À ética imperativa da solidariedade sincrônica com a geração atual somou-se a solidariedade diacrônica com as gerações futuras e, para alguns, o postulado ético de responsabilidade para com o futuro de todas as espécies vivas da Terra. [...] As conseqüências epistemológicas são, talvez, ainda mais contundentes. [...] Estamos também, cada vez mais, tendo outros 65 SACHS, Ignacy, op. cit., pp. 85 a 88 (Anexo 1 – Critérios de Sustentabilidade). 68 pensamentos sobre a barganha faustiniana, a crença ilimitada nas virtudes do progresso técnico. A ecologização do pensamento [...] nos força a expandir nosso horizonte de tempo. Enquanto os economistas estão habituados a raciocinar em termos de anos, no máximo em décadas, a escala de tempo da ecologia se amplia para séculos e milênios. Simultaneamente, é necessário observar como nossas ações afetam locais distantes, em muitos casos implicando todo o planeta ou até mesmo a biosfera. A ecologia moderna desistiu dos modelos de equilíbrio, emprestados da economia, para se tornar uma história natural que abarca centenas de milhares de anos. Toda a história da humanidade deve ser reexaminada em termos de integração entre as duas, tendo o conceito de coevolução como categoria central. É irônico que, em um momento em que a seta do tempo atravessa todas as disciplinas científicas, a economia, cuja origem está entrelaçada com a história, vai em sentido contrário. Não é de admirar que tenha se 66 tornado uma ciência sombria. E por fim discorre acerca dos debates que vem ocorrendo desde o início da década de 1970, com a Conferência de Estocolmo, com respeito à criação de um novo paradigma, que pudesse incorporar a dimensão ambiental, sem abrir mão do crescimento econômico, ainda necessário para reduzir as graves carências sociais da maioria pobre da população mundial: Para além do Crescimento Econômico [...] O otimismo epistemológico era popular entre políticos da direita à esquerda: soluções técnicas sempre poderiam ser concebidas para garantir a continuidade do progresso material das sociedades humanas. Do lado oposto, os pessimistas anunciavam o apocalipse para o dia seguinte, caso o crescimento demográfico e econômico – ou pelo menos o crescimento do consumo – não fossem imediatamente estancados. [...] ambas as posições extremas foram descartadas. Uma alternativa média emergiu entre o economicismo arrogante e o fundamentalismo ecológico. [...] A rejeição à opção do crescimento zero foi ditada por óbvias razões sociais. Dadas as disparidades de receitas entre as nações e no interior delas, a suspensão do crescimento estava fora de questão, pois isso deterioraria ainda mais a já inaceitável situação da maioria pobre. Uma distribuição diferente de propriedade e renda era certamente necessária. Esta era uma tarefa politicamente difícil, mesmo em condições de crescimento rápido, e provavelmente impossível em sua ausência. [...] Quer seja denominado ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável, a abordagem fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos não se alterou desde o encontro de Estocolmo até as conferências do Rio de Janeiro, e ainda é válida [...] Para além do Mercado [...] O desenvolvimento sustentável é, evidentemente, incompatível com o jogo sem restrições das forças do mercado. Os mercados são por demais míopes para transcender os curtos prazos [...] e cegos para quaisquer considerações que não sejam lucros e a eficiência smithiana de alocação de recursos. [...] Para além da separação Norte-Sul O desenvolvimento sustentável é um desafio planetário. Ele requer estratégias complementares entre o Norte e o Sul. Evidentemente, os padrões de consumo do Norte abastado são insustentáveis. O enverdecimento do Norte implica uma mudança no estilo de vida, lado a lado com a revitalização dos sistemas tecnológicos. No Sul, a reprodução dos padrões de consumo do Norte em benefício de uma pequena minoria resultou em uma apartação social. Na perspectiva de democratização do desenvolvimento, o paradigma precisa ser completamente mudado. [...] Para além da economia ecológica Para concluir, faz-se necessário algumas palavras sobre a ciência sombria. Mais do que nunca, precisamos retornar à economia política, que é diferente da economia, e a um planejamento flexível negociado e contratual, simultaneamente aberto para as preocupações ambientais e sociais. É necessária uma combinação viável entre economia e ecologia, pois as ciências naturais podem descrever o que é preciso para um mundo sustentável, mas compete às 67 ciências sociais a articulação das estratégias de transição rumo a este caminho. 66 67 Idem, pp. 47 a 50. Idem, pp. 50 a 54, 55, 58 e 60-61. 69 O historiador britânico Eric Hobsbawm pode ser considerado como um dos principais expoentes de uma visão marxista da história. É interessante observar como sua visão do progresso, enquanto aumento persistente da capacidade humana de dominar a natureza, como uma espécie de “motor” da história humana, é confrontada com a realidade concreta da iminente crise ambiental, associada ao crescimento econômico no âmbito do sistema capitalista globalizado, no qual as desigualdades sociais e regionais continuam a se reproduzir. O tema é tratado por Hobsbawm em Era dos Extremos: o breve século XX – 1914-1991, publicado em 1995, onde o historiador procura identificar, de forma bastante clara, a natureza social e política destes conflitos, bem como o seu fundo cultural, mesmo em face de uma maior relevância da variável ambiental: Uma taxa de crescimento econômico como a da segunda metade do Breve Século XX, se mantida indefinidamente (supondo-se isso possível), deve ter conseqüências irreversíveis e catastróficas para o ambiente natural deste planeta, incluindo a raça humana que é parte dele. [...] Sobre a resposta a essa crise ecológica que se aproxima, só três coisas podem ser ditas com razoável certeza. Primeiro, que deve ser mais global que local, embora se ganhasse mais tempo se se cobrasse à maior fonte da poluição global, os 4% da população do mundo que habitam os EUA, um preço realista pelo petróleo que consomem. Segundo, que o objetivo da política ecológica seja ao mesmo tempo radical e realista. Soluções de mercado, isto é, a inclusão dos custos de aspectos externos ambientais no preço que os consumidores pagam por seus bens e serviços, não representam nenhuma das duas coisas. [...] Por outro lado, propostas como um mundo de crescimento zero, para não falar de fantasias como o retorno à suposta simbiose primitiva entre homem e natureza, embora radicais, eram completamente impraticáveis. O crescimento zero nas condições existentes plasmaria as atuais desigualdades entre os países do mundo, uma situação mais tolerável para o habitante médio da Suíça do que para o habitante médio da Índia. Não por acaso, o principal apoio para as políticas ecológicas vem dos países ricos e das confortáveis classes rica e média em todos os países (com exceção dos homens de negócios, que esperam ganhar dinheiro com atividades poluentes); os pobres, multiplicando-se e subempregados, queriam mais “desenvolvimento”, não menos. Contudo, ricos ou não, os defensores de políticas ecológicas tinham razão; a taxa de desenvolvimento devia ser reduzida ao “sustentável” a médio prazo – o termo era convenientemente sem sentido – e, a longo prazo, se chegaria a um equilíbrio entre a humanidade, os recursos (renováveis) que ela consumiria e o efeito de suas atividades sobre o ambiente. [...] Os especialistas científicos sem dúvida podiam estabelecer o que se precisava fazer para evitar uma crise irreversível, mas o problema do estabelecimento desse equilíbrio não era de ciência e tecnologia, e sim político e social. Uma coisa, porém, era inegável. Tal equilíbrio seria incompatível com uma economia mundial baseada na busca ilimitada do lucro por empresas econômicas dedicadas, por definição, a esse objetivo, e competindo umas com as outras num mercado global. Do ponto de vista ambiental, se a humanidade queria ter 68 um futuro, o capitalismo das Décadas de Crise não podia ter nenhum. Um quadro ainda muito atual, com suas questões permanecendo em aberto. 68 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 547-548. 70 1.5. Fontes para o trabalho A seleção das fontes a serem utilizadas em trabalhos de pesquisa como o da presente dissertação foi realizada a partir de critérios que levaram em conta os objetivos pretendidos, os quais, por sua vez, estão relacionados com as fundamentações teóricas e com as opções metodológicas que foram adotadas. Mas o próprio alcance da pesquisa precisa ser delimitado pela possibilidade de acesso e tratamento das fontes, dentro do tempo disponível para a sua realização, aí incluindo a etapa de escrita do trabalho, num processo que é sempre interativo. Na busca de fontes para este trabalho, não realizei entrevistas, salvo em situações muito pontuais, o que se deveu a dois motivos. Em primeiro lugar, por uma limitação de tempo, uma vez que seria necessário ouvir um grande número de pessoas, de modo a ter uma visão mais abrangente e equilibrada dos temas e eventos tratados, incompatível com os prazos disponíveis, tendo em conta, também, a necessidade de muitas leituras prévias. E haveria um risco considerável de formar um quadro muito distorcido, no caso de ser colhido apenas um pequeno número de depoimentos, de difícil critério de seleção. Ao lado disso, pude constatar a existência de documentação escrita sobre a temática a ser tratada em volume suficiente, a qual está presente em publicações especializadas como a Revista Ecos, em matérias da imprensa local, na produção acadêmica de várias disciplinas, em trabalhos apresentados em congressos e em outras publicações especializadas. Foi possível, por outro lado, a utilização de diversos destes trabalhos não somente como fontes de dados e de depoimentos, mas também como referência bibliográfica, a partir das reflexões de seus autores. Cabe observar, ainda, que muitos dos cuidados que devem ser tomados no tratamento de fontes escritas também o seriam para as entrevistas. Entre estes, podem ser citados a necessidade de identificar as posições de fala e os interlocutores por esta buscados, bem como o de levar em conta a tendência à apresentação de posições filtradas. Este pode ser o caso, especialmente, mas não apenas, das diversas publicações e matérias jornalísticas destinadas à divulgação de programas no âmbito dos governos. O que não lhes retira o valor como fontes, tanto pela manifestação de intenções e posicionamentos, quanto pela presença de informações, e, por vezes, omissões, a serem buscadas em suas entrelinhas. A imprensa local foi uma das principais fontes utilizada no trabalho, especialmente jornais como Correio do Povo e Zero Hora, pois produziu um grande volume de informações factuais sobre o tema em estudo. É preciso lembrar, no entanto, 71 que estas fontes apresentam importantes limitações, tendo em vista que os conteúdos nelas presentes sofrem sempre um processo de filtragem, cuja discussão em maior profundidade não cabe aqui. Este processo tem razões de ordem empresarial, como a necessidade que os veículos têm de manter suas participações no mercado leitor, de ordem política, como o alinhamento, nas questões de fundo, às visões do setor empresarial de que fazem parte seus proprietários. Ou de ambas, como as relações de interdependência entre as empresas da área e os governos, que figuram entre seus maiores anunciantes e detém poderes de concessão de canais de rádio e televisão, mas precisam de seu apoio junto ao público. E esta filtragem também se deve, em boa medida, à influência das próprias visões de mundo de seus profissionais, dos repórteres aos editores, as quais se constituem a partir de suas origens familiares e de classe, e de suas formações escolar e profissional. Os conteúdos destas fontes, assim, não expressam uma “verdade factual” e tampouco dão voz a todos os segmentos da sociedade, tendendo, antes, a refletir as visões e as demandas dos integrantes dos extratos médios e mais afluentes da sociedade. Mas é possível acessar, nestas fontes, ainda assim, algumas opiniões representativas de segmentos da sociedade envolvidos com o tema, como as de ambientalistas e de pessoas das áreas de planejamento urbano e saneamento básico, entre outros. São comentadas, abaixo, as principais fontes utilizadas em cada capítulo desta dissertação. No segundo capítulo, lancei mão de reportagens e crônicas publicadas sobre o uso das praias de Porto Alegre, no período anterior à sua poluição, de jornais locais, mas, principalmente, da Revista do Globo, que circulou entre 1929 e 1967. A maior parte de seu conteúdo não traduz, necessariamente, o pensamento das pessoas que as desfrutavam naquela época, mas, antes, uma visão filtrada, e, muitas vezes, elitista. Penso, no entanto, que a visão assim recuperada destas fontes tem mais importância, para este trabalho, do que a das memórias de pessoas que as frequentavam, muitas vezes carregadas de certa nostalgia. O tom destas matérias parece refletir de um modo mais preciso a valorização que era atribuída a este aspecto da cidade pela sociedade local, naquele período, um elemento importante para entender, não tanto como foi possível ocorrer o seu processo de degradação, mas, principalmente, como este foi percebido, na época. No terceiro capítulo, na parte referente ao modelo adotado para o setor de saneamento básico, no período da ditadura civil-militar, foram tomados como referência 72 trabalhos de autores da própria área, como Sonaly Rezende e Léo Heller, ao lado de pesquisadores das políticas públicas na área social, como Marta Arretche. Na parte referente ao segmento ambientalista no Rio Grande do Sul, com respeito às memórias preservadas por seus integrantes, no que se refere ao período em que ocorreram as primeiras iniciativas governamentais visando à despoluição do Guaíba, foram usados como fonte os trabalhos de autores como Elmar Bones, Geraldo Hasse e Vânia Soares. Com respeito ao “Projeto Rio Guaíba”, as principais fontes utilizadas foram o folheto Guaíba Vive, publicado em 1989 para o lançamento deste programa pela prefeitura de Porto Alegre, que contém os registros das discussões que ocorreram no período, entre outras, a respeito dos impactos ambientais das alternativas propostas no âmbito desse projeto para o tratamento dos esgotos da capital, e o trabalho de João Carlos Speggiorin sobre os quadros dirigentes do DMAE. No quarto capítulo, no que se refere à bibliografia produzida sobre o governo da Administração Popular e o Orçamento Participativo em Porto Alegre, com respeito às principais linhas de interpretação, fundamentações, premissas teóricas e bases empíricas, são tomados como referência autores como Luciano Fedozzi, Marcelo Kunrath Silva, Sérgio Baierle, Leonardo Avritzer, Zander Navarro e César Beras. No que se refere à avaliação dos investimentos em coleta e tratamento de esgotos em Porto Alegre, recorri à bibliografia específica sobre o tema, na área do planejamento urbano e regional, de autores como Nadia Andrea Hilgert, Débora Bernardo da Silva e Mário Leal Lahorgue. Ao lado disso, informações sobre a atuação do DMAE presentes na Revista Ecos e no trabalho de Speggiorin. Com respeito ao “Guaíba Vive”, as fontes principais foram esta revista, com respeito à sua condução e resultados, e o folheto já citado sobre o programa, quanto a seus aspectos conceituais, além de matérias na imprensa local. No quinto capítulo, com respeito ao processo de criação de instâncias e de mecanismos institucionais voltados para a gestão de águas, envolvendo o Estado e a sociedade civil, em suas primeiras etapas, do início dos anos 1980 a 1994, são utilizados como fontes e referências trabalhos de autores envolvidos com sua formulação e implantação, entre estes Luiz Antonio Timm Grassi e Eugenio Miguel Cánepa. E também de autores que abordaram o tema em produções acadêmicas, incluindo o viés da participação de setores da sociedade civil, como Patrick Laigneau, Janine Haase e Fabiano Rückert. Com respeito ao “Pró-Guaíba” e seus impactos no que se refere à recuperação ambiental na Região Metropolitana de Porto Alegre, as fontes principais 73 são a Revista Ecos, o relatório do programa, Baía de todas as águas, e o trabalho sobre o processo de elaboração do diagnóstico ambiental e definição de prioridades do seu Plano Diretor, de Nanci Begnini Giugno (et. al.), além de matérias na imprensa local. Na parte final, onde são abordados os passos mais recentes no processo de implantação da política de gestão de águas no Rio Grande do Sul, as fontes principais foram o trabalho de Patrick Laigneau sobre os primeiros passos do Comitê do Lago Guaíba, e o texto de Luiz Fernando Cybis e Sabrina Xavier contendo um pequeno histórico, avaliação e perspectivas do processo, ao final da década de 2000. 74 CAPÍTULO 2. ANTECEDENTES (DOS ANOS 1940 AOS 1970): DE UMA CIDADE TAMBÉM PRAIANA AO GUAÍBA POLUÍDO Este segundo capítulo pode ser descrito como um preâmbulo, que tem como objetivo aportar elementos que permitam dar uma ideia do significado do Guaíba e de suas praias para os porto-alegrenses, no período de sua maior utilização, a partir dos anos 1940. E também dos impactos que foram sentidos a partir do momento em que a poluição de suas águas passou a impossibilitar o banho em suas praias, no início da década de 1970, com as primeiras manifestações, na sociedade local, para cobrar iniciativas do poder público visando reverter esta situação. O capítulo é dividido em três partes. Na primeira parte, é abordado o papel das praias como elemento cultural e de sociabilidade nas sociedades contemporâneas, dando conta de sua constituição, enquanto processo histórico, que teve início na Europa, a partir do século XVIII, chegando ao Brasil no final do XIX. É comentada, também, a maior valorização que passou a ser dada às praias de mar em relação às de água doce, dentro deste mesmo processo cultural, que envolve construção e mudança de sensibilidades. Um aspecto que considero importante no contexto específico deste trabalho, principalmente quando se tem em conta que a maior parte das referências às praias do Guaíba, nas fontes escritas, contém comparações com as praias de mar, seja no litoral gaúcho, seja em outros balneários do Brasil ou do vizinho Uruguai, com o uso frequente de expressões como “quem não tem cão, caça com gato”.69 Na segunda parte, são tratadas as representações sobre estas praias e a cidade, produzidas ao longo deste período no âmbito da sociedade local, com base na análise de fontes jornalísticas, literárias e iconográficas, com dados que permitem mostrar a intensidade de seu uso pelos moradores da cidade, então. Usei como fontes um conjunto de reportagens e crônicas sobre o convívio dos porto-alegrenses com as praias do Guaíba, quando ainda não estavam poluídas, publicadas nos jornais locais, e, principalmente, na Revista do Globo, que circulou entre 1929 e 1967. A maior parte de seu conteúdo não traduz, necessariamente, o pensamento das pessoas que as desfrutavam naquela época, mas, antes, uma visão filtrada, e, muitas vezes, elitista. 69 CARNEIRO, Flávio, LUCHINI, Alderico (fotografias). É domingo em Pôrto Alegre. In: Revista do Globo. Porto Alegre: 1966, n° 937, pp. 10-17: Pôrto Alegre é cidade sem mar, mas para consolo nosso tem-se o Rio Guaíba, que circunda a cidade, dando-lhe muita beleza e motivando toda uma série de diversões dominicais. Senão vejamos. “Quem não tem cão caça com o gato”, diz o velho ditado, e quem não tem mar, banha-se na água doce. Milhares de pessoas, nos meses quentes do verão, passam seus domingos nas praias doces que o Guaíba oferece. [...]Em dezembro, janeiro e fevereiro é preciso se chegar cedo para pegar lugar, pois é enorme a multidão que lota a costa tranqüila do Rio Guaíba. 75 Penso, no entanto, que a visão assim recuperada destas fontes tem mais importância, para este trabalho, do que a das memórias de pessoas que as frequentavam, muitas vezes carregadas de tons nostálgicos. O tom destas matérias parece refletir de um modo mais preciso a valorização que era atribuída a este aspecto da vida da cidade pela sociedade local, naquele período, um elemento importante para entender, não tanto como foi possível ocorrer o seu processo de degradação, mas, principalmente, como este foi então percebido. A última parte trata do processo de degradação ambiental do Guaíba e de sua orla urbana em Porto Alegre e entorno, nas décadas de 1960 e 1970, no contexto da emergência da questão ambiental, durante a vigência da ditadura civil-militar no Brasil. 2.1. A criação do gosto pelas praias (mais de mar do que de rio) O estudo dos usos, das sensibilidades, do imaginário, e das relações de convivência dos povos ocidentais com o mar e suas praias, com todo o processo radical de mudança por que passaram desde o período do Renascimento até o século 19, é uma temática que foi explorada com bastante profundidade e propriedade pelo historiador francês Alain Corbin em sua obra já citada, Le Territoire du Vide – L´Occident et le désir du rivage (1750-1840). Trata-se de toda uma mudança de sensibilidades e de atitudes, tanto do homem em relação à natureza, na busca de um contato mais próximo, junto das areias da praia, das ondas, das pedras, e do espaço misto entre a terra e o mar, quanto de novas formas de convivência e de exercício da sensualidade entre as pessoas.70 Esta nova sensibilidade não deixou de ser, de certa forma, uma reação a um estilo de vida crescentemente emparedado nas grandes cidades e nas rotinas estressantes da economia capitalista industrial. O trabalho de Corbin pode ser usado como uma referência básica para a investigação dos processos que levaram à valorização de espaços litorâneos, inclusive no Brasil, seja pela criação de balneários, inteiramente novos ou derivados de vilas de pescadores já existentes, seja pela urbanização de espaços praianos em cidades localizadas próximas ou junto à beira-mar. Uma investigação abrangente do papel da praia na vida social brasileira, através de um olhar etnográfico, mas com a perspectiva histórica, foi realizada pelo antropólogo Thales de Azevedo, no ensaio A praia, espaço de socialidade, contido em sua obra O cotidiano e seus ritos: praia, namoro e ciclo de vida.71 Publicado em 1988, contém uma 70 71 CORBIN, Alain, op. cit., p. 319. AZEVEDO, Thales de. A praia, espaço de socialidade, In: AZEVEDO, Thales. O cotidiano e seus ritos: praia, namoro e ciclo de vida. Recife: Editora Massangana, 2004, pp. 25-67. Diz o autor, na introdução do ensaio, “Quilômetros de praia despercebida”: “... a análise deve começar por uma breve 76 observação etnográfica da vida cotidiana, aproximando-se da linha seguida por Michel de Certeau, que buscava os rastros de agência das pessoas comuns numa “cultura muito ordinária”.72 Sua tônica principal são as mutações e domesticações sucessivas que a paisagem marinha brasileira conheceu ao longo de pelo menos dois séculos, de suas antigas formas de uso às novas apropriações do lugar. Thales de Azevedo observa e analisa diferentes aspectos simbólicos relacionados às representações que adquire o espaço litorâneo, desde os micro-rituais celebrados no cotidiano praiano, o uso do tempo livre, a chegada do turismo, a valorização e exibição do corpo, a moda das novas indumentárias e, por conseguinte, a adoção de novos estilos de vida e de sociabilidades que só mesmo uma “cultura de praia”, como definida pelo autor, seria realmente capaz de propiciar. O trabalho de Thales de Azevedo apresenta muitas similaridades com o de Alain Corbin, no que diz respeito, principalmente, às mudanças no imaginário em relação às praias oceânicas, e às razões que levaram à sua mudança e à procura das praias, no contexto da formação das sociedades industriais e urbanas, a partir de fins do século 18. E traz várias outras contribuições, começando por mostrar como o processo de invenção social das praias foi relativamente tardio no Brasil, tomando impulso apenas nas primeiras três décadas do século 20, fato que o autor consegue identificar a partir da invisibilidade das paisagens praianas em revistas periódicas e livros de geografia do início deste período.73 Os aspectos de maior importância para o presente trabalho, no entanto, dizem respeito mais especificamente às características desta “cultura de praia” que se constituiu no Brasil, como mostra o autor. Entre estes pontos, a progressiva liberalização dos corpos, com a adoção de trajes de banho mais sumários, como os maiôs, e, depois, biquínis, para as mulheres, e que vinha acompanhada de mudanças nos gestos femininos, desafiando as normas vitorianas até então vigentes, e criando uma sócio-história de movimentos precedentes. Como o cotidiano com o tempo se faz história, a memória faz a dimensão temporal dos dados sociais e culturais. Não há presente sem passado [...] O diacrônico compõe o sincrônico, a justificar que a ciência do social tenha a perspectiva da contínua mudança do humano.” (Idem, p. 25). 72 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, pp. 5558 (Primeira Parte: Uma cultura muito ordinária) apud MOTTA, Antonio. Nos interstícios do visível. In: AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 10. 73 AZEVEDO, Thales de, op. cit., pp. 25-26 e 31-33. O autor lembra aqui, citando autores como David Bidney, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Georges Gurvitch, que tanto os artefatos quanto a cultura tem como constitutivos imediatos, essenciais, a natureza sentida e percebida. Percebemos a paisagem quando esta é humanizada, não cruamente natural, física, mas tocada pelo homem ou mesmo com ele aí presente vivendo e agindo. Assim, a praia, até este período, não tinha significado para os citadinos, especialmente para os intelectuais, sendo, para os pescadores, um lugar de trabalho árduo, e de convívio com iguais. O pescador molha-se nessa água, mergulha às vezes, por necessidade, mas pouco por divertimento. 77 nova ética, bem como o incentivo ao uso das praias trazido pelo irresistível processo de modernização, de rejeição da “situação colonial” que, na ordem arquitetônica e urbanística, se realizava nas reformas do Rio de Janeiro, a partir de 1902, e de outras capitais brasileiras, e que se refletiu também em outros divertimentos, como o carnaval. A moral burguesa é alterada: a frequência à praia é um dos exercícios das classes médias, à qual tem acesso marginal a camada popular, e a praia é também palco para realização pessoal burguesa, para a recusa da pecha de retrógrado, de atrasado, de moralista, de velho, pelo uso dos trajes de banho. Por outro lado, mostra o antropólogo baiano, a praia é, para milhares, a oportunidade para associação em grupos de parentes, de amigos e colegas, de vizinhos, ocasião para contatos problemáticos no diário, e, citando Pierre Bourdieu, vê isto como uma “inversão do cotidiano”, um desdobramento da experiência habitual.74 Azevedo também explora o aspecto das praias e orlas enquanto espaço para a prática de discriminações sociais e segregações etno-econômicas.75 O autor aborda a democratização do espaço tradicionalmente exclusivo do topo da hierarquia social, resultante da “invasão” das praias por “farofeiros”, e pela “turma do isopor”, mas também pelas classes médias e por “outros”, como os estrangeiros, que traz a liberação das praias, produzindo, conforme a socióloga Carmem Cinira Macedo, uma “heterogeneidade de grupos em convívio”.76 As praias, assim, deixam de ser apenas um lugar de lazer, de exibição dos corpos, de paquera, de descanso, “uma praia sossegada” em que se relaxam as tensões da cidade. O autor vê nessa quebra do sossego e da 74 Idem, p. 54 e 66. O autor cita aqui Pierre Bourdieu, em “Gostos de classe e estilos de vida”, reproduzindo ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu, Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 82. E diz, tomando como referência artigo da socióloga Carmen Cinira Macedo, O contexto cultural do verão (Folhetim, Folha de S. Paulo, 04/05/1986): “Na construção simbólica de praia-e-verão, as distâncias e divergências de classes, de razão cultural, são um determinante de constrangimentos e de novas tentativas de segregação pelos que se sentem incomodados com a invasão dos ‘diferentes’.” (Ver: MACEDO, Carmen Cinira. O contexto cultural do verão. In: Folha de S. Paulo, 04/05/1986, caderno Folhetim). 75 Idem, pp. 54-55. Diz Azevedo, neste ponto: “Vi, pela primeira vez, em começos de 1941, uma ‘playa de negritos’ em Carrasco, nos arredores de Montevidéu: o fenômeno ocorre no Brasil com os pretos, os pobres, os moradores de favelas e invasões da proximidade de determinadas praias e com os farofeiros, os banhistas que chegam em grupos, quase sempre de ônibus, levando farnéis ou merendas – supostamente com bastante farinha de mandiocas – com que poluem os trechos ocupados e incomodam os freqüentadores com seus estilos de brincadeira.” 76 Idem, pp. 54-55. O autor cita aqui o artigo de Carmen Cinira Macedo, do qual reproduz sua conclusão: “Assim, se para os mais pobres, a oportunidade de ir à praia é vista como um ganho, uma festa e, fundamentalmente, um direito, algo que tem a ver com a ideia de uma sociedade democrática, para os mais abastados a impressão é outra. As pessoas sentem-se invadidas, tendo que ceder ‘suas’ praias para pessoas estranhas, tendo que aceitar a convivência tida por desagradável, com gente desagradável, que polui a praia por não saber usá-la adequadamente, e que, ainda por cima, polui a praia visualmente, por estarem aquém do padrão de beleza estética que é habitual ‘entre pessoas de fino trato’.” (Ver, MACEDO, Carmen Cinira, op. cit.). 78 privacidade uma explicação, ao menos parcial, para a incessante procura de novas praias. Thales de Azevedo prossegue o ensaio mencionando a expansão do fenômeno praiano ao longo de todo o litoral brasileiro, orientando o desenvolvimento urbano das cidades costeiras e transmutando antigas vilas de pescadores em novos balneários. O autor lembra, também, o seu reflexo nas cidades interioranas, com a instalação de clubes com piscinas e de clubes náuticos, como os marítimos, à beira de rios, lagos e represas. E menciona, de passagem, a crescente ocupação privada irregular de terrenos de marinha, que ocorre, muitas vezes por iniciativa dos próprios poderes públicos. O autor conclui dizendo que a “cultura de praia” contrasta com a tradicional cultura burguesa, cristã, manifesta em comedimento, em “pureza” de sentido, em contenção do gesto. E que reverte dionisíaca sobre esta, influenciando-a e, em certa medida, subvertendo seu sistema de valores, sua ética, seus gostos e apetites; altera a libido e exalta o que tem de anima, nos termos de Jung, seus modos de sentir o corpo.77 E sustenta que nessa renovada relação do corpo com o meio natural e humano da sociedade da praia, em uma revolucionária ecologia e assunção de papéis, diversas das rotineiras no trabalho e no convívio habitual, faz-se um poderoso desencadeador de mudanças. O que dá substância e é vivido na praia enquanto espaço de socialidade, diz Azevedo, é o que Michel Maffesoli chama de “comunhão de emoções e sensações” que se exprimem ali no estar - junto diverso do cotidiano habitual do trabalho, do exercício dos papéis convencionais, das relações formais. É um como dia-a-dia alternativo do invariado social e ecológico buscado intencionalmente para quebrar a rotina.78 Também no livro O cotidiano e seus ritos: praia, namoro e ciclo de vida, há um artigo da historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, A descoberta da praia, no qual a autora, depois de comentar os principais pontos da obra de Thales de Azevedo, destacando as fontes empregadas por ele, inclusive sua própria memória, faz importantes observações acerca da situação atual das costas brasileiras. Como mostra Rita Araújo, as imagens de propaganda não correspondem ao modo desordenado e predatório pelo qual se deu, no geral, a ocupação da área litorânea e a massificação do lazer nas praias, com a omissão, conivência, ou, mesmo, participação ativa dos governos, nas suas várias instâncias. A degradação do meio ambiente marinho e costeiro, ausência dos serviços urbanos básicos, ocupação desordenada e ilegal, 77 Idem, p. 58 e 67. Para Jung, anima seria o que existe de feminino e, em algum sentido, libidinoso, sensual, na personalidade (Ver: JUNG, Carl G. Man and his symbols. A Laurel Edition, 1971). 78 Idem, pp. 58-59 e 67. Azevedo cita, aqui, MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro, 1984. 79 apropriação indevida de áreas consideradas como bem público e de uso comum, tanto por indivíduos da elite e grandes empresas do ramo imobiliário, quanto pelas camadas populares. Assim, “a cidade invade o campo”, incorpora as praias ao espaço urbano, e projeta seu modo de vida, seus valores, sua ética e estética no espaço singular das praias. Percebê-las em suas mazelas, diz a autora, é ver refletida parte considerável da própria sociedade brasileira.79 O gosto pelas praias de mar no Brasil, assim, foi introduzido como parte da difusão dos novos costumes da elite europeia, aristocrática, e, logo em seguida, burguesa, a partir de meados do século 19. Até então, o mar também era visto pelos brasileiros como um lugar repulsivo, ameaçador, e que servia, nas cidades litorâneas, apenas como local de descarte de todo tipo de dejetos, inclusive os humanos, que eram despejados in natura, para serem tragados pelas marés. Este posicionamento, característico das próprias camadas da elite, é mostrado por Gilberto Freyre, em Sobrados e Mocambos.80 Nesta obra, o sociólogo pernambucano mostra, ao lado da desvalorização das praias de mar, a clara preferência pelas águas doces, com o costume dos banhos de rio.81 Freyre ilustra esta preferência falando sobre o Rio de Janeiro e Salvador, e, com mais detalhe, sobre o Recife, cidade na qual cita os casarões do bairro aristocrático da Madalena, construídos com a frente voltada para o rio (o Capibaribe, hoje de há muito tempo poluído), e os banhos de rio junto às pontes, e sobre Belém do Pará, onde chamava a atenção de viajantes europeus o banho de rio de homens, mulheres, velhos e crianças, todos nus, em plena cidade. Gilberto Freyre discorre também sobre as origens deste costume, segundo alguns, para o autor, herança de caboclos, mas, para ele, de origem moura, transmitida ao Brasil através dos portugueses.82 79 ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. A descoberta da praia. In: AZEVEDO, Thales de, op. cit., pp. 353-358. 80 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2006 [1936], pp. 312-313. 81 O sociólogo pernambucano também abordou o processo de valorização das praias de mar em detrimento das de águas doces em outras obras sobre a cultura e a sociedade do Nordeste brasileiro, inclusive com respeito às práticas religiosas afro-brasileiras. A este propósito, ver FREYRE, Gilberto. Nordeste. Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1961, p. 36 apud ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de, op. cit., pp. 357358: [ao final do capítulo “A casa e a água”] “A água nobre é hoje a do mar – esse mar nuns lugares tão azul e noutros tão verde que banha as areias do Nordeste. Iemanjá mesma já não é adorada pelos pretos de xangô na água dos rios mas principalmente na água do mar. E entretanto faz pouco mais de um século que nelas só se fazia atirar o lixo e o excremento das casas; se enterrar negro pagão; se deixar bicho morto; se abandonar esteira de bexiguento ou lençol de doente da peste.” 82 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2006 [1936], p. 312. O autor cita aqui WARREN, John Esaías. Pará; or 80 É difícil pensar nas vivências praianas em locais banhados por águas doces, quando se considera estas transformações históricas que foram abordadas por autores como Alain Corbin, Thales de Azevedo e, também Gilberto Freyre, sem ter em conta o fato das pessoas, em sua maior parte, terem passado a senti-las, a partir das mesmas, como uma alternativa incompleta às praias oceânicas. Esta sensação transparece de modo bem claro em depoimentos como o de Moacyr Scliar, no seu livro Porto de histórias (Mistérios e crepúsculo de Porto Alegre), ainda que o autor não tenha considerado, aqui, outros aspectos que contribuíram para esta valorização das praias de mar, como a ideia de que os ares marinhos trariam benefícios para a saúde física e mental, e a oportunidade, para os mais afluentes, de se isolarem em locais de veraneio com acesso mais exclusivo, como nos locais serranos e nas estações de águas: Os porto-alegrenses não tem mar por perto. O que é causa de frustração, sobretudo para as crianças: piscina, lago, rio, nada disso se compara ao mar, à poderosa visão do mar, à excitação de mergulhar, de pegar jacaré, de surfar: as ondas fazem muita diferença. Na infância, eu ficava entusiasmado e emocionado quando, em dias de vento muito forte, passava às margens do Guaíba e via as águas levantarem-se em ondas inquietas. Então, 83 tínhamos ondas! Acredito que este aspecto não pode ser posto de lado ao se tratar das reações da sociedade porto-alegrense à poluição do Guaíba, nos anos 1960 e 1970, quando tomadas em seu conjunto, e como expressas nos meios de comunicação do período. As quais contrastam grandemente com as visões nostálgicas que aparecem nos dias atuais, de uma “época dourada”, ou “romântica”, quando a Ipanema local era um “point” da juventude. Afinal, em certo sentido, Porto Alegre nunca foi, de fato, uma cidade praiana. 2.2. A cidade e as praias do Guaíba, entre os anos 1940 e o início dos anos 1970 Nesta seção busco abordar, de forma breve, o período de maior utilização das praias do Guaíba pelos moradores de Porto Alegre, quando ainda não estavam poluídas, com base em meu trabalho de pesquisa na graduação, Porto Alegre em tempo de praia: A cidade e as praias do Guaíba, entre os anos 1940 e o início dos anos 1970.84 O scenes and adventures on the Banks of the Amazon. Nova York, 1951, p. 9, e também FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil, trad., Rio de Janeiro, 1947, pp. 124-125. 83 SCLIAR, Moacyr. Porto de histórias (Mistérios e crepúsculo de Porto Alegre). Rio de Janeiro: Record, 2000 (Coleção Metrópoles), p. 72. 84 PRESTES, Antonio João Dias. Porto Alegre em tempo de praia: A cidade e as praias do Guaíba, entre os anos 1940 e o início dos anos 1970. Porto Alegre, 2007 (94 p.), não publicada (monografia). Uma versão condensada foi publicada, como artigo. Ver: PRESTES, Antonio João Dias. Porto Alegre em tempo de praia. A cidade e as praias do Guaíba, entre os anos 1940 e o início dos anos 1970, pp. 13-20. In: Revista Historiar, Ano I, Ed. 02, 2008, disponível em http://www.revistahistoriar.com/files/porto_alegre_em_tempo_de_praia_a_cidade_e_as_prai.pdf, 81 enfoque principal deste trabalho consistiu em problematizar as relações dos portoalegrenses com estas praias, a partir das visões das mesmas que foram expressas em diversas matérias da imprensa local, em jornais como Correio do Povo e Zero Hora, e, principalmente, na Revista do Globo, de Porto Alegre, publicada entre 1929 e 1967. Alguns comentários devem ser feitos com relação a estas fontes. A Revista do Globo apresenta um bom número de matérias enfocando as praias porto-alegrenses, entre a década de 1940 e o ano de seu fechamento, 1967, ao lado de várias outras sobre os esportes náuticos e a vida social nos clubes da orla do lago, e sobre as praias de mar, não só do litoral gaúcho, em sua maior parte fotorreportagens com os autores de fotos e textos identificados. Seu exame traz muitos elementos sobre a representação das praias do Guaíba, do seu contraste com a dos balneários marítimos, especialmente Torres, e com a visão do próprio rio como cena do lazer de privilegiados. O Correio do Povo não tem matérias a respeito das praias, com exceção da série de reportagens de Kleber Borges de Assis, O rio que não é rio, mas apresenta várias sobre o tema da reforma urbanística da cidade, como o projeto de aterro da Praia de Belas e de construção da Avenida Beira-Rio.85 Ao lado disso, em suas páginas de anúncios, pode se ter uma ideia dos usos dos balneários da zona sul, e da sua valorização, como local de veraneio, em plena década de 1950.86 Nos anos 1960, várias matérias focalizam o uso das praias e acessado em setembro de 2009 (revista eletrônica dos alunos do curso de graduação em História da UFRGS). 85 A série de reportagens de Kleber Borges de Assis sobre o Guaíba, publicada pelo Correio do Povo, em 1958, foi lançada como livro, O rio que não é rio, em 1960. O tema das praias é abordado em dois dos seus doze capítulos, um sobre o uso do rio pelos porto-alegrenses para recreação, e outro sobre a exploração do turismo. No primeiro, o autor dá uma boa ideia sobre a existência de praias populares, como Ipanema, e privativas, como a Pedra Redonda, e fala também sobre as praias da outra margem do rio, como Alegria e Vila Elsa, em Guaíba, e Barra do Ribeiro, que eram alcançadas de barco, a partir de Porto Alegre. O contraste entre as praias do rio, cheias de vegetação frondosa (“que fornece uma bela sombra aos banhistas, entre um mergulho e outro”), e as praias do litoral gaúcho não passa despercebido pelo geógrafo e repórter (pp. 58-59). No capítulo referente ao turismo, o autor se preocupa com os passeios de barco no rio, e com a instalação de bares e restaurantes na orla, a partir da construção da futura avenida Beira-Rio (pp. 103-110). Ilustrado com muitas fotografias, nenhuma mostrando as praias, o livro falava sobre vários outros temas relativos ao rio e a cidade, desde a discussão sobre a natureza geográfica do Guaíba (rio, lago ou estuário), até suas funções econômicas, da pesca ao porto e à irrigação de lavouras de arroz, o abastecimento de água para a população da capital, a sua travessia por ponte, e a ocupação humana das ilhas do Delta do Jacuí. 86 Alguns exemplos de anúncios em destaque nos classificados do Correio do Povo, Porto Alegre: (i) “Terrenos em Tristeza – Atenção interessados! Com a aprovação da construção da hidráulica em Tristeza – Com a abertura de concorrência para a construção da Avenida Beira-Rio – Com o desenvolvimento da construção do Hipódromo – em breve, as condições de venda e preços dos terrenos vão mudar. [...] (p. 19, 18/02/1951); (ii) “Procura-se casa para alugar no mês de março na praia de Ipanema”. (p. 19, 25/02/1951); (iii) “Balneário Espírito Santo – Novo loteamento neste aristocrático recanto desta capital – Terrenos a poucas quadras da praia com deslumbrante panorama, com água e luz – Vendas a longo prazo sem entrada a 100 meses sem juros [...]” (p. 23, 04/03/1951). Durante todo o período dos anos 1950 e 1960, os classificados dos jornais tinham na seção Praias anúncios de compra, venda e aluguel tanto das praias do litoral quanto do Guaíba. 82 seus problemas na Folha da Tarde e na Zero Hora, mas esta última, na época ainda um jornal em busca de mercado, e com um perfil mais popular do que o dos concorrentes, tendia a dar um maior espaço à interação dos porto-alegrenses com as praias, com um enfoque mais positivo. Mas em quase todas essas, tanto dos jornais quanto das revistas, a menção às praias porto-alegrenses é acompanhada de alguma referência ao litoral marítimo ou à distância de Porto Alegre do mar. A capital gaúcha já se mostra, no início dos anos 1940, como uma cidade diferente daquela que era retratada pela Revista do Globo em seus primeiros anos, e que ainda girava muito em torno das figuras da elite oligárquica do estado. A cidade cresce para o alto, com os primeiros grandes edifícios comerciais e residenciais na área central, e para os lados, incorporando novos bairros, o que é facilitado pela criação de novas formas de transporte público, com os ônibus juntando-se aos bondes elétricos e alcançando localidades mais distantes do centro, inclusive os balneários da zona sul. Nesse novo contexto, com o aumento explosivo da população de Porto Alegre – que passa para 394 mil habitantes em 1950, e 641 mil em 1960 – e com as maiores facilidades de acesso, a procura das praias do Guaíba na zona sul da cidade se intensifica, como uma forma de convivência social mais aberta e como alternativa de fuga para os dias tórridos do verão porto-alegrense. Os bairros da zona sul continuam sendo locais de veraneio, mas já passam a atrair uma população permanente, em alguns deles com famílias das classes mais privilegiadas, morando em belas casas situadas diretamente à beira da praia, na Tristeza, na Vila Conceição e na Pedra Redonda, muitas com trapiches particulares, ou na colina da Vila Assunção. O remo continuou sendo praticado, em clubes e raias localizadas principalmente na zona norte e nas ilhas do delta do Jacuí, e surgiram os clubes de vela, como o Iate Clube Guaíba, o Veleiros do Sul e o Clube dos Jangadeiros, localizados na região da Tristeza e da Vila Assunção. O acesso às praias marítimas do litoral norte do estado continuava difícil, situação que se manteve, em linhas gerais, até a inauguração da freeway (autoestrada Porto AlegreOsório), em 1973, mas as famílias mais ricas começaram a trocar, a partir dos anos 1950, os veraneios nas praias do Guaíba pelo hábito de veranear no litoral norte. O acesso às praias da zona sul de Porto Alegre, para a maioria de seus frequentadores, era feito através de linhas de ônibus que saíam do centro da cidade. O serviço de transporte era deficiente, e o itinerário era muito demorado, pois as vias de acesso ainda eram precárias, situação que perdurou, na verdade, durante quase todo o período, pois a zona sul era ligada ao centro da cidade por uma via asfaltada, mas muito 83 estreita. Mesmo assim, uma grande massa de porto-alegrenses se dirigia para as praias nos fins de semana de verão. A Revista do Globo informava em 1944, talvez com algum exagero, que cerca de 15% da população da capital procurava as praias da zona sul, e as praias de Guaíba, como Alegria e Florida, nos fins de semana quentes, e que este número poderia chegar ao dobro, se não fossem as deficiências do transporte. A mesma revista informava, em 1965, que cerca de trinta mil pessoas se espalhavam pelas praias do lago nos dias mais quentes do verão. Mas o próprio acesso e os usos das praias do Guaíba eram bastante diferenciados ao longo de todo esse período, conforme relatou Kleber Borges de Assis, em O rio que não é rio. Em balneários como Ipanema e o vizinho Espírito Santo, que tinham acesso direto dos ônibus e uma extensão de praia pública, com rua à beira-rio, predominava uma frequência mais popular de banhistas (embora estes bairros tivessem muitas casas de veraneio da alta classe média). Ficavam superlotadas nos finais de semana do verão. A precariedade da infraestrutura para o lazer dos banhistas das praias do Guaíba é mencionada pelas diversas fontes pesquisadas no período, como a Revista do Globo e os jornais diários. Referem-se à falta de bares e restaurantes, bem como de sanitários públicos, nas praias de maior frequência. Já a Pedra Redonda, parte da Tristeza e a Vila Conceição tinham características mais elitistas, pois o acesso a suas praias era mais restrito, não havia rua na orla e boa parte das praias era privativa. Nelas havia alguns clubes, além dos náuticos, e, possivelmente, eram frequentadas por pessoas que chegavam em barcos, que ficavam ao largo, ou nos diversos ancoradouros particulares. Segundo o mesmo autor, o trecho entre a Praia de Belas e a Ponta do Dionísio era muito pouco frequentado, pois nele ficava o ponto principal de saída do esgoto cloacal da cidade, despejado no lago sem qualquer tratamento. Nos anos 1960, além dos que apenas passavam o dia nas praias, e dos que ainda usavam as casas para veraneio, muitas pessoas passaram a utilizar as áreas de camping na beira do rio, como no balneário do Guarujá, e também em Belém Novo (Veludo), para passar temporadas, no verão. Ainda no início dos anos 1970, com a poluição do Guaíba muito evidenciada, fazendo com que grande parte das pessoas passasse a evitar os banhos, ficando só nas areias, a procura pelas praias da zona sul, especialmente Ipanema, continuava sendo muito grande, e, com a popularização dos automóveis, observavam-se enormes engarrafamentos nos fins de semana do período de verão. No início dos anos 1940, a temática das praias e do veraneio começa a ganhar mais espaço nas páginas da Revista do Globo, até então restrito a raras matérias apenas 84 fotográficas. No verão de 1944, a Revista publica uma reportagem, escrita por Juliano Palha, com fotografias de Santos Vidarte, Praias do Guaíba.87 A reportagem-crônica é ilustrada por fotografias que mostram cenas as mais diversas das pessoas num domingo de praia, crianças em piqueniques, mulheres disputando um espelho, famílias à sombra das árvores, os “tarzans” acrobatas nos aparelhos de ginástica, a improvisação para a troca de roupas, a fila do ônibus. Curiosamente, nenhuma das fotos mostra pessoas se banhando no lago. Pode-se ver que são de pessoas da classe média ou “remediados”, gente com condição de tomar um ônibus (automóveis, então, só para os muito ricos) e passar o dia na praia. O quadro parece bem realista, talvez com algum exagero nas carências e na feiura das banhistas, citada no texto. O seu tom oscila entre a busca do pitoresco e a denúncia da precariedade das praias como opção de lazer, aí incluída, explicitamente, a obsessão por proibições e controles, mesmo num ambiente que se poderia imaginar que pudesse ser mais liberado, como a praia: Chegando à praia, porém, crescem os problemas à frente do banhista. Desde o local para trocar de roupa até a deficiência do serviço de bar. [...] Para as vilas residenciais, há praias particulares, com tabuletas advertindo que são proibidas ao público. E nas praias populares continuam as proibições, por sobre as necessidades. Não se deve pisar na grama, mesmo onde não existe grama. Não se pode sentar no bar em traje de banho. Não se pode... O guarda está sempre atento. E a moral da indumentária tem ali um espaço vital rigorosamente observado. Mas as praias ainda conseguem ser um espaço de liberdade e de convívio das pessoas nos domingos do verão, apesar das carências e das proibições, como mostra o cronista: Dentro do rio, porém, a humanidade navega livre e satisfeita, esquecida do asfalto, do bonde, de todas as torturas da cidade. Mulheres, homens e crianças. Principalmente homens. E os há de todos os tipos, desde os tarzans que se exibem em acrobacias na areia, até os raquíticos, de óculos, com ares professorais, e os carecas, de peito cabeludo. Quanto a elas, predominam as gordas. Carnes balofas, pernas encaroçadas. Porque as bonitas não entram no rio. Ficam passeando na areia, fazendo o footing, como na Rua da Praia, o andar estudado, o maquillage perfeito, o maillot de seda extravagantemente reduzido. De qualquer modo, está longe de ser uma exaltação das praias porto-alegrenses ou um convite ao leitor para visitá-las (Figura 3). Também não traz um convite para ir às praias do Guaíba, de modo algum, a reportagem da Revista do Globo de 1951, Triste Porto Alegre, assinada por Rubens Vidal.88 Nesta matéria, o autor traça um quadro extremamente crítico à capital gaúcha, com respeito às poucas possibilidades de lazer e de cultura que ela oferecia a seus 87 PALHA, Juliano, SANTOS VIDARTE (fotografia). Praias do Guaíba. In: Revista do Globo. Porto Alegre, 1944, n° 355, pp. 41-43. 88 VIDAL, Rubens. Triste Porto Alegre. In: Revista do Globo. Porto Alegre: 1951, n° 530, pp. 29-33. 85 moradores, em contraste com o seu tamanho e com a sua rotina já massacrante, de uma cidade na casa dos 400 mil habitantes. A legenda da fotografia que ilustra a sua primeira página diz: “Quem vê o grande movimento diurno da Rua da Praia não compreende a grande solidão noturna da capital”. A reportagem prossegue lamentando a falta de opções para a noite, com poucas boates, e a falta de um maior número de cinemas. Fala na existência de um verdadeiro “toque de recolher” devido a esta falta de alternativas, que faz com que a imensa maioria de sua população já esteja na cama às 11 horas da noite. Dois subtítulos: “P. Alegre é a capital que progride e boceja”, e “99% dos portoalegrenses fogem da monotonia pelas portas do sono”. Com relação às praias, diz o autor: No verão, restariam as praias. Mas a cidade as tem de rio e os que desejam um banho de mar precisam viajar 4 horas em ônibus superlotados, enfrentar hotéis improvisados, restaurantes com fila e o desconforto geral das estações marítimas ao alcance de Porto Alegre (Torres é uma exceção distante cujo acesso depende do vento e das marés, pois não há uma rodovia que a ligue com Porto Alegre, e os carros só lhe chegam pela praia). Figura 3. Um domingo de verão nas praias do Guaíba, nos anos 1940 86 Em 1957, a Revista do Globo publica mais uma grande matéria abordando o uso das praias fluviais pelos porto-alegrenses, Domingo (quente) no Guaíba. Trata-se de uma fotorreportagem, de Léo Guerreiro.89 Diz o seu texto inicial: Não tendo tido a capital pôrto-alegrense a fortuna de encostar-se à beira-mar, tem mesmo de se contentar com alguma praia do estuário manso (mas freqüentemente cruel) do Guaíba. Dia de calor na capital gaúcha é dia de evasão em massa. E quando esse dia é domingo, isso significa que a fuga é total. Para a orla marítima ou para os nossos banhos de rio. Acontece que o mais comum no caso das praias fluviais é a pessoa não ter podido ir até ao Atlântico e então entra na fila dos que não dispõem de condução própria (e esses, infelizmente são a imensa maioria) e habilita-se até Ipanema, Espírito Santo, Belém Novo, Pedra Redonda e mais inúmeros recantos batizados pelo povo com nomes específicos. Mas a água é a mesma em todas as praias: linimento refrescante para a única folga de uma semana quente e portanto o povo a ela vai sem qualquer espécie de sentimento comodista, tão somente com a coragem, aliás muito forte mesmo... Figura 4. A Porto Alegre praiana dos anos 1950 Na abertura (Figura 4), a imagem dos ônibus para as praias da zona sul, saindo embaixo do viaduto Otávio Rocha, com as grandes filas formadas para apanhá-los. São pessoas muito bem vestidas, mais mulheres do que homens, a maioria composta por jovens. Diz a legenda: “São aos milhares as pessoas que querem disputar um pouco da água do Guaíba e, não muitos, os ônibus”. Logo ao lado, uma cena semipanorâmica da praia de Ipanema, sua orla cheia de árvores, muitos banhistas nas areias e dentro d’água, com a seguinte legenda: 89 GUERREIRO, Léo. Domingo (quente) no Guaíba. In: Revista do Globo. Porto Alegre: 1957, n° 684, pp. 36-43. 87 Nas repetidas, pequenas e bonitas enseadas com abundante vegetação o povo deixa o cansaço de uma semana de trabalho e desejos frustrados de um pouco de natação. Mas o objetivo principal, fugir do calor, é atendido. Nas páginas seguintes, uma série de imagens fotográficas, destinadas a mostrar o que seriam diversos “flagrantes” de um domingo nas praias populares de Porto Alegre. O cronista capta e seleciona uma cena inusitada, em meio a banhistas saudáveis, embora nem todos exibindo boa forma: de costas, olhando para a praia, um homem sem uma perna, apoiado numa muleta, e com um bebê nos ombros. Por fim, a multidão, no fim da tarde, já de roupas trocadas, expressões cansadas, nas filas para o longo retorno, ao sol, enquanto alguns poucos permanecem para aproveitar os últimos momentos da tarde, num último mergulho. O contraste desta e de outras reportagens da Revista do Globo abordando as praias de Porto Alegre com matérias da mesma revista sobre as praias do litoral gaúcho, especialmente Torres, e sobre as praias de Montevidéu, é muito grande, tornando ainda maiores as diferenças existentes entre as praias porto-alegrenses e estes locais de veraneio de pessoas da alta sociedade. A seleção das fotografias é, certamente, um fator muito importante para a obtenção deste efeito. Para ilustrar este ponto, podem ser citadas duas reportagens da Revista, uma de 1950, Montevidéu, cheia de encantos mil, outra, também de 1957 e do mesmo fotógrafo da matéria sobre o Guaíba, Léo Guerreiro, O verão correu para a praia de Torres. 90 As duas fotorreportagens têm em comum a presença de mulheres muito bonitas, com elegantes maiôs e em poses sensuais. A matéria sobre Montevidéu mostra as atrações da capital uruguaia, como a movimentada praia de Pocitos, com sua avenida à beira do Rio da Prata, seus serviços de praia, como nos balneários europeus, e sua linha de edifícios lembrando Copacabana, e o cassino na praia de Carrasco (Figura 5). As praias do litoral uruguaio, como Piriápolis e Punta Del Este, também eram assunto constante nos jornais gaúchos nos anos 1950, como no Correio do Povo.91 A reportagem sobre Torres, por sua vez, mostra uma praia rústica, com uma natureza ainda intocada, e frequentada por moças da alta sociedade da capital (“na mais bela praia gaúcha, há muitas gaúchas belas”), posando 90 (i) PASSOS, Juvenal, RIOS, Christóvão (fotografia). Montevidéu, cheia de encantos mil. In: Revista do Globo, Porto Alegre, 1950, n° 500, pp. 42-45; (ii) MACEDO, Nélio, GUERREIRO, Léo. O verão correu para a praia de Torres. In: Revista do Globo. Porto Alegre, 1957, n° 682, pp. 47-49. 91 Correio do Povo. Porto Alegre, 14 de janeiro de 1951, p. 3. A matéria, ilustrada com fotografias, fala sobre o balneário de Piriápolis, entre Montevidéu e Punta Del Este: “Piriápolis, encantador centro de turismo internacional”. Montevidéu e estes outros balneários próximos eram atrações turísticas internacionais, mesmo sendo praias do Rio da Prata, com águas doces ou misturadas com o mar, entre Montevidéu e Punta Del Este. Isto permite relativizar a ideia de uma preferência intrínseca pelas praias de mar. 88 para o fotógrafo da Revista (Figura 6). O enfoque dado às reportagens sobre as praias do Guaíba é muito diferente, nelas o interesse parece estar centrado nos aspectos mais prosaicos (mas, às vezes, também em imagens inusitadas), enquanto que as praias uruguaias e Torres são representadas apenas como lugares paradisíacos e plenos de “glamour”, longe dos atropelos da cidade. Uma boa ideia do fascínio que o litoral inspirava, exatamente na medida em que representava a antítese da cidade, pode ser vista em outra matéria da Revista do Globo, de 1965, sobre o verão nas praias do litoral gaúcho, Novamente o verão.92 Ilustrada com fotos de Torres e de Capão da Canoa, seu texto diz: Torres, a bela, Tramandaí, a popular. Capão, Atlântida e inúmeras praiazinhas perdidas na vastidão de areia vêem abrirem-se as janelas das suas casas de veraneio. Começou a estação balneária. Mais um verão a ser recordado quando o inverno chegar. Um verão gostoso, passado nas areias quentes da praia, e no friozinho gostoso da água do mar. Verão só é o verão de que falam as poesias quando é passado longe da cidade, a uma grande distância dos escritórios, das repartições, dos bancos, enfim, longe de todo e qualquer trabalho. Figura 5. Porto Alegre vê Montevidéu e os encantos do Rio da Prata nos anos 1950 O jornal Zero Hora começou a circular em 1965, e, em seus primeiros anos, alcançava uma menor projeção do que o Correio do Povo e o jornal vespertino do mesmo grupo deste, a Folha da Tarde, e adotava uma linha editorial mais voltada para as camadas populares, em contraste com a maior sobriedade e postura um tanto mais elitista do Correio e do Diário de Notícias, jornal dos Diários Associados.93 Assim, 92 DIAS, Octacílio F. (fotografias). Novamente o verão. In: Revista do Globo. Porto Alegre , 1965, n° 891, pp. 12-15. 93 Texto sobre imprensa da página virtual do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, http://www.musecom.rs.gov.br/bd/modules/xt_conteudo/index.php?id=5, acessado em setembro de 2007. 89 matérias sobre as praias do Guaíba eram relativamente frequentes nos primeiros anos da Zero Hora, geralmente com um enfoque positivo, colocando-as como uma alternativa importante para o lazer dos moradores da capital, no que não diferia das matérias da Revista do Globo, em seus últimos anos. Em novembro de 1965, a capa do jornal apresenta, como uma das chamadas, “Porto Alegre em tempo de praia”, ilustrada com a foto de garotas mergulhando nas águas do rio.94 A matéria prossegue nas páginas centrais do caderno de variedades, com mais fotografias de garotas na praia de Ipanema, e o seguinte texto (Figura 7): Com o calor aumentando no meio da semana e a temporada de praia de mar por se iniciar em dezembro, Pôrto Alegre começou a ir à praia inclusive durante os dias de semana – como para enfrentar o sol de ontem. Enquanto a previsão para os próximos meses anuncia um verão dos mais fortes dos últimos anos a Praia de Belas já experimenta a movimentação mais comum no final de ano. Apesar disto, a maioria das piscinas de sociedades continuam a aguardar o mês de dezembro para o início da temporada. E a única solução mesmo é a praia de água doce mais refrescante. Figura 6. O verão da alta sociedade gaúcha dos anos 1950 na praia de Torres A análise destas fontes, em conjunto com as memórias de muitas pessoas, entre estas as publicados por autores como Roberto Pellin e Moacyr Scliar, mostrou a existência de uma intensa sociabilidade envolvendo o uso das praias pelos moradores de Porto Alegre no período estudado. Esta convivência envolvia pessoas das classes médias e das classes mais populares, e só foi interrompida devido ao processo de degradação das águas do Guaíba que intensificou a poluição das praias, tornando-as impróprias para o banho, embora o acesso mais rápido às praias do litoral norte, a partir de 1973, com a freeway, também tenha contribuído para o abandono das praias do lago. 94 SOARES, Waldomiro (fotografias). Pôrto Alegre em tempo de praia. In: Zero Hora. Porto Alegre, 19 de novembro de 1965, capa e página dupla central do Caderno 2. 90 Figura 7. Em plena década de 1960, uma Porto Alegre ainda praiana Mas estas fontes também mostraram que tal sociabilidade não se refletiu de um modo tão intenso na produção cultural sobre a cidade. É possível resgatar, através das crônicas e fotorreportagens da Revista do Globo, a representação das vivências dos porto-alegrenses nas praias do lago, ao longo de um período de quase quarenta anos, entre 1929 e 1967. Até o final dos anos 1930, estas praias ainda eram usadas apenas nos veraneios, ou, quando muito, em finais de semana, por pessoas com mais recursos, uma minoria integrante dos extratos mais privilegiados da sociedade, que ia às praias de mar em veraneios mais prolongados, e não transparece nenhum sinal de desvalorização da orla praiana de Porto Alegre ou de seus frequentadores, nas matérias da Revista, que eram, no entanto, muito esparsas e com pouco texto. A partir do momento em que o crescimento da cidade e um acesso mais fácil levaram a uma maior popularização de balneários como Ipanema e Belém Novo, nos anos 1940, houve uma mudança na maneira como as praias eram retratadas nesta revista. Suas matérias, desde então, passaram a oscilar entre uma visão das praias apenas como a opção possível dos moradores da cidade para fugir do calor, pois o acesso às praias de mar ainda era muito difícil, e outra, mais favorável, com o elogio à beleza e tranquilidade de suas paisagens – visão esta que parecia predominar nos últimos anos da Revista, a partir de 1965. No jornal Zero Hora do período entre 1965 e 1972, talvez em função de sua proposta editorial na época, que visava atingir a um público leitor mais amplo, as praias eram retratadas sob um ângulo mais positivo, merecendo, inclusive, reportagens de capa. 91 Mesmo neste jornal, no entanto, as referências às praias do Guaíba eram sempre acompanhadas de alusões às praias do litoral e, mesmo, às piscinas dos clubes da capital – elas eram consideradas uma boa opção para os dias quentes fora da temporada de verão. A orla praiana do Guaíba quase não fez parte da representação visual do urbano de Porto Alegre ao longo de todo este período. No conjunto de cartões postais da cidade, que faz parte do acervo da Fototeca Sioma Breitman, do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo, não há imagens das praias, e paisagem urbana aí representada só mostra o lago junto ao cais do porto, com o centro da cidade visto pelo lado norte, ou, em muito menor quantidade, visto pelo lado sul, a partir da enseada da Praia de Belas. Uma possível explicação para esta “invisibilidade” das praias se encontra no fato de que, ainda nos dias de hoje, toda a orla do lago na zona sul da cidade, a partir da Vila Assunção, quando vista ou fotografada em ângulos panorâmicos, ainda se mostra como uma paisagem quase natural, destacando-se muito mais o verde das árvores do que as construções, longe, portanto, do ideal de uma metrópole de arranha-céus e largas avenidas, tão presente nas páginas da imprensa local daquele tempo. E também na literatura as praias não foram representadas, com a notável exceção de Érico Veríssimo, em romances como Caminhos Cruzados, ainda na década de 1930.95 A análise deste conjunto de fontes permite levar a uma constatação, que pode ser atenuada, mas não invalidada, quando se consideram os depoimentos presentes nos livros de memórias. As praias do Guaíba, embora sendo um espaço social com vivo uso concreto, possuíam uma baixa correspondência no imaginário da sociedade portoalegrense, apresentando-se como um não espaço, ou seja, um espaço com uso apenas circunstancial, em substituição a outro – que talvez também não fosse o litoral marítimo do estado, mas o Rio de Janeiro ou Punta Del Este. Isto não significa que muitas pessoas não tivessem mantido laços de identidade com esta paisagem da capital gaúcha 95 VERÍSSIMO, Érico. Caminhos cruzados. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Alguns fragmentos: (i) pp. 147-148; o trecho narra um encontro entre os dois protagonistas do romance, Fernanda e Noel: “Ipanema. O rio está tranqüilo e o horizonte é dum verde tênue e aguado que se vai diluindo num azul desbotado. As montanhas ao longe são uma pincelada fraca de violeta. [...] Longe aparece o casario de Pedras Brancas, na encosta dum morro. Mais perto o Morro do Sabiá avança sobre o rio. [...] Calam-se. Uma rapariga loura de maiô vermelho passa por eles a correr descalça; os pés a afundarem na areia. Suas carnes são rijas, suas pernas esbeltas, seus cabelos parecem uma labareda dourada e estão soltos.”; (ii) pp. 193-194: “A baratinha corre pela faixa de cimento que margeia o rio, rumo da Tristeza. Contra o clarão purpúreo e dourado do horizonte se recorta a silhueta negra das montanhas e das ilhas. Redondo e vermelho-bronzeado, o sol vai descendo. O rio capta as cores do céu. [...]... A marcha do carro é macia. A tarde, morna. Chega-lhe às narinas um cheiro fresco de mato. Cartazes anunciam terrenos em praias novas: Guaíba, Espírito Santo, Belém Novo, Ipanema...” 92 ao longo deste período, como foi o caso das comunidades de pescadores, e, ao menos num certo sentido, dos moradores dos bairros da zona sul da cidade, que viviam próximos do lago, os mais afluentes em elegantes residências às suas margens, e que adotavam, muitos deles, um estilo de vida que valorizava o contato com suas águas e praias, na prática de esportes como a vela e a natação. Mas a identificação destas pessoas e segmentos sociais com o Guaíba e suas praias não foi suficientemente forte frente ao conjunto da sociedade local, que dela não se apropriou a ponto de incorporá-la como um traço relevante na formação de uma identidade porto-alegrense mais ampla. Porto Alegre, neste sentido, não se apropriou de sua orla praiana. Cabe comentar, por fim, que o quadro aqui apresentado contrasta fortemente com uma visão nostálgica sobre as praias do Guaíba, expressa através da imprensa local nos últimos anos. Podem ser destacadas, aqui, duas matérias publicadas no jornal Zero Hora. Em 1995, Porto Alegre em três décadas, de Eliane Brum, apresenta uma fotografia de Ipanema com a seguinte legenda: “O Guaíba de antigamente: a praia de Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre, limpa e bem frequentada, em outubro de 1967”. Doze anos depois, Houve uma vez outro verão, de Patrícia Rocha, apresenta na fotografia de capa, duas jovens de biquíni, na mesma praia, com a seguinte legenda: “No point da praia de Ipanema, nos anos 60, um retrato da Porto Alegre ainda romântica”. Ainda nesta mesma matéria, outra cena praiana recebe a seguinte legenda: “1966: A praia de Ipanema, no Guaíba, era point nas décadas passadas.”96 Na realidade, quando se confronta o conteúdo visual (fotografias) e textual destas matérias recentes, com o contexto original a que se referem, se observa que esta visão nostálgica estava bastante distante da realidade da época. O que aparece, de fato, nas matérias originais da Zero Hora e da Folha da Tarde, de 1966 e 1967, são as praias já em crise, com os primeiros sinais da poluição, além do seu abandono pelo poder público, bem como a sua caracterização como “segunda opção” às praias de mar, embora ainda intensamente frequentadas. 2.3. A degradação ambiental das praias de Porto Alegre, na passagem dos anos 1960 para os 1970 Nesta seção abordo, também de uma forma muito breve, a degradação ambiental do Lago Guaíba, e as reações da sociedade local frente a este processo, com base em meu trabalho de conclusão do curso de história na UFRGS, Pobre Guaíba, quem te vê, 96 Ver: (i) BRUM, Eliane. Porto Alegre em três décadas. In: Zero Hora. Porto Alegre, 30 de abril de 1995, Revista ZH, pp. 6-13; (ii) ROCHA, Patrícia. Houve uma vez outro verão. In: Zero Hora. Porto Alegre, 14 de janeiro de 2007, Donna ZH, pp. 7-11. 93 que te viu: A degradação ambiental das praias de Porto Alegre, na passagem dos anos 1960 para os 1970.97 São destacados alguns aspectos deste processo, bem como de suas relações com a evolução urbana da cidade de Porto Alegre. Um primeiro ponto diz respeito à urbanização incompleta e desordenada da orla do Guaíba, especialmente na zona sul da cidade. Em seguida, a poluição crescente das águas, com o crescimento demográfico e econômico desacompanhado de medidas mitigadoras, levando à perda da balneabilidade das praias, com seus primeiros alertas. Um terceiro ponto diz respeito às repercussões deste processo na imprensa local no período, e em depoimentos de alguns porto-alegrenses. Por fim, a emergência das questões ambientais na agenda política regional, com a criação de uma comissão especial sobre o tema na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (ALERGS), no início dos anos 1970. Ao lado da poluição das águas do Guaíba, um dos fatores que tem dificultado uma apropriação efetiva da sua orla por parte da população de Porto Alegre é o seu processo de urbanização, que tem sido, ao longo de muitas décadas, incompleto e desordenado, especialmente no seu lado sul. A ideia, muitas vezes veiculada na imprensa, e inclusive em alguns meios literários e acadêmicos, de que “a cidade está de costas para o seu rio”, embora um tanto simplista, diante de uma realidade bem mais complexa, não pode ser de todo desconsiderada. Mas este distanciamento, que se caracteriza tanto pela escassez de áreas de uso público à beira do lago, quanto pela ocupação de boa parte da orla por propriedades privadas, como clubes e residências, tem suas raízes na evolução histórica da cidade, e também num quase imperativo geográfico, a necessidade de defesa contra grandes enchentes, como as que ocorreram em 1928 e 1941. Uma maneira de entender as especificidades da evolução urbana de Porto Alegre, no que diz respeito à relação dos moradores da cidade com a sua orla, poderia consistir em traçar um paralelo com outras metrópoles em situação semelhante, como o Rio de Janeiro, Montevidéu ou Buenos Aires.98 A capital uruguaia serviria 97 PRESTES, Antonio João Dias. Pobre Guaíba, quem te vê, que te viu: A degradação ambiental das praias de Porto Alegre, na passagem dos anos 1960 para os 1970. Porto Alegre, UFRGS, 2009 (trabalho de conclusão de curso, bacharelado em História), disponível em http://hdl.handle.net/10183/21326, acessado em abril de 2011. 98 Em Buenos Aires, situada às margens do Rio da Prata, como Montevidéu, porém num ponto mais a montante, logo abaixo do delta do rio Paraná, a ocupação da orla diferenciou-se, em muitos aspectos, da que ocorreu na capital uruguaia. Sem a presença de um porto natural, foi necessário realizar uma série de alterações urbanísticas na capital portenha, desde o século 19, isolando os bairros próximos de seu centro das margens do rio, que foram ali aterradas, passando a ser ocupadas apenas por instalações portuárias. Sobre as transformações que ocorreram na orla do Rio da Prata em Buenos Aires, ver: RAPONI, Graciela, BOSELLI, Alberto. Por la memoria visual de la ciudad. Reconstrucciones multimedia de la transformación urbana. In: Seminario de Crítica – Año 2004. Buenos Aires: Instituto de Arte Americano e 94 melhor a este propósito, por sua maior semelhança com Porto Alegre, ambas com um clima parecido, de verões curtos, e sem praias oceânicas, embora o Rio da Prata, em Montevidéu, já tenha águas misturadas com o mar. Mas as semelhanças parariam por aí. Nos anos 1950, Montevidéu, com quase 1,5 milhões de habitantes, era a capital de um país ainda próspero, e um centro de atração turística internacional, ao lado das praias marítimas próximas, como Punta Del Este. Isto talvez ajude a compreender por que em Montevidéu, com suas belas avenidas e parques à beira do Rio da Prata, a apropriação da orla tenha sido muito mais efetiva, e deixado marcas bem mais profundas nos seus moradores, e também nos visitantes, do que em Porto Alegre.99 Esta era, na mesma época, uma cidade muito menor, embora em acelerado crescimento, de expressão apenas regional, e ainda preocupada em encontrar uma solução para o problema das enchentes do Guaíba. Em função dos riscos de enchentes e alagamentos, a expansão da malha urbana de Porto Alegre privilegiou o estabelecimento dos bairros residenciais em partes altas, como o espigão que parte da Rua Duque de Caxias e alcança a Independência e os Moinhos de Vento, e, depois, a colina de Petrópolis, embora o Menino Deus, situado em área baixa ao sul da península tenha sido um dos primeiros bairros elegantes da cidade, desde o final do século XIX. E assim, enquanto a margem norte do Guaíba, lugar de passagem para a região colonial alemã do vale do Sinos, desenvolveu sua vocação industrial e de serviços, a margem sul, a partir da Cidade Baixa, manteve-se como um problema urbanístico a ser resolvido, até, pelo menos, a década de 1950, quando foi concluída a retificação do antigo Riacho, com a criação da Avenida Ipiranga, e iniciado o aterro da enseada da Praia de Belas. Ao longo da primeira metade do século passado, vários planos foram propostos à prefeitura de Porto Alegre para esta área, contemplando obras para proteção contra as cheias, e a implantação de avenidas, parques e praias, mas ela manteve-se apenas como um ponto de ligação, precário, com os balneários da zona sul da cidade, até a conclusão deste aterro, já nos anos 1960, e a instalação, nas décadas seguintes, do Parque Marinha do Brasil e da Avenida Beira-Rio. E também o bairro do Investigaciones Esteticas, Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo, Universidad de Buenos Aires, 2004, disponível em http://www.iaa.fadu.uba.ar/publicaciones/critica/0141.pdf, acessado em abril de 2011. 99 Sobre Montevidéu e a evolução de suas praias urbanas, ver: DA CUNHA, Nelly. El acercamiento turístico en la costa del Uruguay. Entre la imprevisión y los intentos de regulación del espacio. (19001950), disponível em http://eh.net/XIIICongress/cd/papers/4DaCunha124.pdf, acessado em setembro de 2009. As praias do Rio da Prata em Montevidéu foram despoluídas, com a instalação de sistemas de tratamento de esgotos, na década de 2000 (Ver: Monitoreo de Costas de Montevideo, disponível em http://www.gam.org.uy/mcostas.pdf, acessado em outubro de 2009). 95 Cristal, logo ao sul, só foi urbanizado tardiamente, sendo a maior parte de sua área junto à orla destinada ao novo hipódromo, inaugurado no final dos anos 1950.100 A parte da orla mais próxima do centro da cidade, assim, além de não oferecer condições adequadas para o lazer da população, ainda manteve-se como uma restrição ao acesso às praias da zona sul, pela falta de uma avenida mais larga à beira do lago (Figura 8). Isto contribuiu para manter a zona balneária distante dos moradores da cidade, durante todo o período em que suas praias ainda não haviam sido afetadas significativamente pela poluição do Guaíba, a partir dos anos 1960. E a isto se somaram, também, os efeitos do processo de ocupação desordenada da uma grande parte das áreas junto à orla do rio, na região das praias, a partir da Vila Assunção.101 O avanço da urbanização destes bairros, contudo, levou a uma modificação considerável. Era prevista, nos documentos de planejamento urbano do município de Porto Alegre, a construção de uma via pública ao longo de toda esta orla, a Avenida Guaíba, de modo a permitir o acesso livre da população a essas praias. No entanto, esta avenida só foi aberta no seu trecho inicial, até parte da Tristeza, e no final, em Ipanema, além de um pequeno trecho na Vila Conceição, que era conhecido, nos anos 1970, como a “prainha”. Uma boa parte dessas praias permaneceu com acesso privativo, e foi permitida a ocupação das áreas junto ao lago, com residências e clubes, levando a que a faixa de praia ficasse bastante reduzida. Roberto Pellin viu nesta apropriação da orla por particulares uma das causas da decadência das praias: 100 Sobre a evolução urbana de Porto Alegre, ver: SOUZA, Célia Ferraz de, MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua evolução urbana (2ª. Ed.). Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 2007. Sobre os diversos projetos que foram pensados para a orla de Porto Alegre, ver: MACHADO, Andréa Soler. A Borda do Rio: POA – arquiteturas imaginárias como suporte para a construção de um passado Porto Alegre: UFRGS / PPG em História, 2003 (tese de doutorado). Sobre os vários planos para a Praia de Belas, ver: Nem praia nem avenida. In: Revista do Globo. Porto Alegre: 1950, n° 522, pp. 51-52 e 66. A chamada desta matéria dizia: “Na sua bela enseada de Praia de Belas, Pôrto Alegre ainda espera que um belo dia alguém tenha a bela idéia de realizar um projeto que vem dos belos tempos de 1905 para torná-la uma bela cidade.” Com respeito aos planos da prefeitura de Porto Alegre para a ligação do centro da cidade à zona sul, passando pela Praia de Belas e o Cristal, através de uma futura Avenida Beira-Rio, ver: Detalhes das obras necessárias à urbanização da Praia de Belas e saneamento do Menino Deus. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 18 de janeiro de 1951, p. 14. Estas duas reportagens são ilustradas com fotografias que dão uma boa ideia da ocupação ainda precária destas áreas na orla do Guaíba, em plena década de 1950. 101 A ocupação de espaços da orla por particulares era questionada, de tempos em tempos, pelo governo municipal, como pode ser visto em: Prefeitura Municipal – Levantamento de Propriedades na Orla do Guaíba. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 8 de novembro de 1967, p. 9. Diz o texto: “Preocupado com o grande número de propriedades privadas, que estendem a área de seus terrenos até as margens do Guaíba, o prefeito Célio Marques Fernandes oficiou, ontem, ao governador do Estado, solicitando fôssem entregues à administração municipal todos os terrenos de Marinha, situados dentro dos limites do Município de Pôrto Alegre. Pretende o chefe do Executivo municipal pôr têrmo ao uso indevido das margens do Guaíba que devem ser de uso público e destinadas a despertar o interêsse turístico da cidade.” 96 Ainda surgiram problemas com nossas praias fluviais, que nossas autoridades não conseguiram resolver: poluição, implantação de malocas e, mais recentemente, ocupação pura e simples das bocas de ruas que dão acesso às praias: Dr. Mário Totta, Pedra Redonda, Vila 102 Conceição e outras pelo [bairro] Ipanema. Figura 8. Vistas aéreas da orla do Guaíba, com a enseada da Praia de Belas, nos anos 1950 Além disso, ao longo dos anos, o município de Porto Alegre cedeu terrenos na orla do Guaíba, inclusive em áreas de aterros, para vários clubes esportivos, como o Internacional (o complexo do Beira-Rio, na Praia de Belas), o Grêmio (no Cristal), o Iate Clube Guaíba e o Veleiros do Sul (na Vila Assunção), bem como permitiu a construção da ilha artificial onde fica o Clube dos Jangadeiros (na Tristeza), e a instalação de um estaleiro, em área aterrada do lago, na Ponta do Melo. Foi a partir do ano de 1967 que o tema da poluição do Guaíba e de suas praias passou a ser exposto na imprensa. Desde então, foram publicadas várias matérias acerca da crescente contaminação das águas por esgotos domésticos e industriais, e dos riscos que isto trazia para a saúde da população em geral e dos banhistas. No entanto, como lembrou o jornalista Alberto André, em matéria publicada em 1975, já no ano de 1958, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, preocupada com os despejos no Guaíba das 102 PELLIN, Roberto. Revelando a Tristeza. Porto Alegre: Ed. do autor, 1996, Vol. 2, p. 105. 97 fábricas instaladas no bairro Navegantes, havia tentado, sem sucesso, incluir no Código de Obras, uma determinação para que estas instalassem sistemas de tratamento. Os industriais alegaram, então, que o custo destas instalações seria proibitivo.103 No ano de 1962, o professor Amadeu Fagundes de Rocha Freitas apresentou uma tese, para o provimento da cátedra de Higiene de Habitação e Saneamento das Cidades, na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Rio Grande do Sul, O destino dos esgotos de Pôrto Alegre em face da poluição do Guaíba.104 Neste trabalho pioneiro, o seu autor, além de discorrer sobre a poluição dos cursos d’água, separando as naturais das decorrentes da presença humana em grandes aglomerados urbanos, levantou e divulgou os resultados das primeiras medições dos teores de contaminantes nas águas do Guaíba e de seus formadores, e avaliou as alternativas propostas para o sistema de coleta, tratamento e disposição dos esgotos de Porto Alegre. Rocha Freitas apresentou, também, a situação corrente deste sistema, a qual era bastante precária, face ao crescimento acelerado da cidade. A rede de esgotos sanitários (cloacais), que fora instalada nas duas primeiras décadas do século 20, quando a população da capital não chegava a 200 mil pessoas, atendia apenas a uma pequena parte da cidade, deixando de fora bairros importantes, como o Menino Deus, Glória, Teresópolis, Partenon, parte de Petrópolis, São João e Navegantes, e despejava o esgoto sem tratamento (in natura), diretamente no lago, na Ponta do Melo. Nas áreas não atendidas, o conteúdo das fossas sépticas era despejado na rede de esgoto pluvial, e o mesmo acontecia nos pontos em que a rede cloacal ficara sobrecarregada, por falta de investimentos em sua ampliação.105 Sob estas condições, a que se agregava a poluição hídrica gerada pelas indústrias, o resultado das medições realizadas pela equipe de Rocha Freitas, com apoio dos órgãos de saneamento da prefeitura e do estado, no verão de 1961, mostrou um quadro já alarmante, com altos índices de contaminação por coliformes fecais, resultantes do recebimento de esgoto cloacal não tratado, ao longo de grande parte da margem esquerda do Guaíba, especialmente no trecho norte, que recebe 103 ANDRÉ, Alberto. Orla Sul do Guaíba. Turismo e Lazer. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1975, p. 19. O jornalista Alberto André foi também, por várias legislaturas, vereador em Porto Alegre. 104 O professor Rocha Freitas atuou por muitos anos na área de saneamento ambiental, no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 105 FREITAS, Amadeu Fagundes da Rocha. O destino dos esgotos de Pôrto Alegre em face da poluição do Guaíba. Porto Alegre: Ed. da Universidade do Rio Grande do Sul, 1962 (tese para provimento de cátedra na Faculdade de Arquitetura), pp. 18-22. Esta seção do trabalho é ilustrada com fotografias do ponto de despejo do esgoto cloacal, na Ponta do Melo, e do ponto de captação de água bruta, para o abastecimento da zona sul de Porto Alegre, logo a jusante. 98 o rio Gravataí, mas também ao largo do centro da cidade, e ao sul, até a Tristeza, em função da proximidade do ponto de despejo da rede cloacal. Este levantamento indicou, no entanto, que as demais praias da zona sul ainda não estavam poluídas. Mas o professor Rocha Freitas já via, com clareza, as perspectivas bastante sombrias de agravamento do problema nos próximos anos, caso nada fosse feito, e fez a seguinte advertência, em sua conclusão: O Rio Gravataí e os despejos da cidade poluem de maneira grave a margem esquerda do Rio, até a Vila Conceição, prejudicando sua utilização para todos os fins, para abastecimento da população, natação, pesca e finalidades estéticas. Qualquer solução parcial, como: mudança dos pontos de captação das águas de abastecimento, campanha educativa da população, para evitar banhos nas águas poluídas, etc. são meros paliativos, pois aumentando a população e o parque industrial da cidade, dentro de mais alguns anos, a poluição se estenderá às zonas até agora inatingidas. Além disso, tais medidas protegeriam uma das finalidades do rio, ficando as demais, a mercê da poluição. A solução definitiva e radical será pois EVITAR a poluição do rio. Ao avaliar as alternativas que estavam em estudo para a ampliação do sistema de esgotos sanitários de Porto Alegre, o professor Rocha Freitas recomendou, fortemente, a adoção do tratamento dos esgotos, antes de seu lançamento no lago: Conhecemos muitos sanitaristas que são de opinião de que os cursos d’água já poluídos não merecem qualquer recuperação, devendo ser considerados como grandes emissários de esgotos. [...] Somos visceralmente contrários a essa concepção. [...] Estamos com Phelps, o professor emérito da Colúmbia University, quando [...] preconiza, em todos os casos, a preservação da pureza do rio, não admitindo o lançamento de resíduos “in natura”, mesmo que a diluição fosse tal que assegurasse um teor relativamente alto de oxigênio dissolvido. O grande mestre considera a destinação por diluição, como uma nódoa na consciência sanitarista de uma comunidade [...] Somos de opinião que a classificação das massas d’água, por ordem de poluição deve ter como finalidade o estabelecimento da ordem de prioridade nas exigências e providências para a sua recuperação. Quanto mais poluído, maior deve ser o empenho para sua recuperação. Nunca essa classificação deveria servir, como já tem acontecido, para abandonar o curso d’água à sua sorte, como irrecuperável. Ele reprovou a ideia do lançamento dos esgotos in natura, através de um emissário subfluvial, no canal de navegação do Guaíba, a qual viria, mais tarde, a ser implantada pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE). Rocha Freitas não apenas entendia como impróprio o princípio de diluir os contaminantes em lugar de removê-los, mas também acreditava que, devido às suas características de um lago, o Guaíba não teria condições de escoar e diluir este despejo, terminando por devolvê-lo às suas margens, sem eliminar a poluição das praias, no que, foi possível mais tarde comprovar, estava com a razão.106 Ainda de acordo com Alberto 106 Idem, pp. 26-38. Sobre o interceptor subfluvial, o sanitarista afirmou: “Indiscutivelmente êsse receptor viria solucionar uma parte do problema, isto é, a defesa da qualidade da água captada pelas nossas principais instalações de Abastecimento da Cidade. Entretanto, permaneceriam dois graves aspectos do problema: o primeiro, seria a necessidade dêsse esgôto ser lançado sôbre a praia mais próxima, conforme o vento que soprasse, no verão. O segundo, seria o problema da zona sul da cidade que continuaria despejando seus esgôtos no rio, junto à margem esquerda.” (p. 33). 99 André, que abordou este tema em 1975, “sua tese de quarenta páginas se tornou histórica neste tema porto-alegrense.” 107 A disposição de todo tipo de detritos nas águas do Guaíba já era uma questão presente desde os primeiros tempos da cidade. A construção de uma primeira rede de esgotos domésticos foi concluída na administração do intendente José Montaury, em 1912, servindo, então, a quase 80% da população de Porto Alegre, mas o esgoto era lançado no lago in natura, sem qualquer tratamento. A extensão desta rede já era quatro vezes maior no início dos anos 1970, mas cobria apenas 42,3% da população, em constante crescimento, e ainda não havia nenhum tipo de tratamento do esgoto.108 A carga de poluição era ampliada também pelo esgoto doméstico das cidades da região metropolitana, que chegavam ao Guaíba através dos afluentes, como o Rio dos Sinos e o Rio Gravataí, e pelos efluentes líquidos das indústrias situadas na bacia, além do uso de defensivos agrícolas e resíduos sólidos diversos. O déficit crescente no atendimento às necessidades de abastecimento de água e de instalação de esgotos, face ao aumento acelerado na população da cidade, já vinha sendo uma preocupação da administração municipal de Porto Alegre, pelo menos desde o início da década de 1950. Em janeiro de 1951, o prefeito Ildo Meneghetti anunciou um plano de obras que previa, ao lado da construção da Avenida Beira-Rio, ligando o centro da cidade à zona sul, a instalação de uma usina para o tratamento do efluente cloacal da cidade, na Ponta do Melo, o que não foi levado adiante.109 Neste período ainda havia na cidade uma grande carência no abastecimento de água, e, assim, o poder público municipal determinou ao DMAE que priorizasse a solução deste problema, destinando-se, por consequência, a maior parcela dos recursos próprios e os obtidos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), através de um contrato de financiamento assinado em 1964, à ampliação da sua capacidade. Dada a limitação de recursos financeiros disponíveis, uma menor prioridade foi dada, então, ao sistema de esgotos, apesar de sua condição ser igualmente crítica, como visto acima. No ano de 107 108 ANDRÉ, Alberto. Orla Sul do Guaíba: Turismo e Lazer, op. cit., p. 19. Revista Realidade. São Paulo: Abril, n° 74, maio de 1972 (edição especial: “Nossas Cidades”, encarte sobre Porto Alegre). 109 Detalhes das obras necessárias à urbanização da Praia de Belas e saneamento do Menino Deus. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 18 de janeiro de 1951, p. 14 (contracapa). A matéria é ilustrada com uma fotografia panorâmica do Cristal, área então totalmente desocupada, à beira do rio, com a seguinte legenda: “Este é um sugestivo flagrante da futura Avenida Beira-Rio, na parte fronteira ao futuro hipódromo do Cristal, trecho este que, segundo se espera, estará concluído dentro de dois ou três anos no máximo”. A construção da usina de tratamento do efluente cloacal da cidade, na Ponta do Melo, era o último dos sete itens elencados no programa anunciado pelo prefeito Ildo Meneghetti. 100 1966, o DMAE elaborou um Plano Diretor Geral para os Esgotos Sanitários (PGE), o qual previa um aumento substancial na área urbana servida pela rede de esgotos cloacais. O plano foi aprovado pelo BID, no ano de 1967.110 Tendo em conta este cenário restritivo, o PGE não contemplava o envio dos esgotos coletados para uma estação de tratamento, mas o seu lançamento in natura no canal de navegação do Guaíba, através de um emissário subfluvial, a partir da Ponta da Cadeia, na extremidade da península onde está situado o centro da cidade. Este emissário deveria substituir o despejo realizado diretamente no lago, junto à Ponta do Melo, e os dirigentes do DMAE colocaram para a comunidade sua expectativa que seria possível a diluição deste material não tratado, no curso do Guaíba e, através deste, na Laguna dos Patos, de modo a não comprometer o abastecimento de água para Porto Alegre, e, também, a balneabilidade das praias da zona sul da cidade. Esta posição não impediu, no entanto, que o diretor técnico do DMAE, Rubem Noronha, quando questionado sobre a eficácia das medidas previstas no PGE, em reportagem da Folha da Tarde, em 1967, afirmasse que a poluição do Guaíba não era devida apenas ao esgoto lançado na Ponta do Melo, uma vez que não era somente aquela região que estava contaminada, mas todo o lago (Figura 9). E que o problema fugia da alçada do DMAE, uma vez que, segundo ele: [...] o problema da poluição do Guaíba é de cunho estadual, e foge da nossa parte. As águas do Guaíba estão envenenadas de ponta a ponta, e não apenas na Ponta do Melo. Nossa parte estamos salvaguardando, procurando através da construção de obras para o futuro sanar as deficiências. [...] Muita coisa ainda existe por fazer. Principalmente no relativo a esgotos, pois em parte do Partenon e de São João-Navegantes não existem esgotos e apenas fossas. Mas isto são obras para um futuro mais distante para cuja 111 execução seria necessário um empréstimo do BID maior do que o atual. No ano de 1970, o DMAE criou um grupo de trabalho com o objetivo de estudar a poluição do Guaíba, o Grupo de Trabalho de Controle da Poluição (GPOL) que posteriormente deu lugar ao Centro de Estudos de Saneamento Básico (CESB). Em novembro de 1971, os resultados de uma primeira avaliação da qualidade das águas deste lago e de seus principais formadores foram apresentados pelo DMAE, durante o 17° Congresso Brasileiro de Química, realizado em Porto Alegre. Os seus técnicos asseguraram que a água do lago ainda era adequada para o abastecimento da população, 110 Ver: BID aprovou o plano do DMAE para esgotos. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 14 de outubro de 1967, p. 7. Conforme a matéria, o plano previa um investimento de 2 milhões de dólares, de um total de 6,7 milhões de dólares a serem financiados pelo BID, para os sistemas de águas e esgoto de Porto Alegre. 111 Esgôto da cidade será lançado após o canal de navegação. In: Folha da Tarde. Porto Alegre, 6 de dezembro de 1967, p. 21. A matéria era ilustrada com uma fotografia do ponto de despejos do esgoto cloacal não tratado, na Ponta do Melo, com a seguinte legenda: “O DMAE também acha uma ‘nojeira’ o esgoto sair assim, ali na Ponta do Melo, e pretende instalar outra saída, na Ponta da Cadeia, mas com tubos de aço, e além do canal de navegação, sob as águas do Guaíba.” 101 após o devido tratamento, mas alertaram para os impactos, no futuro próximo, da poluição gerada pelo crescente despejo de efluentes não tratados das diversas indústrias da região metropolitana de Porto Alegre. As condições de balneabilidade das praias não foram então discutidas.112 E a poluição do Guaíba e de seus afluentes no entorno de Porto Alegre, não apenas pelos esgotos domésticos e efluentes industriais não tratados, mas também pelos efeitos do uso até então indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras da região produtora de sua grande bacia hidrográfica, também trouxe graves prejuízos à atividade dos pescadores da região das ilhas do Delta do Jacuí. A redução da quantidade de peixes no rio, neste período, já estava levando estes pescadores à busca de alternativas para a obtenção de renda.113 Figura 9. A poluição do Guaíba pelo esgoto doméstico in natura da cidade, nos anos 1960 112 Para o DMAE, poluição do Guaíba ainda não preocupa. In: Folha da Tarde. Porto Alegre, 26 de novembro de 1971, pp. 20-21. 113 Peixe acabou e pescadores querem uma nova profissão. In: Folha da Tarde. Porto Alegre, 16 de novembro de 1973, pp. 20-21. A matéria mostra os esforços de organização da comunidade de pescadores da Ilha Grande dos Marinheiros, através de sua associação, a SADI. 102 Em 1973, seis anos depois das primeiras notícias na imprensa, o processo que levou à degradação das águas do Guaíba em quase toda a orla urbana de Porto Alegre já está praticamente completo. Um ano antes, a instalação da fábrica de celulose da companhia norueguesa Borregaard, em Guaíba, em frente às praias da zona sul, representou, simbolicamente, uma espécie de golpe de misericórdia nesta opção de lazer e convivência dos porto-alegrenses, embora fosse bem claro que a causa maior da poluição ainda fosse o despejo do esgoto sanitário não tratado. Em setembro de 1973, foi inaugurada a autoestrada ligando Porto Alegre a Osório, no litoral norte, a chamada freeway. Com esta rodovia, o tempo de viagem às praias, que chegava a alcançar três horas na velha e estreita estrada estadual que passava por Gravataí e Santo Antonio da Patrulha, ficava reduzido, em dias normais, a menos de duas horas, um pouco mais nos engarrafamentos dos fins de semana do verão e de feriados prolongados. Em novembro deste ano, considerando a alta contaminação de suas águas por coliformes fecais, o secretário de saúde do estado do Rio Grande do Sul, Jair Soares, determina a interdição de grande parte das praias do Guaíba em Porto Alegre, e a colocação de placas de advertência (Figura 10).114 No ano de 1975, o DMAE concluiu a instalação do emissário subfluvial para o despejo da maior parte do esgoto cloacal não tratado de Porto Alegre no canal de navegação do Guaíba, a partir da Ponta da Cadeia, uma das principais obras do seu PGE, ao lado da ampliação da rede sanitária e de adutoras e estações de bombeamento.115 As praias continuaram poluídas, e as placas de advertência colocadas em 1973, geralmente com o seguinte texto: “Perigo. Praia Poluída. Recomenda-se não tomar banho neste local.”, não foram retiradas da maior parte destes balneários, desde então. O processo que acabou levando à necessidade de interdição das praias do Guaíba foi registrado com uma boa riqueza de detalhes pelos jornais de Porto Alegre, nas décadas de 1960 e 1970. Mas o exame do seu conteúdo indica que, na sua maior parte, e em todos os veículos pesquisados (Correio do Povo, Folha da Tarde e Zero Hora), o noticiário sobre a crescente contaminação das águas do lago não vinha acompanhado de uma cobrança mais enérgica de medidas aos poderes públicos. Um bom exemplo da 114 Ver: (i) Banho no Guaíba pode dar hepatite infecciosa. In: Zero Hora. Porto Alegre, 20 de novembro de 1973, capa e p. 11; (ii) Saúde vai dizer onde não se pode tomar banho no Guaíba. In: Folha da Tarde. Porto Alegre, 23 de novembro de 1973, p. 19. 115 PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE – DEPARTAMENTO MUNICIPAL DE ÁGUA E ESGOTOS. Histórico dos sistemas de água e esgotos da cidade de Porto Alegre- 1779 a 1981. Porto Alegre, 1981, p. 74. E também: Speggiorin, 1999, pp. 102-103. 103 relativa indiferença e conformismo com que este processo foi retratado na imprensa gaúcha da época pode ser vista na cobertura que foi dada à decisão da Secretaria Estadual de Saúde de interditar para o banho grande parte das praias do Guaíba em Porto Alegre, em novembro de 1973. Na ocasião, esta notícia não foi acompanhada de qualquer manifestação em editorial, e, embora presente na capa de Zero Hora, teve um destaque mínimo, em comparação com as outras manchetes, relativas ao início da cobrança de pedágio na autoestrada para o litoral norte e à possibilidade de fechamento da Borregaard. Apenas a Folha da Tarde ilustrou a sua matéria com as placas que seriam colocadas nas praias. Por vezes, de todo modo, estes órgãos da imprensa local veiculavam algumas críticas mais contundentes aos poderes públicos, como o questionamento à eficácia da instalação do emissário da Ponta da Cadeia, feito pelo cronista Ney Gastal, do Correio do Povo, em 1975: Já o diretor do DMAE [...] andou declarando que o esgoto cloacal da ponta da cadeia não vai poluir o rio, porque lançará “apenas” o detrito de 270 mil pessoas, enquanto que o rio pode suportar uma carga muito maior. Ora, sr. Diretor, não nos faça rir. O pobre Guaíba está tão poluído que qualquer ano destes a imagem de Nossa Senhora vai se recusar a entrar no barco para a procissão. Não se deveria mais estar discutindo se o rio deve ou não receber uma nova carga de poluição. Dever-se-ia, isto sim, discutir qual a carga de poluentes que é preciso tirar do rio e colocar noutro lugar. Ou dar um tratamento. [...] O sr. já deu uma olhada na cor deste Guaíba, que alguns historiadores de prestígio afirmam já ter sido limpo? Não? Então dê, sr. Diretor. É uma cor feia, uma cor suja, uma cor fedorenta. [...] o sr. já imaginou a quantidade de, como dizer? ... detritos, que 270 mil pessoas podem lançar num dia. É um monte, sr. Diretor, e o sr. pretende jogar tudo dentro do rio e afirma que não vai 116 poluir. Muitos porto-alegrenses associam o abandono das praias do Guaíba não apenas à sua poluição, mas também à maior facilidade de acesso ao litoral marítimo, por estradas asfaltadas, que culminou com a inauguração da freeway. Os jornais do período registram, de fato, que a inauguração desta rodovia aumentou enormemente o afluxo de pessoas para o litoral norte do estado, em especial para Tramandaí, a praia de mar mais próxima. Esta opinião é compartilhada tanto pelos mais jovens, quanto pelos que chegaram a desfrutar das praias ainda não poluídas. Entre estes últimos, alguns depoimentos podem ser vistos em Belém Novo (Memória dos Bairros), como segue:117 116 GASTAL, Ney. Coisas da Cidade Grande (coluna). In: Correio do Povo. Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1975, p. 13. O autor, também crítico de cinema, logo viria a se engajar no movimento ambientalista. Nesta mesma edição do Correio do Povo, o projeto do emissário subfluvial também foi questionado por Alberto André (op. cit., p. 19): “Comentou-se não se conhecer a fundo entre nós a hidrologia do Guaíba. Portanto, se era certo conduzir os esgotos cloacais da Ponta do Melo e do Arroio Dilúvio para um emissário, limpando a margem esquerda, seu lançamento no canal, sem tratamento, a 700 metros da ponta da Cadeia, poderia devolvê-los à origem. É o que está sendo discutido, pois a inauguração está programada para março.” 117 CRUZ, Cassius Marcelus, FERNANDEZ, Érico Pinheiro e GOMES, Rodrigo de Aguiar, op. cit., pp. 70 e 113-114. 104 O progresso, entre aspas, começou a chegar aqui e o lugar a se deteriorar no fim da década de cinqüenta, no início da década de sessenta, quando se teve a facilidade de acesso às praias de mar e aqui se esvaziou como balneário [...] Aí houve a poluição de todo o estuário. [...] (Paulo Pacheco, médico veterinário) Olha, isso dura até a construção da Freeway. Houve essas facilidades na condição de ir para o mar. [...] As pessoas que tinham o seu carro... de Porto Alegre a Tramandaí leva uma hora. Cidreira também. Então isso facilitou a que, no verão, as pessoas procurassem o mar. Isso foi aí por sessenta, setenta. Mas, ainda assim, as pessoas que não tinham condições de chegar ao litoral continuaram freqüentando. (Julieta Poletto, comerciante) Figura 10. Placas de advertências sobre a poluição das praias de Porto Alegre, presentes desde o início dos anos 1970 Esta era também a opinião de Roberto Pellin, em Revelando a Tristeza: 118 Hoje, com as estradas bem pavimentadas e os meios de locomoção modernizados, gastamos, para atingir o mar, o mesmo tempo que no início do século se gastava para vir da cidade até aqui. Além do mar ser mais agradável, ainda surgiram problemas com as nossas praias, que as autoridades não conseguiram resolver: poluição. A poluição das praias, por sua vez, foi diretamente associada, por muitas pessoas, à chegada da Borregaard, como pode ser visto em alguns depoimentos sobre Belém Novo:119 Aí começou a poluição. Até o pessoal fez almoços aí, chamou candidatos a prefeito para reclamar da poluição. Aí mandavam plantar junco aqui, que o junco ia tirar a 118 119 PELLIN, Roberto, op. cit., Vol. 2, p. 105. . CRUZ, Cassius Marcelus, FERNANDEZ, Érico Pinheiro e GOMES, Rodrigo de Aguiar, op. cit., pp. 114-115. 105 poluição da Borregaard, e isso terminou com a praia todinha. A praia de Belém tomada de junco, e agora? [...] Tinha cheiro que vinha da Borregaard. (Noraci Martins Pinto, dona de casa) A praia era limpa, a gente ocupava lá. [...] A Educação Física, nos primeiros anos do Colégio Glicério Alves, proporcionava natação no Rio Guaíba. Era despoluído, completamente diferente. A gente pescava no rio e dava peixe. Depois, com o advento da Borregaard, parte da pescaria terminou. Existia um movimento muito grande dos veranistas que vinham do centro para acampar na praia do Veludo. [...] Digamos assim: a criação da Borregaard foi um golpe de misericórdia no rio Guaíba, no final dos anos sessenta. (Camilo Hartmann, professor do Colégio Glicério Alves [A Escola Estadual de 1° e 2° Graus Glicério Alves fica próxima ao centro do bairro de Belém Novo]) E o contraste entre o tempo em que o Guaíba tinha praias limpas e boa pesca e a sua condição degradada podia ser visto em depoimentos de moradores de Belém Novo a um programa de televisão, no ano de 1987:120 [Há quarenta anos,] toda praia era areia, não tinha este capim que nós vimos hoje aí. Qualquer ponto que o senhor chegasse era praia de banho. Água limpa. Se podia entrar com a água na cintura e enxergar onde é que estavam os seus pés. Hoje nós temos esta praia assim, nestas condições (Homero Ferreira, morador há mais de quarenta anos no bairro) [Há trinta anos,] dava peixe gordo, bagre de até 18 quilos. Depois, dessa época para cá, começou a diminuir. O bagre não entrou mais. Alguma tainha que vinha aí, já vinha meio doente. Peixe que tem se pego aqui é peixe com gosto de óleo. Basta ver essa poluição, essa espuma. [...] O rio Guaíba ainda representa a vida, tudo. Um modo de vida que a gente até sente saudade. De 15, 20 anos atrás, que era tudo saudável, não é? (Jaci Ferreira, pescador há trinta anos). A instalação da Borregaard fazia parte do esforço em busca do crescimento econômico, nos anos do regime militar, e foi viabilizada por vários incentivos concedidos pelos governos federal e estadual. Localizada em Guaíba, às margens do lago, em frente à zona sul de Porto Alegre, a fábrica começou a operar em março de 1972. Sem dispositivos adequados para o tratamento de seus resíduos, logo a poluição causada pelo lançamento de um licor negro nas águas do lago, e, mais ainda, pelo mau cheiro de suas emissões de gases sulfúricos, se tornaria extremamente desagradável, causando grande revolta na população em geral. Entre as pessoas influentes que tiveram seus interesses afetados estava o empresário Breno Caldas, do grupo Caldas Júnior (Correio do Povo, Rádio Guaíba), pois era proprietário de um grande haras, às margens do lago, em Belém Novo. Este quadro acabaria levando o governo do estado, frente a uma campanha conduzida pela imprensa, e embasada pelos argumentos dos ambientalistas, a forçar a empresa, inclusive por meio de sua interdição temporária, a instalar os equipamentos necessários para o controle da poluição.121 A entrada desta 120 121 Porto que te quero alegre. RBS-TV. Porto Alegre, março de 1987. DREYER, Lilian. Borregaard: um marco da luta ambiental no Rio Grande do Sul, disponível em: http://www.agenda21empresarial.com.br/web213/Library/!BORREGAARDUmMarcodaLutaAmbientalnoRioGrandedoSul-LilianDreyer.pdf, acessado em outubro de 2009; PEREIRA, Elenita M. A voz da primavera: As reivindicações do movimento ambientalista gaúcho (1971- 106 fábrica em operação, devido a seus fortes impactos, acabou servindo como uma espécie de catalisador, que ajudou a despertar a preocupação de uma parte significativa da sociedade gaúcha para a questão ambiental, em pleno período da ditadura civil-militar e de sua política desenvolvimentista. Ainda em 1972, a ALERGS instalou uma Comissão Parlamentar Especial (CPE) para estudar os problemas da poluição e do meio ambiente.122 Nas sessões de abertura desta CPE, o ambientalista José Lutzenberger fez uma longa explanação sobre a ecologia como “ciência da sobrevivência”, quando discorreu sobre os efeitos do modelo econômico vigente, que privilegiava o lucro e os resultados de curto prazo, à custa da preservação do meio ambiente. O ambientalista mostrou então, com realismo, que as conseqüências da destruição ambiental, apesar de terminarem por se distribuir entre todos, não eram percebidas como tão ameaçadoras quanto a perda de empregos que um maior controle da poluição poderia trazer: Infelizmente há um aspecto funesto, insidioso, no preço da tecnologia moderna. [...] Aquele que usufrui das vantagens em geral não é quem paga o preço. [...] As vantagens financeiras da destruição de um rio são imediatas para os donos das fábricas; aqueles que pagam o preço pagam pouco a pouco; muitas vezes nem se dão conta do que está acontecendo. [...] Sem poluição os mil empregados da grande fábrica perderiam logo seu emprego. O protesto seria grande. Com poluição os dez mil pescadores se retiram pouco a pouco. Nem protestam. As centenas de milhares de banhistas, inicialmente, procuram novas praias, até que não haja mais praias em lugar nenhum. Na mais perfeita das democracias ainda não se inventou o voto para as gerações futuras. Mas são elas 123 que pagarão o elevado preço de nossa imprevidência. A poluição hídrica foi um dos principais tópicos abordados na CPE. Uma das sessões dedicadas a este tema referiu-se, especificamente, ao problema da poluição do Guaíba causada pelo lançamento do esgoto cloacal não tratado de Porto Alegre e região, 1980). In: Revista Historiar, Ano I, Ed. 01, 2008, disponível em http://www.revistahistoriar.com/files/a_voz_da_primavera_as_reivindicacoes_do_movimento_.pdf, acessado em outubro de 2009, pp. 19-21. Sobre a poluição das águas do Guaíba pelos despejos da Borregaard, ver: Borregaard. Depois do cheiro a poluição do rio. In: Folha da Tarde. Porto Alegre, 20 de novembro de 1973, p. 9. Nesta matéria, o deputado estadual oposicionista Moisés Velásquez cobrava medidas para que a empresa deixasse de despejar a lixívia negra no rio, ponto que, segundo ele, não estaria contemplado entre as exigências feitas pela secretaria estadual de saúde para que a fábrica não fosse interditada. 122 RIO GRANDE DO SUL. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Poluição e desenvolvimento. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1972, 562 p. Anais da Comissão Parlamentar Especial que estudou os problemas da poluição e do meio ambiente. Presidida pelo deputado Hugo Mardini, do partido governista ARENA, e integrada por mais quatro deputados, esta comissão trabalhou durante um ano, abordando uma vasta gama de assuntos, desde o saneamento básico até a saúde no trabalho, passando pela poluição gerada pelas indústrias e pelo uso dos agrotóxicos. Tendo na sua assessoria um grupo de especialistas que contava, entre outros, com o ambientalista José Lutzenberger, e com depoimentos de vários integrantes dos governos federal, estadual e do município, além de especialistas e gestores de outros estados e do exterior, o seu relatório final, um documento com 562 páginas, é uma fonte muito interessante acerca da temática ambiental na época. 123 LUTZENBERGER, José. Ecologia como ciência da sobrevivência. In: Idem, pp. 41-42 (explanação realizada em 30 de maio de 1972). 107 e aos planos do DMAE para a sua solução. Nesta ocasião, o seu diretor geral, engenheiro Alfredo Cestari, alertou para as ameaças ao abastecimento de água, num futuro próximo, caso não fossem tomadas medidas para o controle e tratamento dos esgotos domésticos e industriais no Guaíba e afluentes. No início de seu depoimento, Cestari afirmou que a poluição do lago ainda não era tão grande quanto se imaginava, mas atribuiu isto, exclusivamente, à sua grande capacidade de diluição dos despejos, e destacou a inexistência de maiores cuidados, até então, com a preservação do meio ambiente, ao afirmar que: O que nos salva, aqui em Porto Alegre, é que o rio Guaíba é formado por vários rios, que tem um volume de água muito grande. [...] Então, o que nos salva – digo-o de novo – não são os nossos cuidados, porque, para dizer a verdade, nunca tivemos cuidados com a poluição. Nunca houve uma preocupação maior em evitar que o esgoto seja todo despejado no rio. Nem nós, nem os que nos antecederam. O diretor geral confirmou o plano do DMAE quanto ao envio do esgoto doméstico da cidade, in natura, para o canal de navegação do Guaíba, através de um emissário subfluvial, mas assegurou que todo o volume adicional de esgoto só seria enviado ao lago após tratamento. E no prosseguimento dos trabalhos da CPE, quando questionado pelo presidente da comissão, a respeito das razões pelas quais não estava prevista, no plano de curto prazo do DMAE, o tratamento do esgoto cloacal, o diretor Cestari alegou a inviabilidade financeira de conduzir simultaneamente a ampliação da rede de esgotos e a instalação de sistemas de tratamento. No seu relatório final, a CPE concluiu que “o Guaíba em muitas regiões ultrapassa o padrão normal, com um índice de poluição muito superior ao que as recomendações da OMS [Organização Mundial da Saúde] toleram”, e que “um banho no Guaíba pode abrir caminho para dezenas de doenças, provocadas pela ingestão da água ou pelo simples contato.” Entre as suas recomendações, estava a criação de um órgão governamental com a função específica de centralizar os programas de pesquisa e controle da poluição ambiental.124 Em junho de 1973, em função das conclusões e recomendações desta CPE, a ALERGS emitiu um decreto legislativo, aprovando a realização de um convênio entre o Governo do Estado e o Ministério da Marinha, para a realização de estudos e trabalhos necessários ao controle e combate à poluição das águas do Guaíba e de suas bacias contribuintes. Foi a primeira iniciativa governamental tomada a este respeito. Mas foi apenas em 1975 que a 124 RIO GRANDE DO SUL. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Poluição e desenvolvimento. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1972, op. cit., p. 560 (OMS: Organização Mundial da Saúde, vinculada à ONU). O relatório da CPE sobre poluição e meio ambiente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul foi divulgado para a imprensa em 26 de junho de 1973. Ver: Poluição: Mardini quer um instituto especializado. In: Folha da Tarde. Porto Alegre, 27 de junho de 1973, p. 25. 108 Câmara de Vereadores de Porto Alegre (CMPA) questionou a eficácia da instalação do emissário subfluvial de esgoto não tratado, pelo DMAE, por meio de um parecer de sua Comissão de Serviços e Obras Públicas, sugerindo ao Ministério do Interior e à Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) que avocassem para si a competência sobre este projeto. Tomando em consideração as fontes aqui consultadas, a necessidade de interdição das praias, a partir de 1973, não parece ter sido percebida pelos portoalegrenses como um problema tão grave como o da poluição gerada pela fábrica de celulose da Borregaard, que trazia transtornos para toda a cidade, com seus gases malcheirosos. A poluição do lago e de suas praias, devida principalmente ao lançamento dos esgotos domésticos da cidade de Porto Alegre em seu canal de navegação, sem nenhum tratamento, foi motivo de protestos e críticas de setores isolados, como de alguns ativistas e simpatizantes do movimento ambientalista. A questão da Borregaard dominava esta parte da agenda política, compreensivelmente, e, ao lado disso, a imprensa dava um grande destaque à recém inaugurada autoestrada para o litoral, a freeway. No âmbito municipal, o DMAE, órgão responsável pela gestão dos recursos hídricos, embora já ciente da extensão do problema, através do monitoramento da poluição do lago, via-se limitado frente a uma tarefa muito superior aos recursos de que dispunha, e que só poderia ser enfrentada em conjunto com o governo do estado. De todo modo, a conjuntura política da época não permitiu que houvesse uma discussão aprofundada com respeito à instalação do emissário subfluvial, anunciado pela prefeitura municipal, através do DMAE, como solução do problema. Ainda considerando estas fontes, o que ficou registrado na memória de muitos portoalegrenses, com respeito aos anos 1970, parece ter sido não tanto um sentimento de perda, por não mais poderem se banhar nas praias do Guaíba, mas, antes, o da celebração de uma vitória sobre a fábrica poluidora, que teve de instalar sistemas de tratamento, frente à pressão da sociedade, amplificada pela imprensa. 109 CAPÍTULO 3. ANOS 1980: AS POLÍTICAS PARA O SANEAMENTO BÁSICO NO PERÍODO DA DITADURA, O AMBIENTALISMO GAÚCHO E O “PROJETO RIO GUAÍBA” No capítulo anterior procurei avaliar as interações existentes entre os moradores de Porto Alegre e a orla do Lago Guaíba, entre os anos 1940 e o início da década de 1970, período de maior crescimento da cidade, enfocando aspectos como a formação dos balneários, as memórias e as representações sobre estas praias, quando ainda limpas, e o tratamento urbanístico dado a esta orla. A partir de meados dos anos 1960, os efeitos do explosivo crescimento populacional da capital gaúcha e de sua região metropolitana, bem como das atividades econômicas, que não foram acompanhados por medidas como a expansão da coleta e tratamento de esgotos e o controle da poluição gerada pelas indústrias e pela agropecuária, se fizeram sentir com intensidade. Eles resultaram na degradação ambiental da maior parte dos rios da bacia do Guaíba, em especial o dos Sinos e o Gravataí, e também da margem esquerda do lago, que banha a cidade de Porto Alegre, prejudicando a pesca e tornando as suas praias impróprias para o banho. Neste capítulo procuro identificar e avaliar as primeiras reações no âmbito da sociedade e dos governos locais frente a esta nova situação, no período que correspondeu, grosso modo, aos anos 1980. São abordados aspectos como o modelo adotado para o setor de saneamento básico no período da ditadura civil-militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, as disputas pelo controle deste setor entre a prefeitura da capital, por meio da autarquia responsável por estes serviços, o Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE), e o estado do Rio Grande do Sul, através da sua empresa de saneamento, a Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN). Estas ocorreram no momento em que foi lançada a primeira iniciativa governamental visando à despoluição do lago, o “Projeto Rio Guaíba”, já no contexto da crise econômica e do esgotamento desse modelo, no início dos anos 1980. São vistos os resultados obtidos com este projeto, assim como os questionamentos que foram feitos às alternativas propostas no mesmo, tanto por parte dos responsáveis pela gestão do DMAE quanto de integrantes do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul. 110 3.1. As políticas para o saneamento básico no Brasil durante o período da ditadura civil-militar O Brasil atravessou um intenso processo de expansão demográfica, urbanização e crescimento econômico, no período que se inicia em meados dos anos 1950, com a implantação de um modelo baseado na instalação de indústrias de bens de consumo duráveis, para substituição de importações, e da produção de insumos básicos, como petroquímicos, combustíveis, fertilizantes e aço, e na expansão das fronteiras agrícolas. Este modelo se consolida no período da ditadura civil-miltar de 1964, mas começa a perder seu dinamismo a partir de meados da década de 1970, e termina por se esgotar com o cenário de elevado endividamento público, inflação acelerada e baixo crescimento econômico, que caracterizou a década seguinte, ao lado da superação deste regime e do início do processo de redemocratização política do país, em 1985. 125 É também durante este período de cerca de três décadas que ocorreram importantes transformações no sentido da institucionalização de um modelo para o setor de saneamento básico no Brasil, através do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), fortemente baseado na centralização dos recursos em mãos da União, por meio de seu agente financeiro, o Banco Nacional da Habitação (BNH), e direcionando a implantação e expansão dos serviços para as companhias estaduais de saneamento básico, empresas de economia mista sob controle dos estados, em detrimento dos serviços ou departamentos geridos pelos municípios, embora estes mantivessem a titularidade das concessões, a partir da vigência da Constituição Federal de 1934. Este sistema, que conseguiu atender a parte de suas metas durante o período de crescimento econômico acelerado da economia, como nos anos do “milagre” brasileiro, no início da década de 1970, entrou em crise com o esgotamento do modelo econômico, levando à sua virtual paralisia, na esteira da extinção do BNH, em 1986.126 125 Com respeito ao período de consolidação do modelo econômico instaurado sob a ditadura civil-militar, ver: PRADO, Luiz Carlos Delorme, EARP, Fábio Sá. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973) In: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano, Volume 4 (O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 207-242. Com respeito ao período de crise da ditadura civil-militar e esgotamento deste modelo econômico, ver: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985 In: Idem, pp. 243-282. 126 Sobre a fase inicial de institucionalização deste modelo, entre o início dos anos 1950 e o final dos anos 1960, quando, na vigência da ditadura civil-militar, o BNH assume o papel de principal agente executor da política nacional de saneamento, ver: REZENDE, Sonaly Cristina, HELLER, Léo. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, pp. 231-251. Com respeito ao período de funcionamento pleno deste modelo centralizador para o saneamento básico no Brasil, entre o início dos anos 1970, com o lançamento do PLANASA, e o seu declínio, a partir de meados dos anos 111 Os movimentos iniciais para a constituição deste novo modelo para o setor de saneamento básico no Brasil ocorreram a partir dos anos 1950, no período dos governos que sucederam a ditadura varguista do Estado Novo, deposta em 1945. Estes movimentos podem ser caracterizados, em linhas gerais, pela busca de uma maior autonomia para o setor de saneamento, frente às limitações decorrentes da ingerência direta dos governos, em suas várias instâncias, na gestão das entidades responsáveis pela prestação destes serviços, até então vinculadas, em sua maior parte, às estruturas de administração direta, sob forma de secretarias, divisões ou organismos similares, sem autonomia administrativa e financeira. De acordo com Rezende e Heller, já a partir de finais dos anos 1940, começaram a surgir as críticas ao modelo de gestão de administração direta, em função de sua centralização burocrática, que limitava as ações e as tornava morosas, além do que os serviços de saneamento geridos pela administração não possuíam independência tarifária, dependiam de recursos externos para seu financiamento, e eram mais suscetíveis a influências clientelísticas e “fisiológicas”. Esta inadequação passou a se tornar mais grave frente ao novo contexto de crescimento industrial e urbanização acelerada, que tornavam mais urgentes os investimentos em saneamento. Em função deste quadro, buscou-se, como solução, a criação de estruturas de serviços dotadas de autonomia administrativa e financeira, através da figura jurídica das autarquias, controladas diretamente pelos municípios, sem vinculação às suas estruturas de administração direta. A tendência no sentido da criação de estruturas dotadas de maior autonomia administrativa ficou reforçada, num primeiro momento, a partir das discussões realizadas no II Congresso Nacional de Municípios Brasileiros, em 1952, onde foram lançadas as bases para o Primeiro Plano Nacional para Abastecimento de Água, quando foram levantadas a ineficiência da pulverização dos recursos e a dificuldade de seu retorno econômico, na falta de políticas de autossuficiência tarifária. Ainda nos 1950, começam a ser criadas as sociedades de economia mista para os serviços de saneamento básico, vinculadas às prefeituras municipais, e a partir da década seguinte a liberação de empréstimos ao setor, pelo BID passou a ser condicionada à transferência da concessão destes serviços para este tipo de empresas estatais, ou para autarquias. Estas organizações eram avaliadas por este banco de 1980, no contexto da crise econômica enfrentada pelo país e do esgotamento da capacidade financeira do Estado brasileiro, ver: Idem, pp. 253-284, e também: ARRETCHE, Marta Teresa da Silva. O processo de descentralização das políticas sociais no Brasil e seus determinantes. Campinas, SP: PPG Ciência Política UNICAMP, 1998 (tese de doutorado), pp. 70-84. 112 fomento como mais capacitadas para a administração dos custos, enquanto dotadas de autonomia tarifária, e com melhores condições técnico-administrativas de realizar a implantação, ampliação e operação de sistemas de saneamento. Foi dentro deste contexto que se deu a passagem do setor de serviços de saneamento básico no município de Porto Alegre da administração direta para uma autarquia, com a criação do DMAE, em 1961, e, já sob o regime da ditadura civil-miltar, em 1966, a criação da CORSAN, uma sociedade de economia mista controlada pelo estado do Rio Grande do Sul, com o propósito de implantar e operar estes serviços no âmbito estadual.127 O processo de constituição deste modelo para o setor de saneamento básico adquire um novo impulso, e assume um viés centralizador, com a implantação da ditadura civil-militar, e de seus governos de perfil autoritário, a partir do golpe militar de 1964. Cabe lembrar que o novo regime aliava a seus traços conservadores e de autoritarismo político um caráter marcadamente intervencionista nas políticas econômicas, no que não deixou de representar uma continuidade com os governos do período anterior, desde Getúlio Vargas, embora com diferenças em muitos pontos, cuja análise deve ficar fora da presente discussão. São vistos a seguir os marcos principais para a consolidação deste novo modelo para o saneamento básico, da mudança do regime aos primeiros anos da década de 1970. Logo no início do novo regime, em seu Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), com vigência entre 1964 e 1966, o governo federal incorpora como uma prioridade a expansão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, estabelecendo como meta, em 10 anos, atender 70% da população urbana com água tratada, e 30% com coleta de esgotos. Estas metas foram reformuladas e ampliadas no Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social, de 1966, e no Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), elaborado em 1967, com vigência entre 1968 e 1970, e que lançou diretrizes de governo recomendando a criação de um Fundo 127 A assembleia de constituição da CORSAN foi realizada em março de 1966, sendo precedida pela publicação da Lei nº 5.167, de dezembro de 1965, e do Decreto nº 17.788, de fevereiro de 1966, que autorizavam e regulamentavam a entrada em funcionamento da nova empresa. (Ver: BARROS FILHO, Omar L. de. CORSAN, 40 anos. Dos pioneiros ao século XXI: histórias do tempo das águas. In: BARROS FILHO, Omar L. de, BOJUNGA, Sylvia (orgs.). Tempo das Águas. Porto Alegre: Laser Press Comunicação, 2006, disponível em http://www.lasercom.jor.br/tempo_aguas/09_corsan.htm, acessado em dezembro de 2011, p. 2). No ano de 1966, o Estado do Rio Grande do Sul, que apresentava o seguinte cenário, na área de saneamento: 6.650.000 habitantes (população urbana e rural); 234 municípios, com uma população urbana de 3.150.300 habitantes em suas sedes; dos 112 municípios com serviços de abastecimento de água, apenas 64 apresentavam tratamento completo, o equivalente a 48,2%; do total, apenas 19 sedes municipais (8%) eram beneficiárias de rede de esgoto sanitário. (Ver: Idem, p. 11). 113 Nacional de Saneamento, dentro de uma abordagem que procurava seguir os critérios de economicidade dos investimentos e de sua operação, por meio de autonomia tarifária, como definidos pelos organismos externos de fomento, como o BID, criado em 1961, como um dos instrumentos de apoio e intervenção dos Estados Unidos sobre as economias latino-americanas, no contexto da Guerra Fria. Em 1967, é criado o BNH, o qual tinha como seus objetivos promover e controlar as políticas de investimento nas áreas de habitação e de saneamento, sendo o seu principal agente financeiro, contando, para tanto, com os recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), instituído em 1966, e que passava a contar com as contribuições compulsórias dos trabalhadores “optantes” e de seus empregadores, de 8% do salário bruto, cada. O BNH logo assumiu a gestão do Fundo de Investimentos em Saneamento (FISANE), criado neste mesmo ano, e transformado, em 1968, no Sistema Financeiro de Saneamento (SFS). O ingresso do BNH no setor, através do SFS, representou a transferência da gestão político-financeira do setor de saneamento básico das mãos de órgãos executivos da administração direta federal, como o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) e a Fundação do Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP), para um órgão puramente financeiro, e, de acordo com Rezende e Heller, a exclusão dos mesmos na participação de diretrizes e metas para o saneamento, levou a um flagrante crescimento na monopolização dos serviços por parte das companhias estaduais, as quais, a partir daí, passaram a adquirir contornos empresariais, e a atrair o maior volume de investimentos diretos, concentrando o maior aporte dos recursos disponíveis através do BNH e do SFS.128 Ao lado disso, de acordo com Arretche, esta nova política nacional correspondia às concepções de um grupo de engenheiros sanitaristas que era conhecido como o “grupo do Rio”, para o qual a possibilidade de expansão em larga escala das ações no setor do saneamento básico demandava a existência de um banco federal de desenvolvimento, dotado de capacidade de mobilização e centralização dos recursos financeiros necessários para os investimentos em água e esgotos, e também dos 128 REZENDE, Sonaly Cristina, HELLER, Léo, op. cit., pp. 242-244. De acordo com os autores, que citam, neste ponto, o trabalho de PEIXOTO, J. B. O barulho da água: os municípios e a gestão dos serviços de saneamento. São Paulo: Água e Vida, 1994, os governos da ditadura [civil]-militar acreditavam ter o poder suficiente para vencer o grande obstáculo no processo de transição dos serviços de saneamento dos municípios para as companhias estaduais de economia mista [as CESBs], prevendo a aceitação passiva por parte destes, que eram os titulares constitucionais dos serviços, com a concessão incondicional destes às CESBs. 114 recursos humanos tecnicamente capazes de formular programas e de estabelecer as metas, os critérios e as diretrizes de regulação da prestação de serviços no setor.129 A nova situação se consolidou com a criação do PLANASA, em 1971, quando os recursos para o investimento no setor, através do SFS, foram concentrados nas empresas estaduais, em detrimento dos municípios, cuja posição já fora enfraquecida com a reforma tributária de 1965, e com as críticas que eram formuladas com respeito às suas políticas tarifárias, vistas como paternalistas, contribuindo para a sua perda de capacidade de investimento, ao que estariam conjugadas a adoção de políticas de gestão clientelistas, incapacidade técnica e ausência de estruturas institucionais adequadas no âmbito municipal. Ao lado disso, lembram Rezende e Heller, que o autoritarismo e centralismo crescentes do regime, a partir de 1965, trouxeram a expansão do poder federal sobre as esferas estaduais e municipais, com a suspensão das eleições diretas para os governos dos Estados e para as prefeituras das capitais e das áreas consideradas como de segurança nacional, e levou a um clima político amplamente favorável ao consentimento dos governos municipais para a transferência dos serviços às companhias estaduais.130 O PLANASA, na avaliação destes autores, apesar de sua denominação, restringiu-se, formalmente, ao segmento de água e esgotos, tendo priorizado, de fato, apenas o abastecimento de água, em detrimento das demais ações que compõem o saneamento básico, tão importantes quanto esta para a melhoria da qualidade de vida, como a coleta e o tratamento adequados dos esgotos sanitários e dos resíduos sólidos 129 ARRETCHE, Marta Teresa da Silva, op. cit., p. 77. Lembra a autora, neste ponto, que o modelo preconizado pelos engenheiros sanitaristas do “grupo do Rio” também preconizava que os investimentos no setor fossem realizados através de empresas estatais no âmbito estadual. 130 REZENDE, Sonaly Cristina, HELLER, Léo, op. cit., pp. 266-270. De acordo com os autores, o PLANASA foi norteado, em sua opção por excluir os municípios do processo de financiamento, pelo paradigma da autossustentação tarifária, pelo qual as tarifas deveriam ser capazes de cobrir os custos de operação e manutenção dos serviços, e de amortização dos empréstimos, ao lado da adoção do subsídio cruzado, pelo qual se instituía uma tarifa única para todo o Estado, de modo a viabilizar o sistema como um todo, uma vez que os municípios menores não tinham capacidade de se autossustentarem. Como resultado desta política, aproximadamente três quartos dos municípios brasileiros foram levados a delegar os serviços de abastecimento de água às CESBs. Na avaliação destes autores, a adoção do parâmetro de retorno financeiro dos investimentos como critério de alocação dos recursos relegou a um plano secundário a melhoria da saúde pública e da qualidade de vida. O monopólio na concessão dos recursos do FGTS, pelo BNH, às companhias de saneamento estaduais, no âmbito do PLANASA, foi mantido até 1985. Como a titularidade dos serviços de água e esgotos ainda foi mantida no âmbito municipal, na Constituição Federal de 1967, foi necessário, para a expansão do setor, que as companhias estaduais obtivessem a concessão destes serviços, por meio de contratos assinados com cada município, geralmente com validade de 30 anos. A partir de 1985 as prefeituras municipais foram autorizadas a obter empréstimos para investimentos em saneamento básico com recursos do FGTS, e a estrutura do PLANASA foi abandonada em 1990, quando o governo federal lançou o PRONURB (Programa de Saneamento de Núcleos Urbanos) (Ref.: ARRETCHE, Marta Teresa da Silva, op. cit., p. 78). 115 domésticos, a drenagem urbana e o controle de vetores de doenças transmissíveis. Este instrumento de política pública foi motivado, na verdade, pela necessidade de atender à crescente demanda de abastecimento de água nas áreas urbanas, que sofreram um crescimento acelerado durante as décadas de 1960 e 1970. O PLANASA estabeleceu metas bastante ambiciosas, de todo modo, que consistiam em atingir uma cobertura de 80% da população urbana com abastecimento de água em 1980, ampliada para 90% em 1990, e em atingir uma cobertura total com redes de esgotamento sanitário as regiões metropolitanas, capitais e cidades de maior porte, em 1980, ampliada para 65% da população urbana total em 1990. O governo federal empreendeu um esforço considerável no sentido do cumprimento destas metas, no que teve duas motivações principais, de acordo com Resende e Heller, as quais foram buscar a legitimação popular do seu projeto de regime burocrático-autoritário por meio de políticas de desenvolvimento social, e incentivar o crescimento das grandes empresas nacionais do segmento da construção civil. Os primeiros anos de vigência do PLANASA se deram num momento de acelerado crescimento econômico do Brasil, no período que ficou conhecido como o do “milagre”: o PIB (Produto Interno Bruto) nacional cresceu 11,3% em 1971, 11,9% em 1972 e 14% em 1973. Mas esta situação começou a se modificar a partir deste ano, quando ocorreu o primeiro choque do petróleo, quando a decisão do governo brasileiro de manter as políticas de crescimento passou a ter reflexos como o aumento da inflação, do endividamento externo e, mesmo, das taxas de desemprego. O quadro se agravou consideravelmente com o segundo choque do petróleo, em 1979, o qual teve como uma de suas conseqüências uma brusca elevação das taxas de juros internacionais e também da inflação nos países do núcleo desenvolvido, o que causou um forte impacto negativo sobre a balança de pagamentos do Brasil. Estava criada a situação que levou ao colapso do modelo econômico brasileiro, evidenciada com a estagnação econômica, a espiral inflacionária e as várias renegociações da dívida externa do país, ao longo dos anos 1980. Em decorrência desta nova conjuntura, houve uma progressiva redução na arrecadação líquida do FGTS, principal fonte de financiamento do BNH, principal agente financeiro do SFS, que passou a necessitar um aporte crescente de recursos externos, a partir de 1974, e a adesão de muitos dos municípios maiores ao sistema foi menor do que a esperada, fatores que contribuíram para o acentuado enfraquecimento do sistema implantado através do PLANASA. Os resultados obtidos por este sistema até o ano de 1980 foram satisfatórios com relação ao abastecimento de água, sendo 116 alcançada uma cobertura de 80% da população total do país, mas a cobertura por coleta de esgotos ficou bem abaixo da meta estabelecida, alcançando apenas 32% da população.131 Entre este ano e 1990, conforme mostra Arretche, a cobertura por serviços de abastecimento de água no âmbito do PLANASA subiu de 50 para 83 milhões de pessoas, e a cobertura por serviços de coleta de esgotos subiu de 17,5 para 29 milhões de pessoas. Mas a expansão destes serviços ocorreu de forma desigual, pois foram privilegiados os investimentos em abastecimento de água, com menores custos e retorno mais rápido, através das tarifas, e, embora ocorrendo uma expansão significativa em todo o país, o PLANASA, segundo a mesma autora, privilegiou as áreas mais ricas do Sul e Sudeste, as cidades mais populosas e os segmentos de maior renda. O período da ditadura civil-militar se encerrou em 1985, com a eleição, por via indireta, de Tancredo Neves, que falece em abril deste ano, tomando posse o seu vice, José Sarney. No ano seguinte, dentro de um conjunto de medidas destinadas a reformar os sistemas financeiros das áreas de saneamento básico e de habitação, no contexto da profunda crise financeira do Estado, o novo presidente decidiu extinguir o BNH, transferindo suas funções de gestor do FGTS para a CEF.132 A extinção do BNH, com a consequente desarticulação de sua burocracia, de caráter especializado e dotada de certa autonomia frente à área econômica do governo federal, foi, segundo Arretche, um fator ainda mais decisivo para a desagregação do modelo implantado a partir de 1964 na área do saneamento básico e da habitação, do que a própria redução dos recursos oriundos do FGTS. De acordo com esta autora, a atuação das estruturas burocráticas do BNH dificultava o desvio dos recursos do FGTS para finalidades não diretamente ligadas a programas de desenvolvimento urbano, como os de saneamento e habitação, e a sua 131 Idem, pp. 273-275. Os dados referentes à cobertura por abastecimento de água foram retirados pelos autores de análises da ABES (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental) e da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), e os referentes à cobertura por coleta de esgotos, do IPEAPNUD, de 1996. 132 Idem, pp. 80-81. De acordo com a autora, o presidente José Sarney teria tomado esta decisão a despeito das recomendações apresentadas por um grupo de trabalho por ele constituído com o objetivo de formular propostas para a reforma dos sistemas financeiros da habitação (SFH) e do saneamento (SFS), bem como na gestão do próprio BNH. Arretche acredita que esta decisão, surpreendente naquele momento, possa ter sido o resultado de pressões do núcleo responsável pela gestão econômico-financeira do governo federal (Ministério da Fazenda e Banco Central), no sentido de obter um maior controle dos recursos disponíveis para o financiamento dos programas habitacionais e de saneamento básico, como o FGTS e os depósitos em Cadernetas de Poupança. No contexto então vigente, de crise financeira do Estado, estes recursos passavam a ter uma maior importância estratégica como instrumentos de política econômica, o que teria levado a proposta daquele grupo de trabalho, no sentido da criação de um Banco Nacional de Desenvolvimento Urbano, descentralizado e regionalizado, e ampliando o escopo de atuação do corpo burocrático do BNH, a ser alvo de duras críticas por parte do Ministério da Fazenda e do Banco Central (a autora cita, neste ponto, o trabalho de MELO, Marcus C. Anatomia do Fracasso: Intermediação de Interesses e a Reforma das Políticas Sociais na Nova República. In: Dados, 36(1), 1993, pp. 119-162). 117 extinção, com a transferência destes recursos para a Caixa Econômica Federal (CEF), permitiria uma maior “flexibilidade” na sua utilização. Seria possível, assim, quebrar as resistências de uma burocracia insulada e protegida no âmbito da administração indireta, transferindo a responsabilidade pela alocação dos ainda vultosos recursos captados com o FGTS para os quadros burocráticos da CEF e da administração direta, que estariam mais sujeitos às injunções políticas. Muitos órgãos públicos de âmbito municipal já vinham operando os serviços de saneamento básico, desde o período anterior à implantação do sistema do PLANASA, utilizando-se de procedimentos, critérios e recursos próprios, e com o apoio de diferentes áreas da administração federal, que até então atuavam de forma desarticulada. Uma parcela significativa dos municípios não aderiu ao mesmo, uma vez que, para aqueles que já possuíam serviços municipais de saneamento, estruturados como empresas ou como autarquias, a adesão ao PLANASA significaria, na prática, transferir os serviços às companhias estaduais recém-criadas. De acordo com Arretche, os municípios que não se integraram ao sistema do PLANASA, quer os que permaneceram ligados à FSESP, quer os efetivamente autônomos, entre estes os de maior porte, foram excluídos, deste modo, do acesso aos seus recursos, passaram a constituir o núcleo da crítica ao caráter centralizador do BNH, bem como da defesa da natureza essencialmente municipal das ações na área do saneamento básico, especialmente no período de vigência do PLANASA e do BNH, mormente enquanto havia recursos do FGTS em volume suficiente para financiar a expansão dos investimentos através das companhias estaduais. Em 1984, as entidades e companhias municipais fundaram a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE), que passou a ser, desde então, o principal canal para a defesa do modelo de gestão municipalizada para a prestação de serviços de saneamento básico.133 133 Idem, pp. 78-80. De acordo com a autora, que tomou como referência os dados do Catálogo Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental de 1990, cerca de 20% dos municípios brasileiros ainda se mantinham, até este período, autônomos, com a administração municipal responsabilizando-se integralmente pelos serviços, quer através de um órgão da sua administração direta, quer através de uma entidade autônoma, porém com controle acionário do município, os quais se concentravam especialmente na região Sudeste, em particular nos estados de Minas Gerais e São Paulo (MPO. Flexibilização Institucional da Prestação de Serviços de Saneamento. Implicações e Desafios. In: Série Modernização do Setor Saneamento. Brasília: MPO, 1995, pp. 70-71, apud. ARRETCHE, Marta Teresa da Silva, op. cit., p. 79). Outros municípios mantiveram uma autonomia parcial, através de autarquias municipais, mas recorrendo ao suporte técnico e administrativo de um órgão do Ministério da Saúde, a FUNASA (Fundação Nacional da Saúde, a qual surgiu a partir da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, criada nos anos 1950), fornecido por meio de convênios. Em 1993, de acordo com a FUNASA, cerca de 284 municípios brasileiros adotavam este sistema, concentrados especialmente na região 118 Foi dentro deste contexto geral, envolvendo a consolidação e posterior desagregação do modelo centralizador para o saneamento básico, estabelecido durante a ditadura civil-militar que governou o país entre 1964 e 1985, e as disputas pelo controle destes serviços, entre as companhias estaduais, por ele privilegiadas, e as entidades administradas pelos municípios, que ocorreu a primeira iniciativa pública visando à recuperação ambiental da bacia do Lago Guaíba, na Região Metropolitana de Porto Alegre, o “Projeto Rio Guaíba”, lançado pelo governo do Rio Grande do Sul, no ano de 1981. 3.2. A questão ambiental do Guaíba nos anos 1980 na atuação e nas memórias do Movimento Ecológico Gaúcho Neste item busco analisar, de uma forma muito breve, o segmento ambientalista gaúcho, procurando trazer elementos acerca de sua atuação e das memórias que foram preservadas por seus integrantes, no que se refere ao período em que foram lançadas as primeiras iniciativas de governo visando à recuperação ambiental da bacia do Lago Guaíba, na década de 1980. O objetivo, aqui, não é propriamente avaliar o envolvimento de pessoas e organizações deste setor com estes esforços, mas, principalmente, tentar identificar de que forma e em que medida a temática da degradação do Guaíba e da busca por sua recuperação ficou registrada nas memórias do ambientalismo gaúcho, tendo-se em conta o seu caráter multifacetado e os processos de transformação por que este passou nas últimas décadas.134 As fontes utilizadas para este fim compreendem tanto bibliografia de caráter memorialístico sobre o movimento ambientalista, quanto produções acadêmicas sobre este segmento, bem como material veiculado na imprensa durante este período. Dentre as obras que buscaram resgatar as memórias dos principais personagens envolvidos com causas relacionadas à defesa do meio ambiente no Rio Grande do Sul, desde os primeiros tempos de criação e atuação de ONGs como a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) e a Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), a partir de meados dos anos 1960, pode Nordeste, e atendendo cerca de 5 milhões de pessoas (MPO, op. cit., p. 73, apud. ARRETCHE, Marta Teresa da Silva, op. cit., p. 79). 134 Este caráter multifacetado do segmento de pessoas e organizações envolvidas com as atividades de proteção ambiental, e também com as causas (“lutas”) em defesa da conservação e/ou preservação da natureza tem levado alguns autores a enquadrá-lo como sendo, antes, um “campo” do que um “movimento” ou conjunto de “movimentos” sociais. Entre estes pode ser citado o antropólogo Wilson José Ferreira de Oliveira, autor de uma tese de doutorado sobre este segmento no Rio Grande do Sul, "Paixão pela natureza", atuação profissional e participação na defesa de causas ambientais no Rio Grande do Sul entre 1970 e inicio dos anos 2000. 119 ser destacado o livro Pioneiros da ecologia: breve história do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul, de Elmar Bones e Geraldo Hasse.135 No âmbito da produção acadêmica, podem ser destacados alguns trabalhos que abordam, por diferentes ângulos, a atuação de pessoas e organizações vinculadas à defesa do meio ambiente neste estado, como O Movimento Ecologista e as Políticas Ambientais no Estado do Rio Grande do Sul (1980-1990), de Gérson Luís Almeida Rodrigues, A Abertura Política e os Movimentos Sociais em Porto Alegre (1979-1985), de Vânia Fonseca Soares, e "Paixão pela natureza", atuação profissional e participação na defesa de causas ambientais no Rio Grande do Sul entre 1970 e inicio dos anos 2000, de Wilson Jose Ferreira de Oliveira.136 Em sua tese de doutorado, apresentada em 2005, Oliveira buscou analisar as condições sociais de emergência e as dinâmicas de participação na defesa de causas ambientais no estado do Rio Grande do Sul entre 1970 e início dos anos 2000. O autor procurou demonstrar que as mobilizações ambientalistas que ocorreram neste estado no início dos anos 1970, a par de serem consideradas pela literatura específica como um dos marcos principais do nascimento do ambientalismo no Brasil, devido ao caráter precursor das associações e lideranças que participavam de tais mobilizações, foram também representativas da configuração de um militantismo de “reconversão profissional” para atuação nas mais diferentes esferas sociais, sendo esta caracterização do ambientalismo como uma “área de atuação profissional” relacionada ao fato de se tratar de uma causa cuja emergência e consolidação foram influenciadas por variáveis exógenas e, mais especificamente, pela pressão e formulação de diretrizes ambientais nas instâncias internacionais. Ela estaria respaldada, conforme Oliveira, em concepções militantistas da formação e do exercício profissional, segundo as quais a “profissão” sempre implica a capacidade ou a competência de associar os recursos adquiridos durante o processo de escolarização à “realidade” e à “prática” política. O autor lembra, no entanto, que a expansão destas mobilizações ambientalistas, a partir da década de 135 BONES, Elmar, HASSE, Geraldo. Pioneiros da ecologia: breve história do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: JÁ Editores, 2007 (2ª Edição). 136 RODRIGUES, Gerson Luís Almeida. O Movimento Ecologista e as Políticas Ambientais no Estado do Rio Grande do Sul (1980-1990). Porto Alegre: UFRGS / PPG em Ciência Política (Dissertação de Mestrado), 1993; SOARES, Vânia Fonseca. A Abertura Política e os Movimentos Sociais em Porto Alegre (1979-1985). Porto Alegre: UFRGS / PPG em História (Dissertação de Mestrado), 2002, disponível em http://hdl.handle.net/10183/2083, acessado em dezembro de 2011; OLIVEIRA, Wilson Jose Ferreira de. "Paixão pela natureza", atuação profissional e participação na defesa de causas ambientais no Rio Grande do Sul entre 1970 e inicio dos anos 2000. Porto Alegre: UFRGS / PPG em Antropologia Social (Tese de Doutorado), 2005, disponível em http://hdl.handle.net/10183/6163, acessado em julho de 2010. 120 1980, tem-se caracterizado pela diversificação dos padrões de utilização da formação escolar e universitária como instrumento de politização para a atuação profissional em diferentes esferas de atividade, passando-se de uma situação em que as predisposições e os recursos para tal militantismo resultavam da bagagem cultural e política vinculada ao meio familiar, para outra em que estes resultam das inserções dos dirigentes em diversas redes de organizações e de “movimentos sociais”. E que, em decorrência disso, os objetivos e as intervenções associativas nas instâncias de proteção ambiental têm se caracterizado por um elevado grau de atomização e de segmentação e são muito difíceis de serem conciliadas, sendo que quando isso acontece é de forma muito circunstancial e provisória.137 É possível identificar, assim, os militantes ambientalistas, ligados ao ativismo em ONGs e partidos políticos de esquerda, os técnicos especializados, que ingressam na área em função de sua formação universitária específica, e os burocratas que ingressam na área devido a suas ligações com o setor empresarial e com os partidos mais ao centro e direita.138 Ao lado disso, mostra Oliveira, é possível verificar que, dentro de uma mesma concepção comum de ação associativa, distinguem-se algumas modalidades principais de intervenção coletiva, com relação às formulações das problemáticas ambientais: as que as entendem como problemas “éticos e filosóficos”, as que as associam às questões “políticas e ideológicas”, e as que as veem como problemas “técnicos e científicos”.139 Oliveira desenvolve o núcleo central de seu trabalho tomando como base a observação antropológica de um grupo considerável de pessoas que integravam ou haviam integrado alguma das muitas e diversificadas organizações vinculadas ao ambientalismo no Rio Grande do Sul, com variadas formações e posições ocupadas nas mesmas, desde dirigentes e militantes de primeira hora, em entidades como a AGAPAN, o Movimento Roessler para a Defesa Ambiental, de Novo Hamburgo (ROESSLER) e a ADFG/Amigos da Terra, a pessoas com trajetórias mais recentes e 137 138 OLIVEIRA, Wilson Jose Ferreira de, op. cit., p. 3 (Resumo). OLIVEIRA, Wilson José Ferreira de. Elites Administrativas, Inserção Social e Reconversão Profissional. In: II Seminário Nacional de Ciência Política, Grupo de Trabalho: Teoria Política e Pensamento Social. Porto Alegre, 2009. Anais do II Seminário Nacional de Ciência Política da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2009. V. 1, pp. 1672-1679 (15-22). 139 OLIVEIRA, Wilson Jose Ferreira de, op. cit., 2005, pp. 354-355. Tais diferenciações, diz o autor, “resultam da conformação de distintos padrões de reconversão profissional através da participação em associações ambientalistas e de suas relações com as inserções anteriores e simultâneas dos dirigentes em redes de organizações partidárias, religiosas, estudantis, universitárias, organismos públicos e fundações de financiamento nacionais e internacionais.” Com respeito às ligações existentes entre militância e profissão, ver: Idem, pp. 432-433 (Conclusões). 121 perfis mais técnicos, burocráticos ou político-partidários, cuja utilização, ainda que como fonte, excede muito o escopo desta dissertação. Os capítulos introdutórios de seu trabalho, todavia, contém elementos significativos no sentido de avaliar posicionamentos de pessoas e entidades vinculadas à proteção ambiental, frente à recuperação do Guaíba, e, no que se coloca como mais importante para os objetivos aqui buscados, o grau e a forma com que iniciativas com este fim têm sido pelos mesmos lembradas, valorizadas, ou, em suma, “representadas”, ao longo do recorte temporal do presente trabalho. Pode ser destacada, em primeiro lugar, sua crítica às abordagens empregadas, muitas vezes, em trabalhos no âmbito das ciências humanas, as quais têm procurado englobar as organizações e mobilizações vinculadas à defesa de causas ambientais, de uma forma homogênea, ainda que dentro de um conceito mais amplo, como “novos movimentos sociais” (NMS), deixando de dar conta, assim, da grande diversidade de formas de mobilização, de atores sociais e de tipos de reivindicações nelas presentes.140 A fragilidade destas abordagens ficaria exposta, de acordo com o autor, quando, no processo de busca e de levantamento de informações acerca da história e da configuração presente das organizações e das lideranças ambientalistas do Rio Grande do Sul, vem à tona um cenário de grande indefinição, tanto com respeito a suas fronteiras ideológicas, coletivas e institucionais, quanto de fragmentação e dispersão de espaços e formas de atuação dos agentes sociais vinculados a estas causas. Assim, Oliveira aponta que os esquemas de interpretação da “história do ambientalismo” usados pelas lideranças e pela literatura militante e acadêmica, com respeito à formação e às trajetórias da “luta ambientalista” no Brasil e no Rio Grande do Sul podem ser caracterizados por uma grande fragmentação, tanto em termos geográficos como políticos e de recortes temporais, e pela inexistência de definições mais abrangentes ou institucionais com respeito às próprias “origens” e “raízes” do ambientalismo brasileiro e gaúcho. Com respeito ao tema das “origens” e “raízes” do ambientalismo gaúcho, é possível destacar os seguintes pontos no trabalho de Oliveira: (i) o Rio Grande do Sul figura na literatura sobre o ambientalismo brasileiro como um dos estados “pioneiros”, para o que contribui o caráter precursor, em nível nacional, de algumas associações e lideranças, como a AGAPAN e José Lutzenberger, bem como pelo grande número de associações existentes nesta área, sendo que este caráter pioneiro está sempre presente 140 Idem, pp. 15-16. 122 nos documentos produzidos pelas mesmas, nos depoimentos de seus dirigentes, e nas suas intervenções nos diversos conselhos, comitês e eventos voltados para a defesa do meio ambiente; (ii) o termo “Movimento Ecológico Gaúcho”, ou MEG, é frequentemente usado, visando dar um corte regional às concepções e intervenções destas lideranças do Rio Grande do Sul, tomadas em seu conjunto, e vistas como diferenciada por valores tais como “autenticidade” de seus discursos e “qualidade” e “consistência” de suas intervenções; (iii) dentro de um quadro de desacordo em torno das “origens” das lutas ambientalistas e do “movimento ecológico” no Brasil e no Rio Grande do Sul, podem ser observados dois esquemas interpretativos mais amplos, um primeiro em que é feito um recorte em três períodos “fundadores”, sucessivos: o “conservacionista”, onde a luta estava voltada para a proteção de “bichos” e “plantas” (“a preservação da natureza como tal”), o da “ecologia política”, com um questionamento global dos modos de organização política e econômica da civilização industrial, e, por fim, o da expansão das mobilizações ambientalistas para os mais diversos setores da sociedade, com a coexistência entre “ecologistas” e “ambientalistas”,141 e a atuação em temas mais parciais e de uma forma mais pragmática, e outro, também dividido em três fases, mas que parte das mobilizações iniciadas nos anos 1970, tendo a criação da AGAPAN como marco da “emergência de lutas ambientalistas”, sendo a primeira fase voltada para a “denúncia” de problemas específicos, a segunda pela crescente “politização”, à medida que se estabelecia a 141 Idem, p. 30. De acordo com o autor, tais definições apresentam um uso mais corrente apenas entre as pessoas com atuação dentro deste meio. Pode-se realizar uma distinção entre “ecologistas” e “ambientalistas” usando como paralelo a que existente entre “preservacionistas” e “conservacionistas”. Esta última distinção é abordada por Patrícia Moreira Cardoso, em seu trabalho sobre os conflitos socioambientais no Parque Estadual do Delta do Jacuí. (Ver: CARDOSO, Patrícia Moreira. Conflitos Socioambientais em Áreas Protegidas: Interesses e Estratégias nas Disputas pela Legitimidade na Redefinição do Parque Estadual do Delta do Jacuí. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Rural, UFRGS. Porto Alegre, 2006. Disponível em http://hdl.handle.net/10183/10801, acessado em julho de 2010, pp. 33-37 e respectivas notas.) Tomando como referência autores como DIEGUES, A. C. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 2001, e ECKERSLEY, Robyn. Environmentalism and political theory: toward an eccocentric approach. Albany: State University of New York Press, 1992, a autora procura mostrar que “estas definições se encontram inseridas nos dois enfoques analíticos sobre as relações entre homem e a natureza: o biocêntrico ou ecocêntrico e o antropocêntrico, respectivamente, cujas diferenças essenciais estão nas questões da proteção do mundo selvagem e no crescimento populacional.” Os “preservacionistas” tenderiam a priorizar a apreciação estética e espiritual da vida selvagem, ao passo que os “conservacionistas” tenderiam a dar à proteção dos recursos naturais um valor mais utilitário, preocupando-se com o balanço entre a vida selvagem e as demandas das sociedades em seu entorno. Conforme Diegues, o modelo normativo para as áreas de conservação adotado pelo Brasil, através da Lei 9.985/2000, que criou o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), teve muita influência da linha “preservacionista”, que inspirou a criação dos primeiros parques naturais, nos Estados Unidos, a partir de finais do século XIX, e, por conseguinte, tenderia a adotar posições muito restritivas com relação às comunidades já residentes nestas áreas, antes de sua implantação. 123 “ligação das questões ambientais com as questões sociais e políticas mais amplas”, e a última, “multissetorial” a partir da inserção da ótica ambientalista num espectro social mais amplo. O autor mostra, ao lado disso, como esta grande fragmentação acaba se refletindo numa grande dispersão das informações disponíveis acerca do histórico das atividades e das organizações ligadas à defesa ambiental no Rio Grande do Sul. De acordo com Oliveira, dada a inexistência de instituições encarregadas do registro e cadastramento do conjunto das organizações ambientalistas atuantes no estado, as informações necessárias para seu trabalho tiveram de ser obtidas através de um levantamento realizado com base nas relações existentes em cinco diferentes entidades ou sistemas, dentro e fora do âmbito governamental: a Eco Agência de Notícias sobre o Movimento Ecológico (ECOAGÊNCIA); a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (SEMA/RS), o Cadastro Nacional de Instituições Ambientalistas (ECOLISTA), o Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas (CNEA) e a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (APEDEMA/RS), com base no qual foi possível identificar um total de 218 organizações, de variadas naturezas, abrangências, tempos de vida e localizações.142 Gerson Rodrigues apresentou sua dissertação de mestrado em 1993, definindo como seus objetivos “caracterizar a atuação do movimento ecologista e as políticas ambientais; conhecer as políticas implementadas no estado do Rio Grande do Sul; e, por fim, avaliar a atuação do movimento ecologista.” O autor prosseguiu, afirmando que “o exame destes aspectos possibilitará uma avaliação da participação ecologista na implementação das políticas ambientais.” 143 Entre os vários pontos tratados pelo autor, podem ser destacados os seguintes: (i) as origens da inserção dos temas de defesa ambiental na política brasileira; (ii) a emergência e percepção de uma crise ambiental, em escala planetária e envolvendo desequilíbrios sociais e regionais, como um elemento impulsionador do movimento ecologista no Brasil; (iii) as abordagens teóricas para o desenvolvimento do ambientalismo no contexto da segunda metade do século XX; (iv) as diferentes visões e a grande heterogeneidade existente no “movimento ecologista”; 142 Idem, pp. 31-42. A APEDEMA/RS foi criada em 1990, visando “articular as entidades ecológicas do Estado do Rio Grande do Sul”, e de “congregar as organizações ecológicas suprapartidárias, sem fins lucrativos, legalmente constituídas e que tenham como objetivo estatutário principal e defesa do equilíbrio ambiental”, tendo suas intervenções voltadas para a organização de atividades e eventos vinculados ao Movimento Ecológico Gaúcho (MEG), tais como a participação deste no Fórum Social Mundial, no Fórum Brasileiro de ONGs, e a formulação de diretrizes para pautar as relações estabelecidas pelo MEG “com as esferas governamentais e demais setores da sociedade”, entre estas a participação e representação em conselhos e comitês de proteção ambiental. 143 RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., pp. 6-7. 124 (v) a trajetória do movimento ambientalista no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980; (vi) a trajetória e as características principais do movimento ambientalista no estado do Rio Grande do Sul, no mesmo período; (vii) as políticas ambientais no Brasil e no Rio Grande do Sul, ao longo deste período, e (viii) a avaliação, por parte das entidades do movimento ambientalista, de sua participação e influência nas políticas para este setor, no Rio Grande do Sul. Rodrigues aborda o primeiro destes pontos, o das origens do que denomina como a “ecopolítica” no Brasil, tendo como referência um artigo de José Augusto Pádua, autor que buscou identificar, para estas, tanto fatores externos quanto internos ao país.144 Entre os fatores exógenos para o nascimento do que define como a “política verde” no Brasil, Pádua destacou o cenário criado pelo hiper-desenvolvimento urbano e industrial na segunda metade do século XX, principalmente nos países centrais do sistema capitalista, que teria gerado uma série de novas expectativas e o advento de valores “pós-materialistas”, cuja difusão encontrou condições favoráveis em alguns segmentos da sociedade brasileira, chamando a atenção destes para um aspecto básico da formação nacional, qual seja o da exploração intensa de um ecossistema até seu esgotamento, em sucessivos ciclos econômicos, desde o período colonial. A receptividade a esta influência externa foi potencializada, de acordo com Pádua, por um conjunto de elementos que já estariam presentes na sociedade brasileira, entre os quais este autor destacou cinco, como fatores endógenos para o surgimento da “política verde”: 1) a explosão de problemas sócio-ambientais na cena nacional brasileira, resultante da conjugação de uma formação histórica ecologicamente perversa com o processo acelerado de urbano industrialização nas últimas quatro décadas, que potencializou ao extremo a crise ecológica no Brasil; 2) a tradição de abertura para o tema da natureza na cultura e na política brasileiras; 3) as mudanças recentes no tecido social do país, mas especificamente o surgimento da chamada “nova classe média”; 4) o espaço aberto na cultura política brasileira pela emergência dos “novos movimentos sociais”, especialmente na década de 70; 145 5) as características do sistema eleitoral brasileiro. Com respeito ao segundo ponto, que envolve as relações entre o surgimento do movimento ecologista no Brasil e a crise ambiental, Rodrigues procura destacar que a mesma também reflete um desequilíbrio sócio-ecológico, caracterizado pela diferenças 144 Idem, pp. 15-19. Com relação aos fatores exógenos e endógenos para o surgimento da “ecopolítica” no Brasil, o autor toma como referência PÁDUA, José A. O nascimento da política verde no Brasil: fatores exógenos e endógenos. In: LEIS, Hector R. (org.). Ecologia e Política Mundial. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, pp. 135-161. 145 Idem, p. 144, apud. RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., pp. 17-18. Rodrigues também destaca a importância do manutenção inicial do bipartidarismo, imposto pelos governos da ditadura civilmilitar desde 1965, como um destes fatores endógenos para a expressão política das demandas pela defesa do meio ambiente. (RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., p. 21). 125 de acesso ao consumo no planeta, tanto regionais como sociais. A maior parte das sociedades que vivem no chamado “Terceiro Mundo”, aponta o autor, situam-se no ponto mais baixo da escala de consumismo, ou seja, com o consumo miserável, a poluição da miséria, a falta de condições materiais de existência, caracterizado pela concentração da poluição e depleção dos recursos naturais, a subnutrição, a ausência de água e esgotos tratados, a existência de lixões a céu aberto, enfim a degradação do sentido da vida, e a realidade socioambiental da América Latina se insere nesta problemática da poluição da miséria. E o esgotamento do modelo de desenvolvimento dependente, vigente nesta região, ocorre a partir da década de 1980, não sem deixar, conforme lembra o autor, um crescente passivo de problemas socioambientais. Neste contexto, para o autor, “a sociedade, através dos movimentos ecológicos e dos organismos internacionais ambientalistas, lançava uma visão crítica à dinâmica da sociedade industrial.” 146 No que diz respeito à análise das diferentes abordagens teóricas que foram utilizadas para explicar a emergência do ambientalismo, Rodrigues lança mão do trabalho de Eduardo Viola, O movimento ambientalista no Brasil (1971-1991): da denúncia e conscientização pública para a institucionalização e o desenvolvimento sustentável. De acordo com este autor, até aquele momento, existiam três abordagens teóricas para a análise do ambientalismo: a dos “grupos de interesse”; a do “novo movimento social”, e a do “movimento histórico”.147 A partir desta explanação, Rodrigues conclui por adotar esta última abordagem como matriz teórica para seu estudo. O autor vê o enfoque do movimento histórico como uma visão intermediária entre as duas outras, pois enquanto a abordagem dos grupos de interesse dá relevância às organizações ambientalistas não governamentais, e a do novo movimento social dá maior importância ao setor radical do ambientalismo, a abordagem do movimento histórico dá importância ao conjunto das organizações não governamentais e aos grupos comunitários de caráter ambientalista. Rodrigues reconhece, a par disso, a existência de uma grande heterogeneidade dentro do “movimento ecologista”, no que diz respeito às suas posições políticas e formulações teóricas, identificando a sua divisão em quatro correntes teóricas, tomando 146 147 RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., pp. 28-30. VIOLA, Eduardo. O movimento ambientalista no Brasil (1971-1991): da denúncia e conscientização pública para a institucionalização e o desenvolvimento sustentável. In: GOLDENBERG, Mirian (coord.). Ecologia, Ciência e Política. Rio de Janeiro: Revan, 1992, pp. 49-76, apud. RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., pp. 31-32. 126 como referência o trabalho de Viola: eco fundamentalistas, eco realistas, ecos socialistas e eco capitalistas.148 O autor vê a posição dos eco realistas como a dominante no movimento ecologista brasileiro, com os eco capitalistas tendo peso nas agências estatais de proteção ambiental e na imprensa, e as outras duas correntes com baixa expressão dentro do movimento ecologista brasileiro. O autor conclui esta explanação optando por definir o movimento ecologista como “um tipo de movimento social, que surge para tratar das carências ambientais [...] ou seja a necessidade de se criar estratégias de luta para salvar o meio ambiente”, e também “é um movimento histórico [...] sua atuação é ponto culminante aos interesses [...] da necessidade de preservação/conservação, bem como estratégias e soluções para modificar a atual forma de produção e consumo predatório.” 149 O autor recorre, mais uma vez, a Viola, para traçar um quadro histórico do movimento ambientalista no Brasil, para quem este teria atravessado duas fases, a fundacional, entre 1971 e 1986, e o período recente, de 1987 a 1991.150 Dentro deste quadro, o primeiro período, por sua vez, pode ser subdividido em três períodos: a fase ambientalista (1974-1981), a de transição ecopolítica (1982-1985) e a ecopolítica, iniciada em 1986. A partir de 1986, o movimento ambientalista teria entrado em uma nova fase, transformando sua característica unicamente preservacionista para alcançar uma característica ecopolítica, ou seja, passando a não mais unicamente denunciar as agressões do meio ambiente, mas a tentar atuar diretamente na esfera de poder político nacional. As entidades, com um enfoque mais profissional, não têm sua preocupação centrada na denúncia, como ocorreu na primeira fase, passando a ter como objetivo a 148 VIOLA, Eduardo. A Heterogeneidade Política. In: Revista Lua Nova.v. 3, n° 4, pp. 45-49, abr/jun 1987, apud. RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., pp. 33-35. Conforme o autor, os primeiros, de origens anarquistas, não acreditariam nas possibilidades de transformação da sociedade existente, vendo a saída para a questão ambiental apenas na criação de uma sociedade alternativa, “ecológica”. Os ecos socialistas e eco realistas acreditariam na transformação da sociedade existente, no sentido do socialismo, os primeiros, que formaram a base dos “Partidos Verdes” europeus, de uma forma gradualista, os últimos, através de uma ruptura, situando-se como herdeiros do socialismo revolucionário de Marx e Rosa Luxemburgo. Os eco capitalistas, por fim, acreditariam na possibilidade de disciplinar o mercado através da intervenção do Estado, por meio de medidas de caráter econômico, situando-se como herdeiros da socialdemocracia e do liberalismo democrático. 149 RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., pp. 33-35. Na definição do “movimento ecologista” como movimento social, o autor faz referência a CARNEIRO, Eder J. Reflexões para uma Abordagem Sociológica do Movimento Ecológico. In: Textos de Sociologia e Antropologia. Belo Horizonte: UFMG, n° 22, 1988. Na definição do mesmo como “movimento histórico”, Rodrigues faz referência a VIOLA, Eduardo, LEIS, Hector R. Desordem Global da Biosfera e a Nova Ordem Internacional: o papel organizador do ecologismo. In: Revista Lua Nova. São Paulo, n° 20, pp. 145-18, 1990. 150 Idem, p. 36. Rodrigues toma como referência, aqui, VIOLA, Eduardo, op. cit., e VIOLA, Eduardo. O Movimento Ecológico no Brasil (1974-1986): do ambientalismo à ecopolítica. In: PÁDUA, José A. (org.). Ecologia e Política no Brasil. Rio de Janeiro, Espaço & Tempo, IUPERJ, 1987, pp. 63-110. 127 conservação e restauração do ambiente danificado, possuindo uma área bem delimitada de atuação, um corpo técnico e recursos financeiros vindo de ambientalistas do Primeiro Mundo, doações, contribuições de associados e de agências governamentais. Tudo isso, diz Rodrigues, lhes dá uma grande influência sobre as agências estatais, o empresariado e o Legislativo. É também na segunda metade da década de 1980 que o movimento ambientalista começa sua participação junto a outros movimentos sociais, sensíveis à problemática ambiental. A influência do ambientalismo em outros movimentos, tais como os de atingidos pela construção de barragens, seringueiros, indígenas, trabalhadores rurais sem-terra, mulheres, moradores de bairros (agressão ostensiva ao meio ambiente por uma fábrica, núcleos para a melhoria da vida), pacifista, defesa do consumidor, pela saúde ocupacional (busca da qualidade do ambiente exterior à fábrica), estudantil, e grupos para o desenvolvimento do potencial humano (relação entre meio ambiente e ecologia pessoal), configuram o que autores como Eduardo Viola passam a denominar de sócio-ambientalismo.151 Rodrigues recorre também a Eduardo Viola e José Augusto Pádua para sua explanação sobre a atuação e características das entidades integrantes do movimento ecologista no Rio Grande do Sul, de seus passos iniciais aos anos 1980. Viola caracteriza o surgimento do movimento ecológico no Rio Grande do Sul como pioneiro na América Latina, identificando sua origem em 1971 com a fundação da AGAPAN, em Porto Alegre, e considera que as lutas anteriores à década de 70 eram lutas individuais, como o caso do naturalista do Vale dos Sinos Henrique Roessler. A AGAPAN possuía, segundo o autor, “uma característica ambientalista ampla, com inspiração no ambientalismo norte-americano, caracterizado pelas manifestações políticas diretas, muito mais do que por ações no plano das políticas estatais”, e o movimento ecologista, neste sentido, se caracterizaria como um movimento social. Sua ação política, no entanto, deveria ser apartidária, pois não deveria atrelar-se a nenhum partido político. Ao lado disso, tinha por orientação não se envolver na política institucional oficial, pois seus líderes acreditavam que a via parlamentar significava corrupção. Neste período sua atuação concentrava-se nas denúncias dos principais problemas ambientais existentes em suas localidades. Pádua, por sua vez, destaca, 151 Idem, pp. 45-46. Entre as entidades que surgem na primeira fase estavam a União Protetora do Ambiente Natural (UPAN) e a AGAPAN, ambas do Rio Grande do Sul, e entre as entidades com perfil de atuação mais profissional, que surgem na segunda fase, podem ser citadas a SOS Mata Atlântica e a Amigos da Terra. O termo sócio-ambientalismo está presente em VIOLA, Eduardo, op. cit., 1992, apud. RODRIGUES, Gerson Luís Almeida, op. cit., p. 46. 128 durante a fase de criação da AGAPAN, a presença de dois fatores determinantes no estabelecimento dos movimentos ecologistas. O primeiro, exógeno, foram os impactos nacionais da Conferência de Estocolmo e a volta de ativistas políticos do exílio em países do centro industrializado. Como fator endógeno o autor incluiu a grande devastação causada pelo modelo de desenvolvimento do “milagre brasileiro”. Rodrigues destaca, também, o estabelecimento de um “ambientalismo de Estado”, caracterizado pela participação dos técnicos dos organismos estatais na crítica ecológica, em comunidades sem nenhuma expressão no trato das questões ambientais, assumindo o perfil de porta-vozes das reivindicações ambientais. Ao lado disso, o autor menciona a apropriação da temática ecológica por grupos sociais que passaram a utilizar a questão ecológica em suas lutas, mesmo que estas não fossem a sua prioridade estratégica, a exemplo da ação dos seringueiros da Amazônia.152 O autor apresenta, em seguida, uma breve retrospectiva histórica das políticas ambientais desenvolvidas no âmbito federal e no Rio Grande do Sul, ao longo das décadas de 1970 e 1980. Com respeito à política do governo brasileiro para este setor, Rodrigues destaca alguns pontos, neste período. Em primeiro lugar, a criação da SEMA, em 1973, no momento em que ocorria uma situação concreta de pressão da opinião pública diante da poluição industrial gerada pela fábrica de celulose Borregaard, na cidade de Guaíba, em frente a Porto Alegre. Mas as políticas ambientais tinham objetivos limitados, no período, pois procuravam apenas reduzir a degradação ambiental que poderia comprometer algumas áreas, através de ações isoladas. De qualquer forma, no II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), vigente entre 1975 e 1979, foram definidas prioridades para o controle da poluição, bem como foram definidas determinadas áreas como sendo críticas, entre estas as regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Porto Alegre e as regiões industriais de Cubatão e Volta Redonda, além das bacias hidrográficas dos rios Tietê, Paraíba do Sul e do Rio Jacuí e Lago Guaíba. As medidas de proteção ambiental foram consolidadas pelos Decretos n° 1413 e n° 76.389, ambos de 1975, os quais definiam as medidas de controle da poluição industrial, dando aos governos estaduais o poder de impedir, ainda que apenas temporariamente, as atividades poluidoras adotando padrões de qualidade do ar e de qualidade mínima das águas. Dentro deste espírito, diz o autor, são estabelecidas normas e padrões de qualidade do ar e da água, instituindo programas 152 Idem, pp. 131-135. Neste ponto de seu trabalho, o autor toma como referência VIOLA, Eduardo, op. cit., 1987, e PÁDUA, José A., op. cit., 1991. 129 específicos de controle da poluição, entre estes o Programa Nacional de Qualidade das Águas (PROAGUA). Nesta abordagem estratégica, a negociação entre as empresas privadas e os órgãos do Estado era feita sobre os meios técnicos de controle da poluição. A prioridade fica restrita às áreas urbanas, onde há uma maior concentração populacional, com acentuada poluição industrial, e as iniciativas dificilmente eram integradas. O problema ambiental era relegado a um segundo plano, e tratava-se somente do efeito da atividade industrial, a poluição das águas, ar e solo.153 Com respeito à política ambiental desenvolvida pelo estado do Rio Grande do Sul, Rodrigues destaca os pontos seguintes: (i) o Decreto 29.103 de 1979, que estabelece o Sistema Estadual de Proteção Ambiental; (ii) a criação da Secretaria de Saúde e Meio Ambiente (SSMA) e de um órgão de execução de política ambiental, o Departamento de Meio Ambiente (DMA) vinculado à mesma, por meio da Lei n° 7488, e do Decreto n° 30.527, ambos de 1981; (iii) a integração nesse sistema de órgãos como o DMA, a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB), o Departamento de Recursos Naturais Renováveis (DRNR) e o Instituto Ataliba Paz (vinculado à Secretaria da Agricultura); (iv) a estruturação pelo governo do Estado, na década de 1980, de um programa de proteção dos recursos naturais renováveis e de controle da poluição industrial, o Programa 77 – Proteção ao Meio Ambiente, incluído na área de saneamento, que correspondia à Função 13 do programa de desenvolvimento estadual. O último ponto abordado por Rodrigues, e o mais significativo para a presente discussão, diz respeito à avaliação feita pelas entidades integrantes da APEDEMA/RS dos resultados de sua participação na política ambiental neste estado. Em pesquisa realizada em 1993, 85% das entidades entrevistadas indicaram a introdução de medidas específicas de prevenção como um ponto relevante, quanto à repercussão política das suas atividades. As principais medidas indicadas diziam respeito à adoção (sob exigência) de medidas não poluentes pela Riocell e pelo Polo Petroquímico; pela preservação ambiental dos Parques Estaduais (somado à criação de novos parques); 153 Idem, pp. 106-108. Rodrigues toma como referência, aqui, uma análise sobre a política ambiental desenvolvida pelo governo brasileiro, neste período, por MONOSOWSKI, Elisabeth. As políticas ambientais e desenvolvimento no Brasil. In: Cadernos Fundap, São Paulo, v. 9, n° 16, pp. 15-24, jun 1989. Esta autora considera que a criação da SEMA se deu, em grande medida, como uma resposta a pressões externas, no contexto da Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, e como forma de esvaziar qualquer bandeira oposicionista que pudesse surgir usando este tema (Idem, p. 106). E também que as políticas adotadas teriam privilegiado apenas um problema e um agente (a poluição causada pelas indústrias), e uma responsabilidade do Estado, o controle da emissão de poluentes (Idem, p. 108). 130 pelas medidas para frear o desmatamento, a erosão, a poluição e o controle do lixo (coleta seletiva, reciclagem); e as medidas de educação ambiental efetuadas.154 A dissertação de mestrado em História de Vânia Fonseca Soares foi apresentada em 2002, tendo como tema a atuação dos movimentos sociais em Porto Alegre, no contexto da “abertura” política brasileira, no período de 1979 a 1985. Neste trabalho a autora faz uma distinção entre os movimentos sociais “tradicionais”, ou “reivindicativos”, e os “novos movimentos sociais”, tomando por referência autores como Ernesto Laclau, Ilse Scherer-Warren e Sérgio Azevedo e Antônio Prates.155 Os movimentos do segundo tipo se distinguiriam dos primeiros, de acordo com Soares, por apresentarem um caráter mais abrangente em suas demandas, como as apresentadas pelos movimentos ecologistas, de defesa dos direitos das mulheres e de defesa dos direitos humanos como um todo, ultrapassando as questões trabalhistas e as reivindicações setorizadas e de categorias profissionais específicas. Estes “novos movimentos sociais” teriam se desenvolvido inicialmente nos países plenamente industrializados do núcleo central do sistema capitalista, na América do Norte e Europa Ocidental, expandindo-se, logo em seguida, para outras regiões, sendo que na América Latina, dada a conjuntura então ainda prevalente de subdesenvolvimento e carências de democracia política, acabaram por incorporar, conforme a autora, muitas das reivindicações de conteúdo mais “tradicional”, como as ligadas aos direitos mínimos de cidadania e das necessidades básicas das pessoas. A autora procurou enfocar, neste trabalho, a atuação dos movimentos ecologista e de defesa dos direitos humanos, bem como a articulação destes com os demais movimentos de caráter reivindicativo e com a oposição político-partidária aos governos da ditadura civil-militar, no âmbito local e regional, em dois momentos sucessivos, dentro do processo de “abertura” política: o que levou ao retorno das eleições diretas para os governos estaduais, em 1982, e o que levou ao fim desse regime, em 1985, após a eleição, por via indireta, de um presidente civil da aliança oposicionista, e à instalação de um Congresso Nacional com poderes 154 Idem, pp. 147-148. Tabela VII – Repercussão Política das Atividades das Entidades Ambientalistas (Fonte: Pesquisa com as Associações Ambientalistas membros da APEDEMA/RS, UFRGS, 1993) 155 SOARES, Vânia Fonseca, op. cit., pp. 16-20. A autora cita os seguintes trabalhos destes autores: (i) LACLAU, Ernesto. Tesis acerca de la forma hegemónica de la política. In: DEL CAMPO, Julio Labastida Martín (coord.). Hegemonía y alternativas políticas en América Latina. México: Siglo XXI, 1985; (ii) SCHERER-WARREN, Ilse. O caráter dos movimentos sociais. In: SCHERER-WARREN, Ilse, KRISCHKE, Paulo J. (orgs.). Uma Revolução no Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 35-53; (iii) AZEVEDO, Sérgio, PRATES, Antônio A. P. Planejamento Participativo, movimentos sociais e ação coletiva. In: Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Vértice, 1991. 131 constituintes, em 1986, que iria elaborar a nova Constituição Federal, promulgada em 1988. Tendo como fontes principais a imprensa local e a documentação do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Porto Alegre, o trabalho de Soares abordou alguns pontos referentes à atuação dos integrantes das organizações ligadas à defesa do meio ambiente no período, entre os quais podem ser destacados os seguintes, por sua relação com o tema da presente dissertação: as reivindicações ao governo estadual, no sentido da criação de programas voltados à recuperação ambiental da bacia do Guaíba, e os questionamentos à instalação do Polo Petroquímico de Triunfo, um grande complexo industrial situado às margens de um dos afluentes do Guaíba, o Caí, junto à região metropolitana de Porto Alegre, o qual iniciou suas operações em 1982, em especial quanto ao tratamento e destinação de seus efluentes líquidos. Com relação ao primeiro ponto, a autora lembra que entidades ligadas ao “movimento ecologista” local, como a AGAPAN e a ADFG, juntamente com o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), entregaram ao governador do estado do Rio Grande do Sul, José Augusto Amaral de Souza, em junho de 1980, uma carta onde lamentavam o fato de que o Plano Estadual de Proteção Ambiental, lançado no início do seu governo, no início do ano anterior, e que tinha entre seus objetivos o saneamento da bacia hidrográfica do Guaíba, ainda não começara a ser posto em prática, bem como manifestavam sua preocupação com a ausência de uma política efetiva voltada ao controle ambiental. No manifesto, lançado para marcar a Semana do Meio Ambiente, estas se mostravam preocupadas com a falta de uma “política global de preservação ecológica”, conforme anunciaram à imprensa local. O presidente do MDJH, Jair Krischke, a este respeito, declarou que “a falta de uma política nesta área possibilita a proliferação de uma série de organismos a nível municipal e estadual”, responsáveis, no seu entender, “pela pulverização dos já limitados recursos governamentais, não acrescentando resultado positivo algum”. Os autores do documento encaminhado ao governador ainda denunciavam que, “com a falta de uma política ecológica”, o governo do estado optara pela criação de um organismo que se ocuparia somente com os recursos hídricos, “alienando-se desta forma de todos os demais elementos que formam o ecossistema”. O manifesto afirmava que “preocupar-se com o ecossistema ou com o meio ambiente significa preocupar-se com um todo, e não com determinados setores.” Neste anúncio à imprensa, Krischke ainda declarou que “é preciso cobrarmos do 132 governador do Estado todas as promessas que ele fez ao assumir a chefia do Estado, como por exemplo, a despoluição do Rio Guaíba”.156 Vânia Soares associa esta carta à imediatamente posterior divulgação, através da imprensa, dos planos do governo estadual para a recuperação da bacia do Guaíba, envolvendo um programa de investimentos de 11 bilhões e 700 milhões de cruzeiros – o equivalente a cerca de 222 milhões de dólares ao câmbio de então, até o final da administração Amaral de Souza. Com estes recursos deveria ser implantado na Região Metropolitana de Porto Alegre um sistema de coleta e tratamento de esgotos cloacais, visando impedir a contaminação desta bacia, dentro do que seria posteriormente denominado de “Projeto Rio Guaíba” (Figura 11).157 As críticas então ouvidas na CMPA, por parte de representantes oposicionistas, mostra a autora, diziam respeito à lentidão com que vinha sendo conduzido o projeto.158 A autora também aborda a atuação de integrantes do “movimento ecologista” gaúcho no sentido de minimizar os impactos do Polo Petroquímico de Triunfo nas águas da bacia do Guaíba, ou, até mesmo, de tentar impedir sua instalação. Estas polêmicas, em que os ambientalistas se colocaram numa posição de defesa dos interesses da comunidade local, assim gestionando frente às empresas do futuro complexo, capitaneadas pela estatal Petrobrás, através de sua controlada Copesul, e às autoridades públicas estaduais, ocorreram principalmente no período de finalização do projeto e de construção do mesmo, entre 1979 e 1982. Soares destaca os seguintes pontos, no que concerne a estes embates: (i) a discussão acerca da destinação dos efluentes líquidos do Polo, se a montante ou a jusante do ponto de captação da água para o abastecimento de 156 Entidades ecológicas cobram promessas feitas pelo Governo, In: Zero Hora, Porto Alegre, 04/06/1980, p. 34. Os representantes destas entidades se referem, aqui, à criação, pelo governo estadual, do CONRHIRGS – Conselho de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul (tema abordado no capítulo 5 deste trabalho). 157 SOARES, Vânia Fonseca, op. cit., pp. 85-86. A autora cita aqui a seguinte matéria: Onze bilhões para deter poluição no estuário do Guaíba, In: Correio do Povo, Porto Alegre, 02/07/1980, p. 13. 158 A autora reporta os questionamentos feitos pelo líder do PDT, vereador Glênio Peres, durante o período de debates do projeto, em especial quanto às modificações introduzidas por parte da bancada governista, as quais provariam, para ele, que o projeto teria chegado à Câmara sem uma “harmoniosa coligação” (Idem, p. 87; a autora cita matéria publicada em 04/01/1981, no Correio do Povo, de Porto Alegre). Na sua fase de execução, Soares cita os questionamentos feitos pelos vereadores Valdir Fraga, do PDT, em pronunciamento na CMPA, e Antonio Cândido, do PT, o qual fora eleito, em 1978, pelo MDB, ainda no período do bipartidarismo. É interessante assinalar, aqui, as expectativas então existentes com respeito à recuperação da balneabilidade do Guaíba. Para o vereador petista, [a lentidão do projeto] “permite-nos acreditar que dentro de um lustro o Guaíba não será balneável”, enquanto que o diretorgeral do DMAE, Lázlo Bohm afirmou que os resultados surgiriam nunca antes de cinco anos, mas certamente após dez anos, e o vereador do situacionista PDS, Jorge Goularte, defendendo o projeto, disse que “em breve a população porto-alegrense começará a receber os benefícios do convênio assinado” (Idem, p. 93; a autora cita matéria publicada em 05/08/1982, no Correio do Povo, de Porto Alegre). 133 Porto Alegre, no Lago Guaíba; (ii) a preocupação de entidades como a AGAPAN e de alguns políticos oposicionistas no sentido de que a geração de resíduos do complexo atendesse a padrões aceitáveis de preservação ambiental, estabelecidos por organismos credenciados para tanto, contraposta à posição do governo, de salientar as vantagens trazidas pelo projeto, inclusive quanto à geração de empregos; (iii) além da preocupação de ativistas do “movimento ecológico” e de políticos da oposição, quanto à poluição do lago trazida pelo lançamento dos efluentes, mesmo que tratados, havia receio de moradores da região sul do estado, quanto ao comprometimento do potencial pesqueiro da Laguna dos Patos e da atividade turística dos municípios situados a suas margens, não obstante a posição defendida por técnicos da CORSAN, no sentido de que os efluentes não teriam impactos, se fossem adequadamente tratados; (iv) os questionamentos de entidades do “movimento ecológico”, como a AGAPAN, com respeito aos reais benefícios de complexos industriais deste tipo para a população em geral, em face dos altos investimentos necessários para sua instalação, e a realização de atos públicos contra a instalação do Polo Petroquímico e o lançamento de seus efluentes no Guaíba ou na Laguna dos Patos.159 É possível dizer que foi como resultado desta pressão, em grande parte, que a ALERGS aprovou uma lei, de autoria do deputado oposicionista Lélio Souza, do PMDB, proibindo o lançamento direto dos efluentes do Polo Petroquímico de Triunfo, independente do seu grau de tratamento, em águas superficiais. Esta lei foi aprovada em junho de 1982, com o substitutivo introduzido por Roberto Cardona, também do PMDB, determinando a disposição destes efluentes na própria área do complexo, após o adequado tratamento (Lei Estadual 7.691/1982).160 159 Em nota distribuída à imprensa, a AGAPAN questionava o que via como falta de transparência e priorização de recursos para empreendimentos como o Polo Petroquímico de Triunfo, em detrimento de outras demandas mais prementes para a população: “Há total falta de informações, populares e técnicas, sobre a construção do III Polo Petroquímico, para onde estavam sendo canalizados recursos obtidos através de empréstimos no exterior. Os recursos investidos no Polo deveriam ser canalizados para atender às reais necessidades da população, como a promoção da reforma agrária.” Ver: Correio do Povo, Porto Alegre, 06/08/1981 apud SOARES, Vânia Fonseca, op. cit., pp. 89-90. Em manifestação realizada na Praça da Alfândega, centro de Porto Alegre, com a presença de forte aparato militar, dez oradores falaram diante de cerca de 500 pessoas, pedindo a suspensão das obras do Polo, para discussão, diante da grande desinformação sobre seus efluentes. Na ocasião, Caio Lustosa, representante da AGAPAN, lembrou os problemas de saúde existentes na cidade de Cubatão, onde estava localizadas as primeiras indústrias petroquímicas do Brasil. Ver: Idem, p. 90. 160 O texto deste projeto de lei, aprovado em primeira votação em dezembro de 1981 determinava que “O Poder Executivo ficaria obrigado a dispor os efluentes líquidos do Pólo Petroquímico na área do mesmo, após tratamento primário, secundário e terciário, observadas as disposições legais e constitucionais vigentes, sendo vetado o lançamento direto ou indireto em cursos de águas naturais, fluviais ou lacustres”. Ver: Idem, p. 94. O que ocorreu, de fato, apesar do texto da lei proibir inclusive o seu lançamento indireto em águas superficiais, foi a disposição destes efluentes no solo, na área co complexo, depois dos tratamentos secundário e terciário, realizados no Sistema de Tratamento de Efluentes Líquidos (SITEL), operado pela CORSAN, em lagoas criadas especificamente para este fim, junto ao Rio Caí, um dos 134 Pioneiros da ecologia: breve história do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul, obra dos jornalistas Elmar Bones e Geraldo Hasse, foi publicada inicialmente em 2002, contendo depoimentos e memórias de pessoas de destaque nos primeiros anos do ambientalismo gaúcho, como José Lutzenberger, que faleceu neste mesmo ano. Seus objetivos, servir como fonte jornalística e também de inspiração para as novas lideranças do “ativismo ecológico”, estão expressos logo na apresentação da segunda edição, de 2007, bem como no seu texto introdutório, “O despertar ecológico”.161 O livro está estruturado em três partes, apresentadas em sequencia: “Fatos Históricos”, “Depoimentos” e “Textos e documentos”. Na primeira parte, busca mostrar um panorama histórico, do processo de colonização do Brasil, com suas características predatórias, à recente institucionalização de sistemas de proteção ambiental no Rio Grande do Sul, passando pela atuação de pessoas e entidades precursoras e pioneiras na defesa de causas ambientais no estado e no país, como o naturalista e padre jesuíta Balduíno Rambo, Henrique Roessler, José Lutzenberger e a AGAPAN, pelas reações ao impacto da poluição industrial na região do Vale do Rio dos Sinos e por iniciativas de associar a preservação do meio ambiente com a racionalidade econômica, como a reciclagem do lixo urbano. Na terceira, apresenta textos selecionados de alguns destes personagens, reportagens ou perfis jornalísticos produzidos sobre os mesmos no período em que estavam em atividade, manifestos divulgados pelo “movimento ambientalista” e textos de leis voltadas à proteção ambiental. A segunda parte do livro é a que apresenta maior relevância para os objetivos deste trabalho, pois apresenta depoimentos de diversas pessoas que ocuparam posições de destaque no ativismo ambientalista, ao longo do período em estudo, servindo como fonte de informações tanto sobre as grandes afluentes do Lago Guaíba, e que integram uma área utilizada para preservação de flora e fauna nativas e monitoramento dos impactos ambientais das operações do Polo de Triunfo. O histórico desta questão ambiental, a partir de um ponto de vista técnico e empresarial da indústria petroquímica pode ser visto em ABREU, Percy Louzada de. A epopéia da petroquímica no sul: história do pólo de Triunfo. Florianópolis: Expressão, 2007 (em especial no capítulo “Questão ambiental”, pp. 234-255). O autor foi o executivo da Petrobrás que esteve a cargo da implantação do Polo, e da sua etapa inicial de operações, entre 1976 e 1983. 161 BONES, Elmar, HASSE, Geraldo, op. cit., p. 9 (Apresentação escrita por Guilherme Kolling, jornalista que realizou as entrevistas com José Lutzenberger, para a primeira edição): “O livro cumpriu com sua proposta de resgatar memórias que serão indispensáveis para os que vão contar a história e para os que vão dar continuidade a ela: a obra foi lida por novas lideranças do ativismo ecológico e, nos últimos cinco anos, contribuiu para vários novos livros sobre o tema.” O texto prossegue, mencionando a utilização do livro como referência para as biografias de Lutzenberger e de Henrique Luís Roessler, escritas, respectivamente, pelos jornalistas Lilian Dreyer e Ayrton Centeno. No texto introdutório, os autores afirmam: “Este livro é um relato jornalístico, que não pretende ser história. Pretende resgatar memórias que serão indispensáveis para os que vão contar a história e para os que vão dar continuidade a ela.” (Idem, p. 15). 135 percepções e atuação deste segmento em relação aos problemas ambientais do Guaíba, quanto sobre as mudanças ocorridas nas relações do mesmo com a sociedade em geral, com os partidos políticos e com as instâncias de governo. Acredito, mesmo, que estes depoimentos, tomados em seu conjunto, possam servir como um indicador do posicionamento do ativismo ambientalista no estado frente às primeiras iniciativas governamentais tomadas para a recuperação do lago e de sua bacia, na região metropolitana de Porto Alegre, nos anos 1980, tanto pelos conteúdos quanto pela ausência de menções ao tema, por parte de vários entrevistados. Figura 11. Manifestações do Movimento Ecologista e do Governo do Estado sobre a despoluição do Guaíba – 1980 Esta parte do trabalho reúne depoimentos de oito lideranças do ambientalismo gaúcho, em seu período inicial de atuação, até o início dos anos 1980, e de uma do período imediatamente posterior, quando este segmento encaminhou-se no sentido de 136 uma maior institucionalização.162 Neste conjunto podem ser vistas várias declarações com respeito à poluição do Guaíba em consequência de despejos industriais, da produção agropecuária, ou por esgotos e lixo urbanos, por parte de José Lutzenberger, Flávio Lewgoy, Caio Lustosa, Giselda Castro e Magda Renner, com ênfase nos impactos da instalação do Polo Petroquímico de Triunfo.163 Estão presentes críticas de Lutzenberger, com respeito às concepções técnicas adotadas pelas empresas de saneamento locais para a instalação de sistemas de coleta e tratamento de esgotos domésticos urbanos, a partir dos anos 1960, e de Lustosa, quanto aos programas para a recuperação ambiental do lago e de sua bacia, como o “Projeto Rio Guaíba”, lançado pelo governo do estado em 1981.164 E também os depoimentos de Hilda Zimmermmann, Magda Renner e José Celso Aquino Marques sobre a atuação dos ambientalistas frente ao poder público estadual, para a criação de áreas de preservação ambiental na região metropolitana de Porto Alegre, como os parques estaduais de Itapuã e do Delta do Jacuí.165 Cabe destacar que o enfoque empregado por estas lideranças, na maior parte de seus comentários, traduzia, antes de tudo, uma postura crítica, com respeito ao que viam como sendo a falta de uma preocupação mais efetiva das 162 As lideranças entrevistadas do primeiro grupo foram José Antonio Lutzenberger, Augusto César Cunha Carneiro, Flávio Lewgoy, Caio Lustosa, Sebastião Pinheiro, Hilda Zimmermmann, Giselda Escosteguy Castro e Magda Renner. O engenheiro agrônomo José Lutzenberger foi um dos fundadores da AGAPAN, sendo seu presidente de 1971 a 1982. Augusto Carneiro, também fundador desta entidade, foi seu tesoureiro entre 1971 e 1983. O advogado Caio Lustosa ingressou na AGAPAN logo após a fundação, sendo seu vice-presidente de 1978 a 1981. Flávio Lewgoy, químico e especialista nos impactos genéticos da poluição, ingressou nesta associação em 1973, sendo seu vice-presidente em 1982, e presidente entre 1983 e 1986. Sebastião Pinheiro, engenheiro agrônomo e florestal, foi vice-presidente da AGAPAN entre 1984 e 1986. Hilda Zimmermmann foi uma das fundadoras desta entidade. Giselda Castro e Magda Renner estiveram entre as fundadoras da ADFG, entidade criada em 1964 com finalidades políticas, e que se transformou, a partir de 1998, no Núcleo Amigos da Terra do Rio Grande do Sul, tendo atuado em conjunto com a AGAPAN, em iniciativas de defesa do meio ambiente, desde 1972. No segundo grupo, foi entrevistado José Celso Aquino Marques, que presidiu a AGAPAN entre 1987 e 1992. Ver: Idem, pp. 44, 161-162, 173 e 181. 163 Depoimentos de José Lutzenberger: (i) sobre a poluição do Arroio Dilúvio, afluente do Guaíba em Porto Alegre (“Porto Alegre antiga”, pp. 70-71); (ii) com respeito à poluição dos cursos d’água por agrotóxicos (“Campanha dos agrotóxicos”, pp. 75-77), de Flávio Lewgoy, sobre a poluição do Guaíba por lançamentos industriais, agropecuários e domésticos (“Guaíba está no limite”, p. 134). De Caio Lustosa, com respeito à legislação aprovada evitando o lançamento direto dos efluentes do Polo Petroquímico nos rios da bacia do Guaíba (“Pólo petroquímico”, pp. 139-140), de Giselda Castro (“Pólo Petroquímico”, pp. 173-174), e de Magda Renner (“Um pólo em Marte”, pp. 190-191), sobre o mesmo tema. 164 Depoimentos de José Lutzenberger: (i) sobre a instalação do emissário para o lançamento de esgoto cloacal de Porto Alegre, in natura, no canal de navegação do Guaíba, no final dos anos 1970 (“Quando cloaca vira emissário”, p. 77); (ii) de Caio Lustosa, sobre sua atuação, na Câmara Municipal de Porto Alegre, em CPI relativa ao “Projeto Rio Guaíba”, em meados dos anos 1980 (“Vereador e secretário”, pp. 140-142), um ponto a ser abordado na próxima seção deste capítulo. 165 Depoimentos de Hilda Zimmermmann: (i) sobre as ilhas do Delta do Jacuí (“Ilhas de Porto Alegre”, p. 163); (ii) sobre o Parque de Itapuã (“Pedreiras de Itapuã”, pp. 164-165), de Magda Renner, sobre as ilhas do Delta do Jacuí (“Ilhas e coleta seletiva”, pp. 183-184), e de José Celso Aquino Marques, sobre a criação do Parque de Itapuã (“Campanhas, pp. 148-149). 137 autoridades de todos os níveis com a preservação da natureza, do que com questões que tendiam a ver como mais “pontuais”, entre estas o próprio saneamento básico e suas carências na região e no país. Mas também deve ser destacada a existência de um viés crítico ao que entendiam como uma preferência por soluções de cunho “tecnocrático”, as quais levavam à formulação de grandes programas de investimentos, para dar conta de problemas que poderiam ser solucionados através de alternativas mais simples e menos dispendiosas. Neste sentido, cabe lembrar um dos comentários feitos por José Lutzenberger em seu depoimento ao plenário da CMPA, na Semana do Meio Ambiente, em 2001, sobre as alternativas então adotadas para o tratamento dos esgotos de Porto Alegre, dentro dos programas “Guaíba Vive” e “Pró-Guaíba”: Estamos tocando em um aspecto importante, aliás, eu tenho briga com o DMAE e com a CORSAN: eles querem soluções tecnocráticas, caras. Olha o que fizeram no Lami: aqueles imensos lagos retangulares para decantar esgoto. Eles superdimensionaram aqueles tanques de esgoto – no verão se vê até moleques tomando banho lá dentro -, assim como fizeram em Ipanema e agora ao lado do aeroporto. Poderiam fazer uma coisa bem menor e descentralizada. Os esgotos devem ser tratados dentro das bacias de captação. Claro que, nas regiões centrais, onde tem aqueles imensos espigões, não dá para fazer algo muito simples, ali tem mesmo que fazer um projeto mais tecnocrático, levar o esgoto para longe. Até acho que o esgoto do centro de Porto Alegre deveria passar por baixo do rio e ser trabalhado naqueles banhados lá do outro lado, onde é possível obter soluções biológicas muito lindas. Agora, ouvi que querem levar o esgoto de Porto Alegre para Serraria! São mais de 20 quilômetros, que absurdo isso. Uma solução caríssima, não tem sentido. 166 A seleção de uma alternativa adequada para a disposição dos esgotos da área central de Porto Alegre era, de fato, uma questão bastante complexa, que dividia opiniões tanto entre os técnicos da área de saneamento como entre os ambientalistas, vindo a ter desdobramentos ao longo dos anos seguintes. 3.3. O fracasso do “Projeto Rio Guaíba”: falhas de concepção, esgotamento do modelo BNH/PLANASA, resistência do DMAE e críticas dos ambientalistas Primeira iniciativa para a recuperação ambiental do lago, o “Projeto Rio Guaíba” foi lançado pelo governo do estado do Rio Grande do Sul, em 1980, contemplando a realização de obras para dotar Porto Alegre e sua região metropolitana de uma infraestrutura ampliada de saneamento básico, com redes de coleta e estações de tratamento de esgotos sanitários.167 O programa se enquadrava nas diretrizes da política 166 Depoimento de José Lutzenberger, sobre as alternativas para o tratamento dos esgotos de Porto Alegre (“Soluções tecnocráticas”, p. 78). 167 De acordo com PINTO, Leila, MOHR, Udo. Guaíba Vive. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1989 (relatório de divulgação e discussão do Programa Guaíba Vive), p. 27 (“Guaíba Vive” – Programa de Recuperação do Guaíba; 7. Saneamento da Bacia), o “Projeto Rio Guaíba”, como programa para a despoluição do lago e sua bacia na Região Metropolitana de Porto Alegre, foi uma das recomendações do relatório do Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia do Guaíba (CEEIG), de 1980. De acordo com CÁNEPA, Eugenio Miguel, GRASSI, Luiz Antonio Timm. Os Comitês de Bacia 138 então mantida pelo governo federal para o setor de saneamento básico, através do PLANASA e de seu agente financeiro, o BNH, as quais preconizavam o progressivo controle deste setor nas mãos das companhias estaduais de saneamento, em especial em seus projetos de expansão. A implantação deste projeto envolvia, deste modo, a transferência das receitas obtidas pelo DMAE com as tarifas de coleta de esgotos para a CORSAN, que ficaria responsável pela instalação e operação das novas estações de tratamento em Porto Alegre. Por esta razão, a aprovação do convênio entre estas duas entidades, e entre os governos municipal e estadual, necessária para a realização da parcela de maior peso do mesmo, enfrentou forte resistência, não apenas entre os dirigentes e técnicos do DMAE, mas na própria CMPA, onde terminou ocorrendo por uma estreita maioria, de 11 contra 10 vereadores, em janeiro de 1981, sendo este convênio assinado no mês seguinte, envolvendo a construção de mil quilômetros de redes de esgoto cloacal e quatro estações de tratamento em Porto Alegre, na Ponta da Cadeia, São João-Navegantes, Sarandi e Zona Sul, dentro de um prazo de cinco anos, prorrogáveis por igual período. O protocolo entre a União, através do Ministério do Interior, e o governo do estado, estabelecendo as condições gerais para a execução do “Projeto Rio Guaíba”, programa visando à despoluição do lago, e que demandaria a execução de obras de coleta e tratamento de esgotos em toda a região metropolitana de Porto Alegre, com investimentos estimados em 2,5 bilhões de cruzeiros, foi assinado no final deste ano. Em fevereiro de 1982 foram autorizados os editais para a execução da sua primeira fase, que deveria envolver investimentos da ordem de 140 milhões de dólares.168 As fontes principais de informações referentes aos posicionamentos do DMAE frente ao “Projeto Rio Guaíba” se encontram em publicações que abordam a atuação das no Rio Grande do Sul - uma experiência histórica, disponível em http://www.abesrs.org.br/rechid/comites-1.htm, acessado em março de 2012, p. 1, o CEEIG, criado em 1979, foi um dos Comitês de Estudos Integrados criados pelo governo federal, com o enfoque de levar a um gerenciamento dos recursos hídricos tendo como base a bacia hidrográfica (ver mais informações sobre este ponto no capítulo 5). 168 SOARES, Vânia Fonseca, op. cit., pp. 87 e 92. Com respeito às disputas entre o município de Porto Alegre, através do DMAE, e o governo do estado do Rio Grande do Sul, por meio da CORSAN, acerca do controle e da expansão dos serviços de coleta e tratamento de esgotos na capital gaúcha, ver: Porto Alegre e o rio. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 08/08/1980, p. 4. Um trecho deste editorial: “As discussões em torno da viabilidade da CORSAN estar ou não capacitada para executar o Projeto Rio Guaíba, uma vez que receba do DMAE recursos provenientes da arrecadação da taxa de esgoto, está fornecendo medidas dilatórias para um assunto que é vital para Porto Alegre e sua região metropolitana. Já foi esclarecido pelo Secretário Victor Faccioni que a CORSAN não trabalha em função do lucro, porque a ser assim estaria cobrando tarifas de água e esgoto mais elevadas, garantindo a apresentação de balanços lucrativos. A filosofia de trabalho da CORSAN é aplicar os recursos que lhe são repassados pelo PLANASA – Plano Nacional de Saneamento – e pelo Fundo de Água e Esgoto dentro de esquemas que oneram ao mínimo os usuários, sendo suas taxas sempre inferiores ao valor dos serviços prestados.” 139 estruturas responsáveis pelos setores de saneamento básico e de recursos hídricos em Porto Alegre, incluindo trabalhos acadêmicos, como A gestão de uma empresa pública de saneamento na voz de seus dirigentes – o caso do DMAE, de João Carlos Speggiorin, obras de divulgação como Histórias do abastecimento de água em Porto Alegre, de André Luiz Simas Pereira, e artigos da Revista Ecos, publicada pelo DMAE a partir de 1993, complementadas por matérias produzidas na imprensa em geral. É necessário observar que estas fontes apresentam, predominantemente, o ponto de vista dos quadros técnicos e burocráticos envolvidos nestes setores, e, em função disso, tendem a apresentar visões de um protagonismo muito acentuado, por vezes, destes quadros, frente quer aos obstáculos impostos pelos poderes públicos, quer a um desinteresse da sociedade em geral.169 No momento em que o projeto foi lançado, de todo modo, a atuação de um quadro técnico e gerencial envolvido com o saneamento básico, no âmbito da prefeitura de Porto Alegre, já vinha ocorrendo por um largo período, anterior, mesmo, à criação do DMAE, em 1961. A criação desta nova autarquia, respondendo diretamente ao prefeito municipal, visava dotar este ente responsável pelos serviços de abastecimento de água e tratamento de esgotos de uma maior autonomia, e, a viabilizar a necessária expansão dos seus serviços, e representou o atendimento a uma antiga aspiração de boa parte do grupo de técnicos envolvidos com o setor de saneamento básico e gestão de águas em Porto Alegre, mas também decorreu da exigência que vinha sendo feita então pelo BID, de que os governos municipais transferissem os serviços de saneamento básico da administração direta para empresas públicas ou autarquias, como condição para a concessão de empréstimos.170 169 Informações sobre a história dos serviços de saneamento básico no município de Porto Alegre, remontando a épocas anteriores à criação do DMAE, em 1961, podem ser vistas nas seguintes publicações: (i) ILHA, Flávio, WOLFF, Maria de Lourdes da Cunha. DMAE: orgulho do porto-alegrense. In: Revista ECOS. Porto Alegre: DMAE, n° 20, julho 2001, pp. 18-25, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista20/paginas.html, acessado em dezembro de 2011; (ii) PEREIRA, André Luiz Simas. Histórias do abastecimento de água em Porto Alegre. Porto Alegre: DMAE, 1991; (iii) SPEGGIORIN, João Carlos. A gestão de uma empresa pública de saneamento na voz de seus dirigentes – o caso do DMAE. Porto Alegre: UFRGS / PPG em Administração, 1999 (dissertação de mestrado), disponível em http://hdl.handle.net/10183/2224, acessado em dezembro de 2011, pp. 73-75 (no item 5.1.1. Antecedentes Históricos). 170 Em 1961, durante a segunda administração do prefeito José Loureiro da Silva, através da lei municipal 2.312, as atribuições da secretaria municipal de água e esgoto de Porto Alegre foram transferidas para o DMAE. De acordo com o depoimento de um de seus primeiros dirigentes, o engenheiro José Assumpção, a criação do DMAE atendeu a uma antiga aspiração de boa parte do grupo de técnicos envolvidos com o setor de saneamento básico e gestão de águas em Porto Alegre, que remontava, mesmo, aos anos 1920, quando tiveram início os contatos de intercâmbio com os quadros técnicos responsáveis por estas áreas na cidade de Buenos Aires, onde um sistema de gestão autárquica estava sendo adotado, depois de amplas discussões e visitas de técnicos à Europa e aos Estados Unidos. Ver: SPPEGIORIN, João Carlos, op. cit., 140 O déficit crescente no atendimento às necessidades de abastecimento de água e de instalação de esgotos, face ao aumento acelerado na população da cidade, já vinha sendo uma preocupação da administração municipal de Porto Alegre, pelo menos desde o início da década de 1950.171 Em 1966 o DMAE elaborou um Plano Diretor Geral para os Esgotos Sanitários (PGE), o qual previa um aumento substancial na área urbana servida pela rede de esgotos cloacais, e foi aprovado pelo BID, no ano seguinte. Tendo em conta o cenário restritivo de recursos financeiros, o PGE não contemplava o envio dos esgotos coletados para uma estação de tratamento, mas o seu lançamento in natura no canal de navegação do Guaíba, através de um emissário subfluvial, a partir da Ponta da Cadeia, na extremidade da península onde está situado o centro da cidade, o qual deveria substituir o despejo realizado diretamente no lago, junto à Ponta do Melo. O novo sistema entrou em funcionamento em 1978, mas, apesar das expectativas então manifestadas à comunidade local pelos dirigentes do DMAE, de que haveria uma melhora na qualidade das águas do lago, com a diluição deste esgoto não tratado no curso do Guaíba e, através deste, na Lagoa dos Patos, não houve a recuperação da balneabilidade das praias da zona sul da cidade. Em novembro de 1971, os resultados de uma primeira avaliação da qualidade das águas deste lago e de seus principais formadores foram apresentados pelo GPOL do DMAE, durante o 17° Congresso Brasileiro de Química, realizado em Porto Alegre, quando seus técnicos asseguraram que a água do lago ainda era adequada para o abastecimento da população, após o devido tratamento, mas alertaram para os impactos, no futuro próximo, da poluição gerada pelo crescente despejo de efluentes não tratados das diversas indústrias da região metropolitana de Porto Alegre. No entanto, a construção de quatro estações de pp. 75-78 (no item 5.1.2. A Arquitetura do Sonho). Um episódio que tem sido enfatizado em trabalhos sobre as “lutas” dos quadros técnicos e gerencias da área de saneamento básico da cidade é o fato de que a demanda destes pela criação de uma autarquia para os serviços de saneamento básico em Porto Alegre levou os engenheiros José Assumpção e Rubens Noronha, que depois seriam dirigentes do DMAE, nos anos 1960, a defender a ideia na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em 1951, o que lhes resultou numa advertência por parte do prefeito municipal, Ildo Meneghetti (PEREIRA, André Luiz Simas, op. cit., apud SPPEGIORIN, João Carlos, op. cit., pp. 77-78). 171 Em janeiro de 1951, o prefeito Ildo Meneghetti anunciou um plano de obras que previa, ao lado da construção da Avenida Beira-Rio, ligando o centro da cidade à zona sul, a instalação de uma usina para o tratamento do efluente cloacal da cidade, na Ponta do Melo, o que não foi levado adiante. Ver: Detalhes das obras necessárias à urbanização da Praia de Belas e saneamento do Menino Deus. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 18 de janeiro de 1951, p. 14 (contracapa). Ao longo dos anos 1950 e 1960, a Revista do Globo publicou várias matérias sobre os problemas da cidade, incluindo o saneamento básico, nenhuma delas abordando diretamente, no entanto, o problema da poluição crescente do Guaíba e de suas praias. Ver: Nem praia nem avenida, 1950, n° 522, pp. 50-52 e 66; Água, esse fator de felicidade coletiva, 1956, n° 681, pp. 84-87 (fotorreportagem de Léo Guerreiro); Uma cidade e doze problemas, 1965, n° 911, pp. 26-33 (reportagem de Eduardo Pinto) – a matéria cita a insuficiência da rede cloacal, mas não a falta de tratamento). 141 tratamento de esgotos, e a extensão de redes de coleta para uma área urbana de 70 km², que constavam dos planos da autarquia desde o início dos anos 1970, não foram levadas adiante, por falta de recursos, mesmo com o início da cobrança pelo serviço de esgoto, instituída por lei municipal, em 1977.172 Neste contexto, com a expansão de seus serviços de abastecimento de água e de coleta e disposição de esgotos, e com o início de sua atuação na área de controle da poluição das águas, num momento em que as políticas de proteção ambiental e de gestão de recursos hídricos ainda eram incipientes, no Brasil e no Rio Grande do Sul, a configuração proposta para o saneamento básico em Porto Alegre e região metropolitana, através do “Projeto Rio Guaíba”, pelo governo estadual, com o endosso federal, através do sistema BNH/PLANASA, foi percebida pelo corpo gerencial do DMAE como uma grande ameaça ao desenvolvimento empresarial desta autarquia. É possível ver esta posição nos depoimentos de seus dirigentes sobre este período, contidos no trabalho de Speggiorin, como o de Wilson Guinatti, diretor-geral de 1983 a 1985, quando Porto Alegre ainda era administrada por prefeitos nomeados. O “Projeto Rio Guaíba”, para Guinatti, não teria passado de tentativa de absorção do DMAE pela CORSAN. E o dirigente viu nisto uma repetição do que havia sido buscado em 1969, sem êxito, pois a cidade já tinha, então, 90% da sua população servida por abastecimento de água, acima da meta de 80% estabelecida pelo PLANASA para as capitais brasileiras. Mas esta ideia ainda continuou a ser defendida, de acordo com Guinatti, mesmo por uma parte dos quadros do DMAE, apoiando-se em que a cobertura por rede de esgotos sanitários de Porto Alegre, em torno de 50%, ainda estava abaixo da meta do PLANASA, de 65%, para as capitais, configurando isto uma oportunidade para retirar do DMAE a responsabilidade pela operação e execução de obras deste subsistema do saneamento básico.173 Guinatti procurou mostrar, na sequencia de seu depoimento, tanto as implicações da configuração inicial do “Projeto Rio Guaíba”, quanto os esforços realizados pelos quadros do DMAE no sentido de modificar, ou mesmo, postergar ou inviabilizar a execução deste projeto, assegurando assim, em sua visão, a continuidade da expansão 172 SPEGGIORIN, João Carlos, op. cit., p. 114. Estes planos constavam da mensagem do diretor-geral do DMAE, no Relatório Anual de 1977, e a Lei Municipal nº 4326, de 31/10/1977, instituía a tarifa de esgoto, com valor equivalente a 80% da tarifa de água. Sobre o progressivo abandono destes planos, diz o autor: “Nos anos subseqüentes, até 1982, o tom das manifestações em relação ao sistema de disposição de esgotos mudou radicalmente, enfatizando a insuficiência de recursos próprios para fazer frente às obras necessárias. Dessa ambiciosa meta restou apenas campanhas no sentido de que a população servida com a rede de esgotos ligasse a rede predial à rede do DMAE, no sentido de aumentar o índice de coleta.” 173 Idem, pp. 119-120. 142 dos serviços de coleta e disposição de esgotos sanitários em Porto Alegre, da qual destacou alguns pontos. Os quadros da autarquia participaram de um modo intenso nos debates sobre o projeto na CMPA, entre outubro de 1980 e janeiro de 1981, através da Associação dos Engenheiros do DMAE – criada em 1979, e então presidida por este técnico. Como resultado desta participação, o “Projeto Rio Guaíba” sofreu as seguintes modificações: (i) o projeto e execução das obras de disposição de esgotos em Porto Alegre passaram à responsabilidade de uma equipe integrada, da CORSAN e do DMAE; (ii) esta autarquia manteve consigo as receitas da tarifa de esgoto dos sistemas já existentes, cabendo à CORSAN receber as tarifas do sistema a ser construído, mas apenas depois do lançamento de 20 quilômetros de novas redes e da conclusão das duas novas estações de tratamento de esgotos previstas. Já em 1983, com Guinatti ocupando o cargo de diretor-geral do DMAE, esta autarquia promoveu um seminário sobre as alternativas para o projeto da nova estação de tratamento de esgotos (ETE) do sistema da Ponta da Cadeia, que recebia cerca da metade do esgoto cloacal de Porto Alegre, envolvendo as duas entidades e as secretarias estaduais e municipais envolvidas com o tema, cujo relatório final, ao lado de indicar a Ponta do Melo como o local de instalação desta nova ETE, a ser construída pela CORSAN, recomendou que o “Projeto Rio Guaíba” deveria ser reestudado, “diante da nova realidade brasileira”, bem como deixou espaço para a retomada dos planos do DMAE para o subsistema de disposição de esgotos, através da realização de obras locais, como a de um interceptor, para a separação do esgoto pluvial do cloacal, no bairro praiano de Ipanema, bem como de esforços no sentido de ampliar as ligações à rede existente de esgoto cloacal, de modo a minimizar os despejos no Arroio Dilúvio através da rede pluvial, outra grande fonte de poluição do Guaíba.174 A implantação do projeto, de toda forma, vinha ocorrendo de forma muito lenta, o que também era uma consequência dos efeitos da crise econômica que se intensificara no período, comprometendo a capacidade do Estado brasileiro de 174 Idem, pp. 120-122. De acordo com Guinatti, em seu depoimento a Speggiorin, a Associação dos Engenheiros do DMAE apresentou outras duas propostas de alterações ao “Projeto Rio Guaíba”, ambas rejeitadas, uma prevendo um significativo aumento na tarifa de esgotos, de modo a garantir um incremento de 15% nos investimentos no sistema de coleta e tratamento de esgotos, com recursos próprios da autarquia, outra, posterior, propondo postergar a execução deste projeto, ao condicionar sua aprovação para o momento em que a CORSAN conseguisse atingir o mesmo nível de cobertura de população servida por rede de esgoto de Porto Alegre, então em torno de 50%, nas demais cidades por ela atendidas, na bacia formadora do Guaíba, na região metropolitana da capital. Diz o autor, ainda, que, para Guinatti, “o Projeto Rio Guaíba não passava de uma cópia de um projeto recomendado pelo DMAE à Magna Engenharia em 1973, com o objetivo de desdobrar e ampliar o Plano Geral de Esgotos elaborado em 1966.” O Arroio Dilúvio é o principal afluente do Guaíba em Porto Alegre. Tem as nascentes no município de Viamão, e atravessa a capital, canalizado, numa extensão de mais de dez quilômetros. 143 financiar os investimentos em infraestrutura e nos setores industriais básicos. Assim, ao final de 1984, pouco antes do fim do período ditatorial, só haviam sido instalados 52 km de redes de esgotos, com custos muito superiores aos inicialmente previstos, já sob o impacto do processo inflacionário que se acelerava, o que tornou necessária a obtenção de novos empréstimos do Banco Mundial, através do BNH 175 Mas, além dos efeitos da crise econômica e das objeções interpostas pelo DMAE, através de seus quadros técnicos e gerenciais, o “Projeto Rio Guaíba” também sofreu questionamentos de ambientalistas, como o vereador Caio Lustosa, eleito em 1982, pelo PMDB, como um dos primeiros representantes do “movimento ecológico” a ingressar no poder legislativo, no estado e no país. Em 1985, por solicitação de Lustosa, foi instalada na CMPA uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), tendo como objetivo, disse o vereador, “estudar o projeto e suas conseqüências e, se necessário, proceder à anulação do contrato que o viabilizou.” Na opinião de Lustosa, este projeto, conquanto significasse, em tese, “algo necessário com vistas à melhoria da qualidade das águas do Lago que banha Porto Alegre”, somente seria justificável “dentro de um programa de descontaminação de toda a bacia hidrográfica de que faz parte este corpo d’água (que compreende cerca de 40% do território do Rio Grande do Sul).” O ambientalista argumentou que, no entanto, o projeto, desde sua aprovação, em 1981, “representava [...] um plano demagógico, envolvendo grandes interesses financeiros, sem suficiente embasamento técnico (principalmente sem contemplar o estudo de suficientes alternativas) e um problema, inclusive do ponto de vista ambiental.” Em atendimento às recomendações do relatório final desta CPI, a concepção técnica do “Projeto Rio Guaíba” teve de ser revisada, com respeito ao processo a ser adotado nas estações de tratamento do esgoto cloacal, sendo proposta a substituição dos sistemas convencionais por lagoas de estabilização biológica. 176 175 SOARES, Vânia Fonseca, op. cit., p. 114. De acordo com a autora, já haviam sido gastos 22 bilhões de cruzeiros, sendo necessária um novo empréstimo, de 40 milhões de cruzeiros. 176 LUSTOSA, Caio. Contribuição para Avaliação do Relatório de Impacto Ambiental das Lagoas de Tratamento de Esgotos do Projeto Rio Guaíba. In: PINTO, Leila, MOHR, Udo. Guaíba Vive. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1989 (relatório de divulgação e discussão do Programa Guaíba Vive), p. 2. O uso de lagoas ou bacias de estabilização, conquanto demande a alocação de grandes superfícies, é uma das tecnologias mais eficazes para o tratamento de esgotos cloacais, em termos de impactos ambientais. Como exemplos de tecnologias convencionais para o tratamento deste tipo de resíduos podem ser citados os processos empregando tratamento anaeróbio, reatores biológicos rotativos, lodos ativados e lagoas aeradas (ref.: FONSECA, Alexandre Ribeiro. Tecnologias sociais e ecológicas aplicadas ao tratamento de esgotos no Brasil, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – FIOCRUZ, Dissertação de Mestrado, 2002, disponível em http://bvssp.icict.fiocruz.br/pdf/Fonsecaarm.pdf, acessado em março de 2012). 144 Tendo já em conta esta recomendação, o Escritório do Projeto Rio Guaíba, estrutura técnico-gerencial responsável pela condução deste projeto, realizou estudo de alternativas para a localização da estação de tratamento do esgoto coletado nos sistemas da Ponta da Cadeia e de São João / Navegantes, com abrangência nas zonas norte e central da cidade, o qual concluiu, inicialmente, por sua instalação na Ponta do Melo, local situado às margens do lago, junto a áreas residenciais nobres próximas ao centro da capital. Seria necessário, para tanto, a execução de um aterro de 20 hectares, avançando no Guaíba, razão pela qual esta alternativa foi abandonada, segundo o coordenador deste escritório, o arquiteto João Alberto Schaan, pois a mesma “sofreu veemente protesto da comunidade da Zona Sul” de Porto Alegre. Em função disto, disse Schaan, o Escritório propôs a mudança do projeto, com a instalação da estação de tratamento, constituída por lagoas de estabilização biológica, na Ilha das Flores, localizada no Parque Estadual do Delta do Jacuí (PEDJ), com a construção de um emissário subfluvial, sob o Guaíba, para o envio dos esgotos brutos para este novo local.177 Esta nova proposta gerou, no entanto, muitas dúvidas e inconformidade, não apenas entre ativistas das causas de proteção ambiental, mas também em quadros científicos, políticos e na população em geral, principalmente quanto a seus possíveis impactos sobre uma área de preservação ambiental, o PEDJ, bem como a possíveis ameaças à qualidade da água para o abastecimento de Porto Alegre, na hipótese, ainda que remota, de rompimento das tubulações do emissário de esgoto in natura, próximo a seus pontos de captação, na extremidade norte do Guaíba. Em função disso, em maio de 1988, por iniciativa do vereador Caio Lustosa, já então do PT, a CMPA, através da sua Comissão de Saúde e Meio Ambiente, promoveu a realização de um seminário para avaliar este tema, chamado de “Guaíba e Delta do Jacuí – Esgoto e Ambiente”, do qual participaram técnicos, políticos, representantes do “Movimento Ecológico”, e de outros 177 PINTO, Leila, MOHR, Udo, op. cit., p. 5 (Projeto Rio Guaíba). De acordo com João Alberto Schaan, então coordenador do Escritório do Projeto Rio Guaíba, a opção pela Ilha das Flores justificava-se por ser esta uma área considerada, dentro do Plano Básico de zoneamento do parque, como “zona de uso restrito”, locais onde é possível a construção de residências e de instalações comerciais, como postos de gasolina e motéis. Conforme este coordenador, além disso, a construção das lagoas de estabilização nesta área, recebera pareceres favoráveis da Fundação Zoobotânica e do Conselho Superior do Parque Estadual do Delta do Jacuí , condicionados à realização dos correspondentes estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA-RIMA). Ainda de acordo com Schaan, o novo sistema usaria os recursos do banhado lá existente para a depuração dos efluentes das lagoas de estabilização, que iriam requerer uma área de 328 hectares (obs.: a área total do parque, que é constituído por 29 ilhas no Delta e no Baixo Jacuí, e áreas vizinhas em terra firme, é de 17.245 hectares; Idem, p. 6). O coordenador destacou, finalmente, que esta nova alternativa levaria a uma redução de 40% nos investimentos inicialmente previstos, além de levar a uma redução de cerca de 70% da carga poluidora do Guaíba. 145 segmentos da sociedade local. O seminário, que durou três dias, com a presença de cerca de cem participantes, concluiu pela inadequação da Ilha das Flores, situada em área de preservação ambiental, o PEDJ, como local para a instalação da estação principal de tratamento de esgotos de Porto Alegre, por lagoas de estabilização, recomendando, ao lado da manutenção desta tecnologia, o estudo de outras alternativas para a sua localização. Ao lado disso, recomendou a criação de um Comitê Permanente de Gerenciamento Ambiental da Região Metropolitana de Porto Alegre, nos moldes do Comitê de Preservação, Gerenciamento e Pesquisa da Bacia dos Sinos (o COMITESINOS, instalado em março deste ano, através de decreto estadual), o qual deveria ser “independente e desvinculado dos poderes públicos e seus órgãos, onde se possam travar debates nos assuntos referentes à política ambiental para a Região, com ênfase na preservação dos recursos hídricos”. O seminário recomendou, ainda, a execução imediata de medidas visando à despoluição da margem esquerda do Guaíba, em Porto Alegre, tais como a instalação dos interceptores para a separação dos esgotos pluvial e cloacal nas praias da zona sul e no Arroio Dilúvio. Seu relatório conclusivo continha, ainda, uma última recomendação: “Entende este Plenário que é dever do poder público a democratização do processo de escolha das prioridades que devem ser atendidas, quando da elaboração de um projeto desta magnitude.” 178 178 Idem, pp. 2-3 (Contribuição para Avaliação do Relatório de Impacto Ambiental das Lagoas de Tratamento de Esgotos do Projeto Rio Guaíba, Caio LUSTOSA), pp. 7-9 (Alternativas Viáveis para o Tratamento de Esgotos Urbanos) e p. 20 (Conclusões do Seminário). O encontro técnico sobre as alternativas viáveis para o tratamento de esgotos urbanos teve apresentações de representantes do DMAE, da CORSAN, do DMA (Departamento de Meio Ambiente), vinculado à Secretaria Estadual de Saúde, e do engenheiro químico Millo Raffin, bem como a presença de debatedores da AGAPAN, da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, da Comissão de Temas Ambientais da SBPC (Sociedade Brasileira para a Proteção da Ciência) e do público em geral. Na ocasião, Raffin defendeu a instalação de uma ETE por lagoas de estabilização, para a zona norte de Porto Alegre, à margem esquerda do Rio Gravataí, em trabalho conjunto do DMAE e da CORSAN. A naturalista Marlene Zini, do CESB (Centro de Estudos de Saneamento Básico), órgão do DMAE, ponderou que as águas do Guaíba foram classificadas pelo CONAMA dentro da classe 4, devido à alta concentração de bactérias de origem fecal, e salientou, também, que os seus afluentes, os rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí, também apresentavam a mesma situação, e que, deste modo, só seria possível alcançar a recuperação do Guaíba “com uma ação conjunta entre todos os municípios integrantes da Bacia do Jacuí.” O representante da CORSAN, engenheiro Carlos Alberto Santos, depois de lembrar que os sistemas de esgotamento sanitário devem constar da infraestrutura básica das comunidades, pois possibilitam o controle e a prevenção de muitas doenças, informou que o Rio Grande do Sul tinha, até então, apenas 17% de sua população beneficiada por esgotos, 8% através da CORSAN, e os restantes, através do DMAE, em Porto Alegre. Santos lembrou, ainda, que as “soluções adotadas nas grandes cidades brasileiras ainda continuam sendo as fossas (séptica, seca, ligada ao pluvial), que afastam os esgotos das residências, mas poluem os locais onde o esgoto é despejado (receptores).” O engenheiro Antonio Benetti, do DMA, abordando os aspectos que devem ser levados em conta na seleção de alternativas de tratamento de esgotos urbanos, lembrou que as lagoas de estabilização são sistemas que requerem o uso de grandes áreas e geram um efluente rico em algas, que ele acreditava ser indesejável para o Guaíba. De acordo com os autores, “as entidades dedicadas à ecologia argumentaram, no debate, que o Parque é área de preservação, de grande beleza 146 O “Projeto Rio Guaíba”, transcorrida quase uma década de seu lançamento pelo governo do estado do Rio Grande do Sul, havia alcançado resultados bastante modestos, sofrendo fortes questionamentos, não somente quanto aos impactos ambientais das concepções propostas para o tratamento dos esgotos domésticos de Porto Alegre e região metropolitana, como visto acima, mas também com respeito ao atraso nas obras de implantação de redes de coleta de esgotos e ao grande aumento nos custos de investimentos, frente ao inicialmente previsto. Até o ano de 1988, só foram implantados 300 km de redes, contra os 1.000 km inicialmente previstos, e, cinco anos depois da aprovação do projeto, em 1981, seus custos haviam aumentado em cerca de quatro vezes, a preços corrigidos, em relação ao inicialmente orçado. 179 Em 1989 teve início o governo da aliança liderada pelo PT em Porto Alegre, a Administração Popular, e o prefeito Olívio Dutra autorizou o DMAE a iniciar negociações com a CORSAN e o governo do estado, visando o encerramento do convênio assinado em 1981. O que só foi possível, conforme o então diretor-geral do DMAE, com a extinção do contrato por via judicial, ao tempo em que esta autarquia começava a reativar a sua Divisão de Esgotos. Em março de 1989 o governo da Administração Popular lançou um programa próprio contendo ações localizadas para a recuperação ambiental do lago e para a revitalização urbana de sua orla em Porto Alegre, o “Guaíba Vive”, e, em novembro do mesmo ano, o governador do estado, Pedro Simon, do PMDB, assinou um decreto criando o “PróGuaíba” – Programa para o Desenvolvimento Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba. Este ano marca, assim, o encerramento de uma primeira fase de esforços no sentido da recuperação ambiental do Lago Guaíba e de sua bacia hidrográfica na região metropolitana de Porto Alegre, marcado por fatores como o esgotamento e desagregação do modelo autoritário e centralizado nas burocracias federal e dos estados, na área do saneamento básico, e a formação ainda incipiente de estruturas e processos para a gestão dos recursos hídricos. natural e importância ecológica e científica, e não poderia correr o risco de ser mutilada pelo Projeto Rio Guaíba”. 179 Idem, p. 27 (“Guaíba Vive” – Programa de Recuperação do Guaíba; 7. Saneamento da Bacia). De acordo com os autores, o custo orçado quando da aprovação do “Projeto Rio Guaíba”, com a assinatura do convênio entre o DMAE e a CORSAN, em 1981, era de 10 milhões de UPCs, subindo, cinco anos depois, para 36 milhões de UPCs (a UPC – “unidade padrão de construção” era usada para medir o custo de um “módulo” de área construída, sendo um indicador confiável, e necessário, para medir a evolução real dos custos na área da construção civil, num cenário então existente, de inflação alta e crescente no país). 147 CAPÍTULO 4. PORTO ALEGRE, 1989 – 2004: A ADMINISTRAÇÃO POPULAR, O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E O PROGRAMA “GUAÍBA VIVE” No ano de 1988 entrou em vigor a nova Constituição Federal, demandada para dar conta de uma nova realidade brasileira, com o fim do regime autoritário iniciado com o golpe militar de 1964, produzida, no entanto, não por uma Assembleia Constituinte exclusiva, mas por um Congresso Nacional dotado de poderes constituintes. Ao final deste mesmo ano, quando o país já começava a mergulhar na campanha para as primeiras eleições diretas para presidente da república, desde 1961, numa conjuntura de inflação galopante e baixo crescimento econômico, as eleições municipais, em turno único, deram a vitória, em Porto Alegre, ao candidato de uma coligação liderada pelo PT, a Frente Popular. Ocorre assim, no plano local, a ascensão de um grupo político de esquerda, com escassa experiência no poder, em qualquer instância, e insuficiente base parlamentar, mas com significativa inserção em diversos movimentos sociais, e, ao mesmo tempo, beneficiado, potencialmente, pelos efeitos de uma reforma constitucional que dotou os municípios com uma maior participação na carga tributária. Isto dentro de um cenário nacional que se caracterizava, cada vez mais, entretanto, pelo abandono, por parte do Estado, de seu papel como agente direto do desenvolvimento econômico e da promoção de políticas sociais, reposicionamento entendido como necessário para o saneamento das finanças públicas e para a retomada dos investimentos, via privatizações e reingresso de capitais externos. Partindo deste quadro geral, busco analisar as políticas públicas e os investimentos realizados em Porto Alegre, no período da Administração Popular, como a expansão da rede de coleta de esgotos domésticos e o programa “Guaíba Vive”, voltado para a recuperação ambiental e a revalorização urbanística da orla do lago e de suas praias na capital gaúcha, procurando identificar os principais agentes sociais envolvidos nestas iniciativas, seus resultados, limites e pontos de estrangulamento. São abordados os seguintes aspectos: (i) a conjuntura da eleição e dos primeiros meses de governo do PT em Porto Alegre: as relações com a Câmara de Vereadores, com maioria oposicionista, a criação do Orçamento Participativo (OP) e a recomposição da capacidade financeira da prefeitura municipal; (ii) o processo de definição de prioridades através do OP, procurando avaliar em que medida os investimentos realizados em saneamento básico (extensão da população servida por coleta de esgotos, 148 e início da cobertura por tratamento de esgotos) resultaram diretamente da escolha popular e/ou da indução por parte da prefeitura e do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE); (iii) o papel do “Guaíba Vive” e de outras iniciativas voltadas para a valorização e/ou revitalização de áreas nobres da cidade como bandeira e vitrine da Administração Popular, visando estender a aceitação do governo petista a outros setores sociais (classes médias, empresariado, estudantes universitários, ambientalistas); (iv) os resultados do programa e a sua divulgação, na imprensa e em veículos especializados, como a Revista Ecos, do DMAE; (v) os limites da ação municipal e o seu esgotamento no final do período dos governos petistas, no início da década de 2000; (vi) outras medidas tomadas pelos governos da Administração Popular com relação à orla do Guaíba, como a remoção de bares e habitações irregulares na zona sul de Porto Alegre. 4.1. A experiência de governo da Administração Popular e o Orçamento Participativo em Porto Alegre: conjuntura histórica e esquemas interpretativos O período em que o município de Porto Alegre foi governado pela Administração Popular, uma frente de partidos de esquerda, liderada pelo PT, tem sido objeto de um grande número de debates, estudos acadêmicos e publicações com propósitos políticos e de divulgação em geral. Esta produção concentrou-se, em sua maior parte, entre meados dos anos 1990 e o início da década seguinte, ou seja, no momento em que o governo petista da capital gaúcha aparecia diante do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, com suas políticas de estabilização econômica e redução e redirecionamento do papel do Estado, como uma espécie de contraponto, ainda que em escala local. Este papel foi sinalizado por meio de experiências de articulação entre governo e sociedade organizada, na condução de políticas públicas voltadas para a extensão da oferta de serviços e de infraestrutura urbana às populações menos favorecidas, que eram instadas a atuar neste processo através do mecanismo do Orçamento Participativo (OP). E também num período em que o cenário internacional ainda estava fortemente marcado, no plano concreto e no das disputas ideológicas, pela queda do “socialismo real” na antiga União Soviética e seus ex-satélites do leste europeu e pela adoção generalizada de políticas de corte “neoliberal”, tanto no núcleo mais desenvolvido economicamente, como Estados Unidos e países da Europa ocidental, quanto na sua periferia, como na América Latina, onde a maior parte dos países ainda lutava para superar a crise econômica agravada nos 149 anos 1980 e as heranças dos regimes ditatoriais de “segurança nacional” implantados durante a guerra fria. Uma conjuntura em que se mostravam associadas várias tendências. Por um lado, a chamada “globalização”, econômica como cultural, e a ascensão dos “poderes locais”, com o enfraquecimento do poder dos estados nacionais, e do Estado, em geral, frente às grandes corporações com atuação multinacional, com o fortalecimento de instâncias como a União Europeia e a criação de novos países, como na área do antigo “socialismo real”. Ao lado disso, a intensificação do processo de concentração do poder econômico com a retomada das liberdades políticas, em especial nos países periféricos, como era o caso do Brasil. Dentro deste contexto, experiências como a de Porto Alegre, com novas práticas de governo, mesmo que a nível local, foram avaliadas por alguns autores, entre estes Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer, em Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, como exemplos de um potencial caminho para a inovação da democracia, no sentido de um aumento da cidadania, e do ingresso de atores sociais até então excluídos dos processos, como os moradores de áreas periféricas da cidade, reunidos em associações comunitárias. Santos e Avritzer vislumbraram no sistema do OP porto-alegrense um exemplo do surgimento de “formas efetivas de combinação entre elementos da democracia participativa e da representativa”, abertos pela sociedade política, “através da intenção das administrações do Partido dos Trabalhadores de articular o mandato representativo com formas efetivas de deliberação em nível local.” 180 É feita a seguir, tomando como base o trabalho de Cesar Beras, Orçamento Participativo de Porto Alegre e a democratização do Estado – A configuração específica do caso de Porto Alegre: 1989-2004, uma breve explanação com respeito aos antecedentes à implantação do OP em Porto Alegre, a partir de 1989. O autor, tomando 180 AVRITZER, Leonardo, SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 65. A experiência de implantação do orçamento participativo em Porto Alegre é situada pelos autores dentro de um conjunto de processos que teriam como ponto em comum a “constituição de um ideal participativo e inclusivo como parte dos projetos de libertação do colonialismo – Índia, África do Sul e Moçambique – ou de democratização – Portugal, Brasil e Colômbia.” (p. 57). Santos e Avritzer vêm a emergência de diversas formas de participação no Brasil “pós-autoritário”, como “parte de uma herança comum do processo de democratização que levou atores sociais democráticos, especialmente oriundos do movimento comunitário, a disputarem o significado do termo participação”, sendo a influência dos mesmos na cena política ampliada com a introdução, na Constituição Federal de 1988, a qual “foi capaz de incorporar novos elementos culturais, surgidos na sociedade, na institucionalidade emergente, abrindo espaço para a prática da democracia participativa.” (p. 65). 150 como referência, por sua vez, trabalhos de Luciano Fedozzi e Marcelo Kunrath Silva,181 destaca como antecedentes remotos a crise urbana iniciada com o crescimento acelerado e desordenado da cidade, a partir dos anos 1940, com o início das demandas pela regularização fundiária, e com a grande carência de bens de consumo coletivo (infraestrutura urbana, saúde e educação públicas, habitação). Fatores que teriam levado, já neste período, ao desenvolvimento de um forte associativismo em uma parte das camadas desfavorecidas da população e à existência, ao longo de todo este processo de tensionamento urbano, de práticas autoritárias, tanto por parte do Estado quanto na sociedade, que se traduziram na administração municipal através de relações de clientelismo, paternalismo e assistencialismo, ao lado de sua orientação tecnocrática, as quais encontraram sustentação nos movimentos populares. Este panorama seria modificado com o surgimento, a partir dos anos 1970, de novos atores sociais, propondo práticas associativas com conteúdo mais participativo, voltadas para a chamada “democracia de base”, com a organização coletiva “de baixo para cima” das demandas populares, através de entidades com abrangência ampliada, para as regiões e para toda a cidade.182 Frente a esta nova conjuntura de maior inserção política dos movimentos comunitários, o governo de Alceu Collares, do PDT, que chegou ao poder em 1985, na primeira eleição direta depois do fim da ditadura civil-militar, realizada em turno único, aprovou uma lei sobre conselhos populares municipais, os quais deveriam funcionar como instâncias mistas, com maioria do governo e participação remunerada de representantes populares. 181 BERAS, Cesar. Orçamento Participativo de Porto Alegre e a democratização do Estado – A configuração específica do caso de Porto Alegre: 1989-2004. Tese de Doutorado, PPG em Sociologia, UFRGS. Porto Alegre, 2008. Disponível em http://hdl.handle.net/10183/15549, acessado em maio de 2010, pp. 115-117 (Breve panorama geral dos antecedentes à implantação da experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre). O autor toma como referência os seguintes trabalhos: (i) FEDOZZI, Luciano. O poder da aldeia – gênese e história do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000; (ii) SILVA, Marcelo Kunrath. Construção da “participação popular”: Análise comparativa de processos de participação social na discussão pública do orçamento de municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Tese de Doutorado, PPG Sociologia UFRGS, Porto Alegre, 2001, disponível em http://hdl.handle.net/10183/2169, acessado em fevereiro de 2012. 182 Entre estas novas entidades, pode-se destacar a União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA), criada em 1983. De acordo com Sergio Baierle, “com a criação da União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA) [...] ocorreu um primeiro esforço de [...] romper com uma relação tradicional e ‘monogâmica’ entre as associações de bairro e o Estado [...] Uma nova concepção de cidadania levou a uma série de novos temas, tais como a construção de propostas alternativas de políticas públicas.” (Ref.: BAIERLE, Sérgio. A explosão da experiência. Emergência de um novo princípio éticopolítico nos movimentos populares urbanos em Porto Alegre. In: ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (orgs.). Cultura e política dos movimentos sociais latino-americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000 apud AVRITZER, Leonardo. O Orçamento Participativo e a teoria democrática: um balanço crítico. In: AVRITZER, Leonardo, NAVARRO, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2002, p. 17). 151 A posse do governo da Frente Popular, em 1989, também eleito em turno único, deste modo, ocorreu diante de grande expectativa de resolução rápida de problemas sociais e de participação popular na cogestão do Estado no âmbito municipal, acentuada por seus compromissos de campanha neste sentido, e num cenário de grave crise das finanças públicas do município de Porto Alegre, decorrente de fatores internos à gestão municipal, como o peso excessivo da máquina burocrática, e externos, como os efeitos da espiral inflacionária. Ao lado disso, o novo governo municipal carecia da falta de experiência administrativa de boa parte de seus quadros partidários, tendo também de conviver com uma maioria oposicionista na Câmara de Vereadores. O PT tinha em seu programa a proposta da criação de “conselhos populares”, e havia uma tensão, no partido e no governo da Administração Popular, entre uma adesão mais ampla a estes princípios de democracia direta e a necessidade de induzir, através da ação do governo, a participação popular por meio dos movimentos sociais e associações comunitárias. Havia também uma forte tensão interna, entre as posições do prefeito Olívio Dutra e seu vice, Tarso Genro, no sentido de fazer uma administração voltada para todos os portoalegrenses, e da maioria do PT, favorecendo uma administração voltada prioritariamente para as classes trabalhadoras, e com uma orientação anticapitalista. Havia, por outro lado, a necessidade de buscar o apoio destas instâncias de organização popular como forma de pressionar a Câmara de Vereadores para aprovar o aumento de impostos, de modo a que o governo pudesse cumprir seus compromissos de campanha, entre os quais constavam não apenas a superação das carências em infraestrutura urbana para as camadas desfavorecidas, como habitação popular e saneamento, mas também objetivos voltados para um público mais amplo, entre estes os de iniciar a recuperação ambiental do Guaíba, e de revitalizar o centro da cidade. É dentro destas circunstâncias, depois de um intenso processo de discussão nas instâncias partidárias e de governo, que a Administração Popular implantou o sistema do Orçamento Participativo em Porto Alegre, a partir do ano de 1990.183 Uma breve apresentação do sistema do OP de Porto Alegre e de seus elementos institucionais é feita a seguir, tomando como base o trabalho de Luciano Fedozzi, 183 Idem, pp. 117-127. O autor utiliza como fontes sobre a etapa inicial de implantação do OP e as discussões com respeito à orientação do governo municipal, se voltada para a “população como um todo” ou para “os trabalhadores”, e ao papel do Estado frente aos movimentos sociais e comunitários, o Jornal Porto Alegre Agora, publicação oficial do governo da Administração Popular, nos anos de 1989 e 1990, além de documentos do Partido dos Trabalhadores, deste período. 152 Orçamento Participativo – reflexões sobre a experiência de Porto Alegre.184 O Orçamento Participativo é uma estrutura e um processo de gestão do orçamento municipal, implantado em 1989 pela prefeitura de Porto Alegre, o qual se baseia na participação popular, direta ou por meio de representação, durante todo o ciclo da elaboração orçamentária. Através deste conjunto de instâncias públicas são definidos os investimentos que deverão ser contemplados pelo orçamento municipal na cidade. O Orçamento Participativo de Porto Alegre, de acordo com este autor, está fundamentado em três princípios: a) regras universais de participação em instâncias institucionais e regulares de funcionamento; b) método objetivo de definição dos recursos para investimentos, que perfazem um ciclo anual de atividades públicas de orçamentação do município; e, c) um processo decisório descentralizado tendo por base a divisão da cidade em 16 regiões orçamentárias. A estrutura do Orçamento Participativo é formada basicamente por três tipos de instâncias que realizam o processo de mediação entre o Executivo municipal e os moradores da cidade, que são: as instâncias da administração municipal, as instâncias comunitárias e as instâncias institucionais de participação. As instâncias da administração municipal são as unidades e órgãos internos do Executivo municipal voltados especialmente para o gerenciamento e o processamento técnicopolítico da discussão orçamentária com os moradores, compreendendo: (i) o Gabinete de Planejamento (GAPLAN); (ii) a Coordenação das Relações com a Comunidade (CRC); (iii) o Fórum das Assessorias de Planejamento (ASSEPLAS); (iv) o Fórum das Assessorias Comunitárias (FASCOM); (v) os Coordenadores Regionais do Orçamento Participativo (CROPs); e (vi) os Coordenadores Temáticos (CTs). As instâncias comunitárias são instâncias autônomas em relação à administração municipal, formadas principalmente por organizações de base regional na cidade, e articulam a participação dos moradores e as escolhas das prioridades nas regiões. As instâncias institucionais de participação, por fim, constituem o espaço de encontro entre os atores comunitários e o governo municipal, dentro do qual ocorre a cogestão dos recursos públicos e a prestação de contas às comunidades sobre os investimentos realizados. São elas: (i) o Conselho do Orçamento Participativo (COP); (ii) as Assembleias Regionais e Temáticas; e, (iii) o Fórum Regional do Orçamento e o Fórum Temático do Orçamento. O processo participativo do OP de Porto Alegre ocorre em duas modalidades, a regional e a temática, durante o ciclo de um ano. A modalidade regional e a modalidade temática 184 FEDOZZI, Luciano. Orçamento Participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001. 153 obedecem ao mesmo calendário e são realizadas no mesmo formato; a diferença entre ambas é o caráter das demandas que serão discutidas: na primeira modalidade se discutem as demandas trazidas pelas diferentes regiões; na segunda, temas específicos, porém com abrangência em toda a cidade, compreendendo temáticas tais como: circulação e transporte; cultura; desenvolvimento econômico; educação, esporte e lazer; organização da cidade e desenvolvimento urbano e ambiental; saúde e assistência social.185 O ciclo do Orçamento Participativo é composto por três etapas: (1ª) realização das Assembleias Temáticas e Regionais; (2ª) formação das instâncias institucionais de participação, como COP e Fórum dos Delegados; (3ª) discussão do Orçamento do Município e aprovação do Plano de Investimentos pelo COP.186 O ciclo anual do Orçamento Participativo inicia em março com as reuniões de articulação e preparação feitas nas regiões, de forma autônoma, com o objetivo de dar início ao levantamento das demandas e reivindicações dos moradores. Em abril e maio acontecem as plenárias temáticas. As Assembleias Regionais são realizadas nas próprias regiões, as Temáticas têm sido realizadas na Região Centro. As assembleias de ambas as modalidades são coordenadas pelos representantes do CRC e GAPLAN. A pauta das assembleias é composta por eleição das prioridades temáticas, eleição dos conselheiros, definição do número de delegados e prestação de contas por parte do Executivo. Cada região hierarquiza quatro prioridades entre 14 temas, que são: “Saneamento Básico – Esgotos Pluviais”, “Política Habitacional”, “Assistência Social”, “Pavimentação”, “Saneamento Básico – Água e Esgotos Sanitários”, “Educação”, “Iluminação Pública”, “Saúde”, “Circulação e Transportes”, “Áreas de Lazer”, “Esporte e Lazer”, “Desenvolvimento Econômico”, “Cultura” e “Saneamento Ambiental”. Nas plenárias temáticas as prioridades possíveis de eleição são específicas para cada tema, ou seja, cada temática tem seu rol de prioridades possíveis.187 A eleição dos conselheiros para o COP se dá por voto direto nas Assembleias, sendo eleitos dois conselheiros e dois substitutos por cada região e cada tema. Após a realização das assembleias, durante os meses de maio, junho 185 Estas foram as seis temáticas consideradas no ciclo do OP para o ano de 2005, realizado em 2004 (Ref.: HILGERT, Nadia Andrea. O Acesso dos pobres à terra urbanizada no Orçamento Participativo de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2005, disponível em http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/NadiaAndreaHilgert.pdf, acessado em fevereiro de 2012, pp. 15-16). 186 FEDOZZI, Luciano, op. cit., p. 106. 187 Como um exemplo, os participantes da plenária Organização da Cidade, Desenvolvimento Urbano e Ambiental podem escolher entre os seguintes temas: habitação, saneamento básico, meio ambiente, urbanismo, saneamento ambiental e juventude (Ref.: HILGERT, Nadia Andrea, op. cit., p. 18). 154 e julho são eleitos os delegados nas regiões.188 Os Fóruns dos Delegados (16 regionais e seis temáticos) são órgãos colegiais com funções de consulta, controle e de mobilização. Esse é o período da hierarquização das obras e serviços em cada tema e setor nas regiões e temáticas. Com a posse dos novos conselheiros, em julho, em Assembleia Municipal, se instaura a principal instituição de participação do Orçamento participativo, que é o COP – Conselho do Orçamento Participativo. Em agosto e setembro, o COP discute a matriz orçamentária, na qual, a partir da previsão de receitas e despesas feita pelo Executivo, são alocados os grandes agregados segundo as prioridades temáticas oriundas da discussão das regiões. Essa matriz, depois de aprovada pelo COP, é transformada em proposta de Lei de Orçamento, que é entregue à Câmara de Vereadores no dia 30 de setembro, por exigência legal. De setembro a dezembro, o COP prepara o Plano de Investimentos, o qual inclui uma lista pormenorizada das demandas por obras e atividades que o Conselho considera prioritárias e, portanto, a distribuição específica dos recursos programada para cada região e para cada área temática. O montante a ser priorizado no OP exclui as despesas gerais com pessoal e outras despesas calculadas pelo Executivo, tais como as porcentagens constitucionalmente atribuídas à educação e à saúde. Durante todo o processo, o Executivo participa da definição dos investimentos por intermédio de representantes do GAPLAN, do CRC e também das secretarias municipais, que propõem obras e projetos de interesse geral e de âmbito multirregional, ou ainda obras consideradas necessárias, por critérios técnicos, para uma dada zona da cidade. As obras e projetos propostos pelo Executivo são denominados “demandas institucionais”. Assim o Plano de Investimentos integra obras e atividades sugeridas pelas regiões e áreas temáticas, bem como obras e atividades que envolvem várias regiões ou até toda a cidade. Posteriormente, a proposta para os planos de investimentos é encaminhada aos Fóruns de Delegados, onde é analisada e votada. Em dezembro e janeiro é realizada a revisão do regimento interno e dos critérios gerais e técnicos, com a participação dos Fóruns de Delegados. Essas propostas são sistematizadas e votadas no COP. Uma vez definidas as prioridades das diferentes regiões, a distribuição dos investimentos entre as mesmas resulta da aplicação de critérios gerais objetivos, definidos pelo COP, quais sejam: população total da região, sua carência do serviço ou infraestrutura, e prioridade 188 Normalmente são eleitos como delegados pessoas indicadas pelas associações de moradores (Ref.: Idem, p. 19; a autora cita, aqui, SANTOS, Boaventura de Souza. Orçamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Democratizar a democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 475). 155 dada ao tema pela mesma, e dos critérios técnicos sugeridos pelos órgãos da prefeitura e aceitos pelo COP. Uma análise com maior abrangência e profundidade da bibliografia sobre o governo da Administração Popular e o Orçamento Participativo em Porto Alegre está bem acima do escopo e das possibilidades desta dissertação. É necessário neste momento, no entanto, fazer um breve comentário sobre a mesma, especialmente com relação às principais linhas de interpretação utilizadas pelos diferentes autores, suas fundamentações e premissas teóricas e bases empíricas, e seus pontos de convergência e desacordo. Isto porque um dos objetivos a que me proponho é avaliar em que medida houve participação direta da população nas demandas pela melhoria do saneamento básico na cidade, em especial quanto ao esgotamento sanitário, e também nas demandas pela despoluição do Lago Guaíba, ou, de outro lado, se estas demandas e as correspondentes ações decorreram mais da iniciativa do governo municipal, diretamente ou através de seus quadros técnicos e gerenciais, como os do DMAE e secretarias envolvidas. Esta bibliografia, bastante extensa, pode ser agrupada, num primeiro momento, dentro de dois grandes recortes temáticos. Existem trabalhos nas áreas da ciência política e da sociologia que procuram avaliar a experiência do OP de Porto Alegre no período da Administração Popular dentro de um enfoque mais amplo, considerando aspectos como o grau de participação e de autonomia de agentes, tais como movimentos sociais, associações de moradores e suas lideranças, nos processos envolvidos com a implantação e operacionalização do OP, mas também a evolução deste processo, seus antecedentes, fatores que contribuíram para seu sucesso, em maior ou menor grau, e para seu posterior desgaste ou estagnação, bem como os limites do processo, decorrentes de diversos fatores, entre os quais a sua própria escala espacial. E há também trabalhos voltados para aspectos mais específicos, como a avaliação das políticas públicas conduzidas pelos governos petistas deste período, como nas áreas de saneamento básico e habitação, procurando verificar, além da eficácia de seus efeitos distributivos, o grau de participação popular nas definições de prioridades no processo do OP. As informações e análises produzidas neste segundo grupo de trabalhos, mais ligados a áreas como o planejamento urbano e a economia, serão abordadas mais adiante, neste capítulo, nos itens mais diretamente ligados ao tema central da dissertação, dizendo respeito às políticas adotadas em Porto Alegre para o saneamento básico e a recuperação ambiental do Guaíba. 156 No primeiro grupo, pode ser destacado o trabalho de Cesar Beras, citado anteriormente, no qual o autor se propõe a avaliar se, e em que medida, experiências de participação popular na cogestão dos recursos orçamentários de um município, como Porto Alegre, podem contribuir para “democratizar as relações entre o Poder Público Local (Estado) e a comunidade (Sociedade Civil), possibilitando um equilíbrio de poder mais horizontal entre os participantes e gerando novos hábitos de participação popular”.189 Este trabalho, além de conter uma análise dos esquemas interpretativos que vem sendo utilizados para dar conta desta experiência de participação ampliada na gestão do Estado no âmbito municipal, pode servir como um texto de referência sobre a própria trajetória histórica do OP de Porto Alegre, contendo informações sobre os seus mecanismos de funcionamento, as modificações sofridas por ele ao longo do período, as injunções políticas envolvidas nestas mudanças e os discursos de governo a ela relacionados. Outros trabalhos também podem servir como fonte de informações mais específicas sobre os mecanismos de funcionamento do OP, ao lado de diversas publicações tratando de aspectos mais específicos do tema, como as políticas dos governos petistas para as áreas de planejamento urbano, habitação e saneamento básico. Beras inicia seu trabalho fazendo uma análise das abordagens de três autores que estudaram o OP de Porto Alegre, Marcelo Kunrath Silva, Luciano Joel Fedozzi e Sérgio Gregori Baierle, de um ponto de vista da ciência política (teoria da democracia), com respeito a seu enquadramento aos “modelos normativos” (liberal, republicano e deliberativo), “princípio ativo” (cidadão, Estado, sociedade civil organizada), concepção de democracia (direta, participativa, deliberativa) e grau de importância das tecnologias institucionais, correspondendo a cada uma delas uma “narrativa” do processo de criação, operacionalização e desenvolvimento institucional desse sistema.190 O autor procura mostrar, assim, que a visão de Silva sobre a experiência do OP em Porto Alegre partiria da construção de um “civismo democrático”, onde o agente social impulsionador do processo, é o “cidadão”, ou seja, os indivíduos efetivamente engajados no mesmo, quaisquer sejam suas motivações ou bases sociais, correspondendo a um modelo normativo reunindo aspectos do “liberal” e do 189 190 BERAS, Cesar, op. cit., p. 8 (Resumo). Idem, pp. 101-111 (2.4. Olhares teóricos sobre a experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre). A escolha destes três autores por Beras decorreu do contato direto que tiveram com a experiência do OP e da repercussão local, nacional e internacional de seus trabalhos. O autor utiliza nesta análise como principal referência teórica, com respeito aos modelos normativos de democracia, HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002. E também COHEN, Jean L., ARATO, Andrew. Sociedad Civil y Teoria Política. México: Fondo de Cultura Económica, 2000. 157 “republicano”, e a uma concepção de democracia “participativa” e “direta”. A de Fedozzi, por sua vez, partiria da construção de uma “racionalidade democrática”, sendo agente impulsionador do processo o próprio Estado, dentro de um modelo normativo com características do “republicano”, associadas às do “deliberativo”, e de uma concepção de democracia “deliberativa”, ou seja, com equilíbrio entre as formas diretas e representativas de participação. Baierle, por fim, partiria da construção de uma “democracia plebeia”, impulsionada pela “sociedade civil organizada”, dentro de um modelo normativo reunindo, a exemplo de Fedozzi, características “republicanas” e “deliberativas”, mas numa concepção de democracia “direta”. Beras aponta por fim, que, em consonância com os outros aspectos de sua interpretação, Fedozzi dá uma maior ênfase do que a dada por Silva e Baierle ao papel das “tecnologias” institucionais, ou seja, aos mecanismos de consulta e deliberação, para o sucesso do sistema do OP. A abordagem seguida por autores como Silva tenderia a ver no OP, de acordo com Beras, uma “escola de cidadania”, e um espaço eficiente para a solução de problemas, mas, principalmente, um espaço para a participação de indivíduos com interesse e disposição para tanto, um processo, assim, muito mais participativo do que representativo: Na verdade o OP não é um processo de representação, mas um processo de participação, e sua legitimidade não se mede por sua representatividade (que ele não tem, nem deve pretender ter), mas pela participação daqueles segmentos sociais interessados no processo. As pessoas que participam do OP não representam a população da cidade, e nem devem ter esta pretensão, pois para representar os moradores da cidade são eleitos os vereadores e 191 prefeitos. Esta disposição para a “ação cívica” de indivíduos ou de coletivos depende, para Silva, de uma pré-condição, a existência de espaços que permitam o seu livre exercício. Assim, para este autor, a motivação básica [da participação] “é dada pelo direito de participar do governo de sua cidade, discutindo e deliberando sobre aquilo que consideram o melhor a partir do seu ponto de vista.” A participação dependeria, deste modo, da existência de uma “estrutura de oportunidades”, com a qual, os indivíduos, ou coletivo que decidissem utilizá-la, estariam representando não mais do que a si mesmos, no processo, no qual cabe ao Estado exercer a função importante, mas não decisiva, de “facilitador”.192 Cabe lembrar, neste ponto, que a linha interpretativa utilizada por Silva, 191 SILVA, Marcelo Kunrath. Construção da “participação popular”: Análise comparativa de processos de participação social na discussão pública do orçamento em municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre/ RS. Tese de Doutorado, PPG em Sociologia, UFRGS. Porto Alegre, 2001, p. 207, apud BERAS, Cesar, op. cit., p. 102. 192 Idem. O papel das lideranças de coletivos sociais como elemento de sustentação do OP e de outros processos envolvendo a participação popular é enfatizado por Silva em outro texto: “Um dos pilares 158 em sua análise do OP, guarda uma relação com as bases empíricas dos trabalhos que vinha desenvolvendo como pesquisador, com respeito à atuação dos movimentos sociais e de suas lideranças, em áreas da periferia de Porto Alegre, nas décadas de 1980 e 1990, desde os anos finais da ditadura civil-militar aos primeiros governos petistas na capital gaúcha, para cujo estudo o autor recorreu a análises de autores como Pierre Bourdieu e Alain Touraine, mas também E. P. Thompson e Carlo Ginzburg, com respeito aos fundamentos para a ação coletiva, intencionalidade dos agentes, formação e transformação de identidades, campo de oportunidades e condicionamentos.193 Já a abordagem seguida por autores como Fedozzi está centrada no papel que pode ser desempenhado por estruturas como a do OP de Porto Alegre no sentido de dotar o Estado de uma maior “racionalidade” e “impessoalidade”, contrapondo-se, deste modo, ao intenso “patrimonialismo” ainda persistente nas relações entre os governantes e a sociedade, como uma herança da formação histórica brasileira, e operando como um sério entrave ao desenvolvimento mais pleno de suas instituições democráticas. Como é lembrado por Beras, trata-se de uma linha interpretativa suportada em análises sobre o processo histórico de “racionalização” do Estado, através da substituição de formas “tradicionais” ou “carismáticas” de legitimação do poder por formas de tipo “racionallegal”. Estas foram realizadas por Max Weber, no contexto europeu, e utilizadas como um ponto de referência para o caso do Brasil, por autores como Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, a quem Fedozzi recorre para fundamentar seus primeiros trabalhos sobre o tema do OP.194 Esta abordagem tem num de seus diferenciais o reconhecimento do papel do Estado como agente impulsionador do processo, e a fundamentais do OP (e, de uma forma mais genérica, dos processos de participação popular em Porto Alegre) é uma rede associativa formada por lideranças de comunidades populares da cidade, as quais legitimam o processo através de um reconhecimento público da existência de um efetivo caráter redistributivo no OP e da abertura deste para antigas e novas demandas identificadas e reivindicadas pela população da cidade.” Ver: SILVA, Marcelo Kunrath. A construção da participação popular. In: Sociologias. Porto Alegre. Vol. 1 nº 2 (jul/dez 1999), p. 195 apud BERAS, Cesar, op. cit., p. 102. 193 Entre estes trabalhos, pode ser citado: SILVA, Marcelo Kunrath. Cidadania e exclusão: os movimentos sociais urbanos e a experiência de participação na gestão municipal – uma análise da trajetória do movimento da Vila Jardim em Porto Alegre/RS. Dissertação de Mestrado, PPG em Sociologia, UFRGS. Porto Alegre, 1997. Com respeito às fundamentações teóricas para a ação coletiva, ver pp. 22-45. O autor discorre também sobre os movimentos sociais urbanos no Brasil, sua abordagem na sociologia brasileira, identidade coletiva e contexto histórico de sua ação, ver pp. 46-90. 194 BERAS, Cesar, op. cit., pp. 103-104. Entre estes trabalhos pode ser citado: FEDOZZI, Luciano Joel. Do Patrimonialismo à Cidadania – Participação popular na Gestão Municipal: o caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, PPG em Sociologia, UFRGS, Porto Alegre, 1996. Com respeito à fundamentação teórica (cidadania, Estado e formas de dominação), ver pp. 16-85. Sobre as relações entre cidadania e Estado no Brasil, num enfoque histórico, ver pp. 86-147. Na bibliografia utilizada aqui por Fedozzi estão Economia y sociedad, de Max Weber, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os donos do poder, de Raimundo Faoro. 159 importância que confere à função deste no desenvolvimento de tecnologias institucionais que incluam formas de participação popular, de modo a alcançar, em seu entendimento, uma “impessoalização do poder”, como argumenta Fedozzi: A vontade política dos dirigentes do OP, a começar pelo prefeito – como mandatário que detém a representação legítima para reafirmar ou não a convicção interna e externa ao governo na viabilidade e na conveniência da partilha do poder. Essa intervenção ativa, por vezes voluntarista, foi decisiva para a construção e consolidação do OP, de novas relações democráticas com a população da cidade, em especial com os moradores dos bairros e vilas excluídos do desenvolvimento urbano. [...] Esse papel ativo do Executivo decorreu fundamentalmente do papel estrutural desempenhado pelo estado (principalmente o executivo no sistema presidencialista), oriundo de seu múltiplo poder administrativo, financeiro e político que, no caso brasileiro, se realça ainda mais devido à tradição 195 centralizadora e autoritária da formação do Estado. A democratização do Estado precisa ser realizada, deste modo, a partir de seu próprio interior, constituindo-se em pré-requisito para que se forme uma “esfera pública de cogestão”, com a participação da sociedade civil, através de mecanismos como o OP. Fedozzi vê na abertura voluntária do Estado à participação em processos deliberativos voltados para a produção de consensos, num espaço público mais amplo do que o do aparato estatal, uma fonte de ampliação de sua legitimidade, mas também identifica a necessidade da existência, na sociedade civil, de um nível adequado de organização e capacidade de ação autônoma dos agentes sociais, com ambos os fatores, ao lado do desenvolvimento das tecnologias institucionais, como as envolvidas no funcionamento do OP, concorrendo para uma maior racionalidade democrática, no nível local de governo.196 Neste sentido, diz o autor: Por outro lado [...] a garantia da racionalização democrática – a impessoalização do poder, num processo de participação da população na gestão local que modifique as relações clientelistas e/ou personalístico – plebiscitárias (carismáticas), depende conforme ampla literatura, não somente da existência de uma esfera pública democrática que funcione mediante regras universais e impessoais na regulação do fundo público, mas também do nível de institucionalização da participação popular diante do sistema local, bem como do 197 grau de organização e da capacidade de ação autônoma dos atores populares. Ainda tomando como referência Beras, uma terceira abordagem interpretativa sobre o OP porto-alegrense é a adotada por autores como Baierle, que tende a enfatizar 195 FEDOZZI, Luciano Joel. Orçamento Participativo – reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001, p. 167 apud BERAS, Cesar, op. cit., p. 104. 196 BERAS, Cesar, op. cit., pp. 104-105. Sobre o conceito de “esfera pública de cogestão”, diz Fedozzi: “Ao mesmo tempo, a categoria ‘co-gestão’ remete a uma característica desta esfera pública desenvolvida pela dinâmica do OP, que se define strictu sensu por não ser estatal, mas também por não ser propriamente ‘não estatal’.” (FEDOZZI, Luciano Joel. L’espace public réclame le temps public: la réflexion critique permanente. L’histoire a déjá appris que le succès peut etre aussi l’histoire de l’echec. In: VERLE, João, BRUNET, Luciano (org.). Un Nouveau Monde en Construction. Évaluation de l’experiénce du Budget Participatif de Porto Alegre – Brésil. Porto Alegre: Guayi, 2002, p. 166.). Luciano Fedozzi participou do processo de implantação do OP de Porto Alegre, exercendo a função de coordenador do Gabinete de Planejamento (GAPLAN), órgão diretamente vinculado ao prefeito Olívio Dutra, entre 1989 e 1992. 197 Idem, p. 190 apud BERAS, Cesar, op. cit., p. 105. 160 a pré-existência na cidade de uma tradição, iniciada antes do período da ditadura civilmilitar, de organização coletiva de segmentos das camadas desprivilegiadas da sociedade (“plebeias”), atuando como o fator constitutivo e impulsionador desta experiência. É nestes termos que Baierle apresenta a sua visão sobre a experiência de Porto Alegre: O OP pode ser entendido como a emergência de um espaço plebeu na cena política ao nível local [...] Enquanto estrutura, o OP consiste num sistema de cogestão entre representação popular e governo local, organizado através de um ciclo anual de atividades, combinando participação direta e escolha de representantes (delegados e conselheiros), bem como o compromisso governamental com o processamento das demandas a partir de critérios previamente combinados. Enquanto processo significa a emergência de um público plebeu, na esteira de uma longa história de lutas pelo acesso à cidade, a qual foi prenunciada nos anos 1950 com a formação das primeiras vilas populares em Porto Alegre. Já havia, ali, a conformação de espaços de organização popular que desembocam em arenas decisórias de 198 caráter comunitário. E sua implantação teria representado, para este autor, a consolidação das lutas travadas nos anos 1970, com a apropriação, por parte destes movimentos populares, organizados em associações de moradores de bairros e de vilas populares, de espaços efetivos de participação na gestão do Estado, no âmbito local, no processo de discussão do orçamento e no controle de sua execução. Cabendo, deste modo, o papel de maior protagonismo no processo, não ao Estado, nem tampouco às lideranças comunitárias, mas às próprias coletividades: No caso de Porto Alegre, existe a democracia participativa na definição diretamente pela população de suas prioridades e propostas para o orçamento, combinada com a democracia representativa comunitária na discussão do conjunto do orçamento municipal e no detalhamento dos programas decididos coletivamente, através de delegados e 199 conselheiros. Podem ser identificadas, assim, três interpretações distintas com respeito ao maior peso relativo dos elementos impulsionadores do OP de Porto Alegre, uma primeira enfatizando o papel da participação dos agentes interessados no processo (principalmente as lideranças de movimentos sociais), outra o do Estado (o governo 198 BAIERLE, Sérgio. BP au termidor ? In: VERLE, João, BRUNET, Luciano (org.). Un Nouveau Monde en Construction. Évaluation de l’experiénce du Budget Participatif de Porto Alegre – Brésil. Porto Alegre: Guayi, 2002, pp. 132-133. Para Beras, o uso do termo “plebeu” por Baierle, ao referir-se aos “sempre excluídos”, no caso, os movimentos populares, seria uma forma de explicitar sua primazia frente à “engenharia institucional” representada pelos mecanismos do OP. Ver: BERAS, Cesar, op. cit., p. 106. E também BAIERLE, Sérgio, op. cit., p. 159 (Nota 5). Sérgio Baierle, pesquisador em Ciência Política, e um dos coordenadores da ONG Cidade – Centro de Assistência e Estudos Urbanos, ocupa, dentro destas linhas interpretativas sobre a emergência do OP de Porto Alegre, uma posição mais à esquerda, mais próxima do pensamento marxista de Antonio Gramsci, com suas concepções acerca das possibilidades de uma contra-hegemonia das “classes populares”. 199 BAIERLE, Sérgio. BP ao termidor. In: Presupuestos participativos y finanzas locales. Presentación documento base para Seminario de Lanzamiento RED URBAL n° 9, 2004 (mimeo). apud BERAS, Cesar, op. cit., p. 107. 161 municipal), enquanto responsável pela implantação de práticas de racionalidade e impessoalidade na gestão pública, e uma terceira o papel dos próprios movimentos populares, em sua organização coletiva. Estas linhas interpretativas concentram-se, como visto acima, nas origens do sistema e em seus primeiros anos de funcionamento, em especial no período em que a Administração Popular convivia com governos de orientações político-partidárias opostas, no estado e no país, mas também, por outro lado, com uma situação das finanças municipais ainda relativamente favorável, antes de sofrer os efeitos decorrentes das medidas de ajuste econômico seguidas pelo governo federal, especialmente depois da grande desvalorização cambial promovida no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1999. Frente a este novo cenário, ao qual se somavam o desgaste inerente ao período prolongado no poder municipal e também à passagem do PT e seus aliados pelo governo do Rio Grande do Sul, entre 1999 e 2003, começou a ser feita uma reavaliação do significado e resultados do OP e do próprio governo da Administração Popular em Porto Alegre. Entre alguns dos aspectos levantados em trabalhos produzidos sob este enfoque estão a cooptação de parte das lideranças associativas pelos partidos no governo, e as tendências à rotinização e burocratização do processo, pontos que foram abordados por autores como Sérgio Baierle e Cesar Beras.200 Zander Navarro, por sua vez, agregou a isto um questionamento à visão do OP como uma “esfera pública não estatal”, na medida em que este mecanismo teria levado à formação de uma nova forma de 200 Com respeito às tendências à rotinização e burocratização do processo do OP, e à cooptação de lideranças pelo partido no poder, ver: BERAS, Cesar, op. cit., pp. 223-224. Avaliando os resultados de pesquisa de campo que realizou para levantar as percepções de pessoas que atuaram como conselheiros do OP, ao longo do período de 16 anos dos governos da Administração Popular, conclui o autor: “1. Uma grande contribuição, realizada pelo processo do OPPA [Orçamento Participativo de Porto Alegre], foi sua capacidade de ter respostas efetivas às demandas populares, tornando-se a porta de entrada para sua conquista e sendo uma forma de controle social. 2. Entretanto, por dentro do processo, houve a redução da discussão à questão da busca de demandas, e isto gera certa despolitização do processo pela sua eficácia. Um fenômeno de paralisia ou secundarização de suas atividades básicas e fundamentais de articulação e organização de suas comunidades. Em síntese, a ‘questão comunitária’ foi deixada de lado. 3. Neste sentido a forma de organização autônoma via entidades da comunidade e movimentos sociais, foram diminuindo e até regredindo, facilitando processo de cooptação de lideranças por parte dos governos. “Essas se deixam seduzir por promessas de atendimento de demandas, por diferentes tipos de benesses e por elevação do status pessoal dentro do OPPA, tornando-se ‘caciques’ do processo.” Com respeito à cooptação das lideranças do OP por meio de seu recrutamento para os quadros burocráticos do governo municipal, através do partido no poder, e suas conseqüências para o funcionamento deste sistema, ver: BAIERLE, Sérgio, op. cit., pp. 155-156: “tendo em conta o enorme sucesso popular e internacional, todas as correntes [do PT] passam a voltar suas atenções para o OP como um espaço privilegiado para a seleção de novos quadros. [...] Com o deslocamento massivo de quadros para compor o governo, o eixo de discussões sobre políticas e estratégias, tanto partidárias como governamentais, vai se deslocando para as secretarias de governo. [...] Se é certo que o OP contribuiu para o desenvolvimento de novas entidades comunitárias e para a ampliação do número de participantes nestas entidades, também é certo que a maioria delas encontra-se pautada pelas oportunidades de ação social proporcionadas pelo governo da Frente Popular.” 162 clientelismo, ao ser atrelado, de uma forma instrumental, à órbita política do partido no governo municipal.201 Também foram apontados o maior peso dos setores técnicos e gerenciais da administração direta e de autarquias, como o DMAE, na priorização dos investimentos e os possíveis desinteresse ou falta de capacidade dos representantes comunitários na discussão destes projetos e de outros temas de interesse geral para a cidade.202 Foram feitas, ainda, análises centradas na incapacidade e/ou falta de disposição política de um governo situado à esquerda no espectro político para implementar políticas capazes de reverter, ou pelo menos, minimizar, os efeitos produzidos pelo quadro econômico mais amplo e pelas medidas adotadas pelo governo federal, tais como o aumento do desemprego, das carências em setores como a habitação e a saúde, e da violência, tornando mais aparentes as limitações do poder local.203 201 NAVARRO, Zander. O “Orçamento Participativo” de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico. In: AVRITZER, Leonardo, NAVARRO, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2002, pp. 118-119. Com respeito às diferenças entre o conceito de “esfera pública”, como defendido por autores como Andrew Arato e Jean Cohen, e a realidade observada com o sistema do OP em Porto Alegre, argumenta o autor, em diálogo com Luciano Fedozzi: “Conforme o autor, o OP se constituiria em uma ‘esfera pública ativa de co-gestão dos fundos públicos municipais’ (FEDOZZI, Luciano. Orçamento Participativo e esfera pública: elementos para um debate conceitual. In: FISCHER, Nilton Bueno; MOLL, Jacqueline (orgs.). Por uma nova esfera pública. A experiência do Orçamento Participativo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 69), pois fundado em uma dinâmica procedimentalista fundamentada em um ‘regramento compartilhado’, o qual instituiria formas de legitimação e validação das decisões tomadas, insistindo ainda que este espaço público configuraria uma ‘forma de democracia participativa que pressupõe o reconhecimento dos indivíduos como iguais na própria produção das regras e nas normas e das regras de procedimento e deliberação’ (Idem, p. 70). [...] mas a usual associação entre o OP e uma esfera pública, no sentido mais aceito da expressão, quase sempre não tem considerado que esta inovação, ao longo dos anos, foi sendo apropriada por uma deformação do poder político, com a qual tal esfera pública se relaciona, qual seja, o governo municipal e o bloco político que lhe oferece sustentação. [...] os espaços de mobilização social do OP [...] passaram gradualmente a ser vistos como espaços privilegiados de reprodução política, aproveitando-se da intensa imbricação de operadores partidários-governamentais com as lideranças comunitárias e, por extensão, com os cidadãos (e eleitores). [...] Quebrando os padrões de clientelismo típicos do passado, o OP aos poucos reinstituiu, contudo, um outro tipo de clientelismo, desta vez ‘de quadros’ (ou ‘partidário’), que infelizmente, vem bloqueando a potencialização do processo.” 202 Com respeito ao grau e natureza de participação dos delegados representantes dos movimentos comunitários na discussão de investimentos com maior complexidade, ou voltados para mais do que uma região da cidade, podem ser citados os trabalhos de Débora Bernardo da Silva, O Planejamento Urbano e a Administração Popular de Porto Alegre: Discursos e Práticas (Dissertação de Mestrado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRGS, 2004) e de Mário Leal Lahorgue, Espaço e Políticas Urbanas: Porto Alegre sob Governo do Partido dos Trabalhadores (Tese de Doutorado, PPG Geografia, UFSC, 2004). Estes aspectos serão tratados neste capítulo, mais adiante, com foco nas relações entre governo municipal, DMAE e participantes do OP, quanto à definição de investimentos no setor de saneamento básico e na recuperação ambiental do Guaíba. 203 Entre os trabalhos que abordam estes aspectos podem ser citados o de Mário Leal Lahorgue, Espaço e Políticas Urbanas: Porto Alegre sob Governo do Partido dos Trabalhadores (Tese de Doutorado, PPG Geografia, UFSC, 2004), e o de Sérgio Baierle (BAIERLE, Sérgio. BP au termidor ? In: VERLE, João, BRUNET, Luciano (org.). Un Nouveau Monde en Construction. Évaluation de l’experiénce du Budget Participatif de Porto Alegre – Brésil. Porto Alegre: Guayi, 2002, pp. 134-140: “Porto Alegre não é um Oasis no deserto neoliberal”). 163 Pode-se destacar, por fim, o trabalho de Leonardo Avritzer, O Orçamento Participativo e a teoria democrática: um balanço crítico, no qual seu autor procura realizar uma avaliação do OP de Porto Alegre por meio do cotejamento de trabalhos de dois autores que buscaram verificar empiricamente o grau de sucesso desta experiência a partir de diferentes enfoques, Adalmir Marquetti, e Zander Navarro. Marquetti se preocupou em avaliar a eficácia da participação relacionando esta às variáveis capacidade distributiva do OP e capacidade administrativa de implantar suas deliberações, enquanto Navarro se preocupou, como mencionado acima, com os seus aspectos mais propriamente institucionais, como a possibilidade de criação de uma esfera pública autônoma, com práticas de democracia deliberativa. 204 Avritzer mostra, inicialmente, como o aspecto relativo ao perfil socioeconômico típico dos participantes no OP é visto de uma forma bastante diferenciada por estes dois autores, como decorrência de suas abordagens. Assim, enquanto Navarro tende a ver de uma forma negativa o fato deste se concentrar em pessoas que podem ser caracterizadas como pertencentes às classes baixa e média baixa, em termos de faixas de renda e escolaridade, na medida em que isto evidenciaria a incapacidade do processo para alcançar uma maior pluralidade social, Marquetti tende a ver de forma positiva a existência desta forte correlação entre a condição socioeconômica e a participação. Avritzer, conquanto reconhecendo a importância das ponderações de Navarro, também vê um aspecto positivo no fato de que a participação se aproxime mais da configuração socioeconômica da cidade, pois isto seria um indicador de que o processo do OP não teria sido apropriado, como ocorreria em outras experiências, por setores das classes médias, dotados de uma maior escolaridade.205 Com respeito ao trabalho de Marquetti, Avritzer destaca a verificação empírica dos efeitos distributivos da sistemática implantada, por meio de um exame do perfil de investimentos realizados, que passaram a se concentrar nas regiões mais pobres da cidade, e a capacidade dos atores participantes de realizar o “ranqueamento” das prioridades, inclusive com a 204 AVRITZER, Leonardo. O Orçamento Participativo e a teoria democrática: um balanço crítico. In: AVRITZER, Leonardo, NAVARRO, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2002, pp. 20-29 (A exemplaridade do OP em Porto Alegre e a contextualidade das políticas participativas) e pp. 44-57 (O Orçamento Participativo e a teoria democrática: um balanço final). O autor discorre aqui sobre os seguintes trabalhos: MARQUETTI, Adalmir. Participação e redistribuição: o Orçamento Participativo em Porto Alegre. In: AVRITZER, Leonardo, NAVARRO, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2002; NAVARRO, Zander. O “Orçamento Participativo” de Porto Alegre (19892002): um conciso comentário crítico. In: AVRITZER, Leonardo, NAVARRO, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2002. 205 Idem, p. 28. 164 identificação de pessoas mais carentes do que eles próprios, privilegiando estas no processo de distribuição de bens públicos. Mas o autor destaca também a constatação empírica feita por Marquetti da existência de uma forte correlação entre o efeito distributivo do OP e a capacidade da administração municipal de aumentar a oferta de serviços públicos, a partir da recuperação financeira do município, com a capacidade de investimento da prefeitura subindo de 8,4% do orçamento municipal, em 1990, para 18,6%, em 1994, acompanhada por uma melhor alocação da sua força de trabalho dedicada às atividades-fim. Com respeito às ponderações de Navarro, Avritzer não via elementos empíricos suficientes para caracterizar a existência no OP de um novo clientelismo de base partidária, na medida em que a forte presença do partido à frente do governo municipal nas instâncias deste sistema não estaria sendo acompanhada de mecanismos diretos de pressão política sobre o seu processo decisório, que poderiam resultar em efeitos de particularismo na distribuição dos bens públicos.206 4.2. Os investimentos em coleta e tratamento de esgotos em Porto Alegre no período da Administração Popular: o DMAE e o Orçamento Participativo No período da Administração Popular houve avanços significativos no setor de saneamento básico em Porto Alegre, especialmente com respeito à infraestrutura de coleta e tratamento de esgotos sanitários. A cobertura da população atendida por água tratada e redes de coleta de esgoto aumentou de 73%, em 1992, para 84%, em 2001, e a atendida por esgoto tratado aumentou de 5%, em 1992, para 27%, em 2002.207 O impacto destas e de outras medidas adotadas pelo governo municipal para a recuperação do Lago Guaíba, foi, no entanto, bem menos significativo, pois, até o final deste período, apenas a praia do Lami, situada no extremo sul da cidade, havia voltado a ser balneável. Nesta seção do trabalho abordo as políticas do governo da Administração Popular para o saneamento básico, procurando enfocar a sua inserção no processo do OP e a interação entre as demandas formuladas por seus participantes com as diretrizes e planos estabelecidos pelo governo municipal e pelo DMAE, autarquia responsável por este setor da infraestrutura urbana em Porto Alegre. As iniciativas no setor do saneamento básico, aí incluindo a parte referente à coleta e tratamento do lixo urbano, 206 207 Idem, pp. 53-54. Fonte: DMAE. In: Gabinete do Prefeito, 2002 apud HILGERT, Nadia Andrea. O Acesso dos pobres à terra urbanizada no Orçamento Participativo de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRJ, Rio de Janeiro, 2005, disponível em http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/NadiaAndreaHilgert.pdf, acessado em fevereiro de 2012, p. 105, Tabela 4.1. 165 também integravam o “Programa Guaíba Vive”, conduzido desde o primeiro governo da frente liderada pelo PT e voltado à recuperação ambiental e urbanística da orla do lago, do qual tratarei na última parte deste capítulo. A expansão da infraestrutura de coleta de esgotos sanitários, além de seu valor intrínseco no sentido de melhorar as condições de higiene e saúde pública das populações que passam a receber estes serviços, se constitui num pré-requisito para a recuperação dos cursos d’água que banham as áreas por ela atingidas, uma vez que possibilita a concentração destes despejos, e o seu envio aos mesmos, passando por estações de tratamento, em condições ambientalmente mais adequadas. O primeiro destes fatores, bem mais do que o segundo, permitiria supor, em princípio, que esta expansão viesse a ser uma das demandas prioritárias das populações vivendo em áreas carentes da cidade de Porto Alegre. O saneamento básico estava incluído, no entanto, como uma das últimas entre as dez prioridades consideradas pela Frente Popular, que, ao assumir o governo, via o transporte público como muito mais crítico, chegando mesmo, para tanto, a promover uma intervenção nas empresas privadas do setor. O novo governo municipal logo veio a constatar a existência de uma inversão entre as suas prioridades e as das populações mais carentes da cidade, que não viam este, mas sim o saneamento básico, como uma de suas demandas mais prementes. Esta constatação ocorreu ainda nos anos de 1989 e 1990, no período inicial de implantação do OP, quando o novo governo decidiu ouvir as comunidades, com o objetivo de identificar ações que pudessem ser realizadas num horizonte de curto prazo e com baixo custo, dada a grande limitação financeira do município, então existente, através de um projeto coordenado pela Secretaria de Planejamento Municipal (SPM), o “S.O.S. Porto Alegre”.208 Coube também a esta secretaria a elaboração de um plano de desenvolvimento para a cidade, o “Plano de Ação de Governo”, ou PAG, o qual deveria 208 SILVA, Débora Bernardo da. O Planejamento Urbano e a Administração Popular de Porto Alegre: Discursos e Práticas. Dissertação de Mestrado, PPG Planejamento Urbano e Regional, UFRGS, Porto Alegre, 2004, disponível em http://hdl.handle.net/10183/7217, acessado em fevereiro de 2012, pp. 74-75. A respeito desta etapa inicial de implantação do OP de Porto Alegre, a autora toma como uma de suas referências a dissertação de mestrado de Luciano Fedozzi. Para este autor: “A primeira fase (1989/90) distingue-se pela inexperiência dos novos dirigentes do Executivo e dos movimentos comunitários em promover a participação institucionalizada, pela frustração dos moradores em função da ausência de resultados materiais em termos de serviços urbanos e pela conseqüente crise na interação política entre os atores comunitários e o Executivo. Situação essa que se refletiu na diminuição da participação popular verificada, sobretudo, no segundo ano de gestão da Administração Municipal.” (FEDOZZI, Luciano, op. cit., 1996, pp. 196-197). Como parte deste esforço de envolver as comunidades organizadas na definição de prioridades no início do novo governo, a alta direção do DMAE formou uma comissão conjunta com a UAMPA, com o objetivo de estabelecer critérios para a priorização de demandas das comunidades (Ver: SPEGGIORIN, João Carlos, op. cit., pp. 139-140). 166 tratar as demandas identificadas pelas demais secretarias e pelo próprio governo municipal, de uma forma integrada. Este plano, que foi logo em seguida preterido, em favor da implantação do processo do Orçamento Participativo, era dividido em sete programas e vários subprogramas, e continha algumas propostas que foram conservadas ao longo dos vários mandatos da Administração Popular, entre os quais o “Guaíba Vive”, que deveria integrar ações nas áreas de saúde, meio ambiente e saneamento básico. Outro de seus programas dizia respeito a ações nas áreas de habitação, regularização de terras urbanas e infraestrutura de saneamento básico, tendo o nome de “A Cidade é Nossa Casa”, o qual era visto pelos quadros encarregados do planejamento municipal como uma resposta tanto às demandas e carências da população da cidade quanto como às exigências impostas pela complexidade do crescimento urbano, nos planos técnico e institucional, e integrado por três subprogramas: (a) “uma estratégia de ação urbanística”; (b) “recuperação das áreas de sub-habitação”, e (c) “infraestrutura e equipamentos urbanos”. Dentro deste último, o novo governo incluiu diversas ações no setor de saneamento básico, sob a responsabilidade do DMAE e do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais). O saneamento básico, englobando a infraestrutura e serviços de água e de esgotamento sanitário, esteve entre os três “temas” escolhidos como de maior prioridade pelas plenárias regionais do OP de Porto Alegre, em grande parte do período de governo da Administração Popular, desde a consolidação deste sistema de cogestão dos fundos públicos de investimento do município, a partir de 1992, como visto no quadro abaixo: Quadro 1. Histórico das Prioridades Regionais do Orçamento Participativo de Porto Alegre (1992 a 2004) Temas Saneamento Habitação Pavimentação Educação Assistência Social Saúde Transporte Áreas de Lazer Esporte e Lazer Organização da Cidade Desenvolvimento Econômico Cultura Anos 1992 1ª 3ª 2ª 1993 1ª 3ª 2ª 1994 3ª 1ª 2ª 1995 3ª 2ª 1ª 1996 2ª 3ª 1ª 1997 3ª 1ª 2ª 1998 3ª 2ª 1ª 1999 1ª 3ª 2ª 2000 1ª 2ª 2001 3ª 2ª 1ª 2002 1ª 3ª 2ª 2003 1ª 3ª 2ª 2004 1ª 3ª 2ª 3ª 167 Um primeiro olhar para este quadro poderia levar à conclusão de que os expressivos avanços alcançados na cobertura por sistemas de coleta de esgotos sanitários em Porto Alegre teriam resultado, em sua maior parte, da pressão das populações mais desfavorecidas da cidade, junto ao poder público municipal, através de seus representantes no OP, os quais elencaram este tema, por anos sucessivos, como uma de suas prioridades, ao lado da habitação, incluindo a regularização fundiária, e da pavimentação de ruas. No entanto, para que uma melhor avaliação deste ponto possa ser realizada, é necessário ter em conta algumas das especificidades deste setor, entre as quais a configuração e dinâmica empresariais da estrutura responsável pela expansão desta infraestrutura e pela operação destes serviços, o DMAE, no que se refere à maior complexidade técnica inerente ao projeto e operação de seus sistemas, e, principalmente, à sua maior disponibilidade de recursos, decorrente da relativa autonomia de sua política tarifária. Assim como também é necessário comparar o maior sucesso obtido no atendimento às demandas por saneamento em relação ao das demandas por habitação e regularização fundiária urbana, igualmente uma alta prioridade nas plenárias regionais do OP, e verificar em que medida esta diferença se deu pela maior capacidade de atendimento do poder público municipal ao primeiro tema, sendo o segundo mais dependente das políticas do governo federal para o setor habitacional. Esta avaliação em mais detalhe sobre a política de saneamento básico no período da Administração Popular, com foco nas interações entre os setores da sociedade civil atuando nas instâncias do OP, em especial os representantes comunitários de áreas carentes da cidade, e o poder público municipal pode ser iniciada pela atuação do DMAE. Isto se justifica tendo em conta o cenário existente quando da posse do novo governo e as alterações na sua gestão e projetos, decorrentes das diretrizes imprimidas pelo mesmo à autarquia, incluindo a retomada dos investimentos no sistema de coleta e tratamento de esgotos sanitários, que sofriam restrições, como visto anteriormente, em função do “Projeto Rio Guaíba”. O novo governo municipal designou para a direçãogeral da autarquia um de seus poucos quadros com a formação profissional exigida por lei para o cargo, o engenheiro civil Guilherme Barbosa. Uma das primeiras medidas tomadas por este dirigente foi a de obter, junto ao novo governo municipal, uma forte recomposição das tarifas cobradas por este órgão, num contexto econômico nacional que já se aproximava de uma hiperinflação, de modo a manter seu equilíbrio orçamentário e a sua capacidade de realizar investimentos, o que foi feito com o 168 respaldo de lei municipal, mesmo diante de posições em contrário manifestadas através da imprensa, e da vigência de planos econômicos do governo federal que estabeleciam o congelamento dos preços.209 Também neste momento a nova direção do DMAE, como visto no capítulo anterior, obteve o encerramento do convênio com a Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN), para a execução do “Projeto Rio Guaíba”, com o que foi possível para a autarquia retomar os seus planos no setor de esgotamento sanitário, com a reativação da sua Divisão de Esgotos. Esta medida veio ao encontro do que preconizava a nova Lei Orgânica de Porto Alegre, de abril de 1990, a qual, em artigo de suas disposições transitórias, determinava que o município, num prazo de seis meses de sua promulgação, deveria iniciar a elaboração de seus planos diretores de saneamento básico e de proteção ambiental. Em atendimento a esta determinação, foi realizado um trabalho envolvendo técnicos de vários órgãos da PMPA, para a definição de diretrizes para o Plano Diretor de Meio Ambiente e Saneamento do município, o qual foi concluído no final de 1992. Como parte deste esforço, coube ao DMAE realizar a reestruturação do Plano Diretor de Esgotos da cidade de Porto Alegre (PDE), dentro do qual estava evidenciada a necessidade de realizar investimentos em sistemas de tratamento dos esgotos cloacais do município, com vistas a recuperar a qualidade das águas na margem esquerda do Lago Guaíba, inclusive para assegurar condições adequadas de abastecimento de água para o consumo de seus moradores. 210 A 209 Sobre este ponto, diz Guilherme Barbosa: “Muito bem, aí, eu levei essa proposta para o Prefeito Olívio Dutra, e o bigode do Olívio subiu e desceu umas cem vezes. Porque em janeiro de 89, o Presidente Sarney tinha baixado o seu pacote [...] o Plano Verão, congelando tudo. E eu estava ali pedindo ao Prefeito de Porto Alegre que reajustasse a tarifa de água, com tudo congelado no país, em 59%. [...] Foi uma gritaria violenta nessa cidade. [...] Era rádio, televisão, jornal, não parava. Mas, fizemos. E fizemos com convicção. [...] E nunca mais deixamos de reajustar a tarifa, todo mês, porque a lei municipal permite isso.” (Ver: SPEGGIORIN, João Carlos, op. cit., pp. 138-139). Cabe lembrar, neste ponto, que o impacto desta política de recomposição tarifária seguida pelo DMAE era atenuado, para os consumidores com menor poder aquisitivo, através da “tarifa social”, uma forma de subsídio instituída pela autarquia por orientação do governo municipal anterior, de Alceu Collares, do PDT (Ver: Idem, p. 131). 210 Em março de 1995 foi iniciada a reformulação do Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Porto Alegre, dentro da qual coube ao DMAE esta reestruturação do PDE. (Ref.: Comissão Executiva do PDE. Plano Diretor de Esgotamento Sanitário em Porto Alegre quer resgatar o Guaíba – estudos preliminares. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 9, janeiro 1997, pp. 19-21, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista9/paginas.html, acessado em dezembro de 2011). De acordo com os técnicos responsáveis por esta reestruturação, “o lançamento dos esgotos, principalmente à sua margem esquerda (contribuição de Porto Alegre), e a influência dos outros rios formadores e receptores dos esgotos de várias cidades, comprometem a qualidade das águas do Guaíba em áreas bem definidas, pela elevada concentração de bactérias coliformes que chegam a colocá-lo na classe 4 pela legislação vigente. Desta maneira, verificou-se que, dos sete pontos de captação do DMAE, quatro encontram-se hoje em locais impróprios, o que constitui um elemento determinante para o tratamento dos esgotos do município e Região Metropolitana, sob pena de elevação dos custos de captação e tratamento da água para abastecimento público e o risco de agravamento ambiental.” E o grupo de técnicos concluiu: “A preocupação dos órgãos de saneamento com a preservação dos recursos hídricos, associada à expectativa da população da cidade em recuperar a balneabilidade de suas praias, impulsionaram a 169 ampliação da cobertura por sistemas de coleta e tratamento de esgotos, assim, era parte da política do município de Porto Alegre para os setores de saneamento e meio ambiente, que tinha no DMAE um de seus principais braços executores, com a participação em iniciativas envolvendo investimentos de grande porte, como o “Programa Guaíba Vive”, e também em parceria com o governo do estado do Rio Grande do Sul, no “Pró-Guaíba”. O segundo aspecto a ser observado aqui diz respeito aos níveis mais elevados de complexidade técnica e de integração entre sistemas que caracterizam a operação e os projetos da infraestrutura de saneamento básico, tanto em abastecimento de água quanto em disposição de esgotos, quando comparados, por exemplo, com habitação, pavimentação de ruas e iluminação pública, e o impacto disto, bem como dos altos custos envolvidos, na participação direta da população para a definição de demandas deste tema no âmbito do OP. A grande interdependência das demandas de saneamento básico contribui para justificar a necessidade de uma maior interferência direta do executivo municipal, na medida em que as demandas diretas das comunidades, nas plenárias regionais, por redes de abastecimento de água ou de coleta de esgotos, requerem, para poderem funcionar, sistemas como as estações de bombeamento, que, por terem maior custo de investimento, entram como demandas “institucionais”, formuladas pelo próprio governo. Um terceiro aspecto, que reforça o anterior, reside em que o saneamento básico caracteriza-se como um bem público. Isto é especialmente verdadeiro no que se refere aos sistemas de tratamento de esgotos, uma vez que os benefícios que deles resultam, como o retorno à balneabilidade de um rio ou de um lago, são extensivos a toda a comunidade, para além do local de sua instalação. O sistema de disposição de esgotos, como um todo, constitui-se num bem misto, pois a coleta em cada residência é privada, mas o seu conjunto produz benefícios externos, o que justifica uma intervenção direta do Estado. E o volume requerido de investimentos é geralmente muito alto, reforçando esta necessidade, através de demandas “institucionais”, em obras que irão beneficiar várias zonas da cidade, e alcançando valores superiores aos destinados a cada região nas plenárias regionais, como é o caso Administração Municipal a investir esforços e recursos financeiros na busca de solução para esses problemas. O Plano Diretor de Esgotos, aliado ao Plano Diretor de Meio Ambiente, é ferramenta determinante na busca desta melhoria da qualidade de vida, resgatando o Guaíba para a população de Porto Alegre e suas futuras gerações.” 170 das estações de tratamento de esgotos ou de água.211 O resultado destes dois fatores se refletiu no perfil de distribuição dos investimentos do governo municipal em saneamento básico, no qual o conjunto das demandas técnicas “institucionais”, principalmente para “toda a cidade”, mas também das regiões, superou amplamente o das demandas diretas das populações nas plenárias regionais do OP, as quais representaram apenas 18% do investimento total nesse setor, no período de 1991 a 2000, como visto no quadro abaixo: Quadro 2. Perfil dos Investimentos em Saneamento Básico em Porto Alegre (1991 a 2000) Tipos de demandas Investimentos no item “Toda a Cidade” que são demandas técnicas institucionais Investimentos nas 16 regiões que são demandas técnicas institucionais Investimentos nas 16 regiões que são demandas diretas da população Total 169, 178 945, 869 18 100 101, 628 11 675, 063 71 R$ Milhões % Obs.: valores atualizados pelo IGP-DI Fundação Getúlio Vargas a preços de julho de 2003. Estas características associadas à infraestrutura de saneamento básico reduziam, por um lado, o papel dos líderes dos movimentos comunitários na defesa de suas demandas, na medida em que davam maior ênfase às considerações de ordem técnica que lhe eram próprias, mas não chegavam a evitar, por outro, a existência de alguns elementos de tensão destes com o poder público, quanto à própria definição dos investimentos prioritários neste segmento. O DMAE, principal órgão executor das políticas do município para esta área, apresentava uma situação especial dentro do OP, na medida em que detinha a delegação para utilizar seus próprios critérios classificatórios na distribuição dos recursos a serem investidos nas regiões, ao lado de 211 HILGERT, Nadia Andrea, op. cit., pp. 95-96. Sobre a caracterização de bens públicos como “puros” ou “mistos”, a autora toma como referência MUSGRAVE, A. Richard, MUSGRAVE, Peggy. Finanças públicas: teoria e prática. São Paulo: Ed. Campus, 1980, p. 42. Diz a autora, aqui: “Para esses autores (1980, p.42), a principal característica que diferencia os bens públicos dos privados é o consumo não rival dos primeiros. Ou seja, um bem público pode ser consumido por uma pessoa sem que isso diminua os benefícios disponíveis para o resto da coletividade. Essa característica (não-rivalidade) torna impraticável ou não recomendável a aplicação do princípio da exclusão, que caracteriza os bens privados, em que cada pessoa adquire um produto para si e revela sua preferência no mercado. O caráter de não exclusividade do bem público faz com que uma vez ofertado não há como excluir ninguém do seu consumo, mesmo que não tenha contribuído. Como a participação no consumo desses bens não depende de pagamento, os consumidores vão tender a não pagar voluntariamente por eles. Devido a essas características não há motivação para o mercado ofertar esses bens. Portanto, o Estado precisa provê-los: o indivíduo colabora pagando imposto e revela suas preferências por intermédio do voto.” 171 critérios eliminatórios, o que era justificado, no regimento interno desta instância, pela complexidade técnica das obras para instalação e ampliação das redes de água e esgotos. Os critérios eliminatórios para a instalação de redes de esgotos cloacais abrangiam considerações não apenas de ordem técnica, como a localização em áreas de risco e/ou inundáveis, mas também de ordem econômica, como relação custo/benefício inviável, e jurídica, como a localização em loteamento clandestino e/ou situação fundiária indefinida, com o que também não deixavam de levar em conta uma consideração política. E os critérios classificatórios utilizados pelo DMAE abrangiam considerações de ordem econômica, como a relação custo/benefício, de saúde pública, como a existência de esgoto a céu aberto, ambiental, como a proteção a manancial, ou, mesmo, urbanística.212 A proeminência do componente técnico no atendimento às demandas por saneamento básico era uma percepção dos próprios integrantes do DMAE, um dos quais, entrevistado, afirmou que, uma vez preenchidos os pré-requisitos técnicos exigidos por esta autarquia, praticamente todas as demandas por saneamento das comunidades eram contempladas nos seus planos de investimentos.213 Mas a inclusão de demandas institucionais, entre as quais os grandes projetos de saneamento, no OP, levando a uma participação de caráter apenas consultivo, conquanto fosse vista como um elemento importante para a obtenção dos financiamentos externos necessários para a execução destes projetos, os quais, de acordo com quadros do DMAE ligados ao PT, só eram obtidos “porque a gestão participativa de Porto Alegre é exemplar”, desagradava uma parte de seus conselheiros e delegados.214 A adoção do processo do Orçamento Participativo pelo governo municipal teve um impacto, de todo modo, na atuação dos quadros técnicos e burocráticos da administração direta e das autarquias ligadas à prefeitura. Houve um esforço, neste sentido, de aproximar os cidadãos comuns da linguagem técnica empregada por estes 212 Idem, pp. 26-27. No Regimento Interno do Orçamento Participativo para o exercício de 2005, constava o seguinte: “os três critérios gerais (carência do serviço ou infra-estrutura, população total da região, prioridade temática da região) serão aplicados para a distribuição de recursos nas três primeiras prioridades temáticas escolhidas globalmente pelas 16 regiões, com exceção do DMAE, que tem critérios próprios” (Ver: PORTO ALEGRE, RS. Regimento Interno: critérios gerais, técnicos e regionais do Orçamento Participativo de 2005. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2004, p. 25 apud Idem, p. 26). 213 Idem, p. 31. 214 Idem, pp. 109-110. Com respeito ao posicionamento de alguns conselheiros e delegados do OP frente às demandas institucionais, como as dos investimentos do DMAE em estações de tratamento de esgotos, como parte dos programas “Guaíba Vive” e “Pró-Guaíba”, a autora cita SOUZA, Marcelo Lopes. Para que serve o Orçamento Participativo? Disparidade de expectativas e disputa ideológica em torno de uma proposta em ascensão. In: Cadernos IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 123-142, ago./dez. 2000. Mas há também percepções em contrário sobre este aspecto, como a de Guilherme Barbosa, diretor-geral do DMAE no governo do prefeito Olívio Dutra (ver: SPEGGIORIN, João Carlos, op. cit., p. 141). 172 agentes do Estado nos processos de negociação das demandas institucionais e das regiões e de definição dos investimentos do município. Alguns autores, como Boaventura de Sousa Santos, chegaram, mesmo, a avaliar que este esforço teria resultado “numa transformação radical da cultura profissional” destes quadros, que teriam sido submetidos, com a adoção do OP, a “um profundo processo de aprendizagem de comunicação e argumentação com os cidadãos comuns”.215 Luciano Fedozzi, por sua vez, identificou como um dos efeitos da implantação deste mecanismo uma apropriação coletiva de questões que eram anteriormente de domínio exclusivo dos quadros técnicos e políticos, o que provocou tensões tanto com os primeiros, até então detentores do monopólio do “saber técnico”, contido nos diversos códigos urbanísticos e leis orçamentárias, quanto com os últimos, ao reduzir suas margens para o uso clientelístico do orçamento público do município.216 No caso específico do DMAE este impacto transpareceu, de algum modo, nas percepções do seu diretor-geral no primeiro governo petista, Guilherme Barbosa, que viu a participação da autarquia no OP como um processo de aprendizagem, no qual, a partir de um período inicial em que havia pouca receptividade por parte das comunidades, foi possível chegar a uma sistemática de trabalho em que o envolvimento destas e do Estado resultou num processo decisório eficiente e adequado para a alocação de recursos públicos para investimentos. Para este mesmo dirigente, a participação do DMAE no OP levou a desdobramentos positivos, tais como o estabelecimento de critérios em conjunto com a comunidade, para a realização de obras. Ao lado disso, a necessidade de prestar informações à comunidade 215 Idem, p. 31. A autora cita, neste ponto, SANTOS, Boaventura de Sousa. Orçamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 539; diz o autor: “Se é verdade que os critérios técnicos limitam o campo de participação e da deliberação, também é verdade que o processo do OP transformou radicalmente a cultura profissional da equipe técnica do Executivo. Essa equipe tem sido submetida a um processo de aprendizagem profundo em relação à comunicação e à argumentação com cidadãos comuns. As suas recomendações técnicas devem ser veiculadas numa linguagem acessível a pessoas que não dominam conhecimentos técnicos; a razoabilidade dessas recomendações deve ser demonstrada de modo persuasivo, em vez de ser imposto de forma autoritária; nenhuma hipótese ou solução alternativa pode ser excluída sem que seja mostrada sua inviabilidade.” Deve ser observado, de todo modo, que as concepções políticas da Administração Popular sobre o papel da “técnica” e do “planejamento urbano” faziam com que o governo tivesse que minimizar e/ou negar o seu papel e privilegiar e/ou maximizar o da população através do OP, no processo de definição de investimentos prioritários para a cidade, e ressaltasse, em seu discurso, o Estado como apenas o elemento “organizador”, mas não “planejador”, e o OP como “a instância de planejamento”. Neste sentido, era necessário o “esquecimento” da dimensão técnica na consolidação da matriz orçamentária a ser aprovada pelo Conselho do OP, quando era feita a compatibilização da proposta das plenárias regionais com a das secretarias e autarquias do município. (Ver: SILVA, Débora Bernardo da, op. cit., pp. 57-58 e 109-110). 216 Idem, p. 31. A autora cita, aqui, FEDOZZI, Luciano Joel. Orçamento Participativo – reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001, p. 145. 173 tornou necessário discutir com seus representantes as obras institucionais propostas pela autarquia e a avaliar mais exaustivamente a prioridade dos projetos para o setor.217 É necessário, neste ponto, trazer alguns elementos com respeito à atuação e às percepções de pessoas que participaram deste processo representando as comunidades como conselheiros e/ou delegados do OP. Foi necessário, para tanto, acessar depoimentos contidos em alguns trabalhos acadêmicos, como a dissertação de Marcelo Kunrath Silva, sobre o movimento comunitário no bairro popular da Vila Jardim, na zona leste de Porto Alegre, bem como em publicações como a Revista Ecos, do DMAE. No trabalho de Silva, pude obter elementos acerca da atuação de integrantes e lideranças destes movimentos comunitários, com depoimentos de alguma forma esclarecedores sobre suas relações com os quadros técnicos e burocráticos do governo municipal, muito embora de outros setores que não o do saneamento básico, tais como o Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) e o Serviço de Saúde Comunitária. Entre os pontos abordados em maior detalhe pelo autor estão o processo de inserção de sua associação comunitária nas plenárias regionais do OP, bem como o processo de regularização fundiária em espaços do bairro conhecidos como “becos”. No primeiro transparecem tanto as conexões existentes entre as lideranças das associações comunitárias e o partido no governo, quanto o processo de aprendizagem destas lideranças para a utilização deste novo espaço de negociação de demandas com o poder público municipal, enquanto que no segundo podem ser vistas as tensões decorrentes das diferenças entre o conhecimento técnico e burocrático e os saberes dos moradores do local, e as limitações trazidas pela falta desses conhecimentos às possibilidades de uma efetiva cogestão dos projetos de melhorias. O autor destaca alguns aspectos da participação do movimento comunitário que estudou, tais como suas contribuições para a formulação de critérios para o tratamento das demandas regionais no OP, e a percepção crítica de que as vilas de cada bairro eram 217 SPEGGIORIN, João Carlos, op. cit., pp. 140-141. Barbosa lembra neste ponto que, no período inicial de implantação do OP, em 1989 e 1990, “Nas reuniões tinha mais gente das secretarias, do que da comunidade. Por duas razões: tanto a comunidade não estava preparada como, também, pela desconfiança com experiências do passado nessa direção, que não resultaram em nada. Com o tempo, felizmente, o pessoal percebeu que era para valer. E cresceu bastante.” O depoimento deste dirigente apresenta uma visão com respeito ao posicionamento de conselheiros e delegados do OP frente às prioridades introduzidas pela administração municipal, através de suas demandas “institucionais” que contrasta com a identificada por autores como Marcelo Lopes Souza: “Eu me lembro da ampliação das estações de tratamento S. João, que pega toda a zona norte da cidade, e a de Belém Novo que abastece a Restinga. Fomos lá, levando a importância dessas obras. E nunca houve qualquer problema em aprová-las. Ao contrário, a receptividade do pessoal foi muito boa. O que mostra uma compreensão do que seja a cidade por parte das pessoas que participam do Orçamento Participativo.” 174 observadas de uma forma fragmentada, reduzindo a sua prioridade na distribuição dos investimentos, o que levou a um esforço de articulação das associações num nível regional, como na zona leste da capital.218 Silva destaca também, por fim, como um dos resultados da implantação do OP em Porto Alegre, entre os integrantes e líderes dos movimentos comunitários, a mudança de suas concepções acerca do papel do Estado e de suas relações com os seus agentes, e no modo de transformá-las em seu favor, com as abordagens apenas reivindicatórias, ou, por parte de alguns, “revolucionária”, sendo substituídas por estratégias centradas na intervenção nos espaços estatais agora abertos, além de uma forma “participativa”. Estas estratégias, para obterem êxito, tornaram necessária uma maior qualificação das lideranças do movimento comunitário, no sentido da compreensão dos mecanismos e dinâmicas da administração pública, da capacidade de apresentar suas demandas como propostas de políticas públicas, do acesso e manuseio das informações, de modo a possibilitar uma intervenção eficaz nesses espaços públicos estatais, não sendo suficiente, neste novo contexto, a sua capacidade de mobilização dos moradores das comunidades.219 Dentro deste processo, é possível dizer, foram se criando novas lideranças, as quais, assim como as já existentes, tiveram de acumular estes novos recursos, que lhes permitiam se credenciar como tais. Mas cabe aqui aventar, como o fez Zander Navarro, se esta dinâmica não terminava por criar, ou mesmo aprofundar, certas aproximações com o partido no poder, que fora o responsável por instituí-la, e a mantinha, em larga medida, sob o seu controle, ao longo deste período.220 218 SILVA, Marcelo Kunrath. Cidadania e exclusão: os movimentos sociais urbanos e a experiência de participação na gestão municipal – uma análise da trajetória do movimento da Vila Jardim em Porto Alegre/RS. Dissertação de Mestrado, PPG em Sociologia, UFRGS. Porto Alegre, 1997, pp. 190-195 e 195-206. Com respeito às relações entre as lideranças comunitárias e o PT, incluindo aspectos como a reprodução nas regiões do OP da organização regional do partido, ver pp. 190-191. Diz o autor, citando o depoimento de um dos líderes comunitários: “Inicialmente, no entanto, as lideranças da Vila Jardim tiveram que enfrentar a resistência das lideranças de outros bairros e vilas que já integravam a Região Leste: ‘nós fomos lá nessa reunião, numa plenária do Orçamento [...] se é pra disputar, vamos disputar. Só que tinha uma turma do PT organizada e a gente, como a nossa região do PT era norte e eles são da leste, eles ficaram: ‘Quem é esse bando aí?” E nós fomos disputando palmo a palmo. Aí os caras tiveram que abrir os canais. [...] (Pedro). ’” Com respeito às contribuições do movimento comunitário da Vila Jardim para o processo do OP, ver pp. 191-192. Com respeito às limitações a uma cogestão no processo de regularização fundiária decorrentes da falta de conhecimento técnico especializado por parte dos moradores, ver pp. 198-200. 219 Idem, pp. 214-215. Entre estes espaços públicos estatais, criados no âmbito municipal a partir de 1989, estão, além do OP, os Conselhos Tutelares, o Serviço de Saúde Comunitária, o Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação, o Programa de Regularização Fundiária e o Programa de Pavimentação Comunitária, entre outros. 220 NAVARRO, Zander, op. cit., p. 119. Com respeito a este ponto, diz o autor: “Conforme antes indicado, os espaços de mobilização social do OP, particularmente a partir de meados da década passada, passaram gradualmente a ser vistos como espaços privilegiados de reprodução política, aproveitando-se 175 Um depoimento que pode ser visto, até certo ponto, como representativo das percepções de lideranças comunitárias sobre o processo do OP e seu impacto nas relações entre estes movimentos e o poder público municipal é o de Eduíno de Mattos, em entrevista à Revista Ecos, durante a realização do 3º Congresso da Cidade, em 2000. Tendo participado do OP desde a sua implantação, em 1989, este técnico em eletrônica e telecomunicações, com militância no movimento ambientalista, acabara de ser eleito como conselheiro pela Região da Grande Partenon e Lomba do Pinheiro, uma das oito em que fora dividido o município no novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre (o 1° PDDUA). Nesta entrevista, Eduíno fez as seguintes ponderações com relação à participação popular nos assuntos de gestão dos fundos públicos para investimentos na infraestrutura da cidade, onde podem ser vistas a ênfase na disposição por parte do governo em ouvir as comunidades mais carentes e em atender suas demandas, com a mudança de suas prioridades: [ECOS – Como tem sido a participação dos cidadãos nas principais discussões da cidade?] O princípio de tudo foi o Orçamento Participativo. Até então não havia retorno, as obras na periferia não aconteciam, e a gente brigava muito com o governo municipal. Quando se conseguia alguma coisa, era através de favoritismo, clientelismo ou apadrinhamento de algum político. As regiões periféricas não tinham vez, só a parte rica era beneficiada. [...] com a entrada da Administração Popular, veio a proposta de discutir com a população o que estava acontecendo: demandas com 30, 40 anos, que não eram atendidas [...] [ECOS – Foi uma coisa inovadora, então, criar instâncias de participação das comunidades?] [...] Em governos anteriores, a discussão era engessada, manipulada [...] A população não participava, porque via que aquilo era uma fraude. A Administração Popular chegou com a proposta de preencher a lacuna, que era o atendimento à periferia. A primeira coisa que o prefeito fez foi visitar as regiões, com seus secretários, o que nunca tinha acontecido antes. As comunidades puderam perguntar ao vivo, questionar. Aquilo teve um impacto positivo. Em mim também, que estava desiludido da política comunitária, porque não se conseguia nada. Então comecei a participar [...] vi que a proposta do Orçamento Participativo tinha fundamento, de resgatar o que estava perdido ao longo dos anos. [...] E o povo o defende, porque é um canal de participação aberto, transparente. Cada um coloca suas demandas, de 221 acordo com suas necessidades. É possível identificar, de todo modo, a existência de uma preocupação, por parte dos gestores da área de saneamento básico, em Porto Alegre, neste período, em buscarem um maior envolvimento dos moradores em áreas carentes da cidade, e de suas lideranças, no acompanhamento e fiscalização das obras. Uma orientação que encontrava reciprocidade por parte destes usuários, como pode ser visto em matéria da da intensa imbricação de operadores partidários-governamentais com as lideranças comunitárias e, por extensão, com os cidadãos (e eleitores). Sem surpresa, a manutenção do OP como uma exclusiva ‘inovação petista’ tem o propósito instrumentalista de manter tal mecanismo preso a uma órbita partidária específica, bastando acompanhar os resultados das sucessivas eleições para perceber seus resultados práticos.” 221 Orçamento Participativo foi o princípio das conquistas populares (Entrevista de Eduíno de Mattos a Márcia Camarano). In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 18, outubro 2000, p. 8, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista18/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. 176 Revista Ecos, referente a um programa de saneamento integrado (o “Prosanear”), em execução pelo DMAE, em 1997, em quatro vilas da cidade, Vila Laranjeiras, Vila Boa Vista, Vila 1º de Maio e Vila Maria da Conceição (ou Maria Degolada), utilizando recursos do FGTS. Diz o texto: “A partir do Prosanear desenvolveu-se uma nova tecnologia para obra, diferente de outras intervenções, por ser um programa de participação comunitária e educação sanitária”, informa a socióloga Antônia Sanguiné, um dos responsáveis técnicos do DMAE. A equipe é composta por 14 pessoas, entre estagiários e coordenadores dos trabalhos de campo. Fazem parte dela o sociólogo Antônio Nunes e a pedagoga Mara Pohlmann (da empresa SJF Engenharia Ltda) e o responsável técnico do Departamento, Jorge Maciel. Foram formadas comissões de acompanhamento de obras nas quatro vilas, onde os próprios moradores são responsáveis pela fiscalização. “Eles controlam e avisam se uma obra precisa ser melhorada e onde e o que precisa ser mudado”, revela o sociólogo. É o caso do aposentado Argemiro Soares, de 75 anos, morador da Vila Maria da Conceição desde 1950. Ele não integra oficialmente a comissão de acompanhamento, mas participa de todas as atividades do Programa, entre reuniões e caminhadas (de uma obra para outra). E sabe que o compromisso da Administração Municipal de atacar áreas com carência máxima está se efetivando. Claro que ainda há muito a ser feito, mas ele acredita que hoje, quem reclama da Vila reclama sem razão: “Antigamente era só barro, não tinha água e os “capitão” (fezes) corriam pelos becos”.222 Os esforços para a ampliação da infraestrutura de coleta e tratamento de esgotos sanitários no município devem ser vistos, assim, como uma resultante tanto das demandas das populações mais carentes, quanto do projeto político do grupo que estava à frente do governo municipal. Este projeto político não deixava de expressar, ainda que num sentido mais amplo, as aspirações de outras parcelas da sociedade local, incluindo integrantes de organizações ligadas à defesa de causas ambientais, com parcela significativa de suas lideranças atuando no governo municipal ou integrando os partidos no poder, e seus simpatizantes. E também o desdobramento do que poderia ser definido como a “vocação natural” do DMAE, que se via mais reforçada, nesta nova conjuntura, a partir do início dos anos 1990, por uma condição financeira mais favorável e pela remoção de entraves como o do “Projeto Rio Guaíba”. As demandas por saneamento básico que foram atendidas no OP durante o período de governo da Administração Popular apresentaram um caráter redistributivo, que pode ser evidenciado pelo fato de que as regiões com maiores valores de demanda e de atendimento per capita em saneamento estavam entre as mais pobres da cidade: Lomba do Pinheiro, Nordeste e Extremo-Sul, enquanto que entre as que tiveram os menores estavam as de melhores indicadores sociais, como a Centro, a Noroeste e a Cristal.223 Mas é necessário ressaltar, 222 SILVEIRA, Darlene. Saneamento se faz com integração. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 11, dezembro 1997, pp. 24-26, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista0/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. 223 HILGERT, Nadia Andrea, op. cit., pp. 116-117. Na Tabela 4.6 – Investimento Per Capita em Saneamento Demandado e Realizado por Região (1992-2004), a autora utiliza as seguintes fontes para 177 também, os limites encontrados nas políticas destes governos, no sentido de alcançar uma oferta mais generalizada dos equipamentos e serviços de infraestrutura urbana, que podem ter decorrido das restrições devidas à escala em que foram aplicadas, municipal, frente às mudanças na conjuntura econômica e de políticas públicas em âmbito federal, ao longo do período, mas também da própria falta de capacidade e/ou disposição política dos mesmos em enfrentar certos interesses, como os ligados à especulação imobiliária, limitando os esforços no sentido de um acesso mais amplo à terra urbanizada em Porto Alegre. Ainda persiste uma situação de carência em coleta de esgotos nas vilas populares e outras áreas de habitação irregular da cidade. Isto fica evidente ao se observar que, no ano de 2001, dentre os 73,3 mil domicílios portoalegrenses localizados em vilas ou núcleos irregulares, somente 94% eram servidos por redes de abastecimento de água tratada e 64% estavam conectados a algum tipo de rede de esgotos, contra uma cobertura geral na cidade de 99,5% e 84%, respectivamente.224 Além disso, o esforço empreendido pelo governo de Porto Alegre para aumentar a cobertura por tratamento de esgotos, em sinergia com o governo do Rio Grande do Sul, através do Programa “Pró-Guaíba”, dependia em grande parte de recursos obtidos por financiamentos externos, de instituições como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cujo acesso foi grandemente restringido, a partir do final dos anos 1990, com a deterioração das finanças públicas nos três níveis de governo no país, levando ao adiamento das obras necessárias para a despoluição do Lago Guaíba, ponto que será visto mais adiante, neste trabalho. 4.3. O Programa “Guaíba Vive” e o início da recuperação ambiental e urbanística da orla de Porto Alegre A recuperação ambiental da bacia do Lago Guaíba, em Porto Alegre, incluindo seus afluentes da margem esquerda, bem como a revitalização urbanística de sua orla, estiveram entre as preocupações da prefeitura municipal, ao longo dos governos da Administração Popular, com desdobramentos tanto em programas específicos no âmbito local, como o “Guaíba Vive”, lançado logo em 1989, quanto no processo de reformulação de seus instrumentos de gestão e planejamento urbano, em eventos como seus dados: (i) investimentos demandados: Porto Alegre (1991-2004); (ii) situação de atendimento das demandas: www.portoalegre.gov-rs.br, acessado em setembro de 2004; (iii) população total das regiões do OP: Censo Demográfico de 2000 – IBGE, organizado pelo GAPLAN / PMPA. 224 LAHORGUE, Mário Leal. Espaço e Políticas Urbanas: Porto Alegre sob Governo do Partido dos Trabalhadores. Tese de Doutorado, PPG Geografia, UFSC, Florianópolis, 2004, http://www.tede.ufsc.br/teses/PGCN0243.pdf, acessado em julho de 2010, pp. 123-124. O autor usa como fonte os dados do Censo de 2001 do IBGE. 178 o “Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte”, fórum realizado em 1993, com a participação do governo e da sociedade local, que conduziram ao novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (o 1° PDDUA), aprovado em 1999. Preocupações que não partiam, por certo, apenas da administração municipal e dos políticos no poder, mas também de pressões de vários segmentos da sociedade, não apenas dos integrantes do “movimento ambientalista”, e, de forma não menos importante, por parte de diversas instituições internacionais, como o BID e o BIRD. Estes bancos de fomento passavam, crescentemente, a introduzir entre seus critérios para seleção de projetos submetidos por governos e empresas públicas aspectos como a sustentabilidade, num sentido mais amplo, e a gestão responsável e participativa dos fundos públicos. 225 A gestão da capital gaúcha ganhou notoriedade internacional, não apenas entre os partidos de centro-esquerda, e o Orçamento Participativo de Porto Alegre foi reconhecido pela ONU como uma das “melhores experiências de gestão urbana” durante a conferência Habitat II. A prefeitura chegou a criar uma área de relações internacionais, voltada a atender os vários pedidos de informações de todo o mundo a respeito do OP, e à captação de financiamentos em condições mais favoráveis para a realização de obras de grande porte, ligadas à mobilidade urbana, como a 3ª Perimetral, uma extensa via ligando as zonas norte e sul da cidade, e ao próprio saneamento básico.226 Nesta seção do trabalho, busco avaliar o programa “Guaíba Vive”, desdobrando a análise em seus aspectos conceituais, suas implicações e motivações de ordem político-partidária e seus reflexos socioculturais e urbanísticos. O programa foi concebido como uma iniciativa da prefeitura com foco ambiental, procurando conjugar ações localizadas, na área do saneamento e controle de fontes poluidoras, com um 225 O “Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte”, também conhecido como o 1º Congresso da Cidade, foi um congresso, realizado em 1993, e que reuniu 1500 pessoas envolvidas em diversos debates e grupos de trabalho sobre a cidade e 548 delegados para a assembleia final. Tinha como objetivo formular estratégias e diretrizes de desenvolvimento para a cidade a partir de diagnósticos sobre a realidade local, contando com a participação de qualquer pessoa disposta a participar do processo, tendo a prefeitura convidado, também, diversas entidades empresariais, profissionais e ONGs. De acordo com a prefeitura, foi a partir das diretrizes apontadas neste primeiro congresso que se partiu para a discussão sobre o novo Plano Diretor. (Ref.: Idem, pp. 157-159). 226 Idem, pp. 166-167. O reconhecimento à experiência de Porto Alegre na Conferência da ONU sobre Assentamentos Urbanos – Habitat II, realizada em Istambul, Turquia, de 3 a 14 de junho de 1996 foi o tema de uma matéria na Revista Ecos, do DMAE: PITSCH, Rosa. Orçamento Participativo, destaque na Habitat II. In: Revista Ecos, nº 8, pp. 18-20, setembro 1996, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista8/paginas.html, acessado em dezembro de 2011.. A autora desta matéria era jornalista da Secretaria Extraordinária de Captação de Recursos e Cooperação Internacional da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, no governo do prefeito Tarso Genro. 179 processo de conscientização e participação da comunidade, e considerando sua integração com programas mais amplos, principalmente no âmbito estadual. Sua realização, bem como a de outras iniciativas, como a própria implantação do Orçamento Participativo, esteve inserida no esforço de afirmação e de busca de ampliação de espaço do PT, a partir da conquista da prefeitura de Porto Alegre, frente aos outros blocos políticos, no poder no estado e no país, no cenário dos anos 1990. Ao lado disso, também abordo a emergência de uma visão mais integrada dos temas da defesa do meio ambiente, da gestão de recursos hídricos e do saneamento básico, a qual passou a se expressar, em Porto Alegre, através de publicações como a Revista Ecos, lançada pelo DMAE em 1993, e que serviu como fórum de debates destes temas, não apenas com enfoques mais técnicos, mas também mais amplos, incluindo, mesmo, artigos de escritores e intelectuais, sobre as relações dos moradores da cidade com o seu lago (ou rio), mas não deixando de ser, por outro lado, um veículo de publicidade da prefeitura e do próprio DMAE. O programa “Guaíba Vive” foi instituído pelo prefeito Olívio Dutra em julho de 1989, sendo uma das poucas iniciativas mantidas ao longo de todo o período da Administração Popular, mesmo frente a diversas alterações na política destes governos para o planejamento urbano e gestão dos investimentos públicos no município. Este programa era parte de uma das diretrizes estratégicas do governo municipal, a que contemplava “ações estratégicas de caráter global”, vistas como necessárias para ampliar as bases de sustentação da Administração Popular para outros segmentos sociais, para além das populações carentes, ao lado de projetos voltados para a revalorização do centro da cidade, e passou a ser apresentado, a partir da implantação do Orçamento Participativo, como uma das “demandas institucionais” da prefeitura.227 A realização do que estivesse ao alcance da prefeitura de Porto Alegre para a recuperação do Guaíba era um dos compromissos de campanha, e o programa começou a ser debatido e formulado logo nos primeiros meses do novo governo, sendo seus aspectos conceituais e uma definição inicial de objetivos expostos num folheto para 227 O Programa “Guaíba Vive” foi instituído pelo prefeito municipal de Porto Alegre através da Ordem de Serviço nº 33, de 13/07/1989. Um bom histórico das políticas e prioridades para o planejamento urbano e gestão de investimentos do município de Porto Alegre no primeiro governo da Administração Popular pode ser visto em: SILVA, Débora Bernardo da, op. cit., pp. 90-91; 93-94; 114-115. Integrando inicialmente o Plano de Ação do Governo (PAG), ao lado de outros seis programas, o “Guaíba Vive” continuou a ser contemplado quando o governo decidiu substituí-lo, logo em 1990, em favor de duas “linhas de ação estratégica” principais, (i) ações prioritárias para os setores populares; (ii) ações estratégicas de caráter global, capazes de ampliar as bases de sustentação da Administração Popular, entre as quais os projetos “Guaíba Vive”, “Porto Alegre Centro” e o da “Reformulação do Mercado Público”. 180 divulgação então lançado, sob o nome de Guaíba Vive. O “movimento ambientalista” gaúcho estava representado no novo governo municipal, através de quadros como o advogado Caio Lustosa, vice-presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) entre 1978 e 1981, e integrante da bancada petista na CMPA, nomeado por Olívio Dutra para dirigir a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM), e outros de seus integrantes participaram das discussões que levaram à formulação do programa, como José Francisco Bernardes Milanez, e Giselda Escosteguy Castro, que exerceu a função de coordenadora do programa, entre 1993 e 1996, na administração do prefeito Tarso Genro. Está presente nesta publicação, como um primeiro aspecto, uma visão da degradação do meio ambiente como um problema que tem raízes de ordem cultural, as quais incluiriam, num sentido mais amplo, o fenômeno do crescimento acelerado das aglomerações urbanas, não acompanhado pela percepção de seus efeitos sobre os recursos naturais. Como decorrência, a sua superação deveria requerer, igualmente, um esforço de conscientização, e não apenas a realização de investimentos, mas dentro de uma visão mais pragmática acerca das questões ambientais, mais próxima de uma abordagem “conservacionista” e do conceito de “sustentabilidade”, como transparece no seu prefácio: [...] o problema ambiental é hoje, antes de tudo, uma questão cultural da comunidade, que sistematicamente agride o meio ambiente sem preocupar-se com as conseqüências futuras deste comportamento. Isso nos faz crer que o simples esforço de se empreender o saneamento propriamente dito da Bacia do Guaíba – ainda que condição necessária – não será o suficiente para resolver o problema em definitivo. Um trabalho de formação cultural junto às comunidades direta e indiretamente envolvidas no processo é igualmente essencial para o sucesso do plano. O crescimento expressivo da região envolvida pelas cinco bacias do conjunto é, além da questão econômica, também, um fato cultural. Isso porque existe ainda em bases muito incipientes a consciência da importância do uso racional dos recursos naturais como fonte de crescimento econômico. E aí reside o maior desafio do desenvolvimento. Saber conciliar de forma harmoniosa crescimento econômico e preservação do meio ambiente, pois ambos são indispensáveis ao bem-estar da 228 humanidade. No texto de apresentação do programa, logo adiante, fica mais claro o entendimento de que seria necessário obter o envolvimento da população local nos esforços para a recuperação do Guaíba, só possível a partir de um trabalho de esclarecimento: A idéia do Guaíba vivo, recuperado, participante da vida dos porto-alegrenses começa a tomar forma mais concreta. [...] Não se pode imaginar a recuperação do Guaíba sem a participação direta da coletividade. O envolvimento da comunidade nessa trajetória é fundamental para o seu êxito. Mas para que essa atuação popular, esse engajamento de todos os setores da sociedade na luta pela vida do Guaíba tenha força [...] é preciso que seja 228 PINTO, Leila, MOHR, Udo, op. cit., Prefácio. 181 baseado num conhecimento maior do que é o Guaíba e o que ele significa. Só 229 com garra aquilo que se conhece e se ama. [...] se defende Mas a nova administração municipal estabelecia um primeiro objetivo, que acreditava estar ao alcance de seus recursos, a recuperação das praias da zona sul da cidade: A recuperação de toda a Bacia do Guaíba, sem dúvida, é um projeto ambicioso. Mas o salvamento das praias da Zona Sul de Porto Alegre e a conseqüente reintegração plena à vida da cidade já não é apenas um sonho ou uma lembrança dos mais antigos, nem se situa 230 no nível das promessas vãs. Ao contrário, surge como um projeto concreto e viável. Os formuladores do programa expressavam em sua narrativa histórica o reconhecimento do papel desempenhado pelos primeiros militantes e organizações em defesa do meio ambiente no sentido de alertar as autoridades e a população em geral sobre o crescente agravamento das condições ambientais do lago e de sua bacia, mas também, por outro lado, da pouca eficácia da legislação de proteção ambiental já existente, frente à falta de vontade política para a sua aplicação, por parte do Estado e da própria sociedade: [...] Até o início da década de 50, o Guaíba não enfrentava problemas em termos de poluição. Porém, na medida em que o processo da industrialização ganhou impulso, este panorama se alterou drasticamente. Um crescimento urbano a qualquer custo, sem o devido respeito às condições do ambiente natural levou ao quadro da contaminação que atualmente pede uma revisão urgente. Em 1954, Henrique Luís Roessler [...] já denunciava e propunha um controle da poluição industrial. [...] Até 1971, quando surgiu o (sic) AGAPAN, as denúncias caíam num vazio, sem o menor eco a nível administrativo. Aos poucos, um coro de identidades, como a ADFG, começou a denunciar os crimes ambientais. [...] Existe farta legislação, suficiente para coibir práticas nocivas aos cursos d’água, mas que em geral não vem sendo aplicada. Com o crescimento alarmante dos processos de contaminação, o panorama atual pede urgentes medidas enérgicas abrangendo toda a bacia [...] Estamos, na verdade, nos últimos momentos para definir o retorno do Guaíba a uma situação de 231 equilíbrio. Estava presente no texto, também, a preocupação com os efeitos deste processo de degradação, levando a um progressivo afastamento dos porto-alegrenses em relação ao Guaíba, de tal modo que, constatavam os autores, este já tendia a ser mais valorizado por visitantes do que pelos moradores da cidade, embora persistissem ainda traços de uma memória dos tempos anteriores: [...] A relação de Porto Alegre com o Guaíba sofreu intensamente o desgaste provocado por um crescimento desordenado. A cidade voltou as costas ao seu nascedouro, barrando a ligação com o rio através de diques, muros, privatização das margens ou atividades que impedem o acesso ao rio. O próprio porto-alegrense hoje, do ponto de vista cultural, ignora o valor desse patrimônio. É mais freqüente um visitante avaliar e admirar o potencial do Guaíba, do que um porto-alegrense valorizar suficientemente esse potencial. Mesmo assim, ainda há um certo uso do Guaíba, a procura por suas praias ainda são (sic) um resquício daquela antiga intimidade. Portanto, a recuperação do Guaíba não se restringe a um esquema 229 230 Idem, p. 21 (“Guaíba Vive”). Idem, p. 21 (“Guaíba Vive”). 231 Idem, pp. 22-23 (“Guaíba Vive” – Programa de Recuperação do Guaíba, 1. Histórico). 182 técnico. Configura-se primeiramente como um problema cultural. É preciso que a população não admita Porto Alegre sem o Guaíba, que entendam que é seu direito e seu dever lutar por 232 ele, pelo restabelecimento dessa imensa fonte de vida. O folheto de divulgação do “Guaíba Vive” era concluído com a apresentação dos compromissos e propostas do governo da Administração Popular para a recuperação do lago e de sua bacia, que deveriam ser realizadas no âmbito do município de Porto Alegre, mas considerando uma sinergia de esforços com os governos estadual e federal. As primeiras ações deveriam ser no sentido de levantar o quadro existente de degradação ambiental da bacia, trazendo estas informações ao conhecimento amplo da sociedade local, como um elemento para a sua mobilização em favor do programa: No momento em que assume o governo municipal, a ADMINISTRAÇÃO POPULAR, voltada para os reais interesses e necessidades dos habitantes da cidade, preocupada em resolver as questões urbanas que influem na qualidade de vida, é evidente que o saneamento do Guaíba se torna [prioritário]. Portanto, vamos analisar concretamente quais as medidas necessárias para a reversão desse quadro de contaminação e o que a Prefeitura de Porto Alegre pode fazer. 1º) Se impõe o enquadramento completo da contaminação da Bacia do Guaíba. Nesse sentido, boa parte do trabalho já foi realizado e consta do relatório 001/79 do CEEIG [...] Este, realizado em 1980, precisa ser atualizado [...] Por exemplo, o relatório do CEEIG não menciona a questão do lixo urbano. Esse amplo detalhamento é fundamental para que se tenha conhecimento preciso de quais fatores devem ser atacados prioritariamente [...] Boa parte deles tem origem fora da jurisdição de Porto Alegre, reportando-se à região Metropolitana, mas seus efeitos têm atuação maior na capital do Estado. [...] A participação da coletividade no processo de despoluição é básica. Não se pretende, nem seria possível, oferecer à população esta dádiva – ter o Guaíba recuperado – sem que ela participe ativamente desse processo. Não só porque a sociedade também é responsável pela grave situação que existe hoje, mas porque o engajamento de todos na luta 233 para reverter esse processo poluidor é a condição básica para o êxito. A necessidade de aplicação, pelo governo municipal, de medidas concretas, que pudessem levar a resultados já no curto prazo, de modo a conquistar a credibilidade da população, vinha acompanhada de críticas aos governos anteriores, principalmente o estadual: É óbvio que só esse trabalho não é o suficiente, porque o processo de conscientização passa por medidas concretas. Inclusive, porque há décadas a população vem sendo ludibriada. Por exemplo, em 1981, o Diretor do DMA [...] garantia que até 1986 todos os rios da bacia do Guaíba seriam balneáveis. [...] É fundamental que a Prefeitura atue concretamente no território sob sua jurisdição. É imperativo que a administração disponha de instrumentos legais para fazer cumprir suas exigências, a nível de despoluição, nos âmbitos estadual e federal. É igualmente importante que a Prefeitura prove, com medidas enérgicas e a curto 234 prazo, que pode obter resultados expressivos. 232 Idem, p. 24 (“Guaíba Vive” – Programa de Recuperação do Guaíba, 3. Guaíba – Município de Porto Alegre). 233 Idem, pp. 28-29 (“Guaíba Vive – Programa de Recuperação do Guaíba, 8. Participação da Prefeitura e recursos). Na primeira sentença desta parte do texto há uma falha, onde, provavelmente, deveria estar escrito “se torna prioritário”. 234 Idem, pp. 29-30 (“Guaíba Vive – Programa de Recuperação do Guaíba, 8. Participação da Prefeitura e recursos). Em 1981, no governo de Amaral de Souza, o DMA era o órgão do governo estadual 183 Entre os objetivos que se considerava ser possível alcançar, com ações desenvolvidas apenas pela administração municipal, estava a limpeza das praias da zona sul da cidade, com a recuperação de sua balneabilidade, bem como a recuperação das diversas micro-bacias de afluentes do Guaíba, através de restrições à ocupação urbana nas margens dos arroios, ao seu desmatamento e ao seu uso como pontos de deposição de lixo: Entre estas medidas, estão a limpeza das praias do litoral sul de POA. Assunção, Ipanema, Guarujá, Espírito Santo, Belém Novo, Lami, podem ter as suas águas em perfeitas condições de balneabilidade com a aplicação de medidas localizadas. Estas são, basicamente, o tratamento dos esgotos domiciliares das áreas urbanas e o controle do lixo. Isto implica, primordialmente, na construção de interceptores sub-fluviais e a condução desses resíduos para tratamento, de preferência através de lagoas biológicas. Outra medida fundamental que Porto Alegre deve adotar é mais extensiva, pois abrange todas as micro-bacias do município. [...] É impossível admitir que se mantenha o processo de ocupação urbana até os limites dos alvéos dos arroios, ou a sua canalização em tubulações subterrâneas. Esta é a forma mais cabal de admitir a transformação de um curso d’água num conduto de esgoto doméstico. Além do desmatamento das margens, o uso impróprio como depósito de lixo são fatores que levam à contaminação, mas que facilmente podem ser saneados. Evidentemente, implica em desenvolver um processo amplo de conscientização popular aliado a um apoio concreto dos 235 órgãos municipais. A expectativa dos responsáveis pela formulação do programa “Guaíba Vive”, expressa ao final deste folheto de divulgação, era de que, a partir da constatação dos primeiros resultados concretos, o apoio da sociedade local para esta iniciativa e outras de maior alcance seria conquistado, permitindo ao governo municipal cobrar as medidas neste sentido da parte dos governos estadual e federal, inclusive a obtenção de recursos junto às indústrias poluidoras: [...] Ao participar desse processo, desde o início do programa de conscientização, a comunidade começa a descobrir as vantagens de um meio ambiente mais hígido, e certamente será a principal incentivadora de ações mais amplas. Com esse apoio popular, a administração municipal poderá exigir que sejam tomadas medidas mais efetivas, a nível estadual e federal. Obviamente, isso não se faz sem recursos. Para essas medidas iniciais, como o tratamento dos esgotos da área central de Porto Alegre, os recursos já estavam previstos no Projeto Rio Guaíba. Para o tratamento das sub-bacias da zona sul de Porto Alegre se precisará de recursos menores. [...] Os recursos para resolver os problemas de fora do âmbito territorial de Porto Alegre ou mesmo questões de poluição industrial podem vir dos próprios poluidores. Isto se compreendermos poluição como desperdício de matéria236 prima, sem controle e sem aproveitamento. O programa envolvia a participação de diversas áreas das administrações direta e das autarquias do município, vinculando-se diretamente ao prefeito, através de um coordenador geral, e relacionando-se com a comunidade através de um “fórum de responsável pela condução das políticas de monitoramento e controle ambiental, subordinado à Secretaria Estadual de Saúde. 235 Idem, p. 30 (“Guaíba Vive – Programa de Recuperação do Guaíba, 8. Participação da Prefeitura e recursos). 236 Idem, pp. 30-31 (“Guaíba Vive – Programa de Recuperação do Guaíba, 8. Participação da Prefeitura e recursos). 184 participação ecológica e comunitária” específico. Era integrado por quatro subprogramas, dois com enfoque ambiental e urbanístico, o de saneamento ambiental e o de paisagismo e urbanismo, e dois com enfoque nas relações com a comunidade, o de desenvolvimento ecológico e o de educação ambiental e eventos, como pode ser visto abaixo (Figura 12): Figura 12. Estrutura e Objetivos do Programa “Guaíba Vive” No subprograma de saneamento ambiental estavam suas iniciativas de maior vulto, tanto pelo nível de investimentos requerido quanto pelos resultados esperados, sendo contempladas ações das autarquias municipais desta área, como o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), e o DMAE, responsável tanto pelo monitoramento das águas do Guaíba e afluentes quanto pela implantação dos sistemas de tratamento de esgotos domésticos em Porto Alegre, a serem priorizados com base num diagnóstico ambiental. O primeiro resultado mais expressivo do “Guaíba Vive” apresentado à população de Porto Alegre foi a 185 recuperação ambiental da praia do Lami, situada no extremo sul do município, a cerca de 40 quilômetros do centro da cidade. O projeto de recuperação deste balneário foi iniciado no ano de 1990, com a realização de um levantamento das atividades desenvolvidas nas micro-bacias dos arroios existentes na região, utilizando-se, desde então, como afirmou o engenheiro Dieter Wartchow, diretor-geral do DMAE entre 1992 e 1998, uma metodologia de gestão ambiental, qual seja, o gerenciamento de bacias hidrográficas. O monitoramento da qualidade das águas então realizado pelo DMAE constatou que a sua contaminação era causada, na maior parte, pelos próprios resíduos domésticos da população local, especialmente nos fins de semana e feriados no verão, quando eram recebidos cerca de cinco mil visitantes, sem maior impacto dos esgotos não tratados das áreas centrais da cidade, lançados no canal do Guaíba pelo emissário da Ponta da Cadeia, o que indicou ser efetiva uma solução localizada. O estudo considerou também uma abordagem integrada dos aspectos sanitários e urbanísticos, na definição dos locais para a instalação dos sistemas de saneamento a serem construídos, que incluíam uma estação de tratamento de esgotos (ETE), de modo a preservar a vocação do bairro para atividades de lazer e turismo local, incluindo a reserva de áreas para camping e contenção urbana. Este sistema foi colocado em operação em dezembro de 1992, momento em que a prefeitura anunciou a entrega da praia do Lami, novamente balneável, para a população de Porto Alegre. Os investimentos em saneamento realizados pelo DMAE foram de US$ 2,3 milhões, e o projeto de recuperação também contemplou outras obras de infraestrutura urbana, como posto de saúde e coleta regular de lixo, além de instalações para permitir um melhor uso da praia pela população.237 A recuperação da praia do Lami, através destas obras de saneamento básico, foi um dos destaques do número inaugural da Revista Ecos, do DMAE, publicado em dezembro de 1993, cujo tema de capa era a recuperação do Guaíba, ilustrada por uma imagem da procissão fluvial de Nossa Senhora dos Navegantes: “Recuperação do Guaíba: o sonho do porto-alegrense” (Figura 13). O escritor Moacyr Scliar, também médico sanitarista, assim tratou o tema em artigo publicado neste mesmo número da revista, “Recuperando o sonho”, no qual se pode destacar a correlação feita pelo autor entre o grau de civilização de uma sociedade e a disposição da mesma para gastar tempo e (muito) dinheiro com a recuperação ambiental: 237 WARTCHOW, Dieter, ALVES, Paulo Marcos Amaral. O Saneamento no Balneário do Lami. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 0, dezembro 1993, pp. 13-18, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista0/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. 186 Porto Alegre é banhada pelo Rio Guaíba, diziam-nos no primário – mas a vida vai além do curso primário. [...] Afora aquela discussão de se o Guaíba é mesmo um rio, não se pode dizer que uma cidade é simplesmente banhada por um curso d’água, seja este o mar, um lago ou um rio. Entre terras e águas há uma relação íntima, tão íntima que, como conta a Bíblia, foi preciso o poder divino para separá-las. [...] Mas não é [...] por essa mítica razão que os homens constroem as cidades o mais perto possível da água: fatores práticos aí intervêm [...] Em relação à natureza o ser humano é, freqüentemente, um ingrato. O rio lhe dá água para beber, lhe dá o peixe para comer [...] a via fluvial pela qual as riquezas vêm e vão. E como o homem retribuiu? Transformando o rio numa lixeira líquida. Para o rio vai o esgoto, o detrito, os restos. [...] O rio resiste como pode, mas a natureza também tem o seu limite. E um dia, quando os moradores da cidade finalmente se dão conta, o rio está morto. Seria este um castigo merecido, mas a natureza às vezes é tolerante e dá aos humanos uma segunda chance. Porque o rio se renova incessantemente e, ao se renovar, permite que os erros do passado sejam corrigidos. O que não é, obviamente, uma empresa fácil. É preciso muito esforço, muita dedicação – e também muito dinheiro – para remediar o mal. Mas justamente porque o esforço, a dedicação e o dinheiro são necessários, este empreendimento torna-se uma medida indireta do grau de civilização de uma cidade. Quando o primeiro peixe reapareceu no Tamisa [...] a população de Londres celebrou o evento como se fosse uma vitória nacional. E era; de fato, era uma vitória do povo inglês. Porto Alegre lançou-se numa empreitada semelhante. E para aqueles que, como eu, passaram parte da sua infância no Guaíba, para aqueles que ali nadaram e pescaram [...] a recuperação do Guaíba não é apenas uma medida fundamental do ponto de vista da preservação ecológica ou da defesa da saúde pública. O que vamos recuperar é o nosso passado perdido, o nosso senso de comunidade, a nossa infância. A infância daqueles que, no curso primário, ouviram a professora dizer que Porto Alegre é banhada pelo Rio Guaíba – e adormeciam à noite 238 sonhando com peixes, barcos e sereias. O lançamento da Revista Ecos no momento em que o programa da prefeitura para a revitalização do Guaíba começava a apresentar seus primeiros resultados expressivos, com investimentos realizados especificamente no setor de saneamento ambiental, e conduzidos principalmente pelo DMAE, não deve ser vista como uma coincidência. Isto aconteceu, ao contrário, num período em que se desenvolviam, no Rio Grande do Sul, importantes iniciativas nos setores de saneamento básico e de gestão de recursos hídricos, em especial as discussões com respeito à lei estadual de águas, que seria promulgada no ano seguinte, 1994, ano de eleições nos âmbitos estadual e federal, e o processo de construção e de busca de fontes de financiamento para o programa “PróGuaíba”, conduzido pelo governo do estado e voltado para a recuperação e o gerenciamento ambiental desta bacia hidrográfica. O novo veículo serviu como canal de comunicação, não apenas da autarquia, em seus assuntos técnicos e institucionais, mas também das posições do governo municipal, já no segundo mandato da Administração Popular, acerca destes temas, como pode ser visto já neste número inaugural, onde o prefeito Tarso Genro, no artigo “Saneamento e cidadania”, destacava que “em 1989, quando pela primeira vez os cidadãos puderam escolher as prioridades dos investimentos públicos, optaram pelo saneamento”. O executivo principal do DMAE no 238 SCLIAR, Moacyr. Recuperando o sonho. In: Idem, p. 5, disponível http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista0/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. em 187 momento em que foi lançada a revista, Dieter Wartchow, era um profissional do setor de saneamento e recursos hídricos, sendo docente e pesquisador no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, tendo ingressado na autarquia em 1989, com a entrada do novo governo. Figura 13: No número inaugural, a Revista Ecos anuncia o começo da recuperação do Guaíba O Lami não surgira como um balneário, origem de outros bairros da zona sul da cidade, como Ipanema, Pedra Redonda e Espírito Santo, ou o vizinho Belém Novo, antiga vila estabelecida no século XIX, e transformada em local de veraneio para as classes médias e altas da cidade, inclusive com hotéis e um cassino, a partir dos anos 1920, numa época em que o acesso às praias do litoral norte do estado ainda era difícil e demorado. No período em que estes balneários foram intensamente desfrutados, entre as décadas de 1940 e 1960, era ainda uma área com características marcadamente rurais, que também incluía a pesca, sem ligação por asfalto com a cidade, e a sua procura como local de veraneio só passou a acontecer em maior escala a partir dos anos 1970. No início desta década, quando a poluição do Guaíba já havia tornado impróprias para o banho as outras praias da zona sul da cidade, o Lami era visto como uma alternativa ainda possível de utilização praiana na orla de Porto Alegre, num futuro próximo, como pode ser visto numa matéria publicada na Folha da Tarde, “No Guaíba, Lami é a praia do futuro” (Figura 14). 188 Figura 14. Nos anos 1970, o Lami visto como a praia do futuro A crescente procura desta localidade como opção de lazer à beira do Guaíba, no período de veraneio, já se deu num contexto bem diferente do que ocorrera com os demais balneários, e o maior afluxo era de pessoas da própria região, inclusive moradores das áreas rurais no seu entorno, e da cidade vizinha de Viamão. Mas a sua ocupação ainda era relativamente pequena até o momento em que foram realizados os investimentos da prefeitura municipal em saneamento e equipamentos urbanos complementares, de tal modo que o Lami, até o início dos anos 1990, ainda conservava, mesmo durante os verões, ares de uma vila praiana.239 Com a recuperação da balneabilidade, a prefeitura passou a incentivar o seu uso como uma opção de turismo “popular”, dotando a praia e o bairro de uma série de melhorias, tais como calçadões, chuveiros públicos, churrasqueiras e postos de salva-vidas, além de criar linhas de ônibus específicas para o balneário. Como resultado, houve um aumento expressivo no número de frequentadores e também uma mudança no seu perfil, fato que não passou despercebido por vários de seus moradores mais antigos, alguns dos quais associavam a atividade regular da pesca com os rendimentos do aluguel de suas casas por temporada a veranistas. Este aspecto, entre muitos outros, foi abordado por Fernanda Rechenberg, em sua dissertação de mestrado em antropologia social "Vamo falá do nosso Lami”: estudo antropológico sobre memória coletiva, cotidiano e meio ambiente no bairro 239 RECHENBERG, Fernanda. "Vamo falá do nosso Lami": estudo antropológico sobre memória coletiva, cotidiano e meio ambiente no bairro Lami, Porto Alegre. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS. Porto Alegre, 2007. Disponível em http://hdl.handle.net/10183/11256, acessado em julho de 2010, pp. 141-142. 189 Lami, Porto Alegre, apresentada em 2007. A autora colheu depoimentos de alguns dos antigos moradores sobre estas mudanças, em que lamentavam a substituição dos antigos veranistas, sentidos como mais integrados à vida da comunidade, pelos novos frequentadores, de passagem mais rápida, sem nada consumir dos moradores e comerciantes instalados na praia, pois trazem tudo de casa, e com outros hábitos, como a música escutada em alto volume. Mas também observou a emergência de novas formas de interação social, que foram trazidas pelas mudanças que ocorreram no Lami a partir dos projetos implantados no âmbito do “Guaíba Vive”, e o seu estranhamento por parte de antigos moradores: Muito mais do que a contemplação das “belezas naturais” da praia, o turismo no Lami se ancora em uma intensa rede de sociabilidade. Se a fala dos antigos nos mostra que a praia não tem mais o clima de familiaridade que tinha outrora, para a população que freqüenta a praia hoje o veraneio no Lami segue sendo um momento de intensas trocas sociais, de festas, paqueras e música alta. Na fala de alguns informantes, percebe-se que o que mudou foi o “tipo” do veranista que freqüenta a praia hoje, que é classificado de “vagabundo” ou “baderneiro”. Os bailes, o excesso de bebida e o consumo de drogas à luz do dia e a falta de envolvimento com os moradores do Lami são mencionados como os principais impactos decorrentes das práticas dos novos veranistas. [...] A “incomodação”, no entanto, não está necessariamente associada à bebida ou às festas, mas a um desconhecimento e desrespeito dos novos veranistas em relação às práticas dos moradores, como a pesca. Como um espaço de intensa sociabilidade, a praia do Lami há muito acolhe as práticas festivas dos moradores 240 da cidade. A recuperação da praia do Lami não teve um grande impacto sobre a população de Porto Alegre, ao menos entre pessoas das classes médias e mais ricas, afora o fato de representar uma primeira sinalização concreta no sentido da despoluição do Guaíba. Acredito que isto se deveu a fatores como a sua localização, ainda distante das áreas centrais da cidade, e, mais do que isso, ao perfil marcadamente popular de seus novos visitantes, ao qual se associou uma estrutura correspondente de bares e restaurantes, bastante modesta. Ao lado disso, o local não apresentava uma beleza natural tão grande que pudesse compensar os outros aspectos, com grande parte da sua orla, inclusive, sendo ocupada por grama e juncos, e não areia. Este é um critério bastante subjetivo, 240 Idem, p. 140. Além da mudança no perfil dos frequentadores da praia, a partir das mudanças realizadas pela prefeitura, outro aspecto identificado pela autora, junto aos antigos moradores do Lami, foi o impacto decorrente da aplicação de uma crescente rigidez nas normas de manejo ambiental, associada à proximidade da Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger, que teriam se estendido à própria praia, incluindo medidas como a proibição de acampamentos na orla, de estacionamento de carros na praia e do banho nas proximidades desta área de conservação. Para a autora, a inserção de preocupações de cunho ambientalista, intensificada nos últimos dez anos, teria criado uma “certa normatização nas práticas de veraneio”. A Reserva Biológica do Lami foi criada em 1975, recebendo o novo nome em 2005, sendo administrada pelo município de Porto Alegre, através da SMAM. Além da conservação dos ecossistemas e suas espécies, a Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger dá suporte a atividades de pesquisa científica e educação ambiental, caracterizando-se, deste modo, por normas bastante restritivas de acesso à população em geral. (Ref.: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smam/default.php?p_secao=156, acessado em março de 2012). 190 por certo, mas que pode ter se somado, nas percepções de muitos porto-alegrenses, ao peso de várias décadas de falta de convivência com as praias do seu “rio”. O valor que é dado a uma paisagem relaciona-se menos a definições intrínsecas de beleza do que aos resultados de processos de construção social, que alteram os espaços, não apenas em sua configuração física, mas também na forma como são percebidos pelas pessoas. Assim, nos anos 1930, quando ainda eram procuradas como ponto de veraneio por pessoas da elite de Porto Alegre, as paisagens praianas da zona sul de Porto Alegre, com suas areias também cobertas por juncos, como o Lami de hoje, eram representadas na Revista do Globo com lirismo: “Não é Miami, nem Biarritz, nem Deauville, - mas simplesmente uma encantadora praia do nosso Guahyba”.241 Foi, ainda assim, uma realização bastante significativa, especialmente em face de um longo período que podia ser percebido como de inação dos governos do estado e da capital, frente à degradação ambiental e urbanística do Guaíba, sendo, deste modo, intensamente divulgada pela prefeitura da Administração Popular, não apenas nesse primeiro momento, mas em várias outras ocasiões, ao longo de seu período à frente do governo de Porto Alegre. Um bom exemplo pode ser visto em matéria publicada na Revista Ecos, do DMAE, no ano de 1997, abordando as iniciativas para a recuperação ambiental do lago, incluindo os resultados até então obtidos através do programa da prefeitura e as expectativas como a realização do “Pró-Guaíba”, conduzido pelo governo do estado com a participação do município, “Guaíba despoluído, um sonho cada vez mais próximo”. Nesta, a afirmação de que a praia do Lami se tornara “uma referência turística para a cidade” era ilustrada pela imagem de seus banhistas, num dia de verão, ao lado da notícia das obras em andamento para a despoluição das praias de Belém Novo (Figura 15). Outra obra do DMAE contemplada no “Guaíba Vive” visava à melhoria nas condições de saneamento do bairro Ipanema. Como uma primeira etapa de um sistema para coleta e tratamento de esgoto cloacal da zona sul da cidade, consistiu na ligação das principais fontes de contribuição locais a um interceptor, capaz de reter e depurar esta carga em períodos secos, só lançando esgoto não tratado no lago em situações com maior incidência de chuvas. Foi concluída em novembro de 1996, e os resultados obtidos não foram suficientes para recuperar a balneabilidade de Ipanema, fortemente 241 “À Beira do Guahyba...” (conjunto de seis imagens fotográficas). In: Revista do Globo. Porto Alegre, 1932, n° 80, p. 13. 191 influenciada pela contaminação do Guaíba pelos esgotos das demais áreas da cidade, conquanto tenham levado a melhorias pontuais na qualidade das águas desta praia.242 Figura 15. Prefeitura de Porto Alegre divulgando a recuperação da praia do Lami como um dos resultados do programa “Guaíba Vive” O último grande investimento dos governos da Administração Popular dentro do subprograma de saneamento do “Guaíba Vive” foi a ETE Belém Novo, que começou a operar em setembro de 2002. A cobertura por esgoto tratado de Porto Alegre, que subira para 25%, dois anos antes, com a implantação pelo DMAE da ETE São João/ Navegantes, integrando o “Pró-Guaíba”, chegou a 27% com a entrada do novo sistema, localizado na zona sul da cidade.243 A sua implantação não tem se 242 FARIA, Carla Marques, WARTCHOW, Dieter, LERSH, Elenara Corrêa, SCHWARZBACH, Miriam Suzana Rodrigues. (Equipe Técnica do DMAE). Avaliação da recuperação da qualidade da água do balneário de Ipanema em Porto Alegre. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 10, julho 1997, p. 31, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista10/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. Havia alguma expectativa de que a entrada deste sistema, por si só, pudesse restaurar a balneabilidade de Ipanema, apesar da cautela manifestada pelos técnicos do DMAE (Ver: PESSI, Patrícia. Porto Alegre recebe recursos para saneamento. In: Idem, n° 5, setembro 1995, p. 15, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista5/paginas.html, acessado em dezembro de 2011). 243 A ETE São João/Navegantes aumentou a capacidade de tratamento de esgoto cloacal de Porto Alegre de 15% para 25%, beneficiando 150 mil pessoas, de 14 bairros da zona norte da cidade, com um investimento de R$ 24 milhões (Ref.: DUTRA, Arnaldo Luiz, GHISLENI, Ana Cristina. ETE São 192 mostrado suficiente para garantir o retorno da balneabilidade das praias de Belém Novo em bases permanentes, desde então, como pode ser acompanhado através dos monitoramentos da qualidade de suas águas, realizados pelo DMAE. A recuperação deste balneário, no entanto, poderia representar uma realização bem mais expressiva da prefeitura, frente a diversos setores da sociedade local, do que a alcançada no Lami, tendo em conta que Belém Novo, além de mais próximo de áreas residenciais valorizadas e do centro da cidade, tinha um passado, não tão distante, como local de lazer praiano dos porto-alegrenses. Este fato pode explicar, de algum modo, a polêmica que se estabeleceu, desde então, com respeito à propriedade do banho nestas praias. Assim, no verão de 2003, quando estava sendo realizado em Porto Alegre o Fórum Social Mundial, o prefeito João Verle, junto com vários de seus auxiliares, entrou nas águas de Belém Novo, o que gerou grande publicidade nos veículos de imprensa local, num momento em que as análises que indicavam sua balneabilidade eram contestadas (Figura 16). Esta situação gerou, na época, interpretações contraditórias, por um lado, no sentido de que a atitude do prefeito petista e de sua equipe teria sido uma tentativa de dar maior visibilidade aos resultados do programa “Guaíba Vive”, por outro, de que teria havido uma pressão por parte de moradores de Belém Novo e de alguns setores da sociedade, para evitar a difusão das informações sobre o retorno da balneabilidade das praias, ou desacreditá-la, de modo a não atrair para elas o mesmo “turismo popular” existente no Lami.244 João/Navegantes: Porto Alegre tratando o esgoto como ele merece. In: Idem, n° 19, janeiro 2001, pp. 2324, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista19/paginas.html, acessado em dezembro de 2011). A ETE Belém Novo beneficiou 11 mil moradores deste bairro, com um investimento de R$ 8 milhões (Ref.: DMAE inaugura a Estação de Tratamento de Esgotos de Belém Novo (nota). In: Idem, nº 22, dezembro 2002, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista22/paginas.html, acessado em dezembro de 2011; FACCHIN, Joseni Maria José, COLARES, Evandro Ricardo da Costa, RODRIGUEZ, Luis Carlos Camargo. Estudos Técnicos – Sistema de Esgotamento Sanitário de Belém Novo: Saneamento e Pesquisa. In: Idem, nº 23, dezembro 2003, pp. 34-39, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista23/paginas.html, acessado em dezembro de 2011; NETTO, Andrei, CUSTÓDIO, Aline. Pró-Guaíba chega aos 10 anos perdendo fôlego. In: Zero Hora. Porto Alegre, 5 de junho de 2004, pp. 4-5). 244 RECHENBERG, Fernanda, op. cit., p. 139. Na tarde de 17 de janeiro de 2003 o prefeito petista João Verle tomou banho nas águas do Guaíba, em Belém Novo, com grande acompanhamento por parte da imprensa de Porto Alegre. Na ocasião, Verle foi abordado por dois integrantes da ONG Guardiões do Lago Guaíba, Gílson Tesch e Gilnei Tech, que lhe entregaram uma carta e o convidaram a ir a outros pontos do balneário, onde, segundo os mesmos, o esgoto continuava a ser despejado sem tratamento, como a praia do Arado. O convite não foi aceito, e ocorreu uma discussão entre o prefeito Verle e estes militantes, com troca de acusações. O diretor-geral do DMAE, Carlos Todeschini, exibiu laudos indicando que o teor de coliformes fecais nas águas de Belém Novo estava dentro dos padrões requeridos pelo CONAMA para permitir a balneabilidade (abaixo de 800 por 100 ml). O que não impediu que o vereador Sebastião Melo, do PMDB, junto com essa ONG ambientalista, apresentasse uma denúncia à Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público. No dia seguinte, um sábado, a praia foi entregue 193 Figura 16. Prefeito banhando-se na praia de Belém Novo, durante o Fórum Social Mundial de Porto Alegre Belém Novo, de qualquer forma, sofrera os efeitos de um processo de transformação urbana, com a presença de habitações irregulares junto às praias e com o abandono dos equipamentos turísticos lá existentes, entre os quais um hotel e restaurante, muito usado pelos porto-alegrenses até os anos 1970. O bairro ainda conserva ares de uma cidadezinha do interior, com seu casario, sua praça central, com sua pequena igreja, e nenhum edifício, e os cerca de trezentos moradores das áreas ocupadas foram reassentados, como parte do programa, mas a beira da praia permanece muito desfigurada, não restando quase nenhuma faixa de areia (Figura 17). O “Guaíba Vive” também contemplou uma série de iniciativas, dentro de seus subprogramas de paisagismo e urbanismo, desenvolvimento ecológico, e educação ambiental e eventos. O primeiro tinha como seus objetivos a valorização do convívio das populações com a orla, por meio de projetos e obras de urbanismo e paisagismo, mas também as ações necessárias para a recuperação para o uso público de espaços nesta parte da cidade que haviam sido tomados por ocupações irregulares. O segundo tinha entre os seus objetivos o aproveitamento turístico-ecológico de paisagens e ecossistemas do Guaíba, visto como um meio não apenas para a conscientização sobre a preservação do meio ambiente, mas para a geração de emprego e renda, através de oficialmente à população, quando o prefeito João Verle voltou a se banhar em suas águas, desta vez acompanhado pelos ex-prefeitos Raul Pont e Olívio Dutra, então à frente do Ministério das Cidades (Ver: Zero Hora, Porto Alegre, 18/01/2003, capa e p. 38; 19/01/2003, p. 37). 194 atividades como o turismo ecológico e a produção e comercialização de artesanato, pelas comunidades vivendo nas áreas beneficiadas. E buscava, também, “o disciplinamento de atividades comerciais nos balneários recuperados, adequando-as a um perfil compatível com a preservação paisagística”. O subprograma de educação ambiental, por sua vez, enfeixava uma série de objetivos e iniciativas, tais como a criação de fóruns de participação comunitária, visando a “conscientização e engajamento da população no resgate do Guaíba”, atividades de educação ambiental e conscientização nas escolas, e atividades culturais visando à reaproximação da cidade com o lago.245 Figura 17. O balneário de Belém Novo nos dias atuais: ruínas do antigo hotel e pequena faixa de areia Até o final do período da Administração Popular, em 2004, a pretendida recuperação dos espaços da orla para o uso público limitou-se, basicamente, ao 245 Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 11, dezembro 1997, p. 23 (Quadro “Programa Guaíba Vive”), disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista10/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. 195 fechamento e demolição de bares instalados, de forma irregular, na avenida que margeia a praia de Ipanema, seguida da construção de um novo passeio, e à remoção de um conjunto de sub-habitações situado na beira do lago, no bairro do Cristal, em área próxima do centro da cidade, conhecida como Vila Cai-Cai. Esta comunidade havia se formado ao longo dos anos 1980, e seus moradores, cerca de novecentas pessoas, que em sua maior parte viviam da coleta de lixo urbano. Este espaço possuía um grande valor paisagístico, e situava-se junto à principal via de acesso à zona sul, sendo vedado, pelo plano diretor, à ocupação residencial. Deste modo, a prefeitura descartou sua regularização fundiária, com a realização de melhorias, ao contrário do que fez em algumas áreas similares. Seus moradores foram transferidos, em 1995, para um conjunto habitacional entregue pela prefeitura, também na zona sul, mas em área mais distante do centro da cidade, o Loteamento Cavalhada, onde, atendendo suas reivindicações, foi instalado um galpão para reciclagem de lixo.246 Nas imediações desta área foi instalado, anos depois, o Museu Iberê Camargo, dedicado às artes plásticas. O planejamento realizado pela prefeitura para a orla urbana do lago, lançado em 2003, com a participação do programa “Guaíba Vive”, com o nome de “Diretrizes Urbanísticas para a Orla do Guaíba no Município de Porto Alegre” não contemplou grandes intervenções na maior parte do setor entre a Avenida Edvaldo Pereira Paiva (Beira-Rio) e o início da praia de Ipanema. Os espaços já cedidos aos clubes de futebol e de vela foram preservados, bem como o grande trecho existente entre os bairros da Tristeza e da Pedra Redonda, ocupados por particulares até a faixa de praia, pois não foi construída a via que estava contemplada nos primeiros planos diretores (Avenida Guaíba). O documento prevê para esta área, ocupada principalmente por residências das classes alta e média e alguns clubes, apenas a instalação de um passeio para pedestres, mas traz outras considerações com respeito à área existente no bairro de Vila Assunção, entre esta avenida e o lago, conhecida como “Vila dos Pescadores”. Define esta área como uma “ocupação clandestina”, em local “inicialmente ocupado por pescadores, hoje um misto entre classe média e baixa”, e que apresenta vários “inconvenientes urbanos”, entre os quais a obstrução de visuais; a obstrução do acesso à faixa de praia, a 246 Com respeito ao processo de transferência dos moradores da Vila Cai-Cai, ver: SANT’ANA, Maria Helena. 1997. Vila Cai-Cai: a lógica da habitação reciclável – um estudo da organização do espaço e do tempo em uma vila em remoção em Porto Alegre - RS. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS. Porto Alegre, 1997. Um exemplo de área que foi regularizada pela prefeitura, dentro das instâncias do Orçamento Participativo, é a Vila Planetário, situada junto à Avenida Ipiranga, próximo ao centro da cidade (Ver: DAMO, Arlei Sander. Cultura e Agência – o engajamento no Orçamento Participativo (artigo), disponível em http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/51751_6063.PDF, acessado em março de 2012.) 196 ocupação do leito projetado para duplicação da Avenida Guaíba e o lançamento de esgotos “in natura” nas águas. E propõe como diretriz a recuperação da área pública junto à “Vila dos Pescadores” com “o reassentamento progressivo daquela população em local apropriado”.247 A procura por Ipanema como opção de lazer não deixou de crescer mesmo depois que a poluição tornasse a praia imprópria para o banho, no início dos anos 1970, pois ali era um dos únicos lugares da cidade em que as pessoas podiam passear, a pé ou de automóvel, em frente à orla, que na maior parte dos outros bairros vizinhos estava ocupada por particulares. O bairro passou a ter muitos bares, restaurantes e casas noturnas, a maioria na via que acompanha a orla, a Avenida Guaíba. Um número crescente destes se instalou na calçada junto à estreita faixa de praia, uma forma de ocupação irregular deste espaço público. O primeiro e também o maior deles foi a Taba, bar-restaurante e boate. Sendo na maior parte construções precárias que trabalhavam sem maiores cuidados com a higiene, estes bares agregavam à contaminação das águas pelo esgoto a poluição visual da praia, sujando suas areias e obstruindo a visão direta do lago. Nas décadas de 1970 e 1980 o movimento em Ipanema continuava a ser bastante intenso, inclusive com a realização de vários eventos esportivos, como provas de windsurfe, entre outros. Mas estes bares eram um espaço usufruído principalmente por pessoas das camadas mais populares, vindas de outras partes da capital e de cidades da periferia, e sua existência era motivo de insatisfação para muitos dos moradores de Ipanema, e, provavelmente, de outros de seus visitantes, como pode ser visto em reportagem do Correio do Povo, de 1987: Kléber de Castro, morador no bairro desde 1957, “é contra a poluição visual das tendas à beira do rio. [...] Nas tendas de Ipanema há de tudo: porcos, galinhas, roupas estendidas. A parte de trás, de frente para o Guaíba, vira depósito de lixo. Kléber diz que “a culpa vem de vários governos. [...] tudo começou com a Taba, há 20 anos. [...] Exceção aberta, outras 248 surgiram”. Havia cerca de trinta bares nestas condições junto à praia de Ipanema, no começo dos anos 1990, e o processo para sua remoção, conduzido pela prefeitura petista no âmbito do programa “Guaíba Vive”, foi bastante demorado, envolvendo inclusive disputas judiciais, e o último destes estabelecimentos só foi demolido em 2007, o “Bar 247 Prefeitura Municipal de Porto Alegre; Secretaria do Planejamento Municipal; Secretaria Municipal de Indústria e Comércio – ESTUR; Secretaria Municipal do Meio Ambiente; Programa Guaíba Vive. Diretrizes Urbanísticas para a Orla do Guaíba no Município de Porto Alegre. Porto Alegre, 2003, pp. 24-25 e 32, disponível em http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/projeto_orla7.pdf, acessado em março de 2012. O trabalho foi elaborado por uma equipe técnica multidisciplinar, sob a coordenação da Secretaria do Planejamento Municipal. 248 Os bairros e seus problemas. In: Correio do Povo. Porto Alegre, 28 de fevereiro de 1987 197 do Orlando”.249 No espaço recuperado, a prefeitura instalou um novo passeio, que passou a ser conhecido como o “calçadão de Ipanema”. Esta remodelação contribuiu para modificar o perfil dos visitantes do bairro, em certa medida, trazendo de volta uma parte da classe média, em caminhadas ou passeios de bicicleta no calçadão, mas afastando algumas pessoas com menos recursos, em parte porque não ocorreu a instalação dos quiosques e sanitários públicos, prevista no projeto. A remodelação da orla de Ipanema foi usada pela prefeitura para divulgar os resultados obtidos no “Guaíba Vive”, em reportagem da Revista Ecos, publicada em 1997 (Figura 18). Figura 18. Prefeitura de Porto Alegre divulgando a remodelação da orla de Ipanema como um dos resultados do programa “Guaíba Vive” As iniciativas da prefeitura no sentido da recuperação ambiental do Guaíba e de uma esperada revitalização de sua orla, através de medidas como a remoção de ocupações irregulares, tiveram o apoio de lideranças comunitárias atuantes nas instâncias participativas, como o OP e os congressos da cidade, voltados à revisão do plano diretor. Ainda que restritas basicamente a bares e a comunidades vivendo em subhabitações, em áreas de risco e/ou de preservação permanente, mas com possibilidade de se estenderem a espaços com outro tipo de ocupação, como o do falido Estaleiro Só, na Ponta do Melo, na entrada da zona sul da cidade. Este apoio veio especialmente de lideranças também ligadas ao movimento ambientalista, podendo ser citado, mais uma 249 Zero Hora. Porto Alegre, 10 de outubro de 2007. 198 vez, Eduíno Mattos, que assim se manifestou, quando entrevistado pela Revista Ecos, sobre o 3° Congresso da Cidade, realizado entre 1999 e 2000: [ECOS – Qual a preocupação do cidadão comum de Porto Alegre em relação ao Plano Diretor?] [...] Sou militante ativo na questão ambiental, e, quanto às áreas de risco, nos preocupamos que fossem delimitados os espaços onde se pode habitar e onde não se pode; onde termina a área urbana e onde começa a área de preservação ambiental permanente. [...] [ECOS – E, politicamente, o que fica para as pessoas que participam desse processo?] [...] É um novo tipo de consciência que se está construindo. Uma proposta aprovada [...] é a desapropriação do complexo do Estaleiro Só – hoje abandonado – que deverá ser transformado em um Centro Cultural, Turístico e Profissionalizante para toda a cidade. Outra coisa: a democratização da orla do Lago Guaíba, uma meta da administração que toda a população defende. Ou seja, a orla do Guaíba não deve ser quintal de alguma entidade ou de famílias. Deve ser entregue a toda população, como de direito [...] entregamos a Ponta do Cego à reserva Biológica do Lami. A ponta foi comprada pela Prefeitura com o aval de toda a cidade para ser agregada á reserva. Este ano deverá estar sendo entregue o balneário recuperado de Belém Novo [...] com a retirada e reassentamento de famílias, o trabalho de coleta de esgoto, com estações de tratamento em Belém Novo e Ipanema. Temos também a nova proposta de coleta do esgoto da Ponta 250 da Cadeia. [...] Não tem um cidadão de Porto Alegre que seja contrário a isso. [...] A divulgação das realizações do programa, e de seus próximos passos, além de motivar peças publicitárias do DMAE e da prefeitura, nos jornais e na Revista Ecos, estava presente nos eventos que eram realizados com o objetivo de reaproximar a população com o Guaíba e obter o seu engajamento no esforço para o seu resgate. Neste sentido, foi criado em 1996 o “Dia do Guaíba”, a ser comemorado no último domingo de novembro. Em 1998, o “Dia do Guaíba” foi marcado por um show com vários artistas locais e a presença de um grande público, junto ao por do sol da praia de Ipanema, realizado, de acordo com o coordenador do “Guaíba Vive”, Renato Ferreira, para “comemorar os avanços do programa de despoluição do rio”. O evento teve uma boa cobertura da imprensa local, sendo matéria de capa no Correio do Povo, e da contracapa da Zero Hora (Figura 19). Cabe lembrar que isto ocorreu poucos dias depois do segundo turno da eleição para o governo do estado, vencida pelo candidato do PT, Olívio Dutra, em campanha muito disputada com o então governador, Antonio Britto, do PMDB. E também no momento em que estava sendo instalado o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, ao final de um processo que durou mais de um ano, no qual a prefeitura de Porto Alegre ocupou um papel de destaque, ao se colocar à frente da comissão provisória para a sua formação, através do próprio coordenador do “Guaíba Vive”. A cobertura dos jornais trazia depoimentos de pessoas presentes ao evento contendo elogios à remodelação da orla em Ipanema, 250 “Orçamento Participativo foi o princípio das conquistas populares” (Entrevista de Eduíno Mattos a Márcia Camarano). In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 18, outubro 2000, p. 8, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista18/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. 199 recordações de tempos passados, expectativas pela recuperação desta praia para os banhos, acompanhadas pelo costumeiro, quase inevitável, comentário de que isto seria “uma maravilha para quem não tem condições de veranear no litoral gaúcho”, e, mesmo, de pessoas que entraram nas águas ainda poluídas, “para fugir do calor”. 251 O cronista Paulo Sant’ana saudou os avanços já realizados, junto com a expectativa da despoluição das águas, não deixando de evidenciar a satisfação sentida por muitos porto-alegrenses com a ação “higienizadora” empreendida pela prefeitura nas paisagens da orla urbana do lago: De repente, surpreendo-me com a maravilhosa paisagem da orla do Guaíba, desde a Usina do Gasômetro, passando por ali onde antes estava a Vila Cai-Cai, antes do estaleiro, até Ipanema, onde as obras recuperaram ou até aperfeiçoaram recantos de beleza ímpar, verdadeiramente cinematográficos, que ficaram gravados na minha retina desde a infância e que tinham sido abalroados ou eliminados pelo progresso e pelo abandono. Se este projeto Guaíba Vive, além da regeneração da paisagem, conseguir mesmo despoluir o rio, estaremos 252 diante de uma obra incomparável para a identidade, essência e alma de nossa cidade. Na ocasião, Renato Ferreira fez vários anúncios sobre as próximas realizações do programa, como a despoluição da praia de Belém Novo, e uma possível recuperação da balneabilidade do trecho entre a Vila Assunção e o Guarujá, através de medidas locais, como a conclusão do sistema da ETE Ipanema (Zona Sul). Mas lembrou que o passo mais ambicioso, a recuperação do Guaíba junto à área central de Porto Alegre, não seria dado no curto prazo, pois, ali, ao contrário do Lami e Belém Novo, e, em parte, do restante da zona sul da cidade, as fontes de poluição não eram somente as locais, havendo também a contribuição dos rios Sinos e Gravataí. E principalmente dos esgotos da área central da cidade, lançados no Guaíba, ainda sem tratamento, na Ponta da Cadeia, representando cerca de 60% dos dejetos coletados em Porto Alegre. O equacionamento para uma solução satisfatória deste problema era bastante complexo, dadas as exigências ambientais e urbanísticas envolvidas, bem como o porte dos investimentos necessários. Como vimos no capítulo anterior, envolvia a definição de um sistema para o transporte do esgoto em bruto, através do leito do lago, e de um local para a instalação de uma estação de tratamento de grande porte, com muita área disponível, junto à orla. Em função disso, não foi possível apresentar um projeto para 251 Correio do Povo. Porto Alegre, 30/11/1998, p. 5: Sebastião Oliveira, 70 anos, motorista, lembrava dos tempos de agito, nos anos 1960, quando a praia “era a Copacabana de Porto Alegre”, com a boa conversa, os banhos noturnos e os blocos de Carnaval, e via a volta da balneabilidade como “uma maravilha para quem não tem condições de veranear no litoral gaúcho”; Moisés Lima, 21 (“o local é uma opção de lazer para quem não pode ir para o litoral gaúcho”), Rodrigo Maia, 22 e sua namorada Naiana Macedo, 17 anos, todos de Canoas, mergulharam na praia, apesar da poluição: “estava muito quente, daí a gente não agüentou e caiu na água”. 252 SANT’ANA, Paulo. A poesia do rio. In: Zero Hora. Porto Alegre, 30/11/1998, p. 51. 200 este sistema que pudesse ser incluído na primeira fase do “Pró-Guaíba”, cujo acordo para financiamento foi assinado pelo governo do Rio Grande do Sul, com o BID, em 1995, no qual a participação do município de Porto Alegre, através do DMAE, ficou restrita às ETEs São João/Navegantes e Belém Novo.253 Enquanto que a ETE Ipanema (Zona Sul) foi implantada com recursos próprios, gerados pela cobrança de tarifas da autarquia. A prefeitura pretendia inicialmente incluir o projeto para a disposição e tratamento dos esgotos lançados na Ponta da Cadeia na segunda fase do “Pró-Guaíba”, que deveria ocorrer ao longo da década de 2000, mas optou, posteriormente, por conduzir sua execução de forma independente. Esta decisão deveu-se a dois motivos, de acordo com as fontes.254 Em primeiro lugar, como resultado das deliberações do 3º Congresso da Cidade, realizado entre novembro de 1999 e maio de 2000, onde foi definida como uma prioridade para o município atingir a universalização do tratamento dos esgotos sanitários num horizonte de dez anos. Ao lado disso, como reação às dificuldades enfrentadas pelo governo estadual para obter, junto ao BID, a linha de crédito necessária para a realização da segunda fase do “Pró-Guaíba”, num cenário de crescente endividamento do estado, em decorrência de condições estruturais, que não se alteraram mesmo depois da renegociação das suas dívidas com a União, e de restrições que passaram a ser impostas a estados e municípios pela vigência da lei de responsabilidade fiscal. 253 SILVEIRA, Darlene. Saneamento se faz com integração. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 11, dezembro 1997, pp. 24-26, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista11/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. Matéria realizada a partir de entrevista com o diretor-geral do DMAE, Dieter Wartchow. Diz o texto, com relação ao projeto para a disposição e tratamento dos esgotos lançados na Ponta da Cadeia: “Apesar de todo o avanço, ainda falta discutir uma alternativa para o tratamento dos esgotos que são despejados na ponta do Gasômetro, área central da cidade. Para esse ponto convergem aproximadamente 60% dos dejetos coletados em Porto Alegre. Isso deverá ser encaminhado após a discussão do novo Plano Diretor de Esgotos, provavelmente no primeiro semestre de 1998.” 254 Com relação à diretriz definida para a política ambiental em Porto Alegre, no 3º Congresso da Cidade, no sentido de alcançar 100% de esgoto sanitário tratado, num prazo de dez anos, ver: (i) BARCELOS, Adair. O III Congresso da Cidade. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 18, outubro 2000, pp. 5-6, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista18/paginas.html, acessado em dezembro de 2011; (ii) ILHA, Flávio. Uma democracia de verdade. In: Idem, Idem, pp. 20-24, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista18/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. Com respeito aos desdobramentos desta diretriz, com o lançamento pela prefeitura de Porto Alegre do Programa Integrado Socioambiental, ver: GHISLENI, Ana Cristina. Programa Socioambiental: um investimento no futuro da cidade. In: Idem, nº 23, dezembro 2003, pp. 20-23, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista23/paginas.html, acessado em dezembro de 2011. Com respeito à decisão tomada pela prefeitura de conduzir de forma independente do “Pró-Guaíba” o projeto para a disposição e tratamento dos esgotos lançados na Ponta da Cadeia (que foi denominado de Programa Integrado Socioambiental – PISA), ver: NETTO, Andrei, CUSTÓDIO, Aline. Pró-Guaíba chega aos 10 anos perdendo fôlego. In: Zero Hora. Porto Alegre, 05/06/2004. 201 Figura 19. O “Dia do Guaíba” é festejado com show na praia de Ipanema, em 1998 Cabe observar, neste ponto, que embora a diretriz que norteou a realização do novo projeto pela prefeitura tenha sido tomada em 2000, período em que a coalizão liderada pelo PT ainda estava à frente tanto do governo do Rio Grande do Sul quanto da capital, o anúncio de seu lançamento, com o nome de Programa Integrado Socioambiental – PISA, só veio a ocorrer em 2003. Momento em que o governo estadual já havia retornado ao PMDB, de Germano Rigotto, que venceu o ex-prefeito Tarso Genro. O período de dezesseis anos de governo da Administração Popular na capital se encerrou com a derrota de Raul Pont, prefeito entre 1997 e 2000, para o candidato José Fogaça, da coligação PPS-PTB, no final de 2004, sem conseguir obter, também ela, a exemplo do governo do estado, a linha de crédito necessária para dar início a este projeto, o que só foi possível em 2007, quando o município conseguiu superar as dificuldades financeiras decorrentes, em boa parte, da conjuntura geral do país, entre o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e o primeiro de Luís Inácio Lula da Silva. Os resultados obtidos pelo programa “Guaíba Vive” apresentaram reflexos, ainda que limitados, na vida social e cultural da cidade de Porto Alegre, tais como um primeiro aceno concreto para a possibilidade de retomar o uso praiano do lago (“rio”), depois de algumas décadas, bem como a revalorização de áreas de sua orla, com o poder público atendendo demandas de setores das classes médias e do movimento ambientalista, para a remoção destes espaços de ocupações irregulares. Isto não ocorreu 202 sem alguma resistência, como foi o caso dos proprietários dos bares em Ipanema, e de parte de seu público, e também das comunidades que viviam nestas áreas, como na Vila Cai-Cai e em Belém Novo, que foram reassentados, não sem perdas, mesmo com as medidas compensatórias da prefeitura. A população como um todo foi beneficiada com as obras de saneamento e com a volta da balneabilidade das praias do Lami, e, em parte, de Belém Novo, mas o aprofundamento do processo de recuperação do Guaíba ainda continuaria dependendo da realização de obras de maior vulto, não só em Porto Alegre, e, também, da implantação efetiva de instâncias e mecanismos legais para uma gestão de toda a sua bacia hidrográfica, dentro de bases sustentáveis. 203 CAPÍTULO 5. RIO GRANDE DO SUL, 1979 – 2004: A FORMAÇÃO DOS COMITÊS DE GESTÃO DE BACIAS, A LEI DAS ÁGUAS E O PRÓ-GUAÍBA Nos dois capítulos precedentes procurei dar início à análise das iniciativas públicas no sentido da recuperação ambiental do Lago Guaíba e de sua bacia hidrográfica, tratando, respectivamente, o “Projeto Rio Guaíba”, lançado no início dos anos 1980 pelo governo do Rio Grande do Sul, e o “Programa Guaíba Vive”, lançado em 1989 pela prefeitura de Porto Alegre. A primeira delas consistiu, basicamente, num programa voltado para a expansão da infraestrutura de saneamento básico em Porto Alegre e região metropolitana, conduzido nos marcos da política vigente para esta área no período da ditadura civil-militar. Este programa apresentou como característica principal a centralização em mãos da empresa estadual de saneamento, no caso específico a Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN), como preconizado por essa política do governo federal, em detrimento às estruturas municipais, como o Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE), bem como uma baixa abertura para a participação da sociedade local e, mesmo, da sua representação nos legislativos municipal e estadual. Ao lado disso, careceu de uma visão mais integrada das questões envolvidas, que desse conta dos impactos ambientais e socioeconômicos das soluções propostas para as obras de saneamento básico. O “Projeto Rio Guaíba” foi encerrado, uma década depois de seu lançamento, com resultados muito aquém dos inicialmente previstos, frente à falta de sustentação financeira e às resistências opostas tanto pela prefeitura de Porto Alegre, através do DMAE, quanto do movimento ambientalista. A segunda integrou dentro de um mesmo programa a realização de obras de saneamento básico com ações voltadas à revalorização da orla urbana do Guaíba. A prefeitura procurou conciliar o atendimento às demandas por serviços, como o da coleta de esgotos domésticos, proveniente, em grande parte, de populações vivendo nas áreas mais carentes da cidade, e encaminhadas através das instâncias do Orçamento Participativo, com o das demandas por melhorias em termos ambientais, incluindo o tratamento de esgotos, e urbanísticos. Este último ponto era visto pelo governo recém eleito como uma forma de ampliar suas bases de apoio na sociedade local, mostrando sua disposição de governar para “a cidade como um todo”, não apenas para as “classes populares”. O programa “Guaíba Vive” foi formulado com uma participação expressiva de pessoas ligadas ao movimento ambientalista, inclusive quadros partidários do PT. 204 Foi concebido, e declarado, como uma iniciativa local do município de Porto Alegre, prevendo-se sua futura integração a um programa mais amplo, de âmbito estadual, num momento em que o “Projeto Rio Guaíba” já havia se esgotado, e o governo do Rio Grande do Sul recém começava a estruturar um novo plano para a recuperação da bacia hidrográfica do Guaíba. O qual veio a ser lançado em novembro de 1989, por decreto do governador Pedro Simon, do PMDB, com o nome de “Pró-Guaíba” (Programa para o Desenvolvimento Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba). Neste capítulo prossigo a análise, passando a enfocar dois pontos principais, situados no âmbito estadual, mas interagindo com a esfera nacional e com a de Porto Alegre: o processo de criação de instâncias e de mecanismos institucionais voltados para a gestão de águas, envolvendo o Estado e a sociedade civil, e o programa “PróGuaíba”. Dois pontos interligados, na medida em que o programa conduzido pelo governo estadual buscou incorporar conceitos e mecanismos que já vinham sendo preconizados, tais como a gestão descentralizada dos recursos hídricos, nos limites das bacias hidrográficas, com a coparticipação do Estado e dos representantes da sociedade, e que já vinham sendo praticados, ainda que de forma incipiente, nos primeiros comitês de bacia formados no estado, no final dos anos 1980, com algumas iniciativas remontando ao período anterior. Estes conceitos também estavam incorporados, em certa medida, no “Guaíba Vive”, embora com diferenças, como sua menor área de abrangência, e seu espectro de temas tratados, mais restrito a problemas de uma grande cidade, como a carência de serviços de saneamento básico. Mas começariam a ser suportados por bases institucionais, inicialmente nos marcos das novas constituições, federal e estadual, e, já nos anos 1990, através das leis específicas de águas. O contexto em que ocorreram estas novas iniciativas no sentido da recuperação ambiental do Guaíba, entre o final dos anos 1980 e os primeiros anos da década de 2000, foi marcado pelos impactos do processo de redemocratização política do Estado brasileiro e de uma crescente preocupação com as questões ambientais, que começavam a deixar de ser objeto apenas de grupos limitados de ativistas. Foram introduzidos na Constituição Federal de 1988, e nas novas constituições estaduais, princípios voltados a garantir a utilização sustentável de recursos naturais como as águas superficiais e subterrâneas, que passavam a ser reconhecidas como bens de propriedade do Estado. Foi formulada uma nova política para a gestão dos recursos hídricos, tendo como base o trabalho de quadros técnicos e gerenciais do Estado com atuação em áreas como o 205 saneamento básico e o planejamento urbano, e inspirada nas experiências de alguns países industrializados, em especial a da França, procurando trazê-las para a realidade brasileira. Um de seus principais elementos deveria ser o chamado “princípio usuário pagador”, que consiste no controle (outorga) e na cobrança pelo próprio acesso à água, com a criação, assim, de recursos específicos para conservação e recuperação ambiental, a serem aplicados em cada bacia hidrográfica, no volume e prioridades definidas por seus representantes nos comitês de gestão. O cenário nacional em que ocorreram estes movimentos, por outro lado, se caracterizava pelo abandono, por parte do Estado, em todos os seus níveis, de seu papel como agente direto do desenvolvimento econômico e da promoção de políticas sociais, reposicionamento entendido, nesse período, como necessário para o saneamento das finanças públicas e para a retomada dos investimentos, via privatizações e reingresso de capitais externos. Esta conjuntura se traduziu na persistência de grandes dificuldades para o acesso a recursos financeiros que se destinassem a investimentos em áreas de infraestrutura como as da habitação e do saneamento básico. No que se refere a este setor, o período dos anos 1990 foi marcado não apenas pela continuidade de grandes restrições à obtenção de recursos financeiros, como por disputas em torno de um novo modelo institucional a ser adotado, em substituição ao criado pelo regime autoritário, sustentado no trinômio Banco Nacional da Habitação (BNH) / Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) / Companhias estaduais de saneamento (CESBs). A contratação de novos financiamentos utilizando os recursos do FGTS esteve suspensa até o ano de 1995, quando foi criado mecanismo que permitiu a estados e municípios oferecerem as receitas tarifárias e a penhora de seus ativos no setor como garantia para contrair novas dívidas. Em 1994 foi aprovado no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 199, que estabelecia uma Política Nacional de Saneamento, e seus instrumentos, a qual foi o resultado de um amplo processo de discussão e consenso entre os diversos segmentos envolvidos com o setor, dentro e fora do governo. O projeto de lei contemplava a criação de um Fundo Nacional de Saneamento, para canalizar os recursos, limitados, para o setor, e de um Plano Nacional de Saneamento, a ser aprovado, por lei, a cada cinco anos, estabelecendo metas e tendo seus resultados avaliados, anualmente, por meio de um relatório, que seria intitulado “A Situação de Salubridade Ambiental no Brasil”. Um de seus pressupostos era a manutenção do Município como o poder concedente destes serviços, nos termos do Artigo nº 175 da 206 Constituição Federal de 1988. O PLC nº 199 foi integralmente vetado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, no início de seu primeiro mandato, em janeiro de 1995, sob a justificativa de que contrariava os interesses públicos. Em seu lugar, o governo federal apresentou o Projeto de Modernização do Setor de Saneamento (PMSS), o qual direcionava a concessão de recursos para o setor por meio do Banco Mundial (BIRD), e aprovou a Lei 8.987/1995, a chamada “Lei de Concessões”, que regulamentava o regime de concessões e permitia a prestação de serviços públicos nesta área pela iniciativa privada. Com esta lei, o governo federal passava a assumir a definição das diretrizes gerais para o saneamento básico, podendo, mesmo, interferir nas concessões realizadas pelos outros entes federativos, o que, de acordo com Rezende e Heller, gerou questionamentos com respeito à sua constitucionalidade, por parte de alguns juristas. O governo de Fernando Henrique Cardoso buscou, em seguida, através do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 267, do senador José Serra, definir novas diretrizes básicas de concessão, que reduzissem os riscos para a atuação da iniciativa privada, o que, no entendimento de muitos quadros técnicos e gerenciais atuando no setor, visava, em última análise, transferir a titularidade dos serviços de saneamento dos municípios para os estados, sobretudo nas capitais e regiões metropolitanas. Frente a esta conjuntura, os avanços registrados no país com respeito ao saneamento básico foram relativamente discretos, neste período. A cobertura por redes coletoras de esgotos sanitários, entre a população urbana, subiu de 62 para 75%, entre 1991 e 2002, e de 9 para 16% entre a população rural. E somente 14% dos distritos do país (1.383) possuíam, em 2000, estações de tratamento de esgotos, persistindo um quadro bastante desfavorável em vários dos estados mais desenvolvidos da federação, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e o próprio Rio Grande do Sul, onde a cobertura por tratamento de esgotos não alcançava 45% dos distritos, no mesmo censo.255 255 REZENDE, Sonaly Cristina, HELLER, Léo. O saneamento no Brasil: políticas e interfaces. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, pp. 284-285 e 305-307. Com respeito ao PLC nº 299 e o novo modelo pretendido para o saneamento básico, com este projeto de lei, ver: (i) MIRANDA, Nilmário. Nova política nacional de saneamento em 1995? In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 1, maio 1994, pp. 33-34, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista1/paginas.html, acessado em março de 2012. Miranda, então deputado federal (PT/MG), foi o relator do substitutivo deste projeto na Câmara Federal. Conforme o autor, o PLC nº 199 teve o apoio das seguintes entidades: Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES); Associação Brasileira dos Fabricantes de Materiais e Equipamentos para Saneamento (ASFAMAS); Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (AESBE); Associação Nacional dos Serviços Autônomos de Águas e Esgotos (ASSEMAE); Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (CBIC); Comando Nacional dos Trabalhadores em Saneamento, e dos seguintes órgãos do governo federal: Fundação Nacional de Saúde (FNS) e Secretaria Nacional de Saneamento; (ii) PAIM, Paulo Renato. O que deve ser dito sobre o novo modelo para o saneamento. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 2, setembro 1994, p. 31, 207 Os seguintes pontos são abordados ao longo deste capítulo: (i) as primeiras iniciativas voltadas para o controle da poluição das águas dos rios da bacia do Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre, envolvendo a participação do Estado e da sociedade civil – o CEEIG e os primeiros comitês de bacias hidrográficas, Sinos e Gravataí; (ii) os novos marcos institucionais para a gestão de águas definidos com a Constituição Federal de 1988 e com a Constituição Estadual de 1989, sob a influência de modelos participativos e descentralizados, como o da França, e das primeiras experiências neste sentido no Brasil e no Rio Grande do Sul; (iii) a Lei Gaúcha das Águas; (iv) o Programa “Pró-Guaíba”, da sua criação, em 1989 à consolidação do Módulo I, com a assinatura do contrato de financiamento com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 1995: objetivos, modelo de gestão, divulgação, interação com o sistema de gestão de águas; (v) os resultados obtidos e a interrupção do programa, ao final do Módulo I, devido à perda da capacidade do estado para contrair novos financiamentos, no início da década de 2000; (vi) as interações existentes entre a prefeitura de Porto Alegre, através do “Guaíba Vive”, e o governo do Rio Grande do Sul, através do “Pró-Guaíba”; (vii) os passos seguintes no processo de implantação efetiva da política de águas no Rio Grande do Sul, como a formação do Comitê do Lago Guaíba e o retardo na aplicação de seus instrumentos e mecanismos de gestão (outorga e cobrança, planos e agências de bacia). 5.1. A criação dos primeiros comitês de bacia na região hidrográfica do Guaíba e a Lei Gaúcha das Águas A formação dos primeiros comitês de bacia na região hidrográfica do Guaíba, o do Rio dos Sinos e o do Rio Gravataí, no final dos anos 1980, tem sido objeto de diversos trabalhos, tanto acadêmicos quanto com outros fins, o mesmo ocorrendo com o processo de criação do sistema de gestão de recursos hídricos do estado do Rio Grande do Sul, de seus primórdios ao período mais recente, passando pela promulgação da Lei disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista2/paginas.html, acessado em março de 2012. Com respeito às restrições sofridas pelos municípios frente à política de saneamento do governo federal nos anos 1990, ver: (i) MARCUZZO, Sílvia Franz. Pró-saneamento: da má política à péssima burocracia. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 7, maio 1996, pp. 16-19, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista2/paginas.html, acessado em março de 2012; (ii) WARTCHOW, Dieter. Concessões e sub-concessões privadas no saneamento: uma nova ilusão? In: Idem, pp. 20-24, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista2/paginas.html, acessado em março de 2012; (iii) WARTCHOW, Dieter. Saneamento: titularidade e autonomia municipal em risco. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 10, julho 1997, pp. 5-6, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista2/paginas.html, acessado em março de 2012. 208 Gaúcha das Águas, em 1994. Esta produção, a exemplo da existente sobre a experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre, tem analisado aspectos como a participação de pessoas ou organizações da sociedade civil, ao lado dos agentes do Estado, em atividades tais como a formulação de políticas públicas e a priorização de investimentos, mas tratando, por outro lado, de temas como a defesa do meio ambiente e o uso sustentável dos recursos naturais. A participação de ativistas ligados às causas da defesa do meio ambiente no processo de criação do COMITESINOS - Comitê de Preservação, Gerenciamento e Pesquisa do Rio dos Sinos foi tratada por Fabiano Quadros Rückert, em História e memória do ambientalismo no Vale do Rio dos Sinos, um trabalho que apresenta a trajetória do movimento ambientalista no Vale do Rio dos Sinos, desde o período formativo, com Henrique Luiz Roessler, nos anos 1950, até a década de 1990. O autor procurou mostrar a influência do saber técnico na construção de um discurso local de preservação da natureza. Com o objetivo de avaliar a influência da produção textual difundida através da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) na formação de um discurso ambientalista que incorporasse elementos da conjuntura histórica do período dos anos 1980 e início dos 1990, o autor lançou mão de trabalhos de dois líderes do movimento ambientalista local, que atuaram na criação deste comitê, o jornalista Carlos Aveline e o agrônomo e educador ambiental Arno Kayser.256 Os processos que levaram à criação destes dois primeiros comitês de gestão de bacias do Rio Grande do Sul também foram tratados por Janine Ferreira Haase, em O encontro Estado e sociedade na política gaúcha das águas.257 Neste trabalho a autora destaca, inicialmente, que a preocupação com a qualidade das águas do Sinos remontava aos anos 1950, com os artigos e crônicas de Henrique Roessler no Correio do Povo, e que, a partir de 1985 o movimento ecológico – assim definido pela autora – iniciou uma intensa campanha de mobilização da sociedade, com aporte de recursos das igrejas católica e luterana. De acordo com Haase, entre os fatores influenciadores no processo de formação do Comitê da Bacia do Sinos, os mais importantes, na visão de seus próprios membros teriam sido os seguintes: (i) o “movimento ecológico” na região, com 256 RÜCKERT, Fabiano Quadros, História e memória do ambientalismo no Vale do Rio dos Sinos. Dissertação de Mestrado em História, UNISINOS. São Leopoldo, RS, 2007. Disponível em http://bdtd.unisinos.br/tde_arquivos/8/TDE-2008-02-12T134328Z-424/Publico/historia%20e%20memoria.pdf, acessado em março de 2012. 257 HAASE, Janine Ferreira. O encontro Estado e sociedade na política gaúcha das águas. Tese de Doutorado em Ecologia, UFRGS. Porto Alegre, 2005. Disponível em http://hdl.handle.net/10183/7488, acessado em julho de 2010. 209 campanhas promovidas por suas ONGs, UPAN e Movimento Roessler (como a “Sinos que te quero vivo”) e as denúncias veiculadas nos jornais; (ii) a campanha SOS Rio dos Sinos, do Grupo Editorial Sinos; (iii) uma maior fiscalização das indústrias da região que passou a ser realizada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM); (iv) a pressão do Ministério Público local, fatores que levaram à realização de um seminário na Unisinos, em São Leopoldo. A autora lembra que, para o então prefeito de São Leopoldo, e seu primeiro presidente, Frederico Leuck, o comitê foi uma resposta à demanda pela criação de um espaço interinstitucional que coordenasse os esforços pela recuperação da qualidade do Sinos. O COMITESINOS, instalado em março de 1988, como decisão do referido seminário, através do Decreto Estadual 32.744/1988, foi o primeiro deste gênero, em âmbito estadual, no Brasil, sendo vinculado, por seu estatuto, às instâncias públicas então existentes no estado para o setor, o Conselho de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul (CONRHIRGS) e o Sistema Estadual de Recursos Hídricos (SERH), constituindo-se, diz a autora, “na primeira oportunidade concreta de produzir um modelo de gestão semelhante à vanguarda internacional e adaptado à realidade local, de uma região com problemas de qualidade das águas e com uma comunidade motivada para enfrentá-los”. O segundo comitê criado no Rio Grande do Sul, o da Bacia do Rio Gravataí, teve uma gênese semelhante, resultando da interação de dois grupos, os técnicos sanitaristas e os representantes das ONGs ambientalistas, em função da situação crítica de poluição do Gravataí por resíduos domésticos e industriais e da vasta destruição de banhados, em suas nascentes, pela lavoura de arroz, sendo criado através do Decreto Estadual 33.125/1989, após a realização de um seminário promovido pela Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (METROPLAN), com a participação, em suas diversas comissões, de mais de 40 técnicos envolvidos com o tema.258 O processo de criação do sistema de gestão de recursos hídricos do estado do Rio Grande do Sul, de seus primórdios, nos anos 1970, ao início da década de 2000, foi tratado em trabalhos produzidos por alguns dos quadros técnicos e gerenciais desta área, que tiveram participação destacada em suas etapas iniciais. Podem ser citados aqui, 258 Idem, pp. 112-114. As percepções dos integrantes do COMITESINOS, acerca do que teriam sido os fatores mais decisivos para a sua formação foram levantadas em trabalho anterior da própria autora: HAASE, Janine Ferreira. A bacia do Rio dos Sinos. In: Projeto Marca D’água (Relatórios Preliminares). Brasília, 2002. Com respeito ao processo de criação do Comitê da Bacia do Rio Gravataí, a autora cita o trabalho de GUTIERREZ, Ricardo. Comitê Gravataí. In: Projeto Marca D’água (Fase I – Relatórios de Bacia). Brasília, 2001. Os dois trabalhos estão disponíveis em http://marcadagua.org.br, acessado em março de 2012. 210 entre outros, o engenheiro Luiz Antonio Timm Grassi e o economista Eugenio Miguel Cánepa, coautores de Os comitês de bacia no Rio Grande do Sul: formação, dinâmica de funcionamento e perspectivas. 259 Alguns pontos podem ser destacados, com respeito à narrativa feita pelos autores acerca do período que vai das primeiras iniciativas na área governamental, ainda nos anos 1970, à promulgação da nova lei estadual das águas, em 1994. Inicialmente, cabe lembrar, que os autores trazem, aqui, uma visão representativa do corpo técnico e gerencial atuante nos órgãos da administração indireta do estado do Rio Grande do Sul. Cánepa foi pesquisador na Fundação de Ciência e Tecnologia (CIENTEC), e representante da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia no Comitê da Bacia do Taquari - Antas, enquanto Grassi atuou na CORSAN, como coordenador da Assessoria de Recursos Hídricos, assumindo, posteriormente, a presidência do Comitê de Gerenciamento do Lago Guaíba. E também que as ações aqui tratadas se deram no âmbito dos governos federal, e, principalmente, estadual, na região metropolitana de Porto Alegre, nos vales do Rio dos Sinos e do Rio Gravataí, fora da área de atuação do município de Porto Alegre e do DMAE. Os autores começam por destacar o fato de que a percepção de que a “gestão por bacia” é mais efetiva do que a gestão através de ações pontuais chegou aos quadros técnicos e gerenciais do Estado, em todo o Brasil, pela observação de experiências bemsucedidas em outros países, principalmente França, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos.260 Teria sido com base nesta percepção que o governo federal criou, ainda nos anos 1970, comitês de estudos integrados em algumas das mais importantes bacias de rios federais – que se caracterizam por percorrerem mais de um estado ou delimitarem fronteiras do país. Tratava-se de colegiados multi-institucionais, coordenados pelo Comitê Especial de Estudos Integrados de Bacias Hidrográficas (CEEIBH) e sob o comando geral do DNAEE – Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia (MME). Por sua importância, muito embora não contivesse um curso d’água federal, a bacia hidrográfica do Guaíba teve 259 CÁNEPA, Eugenio Miguel, GRASSI, Luiz Antonio Timm, SOARES NETO, Percy B., ZORZI, Isidoro. Os comitês de bacia no Rio Grande do Sul: formação, dinâmica de funcionamento e perspectivas. Porto Alegre: CIENTEC, 2001, disponível em http://www.abes-rs.org.br/rechid/comites2.htm, acessado em março de 2012. O sociólogo Isidoro Zorzi, atual reitor da UCS (Universidade de Caxias do Sul), foi presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Taquari - Antas e coordenador geral do Fórum Nacional de Comitês de Bacias. Percy B. Soares Neto, administrador e especialista em economia ambiental, foi consultor do “Pró-Guaíba” e secretário-executivo do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba. 260 Idem, p. 3. Um exemplo destas “ações pontuais”, que não são elencadas por Cánepa, Grassi, Soares Neto e Zorzi, poderia ser o próprio “Projeto Rio Guaíba”. 211 instalado, em 1979, o Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia do Guaíba (CEEIG). O CEEIG aglutinou entidades federais estaduais e municipais, sistematizou conhecimentos com base em estudos existentes e chegou a propor um enquadramento dos principais corpos d’água por classes de uso.261 Mas, lembram os autores, “ainda que operasse até os primeiros anos da década de 80, o CEEIG nunca passou de um grupo de estudos e de consulta”. A criação, em 1981, por decreto do governo do Rio Grande do Sul, de um primeiro “sistema estadual de recursos hídricos” teve como motivo, de acordo com os autores, a necessidade de atender exigências neste sentido para a obtenção de recursos federais destinados à irrigação. Encabeçado pelo CONRHIRGS, este sistema deveria ser constituído, em cada bacia, por dois tipos de comitês: um “comitê executivo”, composto por órgãos oficiais, e um “comitê consultivo”, composto por entidades não governamentais. Segundo os autores, ainda que alguns desses comitês fossem criados, e até instalados, este primeiro “sistema” nunca teve funcionamento efetivo. Os autores destacam, por outro lado, dentre as primeiras iniciativas no âmbito do Estado, o Seminário Internacional de Gestão de Recursos Hídricos, realizado em Brasília, em março de 1983, em promoção conjunta do DNAEE (MME), da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA/MINTER) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/SEPLAN) e do CEEIBH. Segundo eles, Este encontro, que contou com a presença de especialistas internacionais da Inglaterra, França e Alemanha (com profunda experiência em seus respectivos países), foi de extrema importância ao deflagrar, em escala nacional, um amplo debate sobre a modernização da gestão dos recursos hídricos. Em particular, no Rio Grande do Sul, sua repercussão foi muito grande entre todos aqueles que procuravam apreender e sistematizar a experiência 262 internacional e suas possíveis lições em termos de aplicação à gestão de nossas águas. Os autores também reconhecem que a mobilização de grupos e pessoas da “sociedade em geral” se deu como resultado da percepção de um agravamento dos problemas ambientais, especialmente os relativos aos corpos d’água, como foi o caso dos rios da região metropolitana de Porto Alegre: falava-se, então, sobre “a iminente morte do Rio dos Sinos”. E dão conta, da mesma forma, que o processo de formação do COMITESINOS envolveu vários setores da sociedade organizada, como o movimento 261 O conceito de enquadramento tem origem no modelo francês de gestão das águas, podendo ser assim definido: Um conjunto de objetivos de longo prazo a atingir, corporificado em padrões de qualidade dos recursos hídricos. Esta é a fase do chamado “enquadramento” dos corpos d’água. (Ver: CÁNEPA, Eugenio Miguel, GRASSI, Luiz Antonio Timm. A Lei das Águas no Rio Grande do Sul: no caminho do desenvolvimento sustentável? In: Ciência & Ambiente, nº 21. Santa Maria, RS: Ed. UFSM, jul – dez 2000, p. 147). 262 Idem, pp. 3-4. 212 ambientalista, mas inclusive uma parte do empresariado, a imprensa, e agentes governamentais, tendo apoio institucional da Unisinos, e foi o resultado de uma ampla campanha de mobilização, “SOS Sinos”. Ao passo que o Comitê do Gravataí, fruto de uma mobilização similar, teve o apoio institucional da METROPLAN para sua formação. A confluência entre agentes da sociedade civil e do Estado, com vistas ao encaminhamento destes problemas foi assim narrada por estes autores: Na região Metropolitana de Porto Alegre, três cursos d’água causavam grande preocupação: o Lago Guaíba e dois de seus formadores, o Rio dos Sinos e o Rio Gravataí. Em virtude de estarem localizados em região altamente industrializada e urbanizada, os três corpos d’água sofriam um processo de poluição muito intensa. Diante disso, em meados da década de 80, organizam-se entidades e promovem-se campanhas no sentido de sensibilizar a opinião pública e provocar a ação governamental. É neste momento que, como num movimento “em pinças”, as duas esferas começam a se encontrar e dialogar mais frutiferamente. Como conseqüência disso, surgem os dois primeiros “comitês”, o do Sinos e o do Gravataí. A gênese do Comitê Sinos remonta a 1987. Neste ano, é deflagrada a campanha SOS Sinos, conduzida por entidades ecológicas da região, meios de comunicação locais, autoridades 263 estaduais e locais e setores da indústria. Outro aspecto que é destacado pelos autores diz respeito às indefinições existentes quanto aos objetivos destes primeiros comitês: Com seu extenso nome original – Comitê de Preservação, Gerenciamento e Pesquisa do Rio dos Sinos – o ComiteSinos inicia suas atividades enfrentando uma ambigüidade de propósitos, com uma flagrante indecisão entre objetivos de estudos técnicos versus objetivos 264 de mobilização, conscientização e gerenciamento propriamente dito. Os dois comitês, ainda que criados por decreto governamental, enfrentaram uma grande precariedade de recursos financeiros e, principalmente, destacam os autores, de poder legal efetivo de gerenciamento das águas de suas respectivas bacias. Eles reconheceram os resultados obtidos pelos dois comitês, neste primeiro período, como significativos, porém limitados, e identificaram como causa disto a falta de uma efetiva legitimidade política: Todas estas ações, se, de um lado, conseguiram alguns avanços concretos na solução de problemas ou conflitos, demonstraram, de outro, a precariedade de ações voluntaristas e isoladas. (Começa a ficar claro que uma gestão de recursos hídricos não pode ser feita por instâncias colegiadas, por mais participativas que sejam, que não se baseie em decisões vinculantes para as partes; numa palavra, é preciso que as decisões tenham poder de Estado). Entretanto – e este é o grande resultado positivo – permitiram manter a coesão de 265 todos aqueles que estavam interessados na gestão por bacia e na instituição dos comitês. 263 264 Idem, p. 4. Idem, p. 4. 265 Idem, pp. 5-6. Os autores destacam, aqui, vários resultados positivos da ação dos dois comitês, nestes primeiros anos. No âmbito do COMITESINOS: campanhas junto a indústrias pela adoção de medidas para controle da poluição, articulação das prefeituras e órgãos estaduais para resolver problemas relacionados com o destino de resíduos sólidos, implantação de uma rede de monitoramento da qualidade da água, compartilhada entre a Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN), o Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE), o Serviço Municipal de Água e Esgoto de São Leopoldo (SEMAE) e a METROPLAN, bem como a promoção de cursos de capacitação em educação ambiental para professores, que originou uma rede intermunicipal de educadores. No âmbito do Comitê 213 A necessidade de criar um arcabouço legal e institucional mais robusto, que permitisse o desenvolvimento de uma efetiva política pública para gestão dos recursos hídricos, envolvendo a sociedade, mas com a chancela do Estado, foi identificada, de acordo com os autores, tão logo foram constatadas estas limitações no alcance dos comitês do Sinos e do Gravataí. Ainda em 1988, deste modo, foi criado um grupo de trabalho interinstitucional, liderado pela CORSAN, através de sua Assessoria de Recursos Hídricos, e voltado para duas frentes: (i) manter o engajamento nos primeiros comitês e com outros que porventura fossem criados; (ii) construir um marco de referência teórico que desse sentido e consistência à ação. Este engajamento, “pelo estreito contato com nossa realidade social”, dizem os autores, “afigurava-se como essencial no sentido de captar as peculiaridades regionais e culturais relevantes para a implantação de uma gestão de recursos hídricos adequada, e, ao mesmo tempo, realista e factível”. Para a construção de um marco de referência teórico, fez-se um estudo das experiências de quatro países com a gestão das águas (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Estados Unidos), que incluiu estágios e viagens de integrantes do grupo ao exterior, associado ao aporte de estudos e discussões que já vinham se desenvolvendo no Brasil, tanto no meio acadêmico quanto no governamental, como o já citado seminário internacional de gestão de recursos hídricos, de 1983. De acordo com os autores, “essa estratégia de dupla face revelou-se acertada”, uma vez que “o trabalho de elaboração teórica deu-se em contínuo confronto com a experiência concreta vivida pelos comitês e seus participantes”. Cánepa, Grassi, Soares Neto e Zorzi narram a atuação deste grupo de trabalho, destacando suas conexões com a realidade enfrentada pelos recém formados comitês de bacia do Rio Grande do Sul, onde começavam a aflorar os conflitos em torno dos usos da água: Assim, a discussão intelectual sempre foi temperada, forçada mesmo, a examinar constantemente a rotina de carências, de necessidades, de interesses e problemas. Além disso, o contexto político-institucional sempre condicionou o andamento do processo. Os comitês traziam à tona questões concretas de conflitos pelo uso da água, de ameaças à conservação dos corpos de água, de acidentes ou eventos imprevistos. A precariedade de recursos materiais ameaçou, diversas vezes a sobrevivência das duas novas instituições. À medida que ia se formulando um modelo de gerenciamento, a própria realidade questionava sua adequação às situações e problemas concretos que eram vividos. Em pouco tempo, ficou clara a necessidade de um suporte institucional e legal mais abrangente e poderoso – uma lei Gravataí: campanha para a preservação e restauração de ecossistemas atingidos pela agricultura e em medidas para a correção do regime hidrológico do rio, atingido por obras de retificação e canalização do seu curso; ações de incentivo à educação ambiental, ao controle da poluição industrial e à solução de problemas de saneamento básico nas áreas de resíduos sólidos, esgotamento sanitário e abastecimento público de água. 214 e um sistema institucional – que fizesse o Estado assumir sua responsabilidade no 266 gerenciamento dos recursos hídricos, adotando uma política pública para as águas. O estabelecimento de novas formas institucionais para a gestão das águas, envolvendo formas descentralizadas com a coparticipação do Estado e da sociedade ganhou novo impulso a partir da promulgação das novas constituições, federal e estaduais, em decorrência da superação do regime autoritário de 1964. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a propriedade estatal das águas, e definiu uma esfera federal de domínio das águas (rios de fronteira e rios que atravessam vários estados) e esferas estaduais (rios internos a cada estado e águas subterrâneas), e abriu o caminho para a instituição de sistemas de gestão de recursos hídricos estaduais e nacional. 267 A Constituição do Rio Grande do Sul de 1989 instituiu, através de seu artigo 171, o sistema estadual de recursos hídricos, com a seguinte redação: Art. 171 - Fica instituído o sistema estadual de recursos hídricos, integrado ao sistema nacional de gerenciamento desses recursos, adotando as bacias hidrográficas como unidades básicas de planejamento e gestão, observados os aspectos de uso e ocupação do solo, com vista a promover: I - a melhoria de qualidade dos recursos hídricos do Estado; II - o regular abastecimento de água às populações urbanas e rurais, às indústrias e aos estabelecimentos agrícolas. Parágrafo 1o - O sistema de que trata este artigo compreende critérios de outorga de uso, o respectivo acompanhamento, fiscalização e tarifação, de modo a proteger e controlar as águas superficiais e subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, assim como racionalizar e compatibilizar os usos, inclusive quanto à construção de reservatórios, barragens e usinas hidrelétricas. Parágrafo 2o - No aproveitamento das águas superficiais e subterrâneas será considerado de absoluta prioridade o abastecimento das populações. Parágrafo 3o - Os recursos arrecadados pela utilização da água deverão ser destinados a obras e à gestão dos recursos hídricos na própria bacia, garantindo sua conservação e a dos recursos ambientais, com prioridade para as ações preventivas. A introdução destes dispositivos com respeito à gestão das águas se deu como resultado de diversas contribuições, ao longo dos processos constituintes federal e estadual, cujo detalhamento está fora do alcance e dos objetivos do presente trabalho. O papel dos quadros técnicos e gerenciais envolvidos com esta temática foi, certamente, muito importante, não devendo ser descartada, entretanto, a existência de aportes de outros setores da sociedade.268 266 267 Idem, pp. 6-7. Constituição Federal, Art. 20. São bens da União: III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União. 268 De todo modo, a introdução do artigo 171 na Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989 decorreu de uma proposta apresentada pelo grupo de trabalho interinstitucional formado em 1988, 215 Cabe lembrar, neste ponto, as considerações feitas por quadros técnicos e gerenciais do Estado, envolvidos nas iniciativas para a implantação das novas políticas públicas para a área de recursos hídricos, como Cánepa e Grassi. Em seu artigo A Lei das Águas no Rio Grande do Sul: no caminho do desenvolvimento sustentável?, os autores dão conta de que a introdução destes dispositivos, no Brasil, teria ocorrido como resultado de tendências observadas mundialmente, ou, ao menos, “nos países mais avançados em política ambiental”. Tendências estas, dizem os autores, no sentido de uma publicização das águas e do uso, por parte do Estado, de mecanismos econômicos de indução dos agentes no sentido de um uso mais racional das águas, tanto em volumes quanto em qualidade. A grande modificação introduzida aqui estaria, segundo Cánepa e Grassi, no abandono das políticas de controle ambiental baseadas apenas no estabelecimento, por parte do Estado, de padrões de controle a serem obedecidos, dentro do que se convencionou denominar de “políticas de mandato-e-controle”, associados ao uso da “melhor tecnologia disponível” por parte dos agentes produtivos. Estas seriam, assim, progressivamente substituídas por políticas de outro teor, as quais, com “o uso de instrumentos econômicos de incentivo, procurem atingir, ao custo mínimo para a sociedade, padrões de qualidade ambiental politicamente negociados e estabelecidos”.269 Na gestão de águas, o principal destes instrumentos passaria a ser a adoção do chamado “princípio usuário pagador” (PUP), compondo dois dos princípios do novo sistema estadual, ao lado da descentralização, por meio do sistema estadual de recursos hídricos, e do uso da bacia hidrográfica como unidade básica de planejamento e intervenção. A aplicação do PUP deveria ocorrer através do estabelecimento da outorga e tarifação dos recursos hídricos (ou seja, a cobrança por sua retirada e pelo despejo de efluentes) e da utilização, na própria bacia, dos recursos financeiros assim arrecadados, a serem empregados em sua própria gestão, de modo a garantir a conservação de seus recursos ambientais, em atividades e obras preventivas ou de recuperação.270 Pode ser esclarecedor, neste sentido, apresentar a explanação realizada conforme relato de Luiz Antonio Timm Grassi (Ver: LAIGNEAU, Patrick. Democracia participativa e gerenciamento de recursos hídricos: o caso do comitê de gerenciamento do lago Guaíba. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, PUCRS. Porto Alegre, 2004. Disponível em http://site.otinga.fr/documents/memoires/LAIGNEAU-2004-Democracia-Participativa-GerenciamentoRecursos-Hidricos.pdf, acessado em julho de 2011, p. 49: o autor cita comunicação pessoal de Grassi, de 06/08/2004). 269 CÁNEPA, Eugenio Miguel, GRASSI, Luiz Antonio Timm. A Lei das Águas no Rio Grande do Sul: no caminho do desenvolvimento sustentável? In: Ciência & Ambiente, nº 21. Santa Maria, RS: Ed. UFSM, jul – dez 2000, p. 137. 270 Idem, pp. 137-139. 216 pelos autores com respeito aos fundamentos que deveriam justificar a utilização do PUP, como um recurso a ser usado pelo Estado, se assim quiser a sociedade, frente às ameaças crescentes à preservação dos recursos hídricos, decorrentes de processos de crescimento econômico e demográfico sem mecanismos de controle: Quando se começa a falar em cobrança pelo uso da água, costuma-se ouvir, imediatamente, a seguinte objeção: “Cobrança pelo uso da água? Mas, como? Já não pagamos – e bastante – por ela?” A resposta a essa objeção levar-nos-á à conceituação de quatro preços da água. Numa grande cidade brasileira – Porto Alegre, por exemplo – um consumidor urbano paga dois preços pela água potável que consome: 1) o preço correspondente à captação, potabilização e distribuição da água tratada; e 2) o preço correspondente ao esgotamento sanitário, isto é, o transporte da água residuária de volta ao custo d’água. Nesse esquema, o rio – quer como fonte do recurso, quer como fossa do resíduo – é de livre acesso, gratuito. Nos primórdios do desenvolvimento e da urbanização, com baixa renda per capita e baixa densidade populacional, esses dois preços cobrados pela água são perfeitamente funcionais, cobrindo os custos que a sociedade tem na provisão do serviço de abastecimento e esgotamento sanitário. A gratuidade do rio é possível, pois sendo ele abundante relativamente às necessidades, todos os demais usos (tomar banho, pescar, navegar, etc.) são viáveis [...] a capacidade de suporte e assimilação do rio são suficientes para todos os usos, a preço zero. Entretanto, à medida que o desenvolvimento econômico se processa, a crescente renda per capita, bem como o crescimento populacional da cidade, fazem com que, num estágio inicial, o despejo de esgotos cloacais de volta ao rio, ao exceder a capacidade de autodepuração do mesmo, provoque uma degradação de qualidade do rio de tal ordem que desapareça a balneabilidade e a pesca, e o próprio abastecimento de água potável seja encarecido [...] Num estágio mais avançado, se a retirada de água for excessiva [...] problemas quantitativos também podem ocorrer. Seja como for, o fato é que o rio se tornou escasso, a totalidade dos usos, com livre acesso e a preço zero, não é mais possível. É nesta situação que a sociedade pode decidir pela intervenção do Poder Público – no limite, estabelecendo a propriedade estatal do recurso, que passa a não ser mais de livre acesso – no sentido de racionar e racionalizar os usos. Aqui [...] surge o Princípio Usuário Pagador como instrumento desse racionamento e racionalização, implicando mais dois preços para a água: 3) um preço correspondente à retirada, que será acrescido à conta de água tratada, no sentido de frear o consumo, viabilizando [...] o investimento em dispositivos poupadores de água; e 4) um preço correspondente ao despejo de esgotos no rio [...] e que acompanhará a tarifa de esgoto, no sentido, também, de refrear o seu lançamento [...] Os preços 3 e 4 integram o chamado Princípio Usuário Pagador [...] instrumento crescentemente utilizado no sentido de viabilizar os diversos usos de um curso d’água que se tornou escasso. Como todos sabem, os habitantes da cidade não são os únicos usuários da água [...] Existe uma demanda industrial [...] por agricultores, etc. Deixamos a cargo do leitor a extensão desta análise dos preços 271 adicionais [...] para estes casos. Outras considerações podem ser feitas acerca da boa acolhida que o modelo francês de gestão das águas encontrou entre os quadros técnicos e gerenciais de Estado, desde o momento em que passou a ser apresentado e discutido, nos anos 1980. As razões para tanto não podem ser dissociadas da conjuntura política que o país atravessava, no processo de superação do regime autoritário, que se iniciou nos anos 1980 e teve prosseguimento na década seguinte. Esta se caracterizou, ao mesmo tempo, por pressões em favor de uma maior autonomia e participação dos municípios, regiões e estados, bem como de diversos segmentos da sociedade, como empresários, trabalhadores e movimentos sociais, e pela perda de legitimidade e poder efetivo do 271 Idem, pp. 136-137. 217 Estado, resultante do esgotamento do modelo vigente, excessivamente centralizador.272 Pode ser esclarecedora, neste sentido, a explanação feita por outro técnico envolvido com esta temática, com maior atuação na área acadêmica, Antonio Eduardo Lanna, acerca dos fatores que impulsionaram as mudanças realizadas no sistema de gestão de águas na própria França, inicialmente, como no caso brasileiro, suportado por estruturas complexas e voltadas para o controle, e fortemente centralizado no Estado: O exemplo francês é relevante por inspirar a maioria dos aperfeiçoamentos propostos no Gerenciamento das Águas no Brasil. A França, que tem uma tradição de Direito semelhante à brasileira, tratou de regular, desde o final do século passado, os problemas de recursos hídricos através de um Código de Águas, um Código Florestal, um Código de Pesca e uma infinidade de regulamentações derivadas e “ad hoc”. Devido às falhas deste tipo de abordagem, toda esta parafernália legislativa não impediu que, no início da década de 60, por ocasião do grande boom de desenvolvimento do pós-guerra, os rios franceses estivessem transformados em verdadeiras cloacas. Por exemplo, a poluição industrial anual cresceu a uma média de 5% ao ano no período de 1945 a 1974 [...]. Diante disso, em 16 de dezembro de 1964, foi promulgada a Lei das Águas, a qual, sem remover propriamente os dispositivos legais anteriores, deu um sentido de conjunto à ação do Estado. A lei francesa de 64, ao lado de suas normas, decretos, regulamentos, etc, é saudada hoje por especialistas internacionais em recursos hídricos e economistas ambientais como um dos instrumentos mais abrangentes e eficientes em matéria de gerenciamento de recursos hídricos, demonstrando que é possível 273 ter um Estado forte, no setor, sem estruturas administrativas gigantescas. 272 LAIGNEAU, Patrick, op. cit., p. 41: “Voltando para o campo dos Recursos Hídricos, DINO (2003, p. 10) relata como neste contexto, o ‘modelo’ francês de gestão de recursos hídricos que foi apresentado no Brasil em 1985 encontrou espaço para ser discutido, em função de dois aspectos: o primeiro ponto salientado pela autora é ‘a necessidade de responder às reivindicações locais, regionais e às expressões coletivas identitárias’. O segundo aspecto que contribui para a receptividade do ‘modelo’ francês nas esferas estatais foi, segundo ela, ‘o esforço do Estado em encontrar fórmulas alternativas à rigidez da centralização e à crise de legitimidade que emanava da sua ineficiência em gerir os interesses públicos’. Podemos reconhecer, nesta análise, os mesmos dois tipos de determinantes para a implementação de políticas participativas: aspiração a mais democracia de um lado, enfraquecimento do Estado do outro lado.” Aqui o autor faz referência ao trabalho de JORGE, Karina Dino. Cultura Política Local como Dimensão da Sustentabilidade na Gestão de Recursos Hídricos: O Caso do Comitê da Sub-Bacia Hidrográfica Mineira do Rio Paracatu. 1995. 145f. Dissertação (mestrado em desenvolvimento sustentável). Centro de desenvolvimento sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2003. Uma análise similar acerca das motivações envolvidas na criação dos comitês de bacia no Brasil pode ser vista em: ABERS, Rebecca, JORGE, Karina Dino. Descentralização da Gestão da Água: Por que os comitês de bacia estão sendo criados? In: ABERS, Rebecca, JORGE, Karina Dino. Descentralização da gestão da água, disponível em http://www.scielo.br/pdf/asoc/v8n2/28607.pdf, acessado em março de 2012. 273 LANNA, Antonio Eduardo. Gestão das águas (Capítulo 2 – Aspectos Institucionais da Gestão das Águas, pp. 45-46), disponível em www.iph.ufrgs.br/posgrad/disciplinas/hip78/2.pdf, acessado em março de 2012. O autor é especialista na área de gestão de recurso hídricos e integra o corpo docente do IPH da UFRGS. Mais informações sobre o modelo francês de gestão de águas podem ser vistas em: Idem, pp. 4650. Pontos que podem ser destacados, aqui: (i) O Comitê de Bacia é um órgão colegiado, “um verdadeiro Parlamento das Águas”, devendo ser consultado sobre as grandes opções da política de recursos hídricos na bacia; deve aprovar o programa quinquenal de investimentos e os valores a serem cobrados pelo uso da água; é constituído por três colégios: 1. o colégio dos eleitos, os representantes das coletividades locais da bacia; 2. o colégio dos usuários de água, de expertos e dos meios sócio-profissionais, representando as diferentes categorias de usuários (indústria, agricultura, pescadores, aquicultura, turismo, hidroelétricas, companhias de abastecimento de água potável, diferentes consumidores de água, associações de proteção à natureza, etc.), de pessoas com grandes conhecimentos do assunto e de meios profissionais e representantes da sociedade; 3. o colégio dos representantes do Estado, representando os ministérios afetos às questões da água, como o de meio ambiente, agricultura, saúde, indústria, transporte, equipamentos, mar, economia e finanças; (ii) O sistema, como um todo, através desse processo, aloca anualmente algo em torno de 0,3 % do PIB à gestão dos recursos hídricos franceses, equivalendo a cerca 218 Alguns autores não deixam de ver, no entanto, a prevalência, nestes modelos, de um viés excessivamente tecnocrático, no qual o papel das bacias dos rios e lagos, como elementos agregadores de unidade territorial regional, enfeixando em torno de suas águas realidades mais complexas, de ordem social, cultural e ecológica, ficaria restrito, na forma de “unidades básicas de gerenciamento”. A própria água deixaria de ser vista, assim, em todos estes componentes, passando a ser tratada apenas em termos de “quantidades e qualidades”, como qualquer outro “recurso natural”.274 Promulgada a nova constituição do Rio Grande do Sul, seguiu-se o processo de regulamentação do sistema estadual de recursos hídricos, em atendimento às disposições do artigo 171. O trabalho teve início dentro da Comissão Consultiva do CONRHIRGS, a qual já congregava cerca de quarenta órgãos e entidades, do Estado e da sociedade civil. O processo de elaboração da proposta para a nova lei estadual de águas envolveu a realização de estágio junto aos comitês e agencias de bacia hidrográfica na França, em 1991. O anteprojeto da lei foi concluído em meados de 1992, iniciando-se uma etapa de contatos com diversas instâncias do poder público estadual e com diversos segmentos da sociedade civil, tais como representantes dos comitês do Sinos e do Gravataí, dos sindicatos, da indústria e da agricultura irrigada de arroz, com o objetivo de colher sugestões e comentários, bem como de intercâmbio com o grupo similar que estava elaborando a lei de águas do estado de São Paulo. Em agosto de 1994 o projeto de lei foi encaminhado à Assembleia Legislativa, sendo aprovado, por unanimidade, e sancionado pelo governador Alceu Collares, do PDT, como a Lei nº 10.350, de 30/12/1994, ou “Lei Gaúcha das Águas”. Os quadros envolvidos com a sua de 30 a 40 % dos investimentos realizados nas bacias em obras de controle de poluição. O processo é iniciado com o Comitê de Bacia estabelecendo objetivos de qualidade e de quantidade de água que deverão ser alcançados ao longo dos anos, com a assistência da Agência, e orientado pelos principais programas e interesses fixados pelas coletividades locais; (iii) Embora as questões mais gerais concernentes ao ambiente e ao uso múltiplo dos recursos hídricos sejam controladas pelo Governo Central, o controle direto sobre a execução dos serviços é altamente descentralizado em cerca de 36.000 autoridades locais e comunas, que podem se organizar em consórcios. Isto cria um mercado altamente competitivo, e oligopolizado, para a prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, dominado por quatro grandes empresas privadas (75% do abastecimento e 32% do esgotamento), algumas das quais se tornaram transnacionais. 274 LACORTE, Ana. Gerenciamento de bacias hidrográficas e planejamento territorial. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 6, janeiro 1996, pp. 5-6, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista6/paginas.html, acessado em março de 2012. A autora, geógrafa e mestre em planejamento urbano e regional (IPPUR / UFRJ), também questiona, em seu artigo, a pretensão, que atribui a estes modelos, de evitar os conflitos, ponto que pode ser contrastado, entre outros, pela explanação de Cánepa, Grassi, Soares Neto e Zorzi sobre a contribuição dada pela dinâmica de funcionamento dos comitês do Sinos e do Gravataí, à construção do modelo proposto para o Rio Grande do Sul (CÁNEPA, GRASSI, SOARES NETO, ZORZI, op. cit., pp. 6-7). O artigo apresentava uma síntese da dissertação de mestrado da autora, Gestão de Recursos Hídricos e Planejamento Territorial: as Experiências Brasileiras no Gerenciamento de Bacias Hidrográficas. 219 elaboração lamentaram, todavia, o baixo envolvimento do corpo legislativo estadual durante o período de tramitação da lei: Finalmente, em meados de 1994, o Executivo estadual, com o devido aval da Procuradoria Geral do Estado, e sem modificações no anteprojeto de “lei das águas” elaborado em 92, enviou-o para exame da Assembléia Legislativa. Embora tenha sido promovida, pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente do Parlamento Estadual, uma exposição sobre o sistema proposto no anteprojeto, ensejando a discussão sobre seus diversos aspectos, o tema não chegou a sensibilizar os deputados, não se verificando o esperado debate parlamentar que eventualmente trouxesse aperfeiçoamentos ao texto apresentado. [...] Terminamos, assim, o ano de 1994 com uma Lei que, por não ter sido debatida amplamente durante a tramitação no parlamento, terá agora que ser minuciosamente discutida durante o seu 275 processo de implantação. A nova lei foi aprovada de uma forma relativamente rápida, considerando-se a complexidade do tema e o alcance das modificações nela propostas, em especial a cobrança pelo uso da água retirada dos rios e pelo despejo nestes dos efluentes (“princípio usuário pagador”), mas isto não implicou na pronta implantação de seus dispositivos. Ao contrário, este processo foi bastante demorado, e etapas cruciais ainda não foram concluídas, até o presente momento (ano de 2012) como a própria implantação da cobrança da água pelos comitês de bacia. Entre a aprovação por unanimidade de uma legislação, suficientemente ampla para ser considerada como uma “carta de princípios”, e a sua aplicação, muitos passos precisariam, e ainda precisam, ser vencidos, tais como a falta de recursos para o funcionamento destes comitês e de seus órgãos de assessoramento técnico, as agências de região hidrográfica, e, principalmente, as resistências de diversos setores à cobrança pela água e à imposição de controles a seu uso.276 275 CÁNEPA, Eugenio Miguel, GRASSI, Luiz Antonio Timm, SOARES NETO, Percy B., ZORZI, Isidoro, op. cit., pp. 9-10. 276 Estes desdobramentos, além de serem antecipados, em parte, por Cánepa, Grassi, Soares Neto e Zorzi, foram tratados em artigo publicado na Revista Ecos, em 1996, um ano depois da promulgação da Lei Gaúcha das Águas. Disse seu autor, o jornalista de temas ambientais Amílcar Oliveira: “Aprovada a toque de caixa, a lei mexe com hábitos arraigados, decorrentes da apropriação costumeira e indiscriminada dos bens da natureza. A maioria dos dispositivos da lei ainda não foi regulamentada. Por isso, os lobbies têm tudo para ser pesados, quando os artigos mais polêmicos forem discutidos. Além disso, o Sistema Estadual de Recursos Hídricos (SERH) tem como diretriz a gestão integrada, descentralizada e participativa dos recursos hídricos do Estado. Ocorre aí uma das inovações radicais da lei: a comunidade, organizada em Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas (CGBH), é que estabelece as regras para utilização e preservação da água de uma bacia. [...] Para superar o atual estágio de desenvolvimento da gestão de recursos hídricos do Rio Grande do Sul é preciso organizar algumas instituições fundamentais criadas pela lei. Além dos Comitês de Bacia, a lei prevê a estruturação das Agências de Região Hidrográfica (ARH) – que prestarão apoio técnico aos Comitês – e do Departamento de Recursos Hídricos.” Ver: OLIVEIRA. Amílcar. Nova Lei Estadual das águas. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 6, janeiro 1996, pp. 15-17, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista6/paginas.html, acessado em março de 2012. 220 5.2. O Pró-Guaíba e a recuperação ambiental na Região Metropolitana de Porto Alegre: concepção, agentes envolvidos, resultados e limites A demanda de vários setores da sociedade gaúcha pela recuperação ambiental do Guaíba foi levada em conta durante o processo constituinte estadual, ao fim do período autoritário. Isto resultou na inclusão, nas disposições transitórias da Constituição Estadual de 1988, de um artigo prevendo a destinação de recursos para a despoluição da Bacia Hidrográfica do Guaíba, com a seguinte redação: Art. 56 - A lei que instituir o plano plurianual deverá prever, nos próximos vinte anos, recursos destinados a programas de despoluição do rio Guaíba e demais rios da Região Metropolitana e à manutenção da potabilidade e balneabilidade restabelecidas. Parágrafo único - A lei de diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais especificarão os recursos necessários, anualmente, para a implementação do programa previsto neste artigo. Neste momento, como visto em itens anteriores, o “Projeto Rio Guaíba” já estava muito próximo de ser extinto, deixando um legado de resultados muito inferiores aos previstos, em termos de ampliação da infraestrutura de esgotamento sanitário na região metropolitana de Porto Alegre, frente a problemas financeiros e de gestão, e a disputas por espaço entre o município (DMAE) e o estado (CORSAN). Ao lado disso, chegou-se a um impasse quanto à solução a ser adotada para o tratamento do esgoto doméstico da região central da cidade, lançado in natura, desde os anos 1970, no canal de navegação do grande lago, através de emissário instalado na Ponta da Cadeia, tanto em termos ambientais, quanto urbanísticos, e de governança. Ao mesmo tempo, o agravamento das condições ambientais de grande parte das águas da região tinha levado a uma crescente mobilização por parte de vários segmentos da sociedade local, incluindo o movimento ambientalista e quadros ligados à área de recursos hídricos, no governo e nas universidades, a qual resultou na criação dos primeiros comitês de bacia do estado, o do Rio dos Sinos o do Rio Gravataí. E também se iniciava um processo visando à criação de mecanismos para a gestão das águas, visando conciliar sua preservação e recuperação com os demais usos, de uma forma sustentável, inspirado em modelos como o da França, com a coparticipação do Estado e da sociedade. Este processo, que foi em boa medida liderado por quadros técnicos e gerenciais desta área, tomou impulso a partir da promulgação das novas constituições, federal e estaduais, e encontrava uma acolhida na conjuntura que passava a prevalecer, não só no Brasil, mais favorável a uma maior participação dos diferentes segmentos sociais e a uma menor intervenção direta do Estado. Foi dentro deste contexto que o governador do Rio Grande do Sul, Pedro Simon, do PMDB, assinou o Decreto n° 33.360, de 27 de 221 novembro de 1989, criando o Programa para o Desenvolvimento Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba, tendo em sua justificativa e objetivos a seguinte redação: DECRETO N° 33.360, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1989 Cria o Programa para o Desenvolvimento Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba, define a estrutura institucional para sua implementação e dá outras providências. O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, no uso de atribuição que lhe confere o artigo 82, inciso V, da Constituição do Estado, considerando a importância da região da Bacia Hidrográfica do Guaíba no território sul-riograndense, sob os aspectos espacial, demográfico, econômico, social e cultural; considerando a gravidade dos problemas ambientais nessa região, em função da concentração populacional e de atividades predatórias e poluidoras que ali se verificam; considerando a necessidade da adoção de um processo de tratamento integrado e coordenado para a recuperação do Guaíba e de seus formadores, induzindo o aproveitamento racional dos recursos não renováveis, e conciliando atividades produtivas com preservação ambiental, D E C R E T A: Art. 1°- Fica instituído o Programa para Desenvolvimento Racional, Recuperação e Gerenciamento Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba, com o objetivo de promover ações que propiciem a utilização racional dos recursos naturais e a preservação do equilíbrio ambiental, dentro do processo de desenvolvimento sócio-econômico na área da Bacia. Art. 2°- O Programa adotará, como estratégia de intervenção, ações voltadas ao planejamento e controle ambiental e ações de caráter emergencial, visando a minimizar os agudos problemas ambientais atualmente verificados. Art. 3°- São objetivos específicos do Programa: a) melhorar as condições hidrossanitárias e ambientais da sua área de abrangência; b) induzir a atuação do setor privado e das comunidades no sentido de uma utilização racional e não predatória dos recursos naturais; c) criar as condições necessárias para a consolidação de um sistema de informação e gerenciamento ambiental; d) capacitar o Poder Público para atuar na prevenção e fiscalizarão contra agressões ao meio ambiente, e no socorro às áreas atingidas por acidentes industriais; e) atender, em caráter emergencial, às áreas críticas da Bacia em relação a problemas ambientais. O programa, que logo passou a ser conhecido como “Pró-Guaíba”, não foi concebido, inicialmente, como um plano de caráter assim abrangente, ao contrário do que poderia sugerir o seu nome. Ao contrário, como pode ser visto nas principais fontes, o seu relatório de divulgação Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, publicado em 1998, e a Revista Ecos, foi concebido, inicialmente, como um programa voltado ao saneamento básico. Somente 222 depois de apresentado aos técnicos do BID, no processo de negociação para seu financiamento, o programa foi modificado, para ganhar as características mais amplas de um plano voltado não apenas para ações pontuais de recuperação, mas também para a gestão sustentável da bacia hidrográfica do Guaíba. O impacto das recomendações feitas pelo BID, que recebeu os primeiros documentos sobre o projeto em janeiro de 1990, foi assim descrito no texto desse relatório referente aos primeiros passos para a construção do “Pró-Guaíba”: A negociação com o BID começou, para valer, em outubro de 1990. Meses depois, uma missão de consultores do Banco chegou ao Rio Grande do Sul. Reuniram-se com técnicos, examinaram uma série de intenções que apontavam para a construção de sistemas de esgotos, recuperação de aterros sanitários, monitoramento ambiental e prevenção de acidentes ambientais. O veredicto dos técnicos [do BID] alertou para uma série de medidas complementares que deveriam atender a uma exigência técnica: mais do que um conjunto de projetos de engenharia, o programa precisava estabelecer uma política ambiental. A grande bacia necessitava de um plano integrado de gerenciamento, com definição de subprogramas de educação ambiental, um trabalho na área rural regulando o uso do solo e de agrotóxicos, uma maior atenção aos parques e reservas florestais, assim como uma série de ações 277 planejadas a longo prazo. O papel indutor de agências de fomento como o BID, no sentido de dar corpo ao que, no início, só aparecia como uma “carta de intenções” para a recuperação e gestão sustentável da bacia do Guaíba, mostra-se bastante claro, a partir deste relato. Uma análise, ainda que breve, dos fundamentos das políticas adotadas por estas instituições no sentido de priorizar projetos com estas características está muito além dos objetivos e possibilidades deste trabalho. Cabe destacar que a adequação do “Pró-Guaíba” aos moldes recomendados pelo BID, não apenas estava em sintonia com a visão que vinha sendo defendida pelos quadros técnicos e gerenciais da área de recursos hídricos, como visto anteriormente, e com as demandas dos integrantes do movimento ambientalista, e de outros setores da sociedade. A sua aprovação junto ao banco também representava uma opção efetiva de carrear recursos, em condições mais favoráveis de custos e prazos, 277 SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. Porto Alegre: Secretaria Executiva do Pró-Guaíba, 1998, pp. 33-34. O mesmo ponto foi abordado em artigo da Revista Ecos: “Quando foi idealizado, em 1989, no governo Pedro Simon, o programa era basicamente um projeto de saneamento, apesar do nome abrangente. Mas, já na passagem para o governo Alceu Collares, a missão da entidade financiadora, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), criou um impasse. Em sua primeira visita ao Brasil, os dois enviados do BID anunciaram: ou se desenvolvia um projeto básico de saneamento e se mudava o nome do programa, ou se mantinha o nome e realmente se fazia um projeto de gerenciamento ambiental. Isso significava que, além do saneamento, teria que tratar de questões relativas ao solo, às águas, ao ar, aos agrotóxicos, tudo o que, de uma forma ou outra, tivesse que ver com o meio ambiente. Optou-se por um projeto de gerenciamento ambiental.” Ver: VARGAS, Ademar, OLIVEIRA. Amílcar. Gaúchos apostam no Pró-Guaíba. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 6, janeiro 1996, pp. 20-24, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista6/paginas.html, acessado em março de 2012. Os autores são eco jornalistas. 223 para um estado, como o Rio Grande do Sul, então em grave crise financeira, apresentando uma dívida pública elevada e concentrada no curto prazo, e quase nenhuma capacidade de investimento. Isto tinha como uma de suas origens a existência de um desequilíbrio entre receitas e despesas, com a presença de déficits primários, da ordem de 15 a 20% da receita líquida real do estado, desde o início dos anos 1970, gerando uma crônica necessidade de endividamento, financiado, até quase o final do período, por meio da inflação. Situação esta que foi muito agravada a partir do início dos anos 1990, na esteira das medidas adotadas pelo governo federal na busca da estabilização econômica, entre estas o financiamento da dívida pública pela emissão de títulos remunerados por juros reais acima da inflação.278 A capacidade de captar recursos junto a agências internacionais de fomento, frente a esta conjuntura, foi vista como resultado do acerto político na formulação do “Pró-Guaíba”, no relatório do programa, publicado em 1998: A montagem do Módulo I do Pró-Guaíba e o planejamento das etapas posteriores ocorreram em contextos bastante diferentes. [...] A cada quatro anos, arranjos institucionais completamente diversos e mudanças nos quadros técnicos. Como pano de fundo dessa fragilidade institucional, o crescente endividamento do Estado. Num cenário com dificuldades dessa ordem, a captação de recursos junto a organismos internacionais torna-se uma questão complexa, sobretudo em se tratando de um programa abrangente, multidisciplinar e, ainda, executado por várias instituições. Nesse aspecto reside o mérito político do Pró-Guaíba, ou seja, a defesa do conceito de programa integrado e a obtenção de recursos do BID para um projeto que, à primeira vista, seria forte candidato a ser 279 “engavetado” por inviabilidade. A readequação do programa, para o atendimento das recomendações do BID, requereu a realização de uma série de estudos, envolvendo vários órgãos do governo estadual, como a FEPAM e a CORSAN, sob a liderança da Secretaria de Coordenação e Planejamento, tendo como objetivo o seu desdobramento em subprogramas e a identificação das diversas entidades a serem agregadas como co-executoras, entre estes o DMAE de Porto Alegre, e seus congêneres dos municípios de São Leopoldo e Caxias 278 Análises sobre a evolução das finanças públicas do estado do Rio Grande do Sul no período em que foi realizada a negociação com o BID para a concessão de financiamento para o programa “Pró-Guaíba” podem ser vistas em: (i) VASCONCELOS, José Romeu (coord.), FRAQUELLI, Antônio Carlos. Texto para Discussão nº 625 – Rio Grande do Sul: Economia, Finanças Públicas e Investimentos nos Anos de 1986/1996, disponível em http://www.ipea.gov.br/pub/td/td_99/td_625.pdf, acessado em março de 2012; (ii) SANTOS, Darcy Francisco, CALAZANS, Roberto. A Crise da Dívida Pública do RS: Fundamentos, Evolução e Perspectivas 1970-98, disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/Premio_TN/vpremio/divida/2afdpVPTN/SANTOS_CALAZANS.pdf, acessado em março de 2012, pp. 39-84. Este último trabalho também traz informações sobre o processo de renegociação da dívida pública do estado junto à União, realizado durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (pp. 69-84). Os recursos captados junto ao BID para a execução do primeiro módulo do “Pró-Guaíba”, no valor de US$ 110,2 milhões, seriam remunerados a uma taxa de juros de 6% ao ano (VARGAS, Ademar, OLIVEIRA. Amílcar, op. cit., p. 23). 279 SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba, op. cit., pp. 57-58. 224 do Sul. O “Pró-Guaíba” foi desdobrado em seis subprogramas: (i) estruturação e base legal; (ii) diagnóstico, estratégias de manejo (hidrográfico, atmosférico e de solo) e sistemas de monitoramento ambiental; (iii) prevenção e controle da contaminação industrial e doméstica; (iv) manejo dos recursos naturais renováveis e das áreas rurais; (v) parques e reservas naturais; (vi) educação ambiental. Estes subprogramas conduziram, logo em seguida, à criação de catorze projetos, envolvendo um total de onze entidades executoras (Figura 20). O Decreto nº 33360 foi substituído pelo Decreto nº 34047, de 21/09/1991, e, sob esta nova configuração, foi submetida uma cartaconsulta, ainda em 1991, ao BID, cuja diretoria aprovou o contrato de financiamento em outubro de 1993. Durante todo este período vinha ocorrendo a renegociação das dívidas do estado do Rio Grande do Sul com o governo federal, sendo obtido o aval da União para a assinatura do contrato com o BID apenas em julho de 1995, já no governo de Antonio Britto, do PMDB. Os recursos para custear o primeiro módulo do “PróGuaíba”, no valor de US$ 220,5 milhões, foram liberados em janeiro de 1996, dos quais 60% provenientes do financiamento do BID, e os restantes 40% das contrapartidas do estado e de outros co-executores, como a prefeitura de Porto Alegre. Neste momento, os responsáveis pela concepção do programa estimavam que a recuperação total da bacia hidrográfica do Guaíba deveria envolver um dispêndio total de cerca de 1 bilhão de dólares, o que determinava a divisão do “Pró-Guaíba” em quatro ou cinco módulos, a serem executados no horizonte de 15 a 20 anos, tendo em vista a grande diversidade de problemas, em cada uma de suas oito sub-bacias, mas, principalmente, a baixa capacidade de endividamento do estado do Rio Grande do Sul.280 Ainda que o programa tivesse adotado esta configuração mais ampla, uma grande parte dos recursos do primeiro módulo do “Pró-Guaíba”, quase 40% do total, foi destinada para obras de esgotamento sanitário em Porto Alegre e na região metropolitana (Figura 21). Entre as quais duas estações de tratamento e cerca de 600 quilômetros de redes, beneficiando 250 mil pessoas nos municípios de Gravataí e Cachoeirinha e retirando esta carga poluente do Rio Gravataí, além dos já mencionados sistemas da ETE São João/Navegantes e da Zona Sul, no bairro de Ipanema. Não foi possível incluir nesta primeira fase o sistema de tratamento dos esgotos da região central de Porto Alegre, devido às razões já mencionadas anteriormente, nos itens 3.3 e 4.3 deste trabalho. 280 Idem, pp. 35-36. Com respeito às expectativas de custos e prazos para a implantação de todo o programa, ver: VARGAS, Ademar, OLIVEIRA, op. cit., p. 23. 225 Figura 20. Projetos do “Pró-Guaíba” e entidades executoras Um programa com a complexidade e abrangência que o “Pró-Guaíba” assumiu, desde o início de seu processo de estruturação, teve impactos em várias instâncias da vida social da região, ainda que acabasse por ter o seu prosseguimento suspenso, ao final do primeiro módulo. Muitos destes impactos têm sido objeto de diversas análises e estudos, inclusive no âmbito acadêmico, em áreas como a geografia, a antropologia e as ciências econômicas, entre outras. Pretendo analisar aqui apenas um número limitado de aspectos relativos à implantação do programa e a seus resultados, dentro do enfoque geral adotado para este trabalho, deixando de lado pontos como as ações para o manejo rural e controle de agrotóxicos, e abordando apenas de passagem temas como o dos parques e reservas naturais na região metropolitana de Porto Alegre. O envolvimento conjunto da prefeitura de Porto Alegre e do governo de estado do Rio Grande do Sul na implantação do Módulo I do “Pró-Guaíba”, sob a liderança deste último, é um dos aspectos que pode ser avaliado, principalmente, mas não apenas, pelo fato de que, em boa parte do período, estas duas instâncias foram governadas por grupos de orientação político-partidária opostas. O PT e seus aliados estavam à frente da 226 prefeitura em todo o período, sendo oposição tanto ao governo do estado, especialmente durante o mandato de Antonio Britto, do PMDB, entre 1995 e 1998, quanto ao governo federal, até a posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2002. A divulgação do programa encontrou bom espaço na Revista Ecos, ao longo do período, em diversos artigos, reportagens e material de publicidade, ainda que não na capa. O teor e a frequência destas matérias podem servir como um indicativo da forma como foram conduzidas as interações entre estas duas instâncias, conquanto seja necessário levar em conta dois aspectos. Sendo publicada pelo DMAE, a revista, por um lado, expressava posições do governo municipal e do grupo partidário à sua frente, e, por outro, tratavase de um veículo direcionado a um público mais específico, de setores como o saneamento e o meio ambiente, e produzido, em boa parte, por quadros técnicos e gerenciais destas áreas e pelos chamados eco jornalistas, com baixa difusão no público em geral. Em setembro de 1995, logo depois da assinatura do contrato com o BID, a Revista Ecos veiculou uma peça publicitária da prefeitura de Porto Alegre, e do programa “Guaíba Vive”, com o título de “Porto Alegre saiu na frente”, na qual é ressaltado o esforço do município em dar início a obras de saneamento básico na cidade, como resultado das decisões da população, através do Orçamento Participativo, mesmo antes da liberação dos recursos para o “Pró-Guaíba”: Porto Alegre não esperou a liberação de recursos externos para investir no Pró-Guaíba. Com recursos próprios e de acordo com as decisões tomadas pela população, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre trabalha pela melhoria do rio desde 1989, com a criação do Programa Guaíba Vive. Depois veio a recuperação da Praia do Lami, a partir de 1992, e o início das obras do Pró-Guaíba, em 1994. Até agora foram gastos 4,9 milhões do DMAE com o Pró-Guaíba. Isto garantiu a construção de uma Estação de Bombeamento de Esgoto, o início de outra com conclusão prevista para outubro e a implantação de parte do interceptor de esgoto projetado para a baía de Ipanema. Estas são as únicas obras do PróGuaíba iniciadas até o momento em todo o Estado. [...] A prefeitura receberá cerca de 30 milhões de dólares para executar o Pró-Guaíba na capital gaúcha. Outros tantos já foram gastos com o desenvolvimento de projetos próprios, que estão melhorando a saúde do Guaíba agora. Entre eles estão o Projeto Dilúvio, o controle da poluição industrial e da qualidade do ar, o projeto Arroio Não é Valão, a coleta seletiva de lixo, a ampliação de 281 redes e estações de tratamento de esgoto. Porto Alegre saiu na frente. 281 Porto Alegre saiu na frente. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 5, setembro 1995, p. 2, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista6/paginas.html, acessado em março de 2012. Uma reportagem sobre as iniciativas para a recuperação do Arroio Dilúvio, na qual estavam envolvidos diversos órgãos da prefeitura de Porto Alegre, como o DEP e o DMLU, ONGs de defesa do meio ambiente e associações de moradores, pode ser vista em: PEREIRA, André. A grande luta pelo resgate de um arroio. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 3, janeiro 1995, pp. 20-25, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista3/paginas.html, acessado em março de 2012. 227 Figura 21. Quadro de Usos e Fontes do Módulo I do “Pró-Guaíba” (os valores são em US$, 1995) Em janeiro de 1996, na edição seguinte da revista, foi publicada uma matéria específica sobre o programa, “Gaúchos apostam no Pró-Guaíba”.282 A reportagem trazia declarações do secretário estadual de Coordenação e Planejamento, João Carlos Brum Torres, com respeito à complexidade organizacional do programa e das preocupações no sentido de evitar os erros cometidos em outros grandes programas desta natureza, como o Projeto Tietê, desenvolvido em São Paulo, no início dos anos 1990. E quanto ao sistema de controle de metas exigido pelo banco: “Os contratos de empréstimo firmados entre o Governo e o BID contém cláusulas expressas sobre a obrigatoriedade de o Estado apresentar relatórios antes, durante e após a execução dos módulos do programa”, declarou Brum Torres. Com respeito à participação do município de Porto 282 VARGAS, Ademar, OLIVEIRA. Amílcar, op. cit., pp. 20-24. 228 Alegre, a matéria destacava a contribuição dada pelo programa conduzido pela prefeitura no sentido de ampliar o escopo inicialmente previsto para o “Pró-Guaíba”: O Guaíba Vive, programa da Prefeitura de Porto Alegre, somou-se ao Pró-Guaíba. Atuam no mesmo plano, mas não se contrapõem. A estrutura do Guaíba Vive foi totalmente incorporada na estratégia do Pró-Guaíba, auxiliando na montagem de um programa que inicialmente era fundamentado exclusivamente em ações pontuais. E, a partir daí, ampliou [o] conceito para a necessidade de trabalhar a gestão dos mananciais. A reportagem também apresentava as preocupações dos responsáveis no município pelo saneamento básico, com respeito à necessidade de integrar as iniciativas desta área dentro de um conceito mais abrangente de gestão urbana no âmbito das bacias hidrográficas: “A Administração Popular iniciou sua participação no Pró-Guaíba com a intenção de retomar um processo há muito tempo esquecido na cidade, o de investir em esgoto sanitário e tratamento de esgotos”, explica Dieter Wartchow. Então foi delineada a estratégia para integrar outros segmentos: limpeza urbana, drenagem, controle de áreas de risco, educação ambiental, abastecimento de água. Outro aspecto a ser considerado aqui diz respeito às interações que existiram entre o “Pró-Guaíba”, o sistema de gestão de recursos hídricos do estado do Rio Grande do Sul, que na data da assinatura do contrato com o BID para o financiamento do Módulo I estava em fase inicial de implantação, e os comitês de bacia já existentes na região metropolitana de Porto Alegre, bem como o envolvimento de integrantes de diversos setores da sociedade civil com o programa. Os comitês do Rio dos Sinos e do Rio Gravataí integraram o Conselho Deliberativo do “Pró-Guaíba”, ao lado de sete secretarias estaduais, da prefeitura municipal de Porto Alegre, de três ONGs e da representação dos demais municípios do estado, através da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS). A busca de uma participação mais ampla da sociedade local na definição dos rumos do programa se deu durante o processo de elaboração do Plano Diretor de Controle e Administração Ambiental, um dos catorze projetos integrantes do primeiro módulo do “Pró-Guaíba”. Inicialmente, sua elaboração deveria ficar a cargo de uma empresa de consultoria, sendo logo delegada a uma equipe técnica coordenada pelo secretário executivo do Conselho de Recursos Hídricos do Estado, apoiada por representantes da METROPLAN, da FEPAM, das ONGs de atuação na área da bacia hidrográfica e pela consultora contratada para o gerenciamento e apoio técnico ao programa, a Ecoplan, além de consultores autônomos. Este grupo de trabalho formulou as linhas mais gerais do Plano Diretor, mas, diz o relatório de 1998 sobre programa, “persistia a necessidade de elaborar um diagnóstico mais amplo e representativo.” Em 1996, o Conselho Deliberativo do “Pró-Guaíba” assumiu esta responsabilidade, a ele 229 transferida pelo secretário executivo do programa, Luiz Corrêa Noronha, atendendo a uma decisão política, dentro dos seguintes termos: O Conselho decidiu: a) assumir como sua diretriz a articulação institucional do Pró-Guaíba com o Sistema de Recursos Hídricos, b) definiu as seguintes diretrizes básicas para a elaboração do Plano; 1) o Plano deverá conter um diagnóstico da Bacia, elaborado a partir das informações existentes, atualizadas e complementadas quando necessário, 2) esse diagnóstico deverá ser discutido com a sociedade em um seminário geral, 3) a partir do diagnóstico consolidado serão elencadas estratégias e ações de enfrentamento dos problemas identificados, 4) essas estratégias e ações deverão ser debatidas com a sociedade, regionalmente, tendo como base física as sub-bacias definidas pelo CRH-RS, e a base institucional os Comitês de Gerenciamento, 5) as discussões regionais servirão também para 283 a definição das prioridades, indicando assim as ações que integrarão o Módulo II. O processo de elaboração do diagnóstico e definição de prioridades para a região da bacia hidrográfica do Guaíba, e suas sub-bacias, realizou-se, assim, com o trabalho inicial de técnicos e especialistas sendo enriquecido pelas contribuições de representantes das prefeituras, universidades, sindicatos e outras entidades estatais ou não governamentais da região, como descrito no relatório sobre o programa: Os próximos passos foram a contratação de especialistas para cada uma das áreas que necessitavam maior aprofundamento e a realização de um evento gerador de novas informações para o diagnóstico. Em abril de 1997, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, reuniram-se mais de 300 representantes de prefeituras do interior do Estado, entidades governamentais e não-governamentais, universidades, sindicatos e associações de classe. Ao final do encontro, os organizadores haviam reunido um elenco de dados e sugestões. O processo teve continuidade num seminário realizado na Sociedade de Engenharia de Porto Alegre, em meados do mesmo ano, para um grupo menor, eclético, que contava com especialistas em meio ambiente e também com generalistas. O objetivo era aprofundar a investigação sobre aspectos ainda não contemplados no diagnóstico preliminar. [...] Em função da abrangência geográfica do Pró-Guaíba, o Conselho Deliberativo decidiu ouvir também as comunidades das sub-bacias, em seminários abertos à participação popular. A metodologia seria a mesma, assim como a pergunta-chave: o que é importante fazer para recuperar a Bacia do Guaíba? Foram oito encontros regionais [...] Outra característica importante dos eventos regionais foi a oportunidade dada a todos os participantes de apresentar propostas e defendê-las em público. O processo permitiu a inclusão de itens 284 importantes, como a pesquisa [...] que não constava no plano de ações do Módulo I. A visão dos quadros técnicos e gerenciais responsáveis pela elaboração do Plano Diretor com respeito às metodologias utilizadas e aos resultados obtidos com a participação de representantes da sociedade civil pode ser encontrada em um trabalho apresentado em evento da área de engenharia sanitária, Plano Diretor de Controle e Administração Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba. Os autores tratam a etapa 283 Ata da 3ª Reunião Extraordinária do Conselho Deliberativo do “Pró-Guaíba” (Ver: GIUGNO, Nanci Begnini et. al., IX-018 - Plano Diretor de Controle e Administração Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba. In: XXVII Congresso Interamericano de Engenharia Sanitária e Ambiental. ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, 1998, p.3, disponível em http://www.bvsde.paho.org/bvsaidis/saneab/ix-018.pdf, acessado em março de 2012). 284 SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba, op. cit., pp. 58-59. 230 de elaboração do diagnóstico para o plano diretor como um “processo de construção coletiva”: Criadas, política, técnica e institucionalmente, as condições para a aplicação da metodologia que previu a realização dos encontros e debates, estruturou-se eventos que visavam dialogar com diferentes setores da comunidade e especialistas, formando a base de informações para subsidiar os trabalhos dos Conselheiros. O evento que caracterizou o início do amplo processo de participação social nunca dantes experimentado no planejamento de um projeto de gestão ambiental da magnitude do Pró-Guaíba, foi o Seminário de abrangência estadual realizado na Assembléia Legislativa do Estado em 02 de abril de 1997, estruturado para atingir duas finalidades básicas; a de explicar a toda a sociedade civil da Região Hidrográfica e aos poderes públicos municipais e estadual, inclusive aos co-executores, a metodologia a ser utilizada na elaboração do Plano Diretor, aprovada pelo Conselho Deliberativo do Programa (a construção do produto final através de um processo amplamente participativo, a vinculação com a estrutura institucional e com os métodos utilizados pelo Sistema de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul, o arranjo institucional proposto para a coordenação do processo, e a de apresentar os resultados parciais dos estudos realizados a título de diagnóstico, de maneira que a sociedade da Região Hidrográfica, aí representada pelas Prefeituras Municipais, pelas organizações comunitárias, pelas associações técnico-científicas, pelas Câmaras Municipais, pelos órgãos públicos do Estado (especialmente pelos co-executores do Módulo I), pelas organizações ambientalistas, etc., pudesse avaliar a pertinência e a correção desses estudos, e fazer sugestões. [...] Como resultado positivo, o evento contou com a presença de cento e quarenta e nove instituições inscritas, representando as mais diferentes organizações da sociedade civil, bem como órgãos públicos do Estado engajados e prefeituras, cobrindo de maneira bastante equilibrada a Região Hidrográfica em termos espaciais (08 na sub-bacia Alto Jacuí, 18 na do TaquaríAntas, 15 na do Caí, 37 na do Gravataí, 28 na do Guaíba, 05 na do Pardo/Baixo-Jacuí, 32 na dos Sinos e 06 na do Vacacaí, evidenciando o maior número de interessados naquelas bacias que possuíam o Comitê de Gerenciamento já estruturado). Como, síntese do evento é possível afirmar que muito embora a descrença e a discordância da tecnocracia e a incredulidade de uma sociedade pouco acostumada a participar e a acompanhar o trabalho técnico, esse Seminário além de definir o início de um longo trabalho, coletivo e negociado, marcou, em nível nacional, uma revolução nos procedimentos de planejamento, programação e construção da ação do poder público no âmbito dos programas de gerenciamento ambiental tendo como base espacial a bacia hidrográfica e fomentou a 285 criação de novos Comitês de Gerenciamento conforme a legislação gaúcha das águas. A visão destes quadros com respeito ao caráter do processo pode ser endossada, com efeito, na medida em que os encontros regionais permitiram evidenciar a gravidade do quadro existente com respeito ao saneamento básico. Este tema foi eleito como alta prioridade em sete das oito sub-bacias da região hidrográfica do Guaíba. A única exceção foi a do Vacacaí, situada em área de baixa densidade populacional, e com economia baseada na pecuária extensiva. Todas consideraram a educação ambiental 285 GIUGNO, Nanci Begnini et. al., op. cit., pp. 8-9. A engenheira civil e especialista em planejamento Nanci Begnini Giugno, atual presidente da ABES-RS, atuou na METROPLAN e presidiu o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba. Os demais autores, e integrantes do grupo envolvido com a etapa de elaboração do diagnóstico para o Plano Diretor de Controle e Administração Ambiental da Região Hidrográfica do Guaíba foram: Ana Rosa Severo Bered, arquiteta e especialista em planejamento ambiental (FEPAM); Marcio Rosa Rodrigues de Freitas, engenheiro civil e especialista em saúde pública (CORSAN); Maria Lucia Coelho Silva, engenheira química e especialista em ecologia humana (FEPAM); Paulo Renato Paim, engenheiro civil e especialista em saneamento ambiental, então presidindo o COMITESINOS (METROPLAN); Julio Cesar Volpi, engenheiro agrônomo e mestre em planejamento urbano e regional (METROPLAN); Percy B. Soares Neto, administrador e especialista em economia ambiental, então secretário-executivo do “Pró-Guaíba”. 231 como altamente prioritária, e a atividade agrícola foi vista do mesmo modo nas quatro sub-bacias onde esta é mais desenvolvida, Caí, Taquari/Antas, Alto Jacuí e Pardo/Baixo Jacuí. As áreas de preservação foram vistas como alta prioridade apenas nas sub-bacias do Sinos e do Gravataí, talvez não por acaso as áreas com maior degradação de suas águas, e onde já despontava um ativismo voltado à proteção do meio ambiente, mas como um tema merecedor de média prioridade nas demais, com exceção da sub-bacia do Pardo/Baixo Jacuí.286 Um dos subprogramas do “Pró-Guaíba” dizia respeito aos parques e reservas naturais, tendo como um dos objetivos principais a manutenção da biodiversidade, através da proteção de áreas representativas dos ecossistemas mais frágeis da região, e sendo conduzidos pela Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB) e pelo Departamento de Recursos Naturais Renováveis do Rio Grande do Sul (DRNR). O diagnóstico inicial do programa indicou que apenas 0,6% da área total da bacia hidrográfica estavam protegidas em áreas de conservação, mas a maior parte destas ainda não estava efetivamente implantada. No Módulo I, foram incluídos dois projetos, visando à consolidação de quatro áreas consideradas de grande importância ecológica, na Região Metropolitana de Porto Alegre: o Jardim Botânico da capital, o Parque Zoológico, situado entre os municípios de Sapucaia do Sul e São Leopoldo, o Parque Estadual Delta do Jacuí, que compreende áreas nos municípios de Eldorado do Sul, Canoas, Triunfo e Porto Alegre, e o Parque Estadual de Itapuã, em Viamão, com investimentos de US$ 12,3 milhões. No interior destes dois parques havia ocupação humana, para moradia, trabalho e atividades de lazer, anterior, em muitos casos, à sua criação, com maior densidade no Delta do Jacuí, especialmente nas ilhas situadas em frente ao centro da cidade de Porto Alegre, formando o bairro Arquipélago. Os investimentos no Parque Estadual do Delta do Jacuí diziam respeito à implantação de infraestruturas administrativa, cultural e de lazer, à avaliação da fauna e da flora existente e ao zoneamento das áreas ocupadas para posterior adequação ao plano de manejo a ser estabelecido para esta unidade de conservação, que ocupa uma 286 Idem, pp. 14-15, e Quadro I – Prioridades/Temas/Bacias. Com respeito às ações institucionais, comentam os autores: “As questões institucionais envolvendo o papel dos poderes públicos na construção e implementação de políticas públicas, as relações entre as diferentes esferas de governo, as interrelações entre órgãos do mesmo nível de governo, etc., foram apontadas em todos os eventos. Consideradas de alta prioridade nos Encontros de três bacias, refletiram a necessidade de implementação, no âmbito da Região Hidrográfica, de um arranjo institucional que possibilite maior agilidade e eficiência nas ações relativas à questão ambiental, especialmente no que se refere à compatibilização e à viabilização da implantação do Sistema de Recursos Hídricos. Saliente-se que algumas propostas apresentadas nos demais setores estão permeadas com ações institucionais, o que deve ser considerado na interpretação desta análise.” 232 área em torno de 16 mil hectares. A região do Delta do Jacuí apresenta características bastante complexas, devido ao fato de abrigar um das poucas áreas com flora e fauna nativas preservadas, num ecossistema de banhados e matas tropicais, conhecido, mesmo, como o “Pantanal Gaúcho”, em meio a uma aglomeração urbana de quase três milhões de habitantes (Figura 22). O conjunto de ilhas exerce um papel muito importante no equilíbrio natural da região metropolitana, com sua vegetação contribuindo para estabilizar a temperatura e a umidade, e com seus banhados retendo as águas em épocas de chuvas, minimizando a ocorrência das enchentes. A área do Delta abriga tanto comunidades mais “tradicionais”, de pescadores, de migrantes recentes, muitos vivendo da coleta e reciclagem do lixo urbano, bem como casas e clubes para veraneio, às margens de suas águas, tendo as duas últimas se intensificado nos últimos tempos, com a população total do bairro Arquipélago chegando a 5.100 pessoas, no censo de 2000.287 Nestas condições, as iniciativas no sentido de estabelecer um disciplinamento na utilização das diversas áreas desta unidade de conservação, envolvendo, em muitos casos, a remoção de moradores, permanentes ou eventuais, e de benfeitorias, iriam ocasionar uma série de conflitos. Estes opuseram, muitas vezes, setores do poder público, com o apoio ou, mesmo, a pressão de uma parte das entidades ambientalistas, priorizando uma visão mais estritamente preservacionista, a parcelas das comunidades locais, que contavam com apoios em outros setores do poder público e de entidades diversas, algumas entre estas também inseridas no movimento ambientalista, priorizando uma visão mais equilibrada dos interesses em disputa. A implantação do Parque do Delta do Jacuí tem sido objeto de vários trabalhos no âmbito acadêmico, alguns dos quais exploram as inter-relações existentes entre as questões sociais e as ambientais, no que o antropólogo José Sérgio Leite Lopes identificou como uma tendência à “ambientalização” de conflitos sociais.288 Um exame mais aprofundado 287 Informações com respeito ao processo de ocupação de partes da área do parque e as propostas para o seu manejo, bem como sobre as expectativas existentes no sentido da exploração de atividades como o turismo ecológico podem ser vistas no artigo Delta do Jacuí, a vida em movimento, publicado em 1995, logo depois da assinatura do contrato com o BID para o financiamento do Módulo I do “Pró-Guaíba” (Ver: OLIVEIRA, Amílcar, VARGAS, Ademar. Delta do Jacuí, a vida em movimento. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 5, setembro 1995, pp. 32-35, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista5/paginas.html, acessado em março de 2012). 288 LOPES, José Sérgio Leite. Sobre processos de “ambientalização” dos conflitos e sobre os dilemas da participação. In: ECKERT, Cornelia, ROCHA, Ana Luiza Carvalho da, CARVALHO, Isabel Cristina de Moura (org.). Horizontes Antropológicos. Ano 12 Nº 25. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 2006, p. 36. Trata-se, conforme o autor, de “um processo histórico de ambientalização, de interiorização e naturalização de uma nova questão pública”. Lopes abordou este mesmo tema em palestra proferida em 233 deste tema não é feito aqui, tendo em conta, em primeiro lugar, que o mesmo já foi amplamente abordado, inclusive dentro de um enfoque próximo ao da história, nestes trabalhos. Mas também em razão de que esta área, ao contrário de Itapuã e de outras paisagens à margem esquerda do Guaíba, não apresenta características praianas, afastando-se, assim, de um dos focos pretendidos para o estudo, a relação da cidade com suas praias. É necessário, no entanto, citar dois destes trabalhos, recentemente produzidos: Conflitos socioambientais em áreas protegidas: interesses e estratégias nas disputas pela legitimidade na redefinição do Parque Estadual Delta do Jacuí-RS, de Patrícia Moreira Cardoso, e A “questão ambiental” sob a ótica da antropologia dos grupos urbanos, nas ilhas do Parque Estadual Delta do Jacuí, Bairro Arquipélago, Porto Alegre, RS, de Rafael Victorino Devos. Os autores se aproximam, aqui, de uma visão mais equidistante destes conflitos, mostrando em que medida muitos dos moradores de locais que são considerados por técnicos e ativistas vinculados a um enfoque mais “preservacionista” como “áreas de risco” passam a internalizar como também suas as demandas no sentido da proteção do meio ambiente. E a incorporar valores e ideias em favor da preservação ambiental no seu repertório de discursos, mas também de práticas, na defesa de seus direitos.289 A outra grande unidade de conservação contemplada pelo “Pró-Guaíba” foi o Parque Estadual de Itapuã, ocupando 5,6 mil hectares, no município de Viamão, na confluência entre a margem esquerda do Lago Guaíba e a Laguna dos Patos, cerca de 60 quilômetros ao sul da capital. Região com paisagens belas e variadas, apresentando praias e morros, ladeados por formações ainda preservadas de flora e fauna da mata atlântica, as situadas mais ao sul no Brasil, possui também locais com valor histórico, como o próprio Farol de Itapuã, construído no século XIX, e a presença de sítios arqueológicos das tradições Umbu e Tupi-Guarani (Figura 5.4.).290 A preservação desta área, com a criação de um parque estadual, foi uma das primeiras reivindicações do “movimento ambientalista” no Rio Grande do Sul, conduzida através de ONGs como a 11/06/2010, em Porto Alegre, como parte do Projeto “Habitantes do Arroio – Estudo de conflitos de uso de águas urbanas, risco, saúde pública e comunidades étnicas em Porto Alegre-RS”, desenvolvido pelo BIEV – Laboratório de Antropologia Social – UFRGS. 289 (i) CARDOSO, Patrícia Moreira, op. cit.; (ii) DEVOS, Rafael Victorino. A "questão ambiental" sob a ótica da antropologia dos grupos urbanos, nas ilhas do Parque Estadual Delta do Jacuí, Bairro Arquipélago, Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado em Antropologia Social, UFRGS. Porto Alegre, 2007. Disponível em http://hdl.handle.net/10183/8688, acessado em julho de 2010. 290 ILHA, Flávio. Um tesouro que renasce das cinzas. In: Revista Ecos. Porto Alegre: DMAE, n° 19, janeiro 2001, pp. 16-18, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/revista19/paginas.html, acessado em março de 2012. 234 Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), desde os anos 1970, tendo como seus focos principais, então, o fim das pedreiras que lá funcionavam ilegalmente, bem como a caça a animais em extinção, como os bugios, e a ocupação das praias por casas de veraneio, especialmente na Praia de Fora, às margens da Laguna dos Patos. O governo do Rio Grande do Sul decretou a criação do Parque Estadual de Itapuã em 1973, mas a sua implantação efetiva envolveu um processo demorado, incluindo a desapropriação de antigos proprietários, e o fechamento total da área do parque, a partir de 1991, visto como única forma de interromper as atividades irregulares, e permitir a preservação da área, com a remoção das cerca de 800 casas de veraneio lá instaladas clandestinamente. Tendo como objetivo conseguir que as autoridades tomassem as medidas necessárias para viabilizar a implantação do parque, foi criada, em 1985 uma comissão integrada por representantes de ONGs de defesa do meio ambiente e estudantes universitários, a Comissão de Luta pela Efetivação do Parque Estadual de Itapuã (CLEPEI). Em 1997, com o aporte dos recursos do Módulo I do “Pró-Guaíba”, o governo estadual iniciou o processo de efetiva implantação do parque, que incluiu o pagamento de indenizações para antigos proprietários, bem como o cadastramento e remoção dos pescadores que lá viviam, aos quais foi permitido que continuassem a pescar naquela área. O Parque Estadual de Itapuã foi reaberto à visitação pública em 2002, depois da contratação de pessoal especializado e da instalação de infraestrutura de administração, controle e lazer, como a instalação de vestiários e churrasqueiras nas três praias liberadas, a de Fora e duas no Guaíba, Pedreira e das Pombas (Figura 24). O processo de implantação do Parque Estadual de Itapuã não vem sendo estudado com intensidade comparável ao do Delta do Jacuí, o que pode ser explicado, ao menos em parte, pelo fato deste último estar bem mais próximo ao centro da cidade de Porto Alegre, e em área mais densamente povoada, na qual os conflitos socioambientais afloram com mais intensidade e visibilidade. Se as disputas com respeito à área de Itapuã foram menos intensas, ou, por outra, menos visíveis, o processo correspondente não deixou, por isso, de chamar a atenção para certos aspectos, permitindo, mesmo, identificar diferentes formas de posicionamento frente à presença de paisagens como a das praias existentes nos limites deste parque. Neste sentido, em particular, pode ser bastante esclarecedora a leitura de alguns textos, como o do jornalista Flávio Ilha, Um tesouro que renasce das cinzas, publicado em 2001 na Revista Ecos. Enquadrado na rubrica “ambiente”, o artigo, voltado para divulgar a reabertura próxima do parque, como “modelo da nova política de conservação do 235 Estado”, começa com o autor fazendo um relato da situação existente nesta área antes do seu fechamento, em 1991: Há pouco mais de dez anos, num domingo ensolarado de verão, mais de dez mil pessoas se espalhavam pelas praias limpas e calmas de um dos ecossistemas mais ricos do Estado. Assavam churrasco, andavam de carro, depredavam a vegetação, usufruíam do espaço como se fosse uma estação de turismo. Não era. O Parque Estadual de Itapuã completou 27 anos em 2000 mas quase foi destruído pela ocupação predatória permitida ao longo de quase toda a sua existência. Figura 22. Parque Estadual do Delta do Jacuí (Área de Proteção Ambiental Estadual) O autor prossegue, sinalizando como deverá ser a nova forma de utilização permitida para as praias do Parque de Itapuã, e, antes de mais nada, o que será, a partir de então, proibido: Para começar, não há uma data certa para a reabertura do parque, mas uma coisa já se sabe: o Parque Estadual de Itapuã nunca mais será invadido por hordas de turistas em busca de uma sombra de árvore onde assar seu churrasco e ouvir sua música. Para isso existem outros locais na região metropolitana de Porto Alegre, como os parques urbanos. Mas Itapuã continuará sendo, em parte, um local de lazer e turismo. Em parte porque, das oito praias que compõem o complexo de 5.500 hectares às margens da Laguna dos Patos, cinco estarão fechadas à visitação. Em apenas três haverá circulação de turistas e visitantes, ainda assim limitados a 1.400 pessoas por dia. [...] Serão lugares de turismo ecológico, onde a presença de público não interferirá no ecossistema da região. Nas outras praias será permitida apenas a presença de pesquisadores e de grupos interessados na educação ambiental. 236 Figura 23. Parque Estadual de Itapuã – Praia do Araçá e o Farol de Itapuã, ao fundo, a entrada do Guaíba na Laguna dos Patos e a Ponta da Formiga Muito embora as propostas para o manejo da área não excluam a possibilidade de acesso limitado às praias, o texto traduz uma visão muito próxima da “preservacionista”, na medida em que atribui ao público em geral uma incapacidade de conviver em liberdade com paisagens como a de Itapuã, sem causar devastação, ao menos no curto prazo. A matéria ainda apresenta declarações do então responsável pela Divisão de Unidades de Conservação da recém criada Secretaria Estadual do Meio Ambiente, Rogério Guimarães Só de Castro, sobre a política a ser adotada para as demais unidades de conservação do estado, bem como aventando possíveis alternativas de exploração econômica da região no entorno do parque, como a instalação de pousadas na vila de Itapuã, artesanato e passeios de barco: “Não queremos planos mirabolantes de aproveitamento. A geração de renda deve ser apenas uma das possibilidades de integração da comunidade, senão o parque perde sua função de conservação”. O Parque Estadual de Itapuã é visitado com certa intensidade por moradores de Porto Alegre e região metropolitana, desde a sua reabertura, o mesmo correndo com a vila de Itapuã, ainda pertencente a Viamão, com o incremento de atividades como as previstas por Castro. Mas esta unidade de conservação ainda vem sofrendo com a falta de recursos, que impede, por muitas vezes, a abertura ao público de locais como a Praia de Fora, e, ao lado disso, ainda persistem, em alguns setores, 237 opiniões contrárias ao acesso a estas áreas, com base em argumentos não muito distantes dos defendidos no artigo de Flávio Ilha.291 Figura 24. Parque Estadual de Itapuã – Praia das Pombas O processo de retirada de antigos moradores da área que passou a constituir este parque estadual, criado em 1973, não ocorreu sem perdas. Na Praia de Fora, a remoção do balneário ali criado, de forma ilegal, ao longo dos anos 1970 e 1980, deixou como vestígio, em 1997, apenas o prédio de uma igreja, construída em 1983, por doação de um dos integrantes da “Sociedade dos Amigos da Praia de Fora”. Havia mais de cento e trinta famílias residindo, até essa época, nas praias das Pombas, do Sítio e da Pedreira, em grande parte de pescadores, como Vitalino da Silva Lemos, então com 71 anos, e Jorge Alberto de Castro, 48, além de descendentes dos primeiros colonizadores da região de Itapuã, como Dorival Soares da Silva, 78. Todos foram indenizados, depois de vários anos de espera, mas tiveram de abandonar a área do parque (Figura 25). Como tantos outros no território brasileiro, o topônimo “Itapuã” tem origem no tupi-guarani, significando “ponta de pedra”, e a presença de antepassados dos atuais Mbyá-Guarani na área que hoje pertence ao parque estadual é atestada pela existência de sítios arqueológicos. 291 Por outro lado, o histórico de implementação do Parque Com respeito à falta de recursos para o pleno funcionamento do Parque Estadual de Itapuã, bem como à existência, ainda em 2012, de pessoas com opinião contrária à abertura de algumas de suas praias, ver: PRESTES, Felipe. Governo do Estado quer reabrir Praia de Fora, em Itapuã, ainda neste verão. In: Portal Sul 21, Porto Alegre, 09/01/2012, disponível em http://sul21.com.br/jornal/2012/01/governo-do-estadoquer-reabrir-praia-de-fora-em-itapua-ainda-neste-verao/, acessado em março de 2012. Um dos comentários a esta matéria: “Tem que abrir nada. Pra encher de gente mal-educada pra destruir a natureza? O Lami é um exemplo. Deixem a natureza se recuperar. Quem sabe daqui a 20 anos haja educação para a cambada frequentar a praia.” 238 Estadual de Itapuã, apresentado no seu Plano de Manejo, de 1997, não menciona a presença de comunidades desta etnia na região, quando da criação do parque. No entanto, uma pesquisa que resultou numa dissertação de mestrado, de 2008, concluiu que os Mbyá-Guarani ocupavam uma parte da área que hoje integra o parque na década de 1970, quando da sua criação, formando, pelo menos, duas aldeias. Depois de concluída a implantação do parque, a comunidade Mbyá-Guarani local vive em aldeia situada no seu entorno, mas ainda há uma situação de litígio. Os indígenas demandaram direitos de exercer atividades de subsistência no seu interior, bem como por maior assistência do poder público, aos responsáveis pela gestão do parque, sendo contrapostos pelos representantes do movimento ambientalista, o que resultou em tentativas de negociação mediadas pelo Ministério Público Federal.292 Figura 25. Remoção de antigos moradores da área do Parque Estadual de Itapuã O “Pró-Guaíba” deveria englobar um conjunto de iniciativas que se estenderiam durante cerca de vinte anos, como visto anteriormente. No entanto, o programa terminou por ser virtualmente interrompido, ao final de sua primeira etapa, nos primeiros anos da década de 2000, uma situação que se mantém até o momento presente. A suspensão do programa teve como causa alegada a difícil situação das finanças públicas do estado do Rio Grande do Sul, que têm levado, nas últimas décadas, 292 Ver: COELHO DE SOUZA, G. et. al. "Itapuã dos farrapos, dos índios e de todos nós": sobreposição entre terras Mbyá-Guarani e unidades de conservação em território transfronteiriço. In: VIII Reunião de Antropologia do MERCOSUL GT 11: Guaraníes y estados nacionales. Cuestiones de ciudadanía. Buenos Aires, outubro 2009, disponível em http://www6.ufrgs.br/pgdr/arquivos/703.pdf, acessado em março de 2012. Com respeito à presença dos Mbyá-Guarani na área do Parque Estadual de Itapuã, nos anos 1970, os autores citam: COMANDULLI, C. Protectionists and the Guaraní: the village that did not exist. Socioenvironmental conflict in Southern Brazil. Tese de mestrado, University College London, 2008. 239 a uma incapacidade quase crônica de realizar investimentos, quer com recursos próprios, quer por meio de financiamentos externos. Deste modo, a partir do ano de 1999, quando o Módulo I do “Pró-Guaíba” ainda estava sendo executado, o governo do estado começou a enfrentar as primeiras dificuldades para obter os repasses dos agentes financeiros internacionais, que foram alertados pelo governo federal com respeito ao alto risco de inadimplência do Rio Grande do Sul com a União. Poucos meses depois de concluída a renegociação da sua dívida com o governo federal, o estado voltava a se encontrar em situação de estrangulamento, com o aumento do seu montante, em decorrência de uma combinação de diversos fatores, entre os quais a continuada existência de déficits primários.293 Um balanço do “Pró-Guaíba”, no momento em que o seu Módulo I estava sendo concluído, em 2004, contabilizava uma série de realizações, como foi mostrado em reportagem publicada no jornal Zero Hora, ao lado de informações sobre o impasse com respeito à obtenção do financiamento do Módulo II com o BID, Pró-Guaíba chega aos 10 anos perdendo fôlego. No que se refere ao saneamento básico, podiam ser destacados os pontos seguintes, alguns dos quais já mencionados anteriormente: (i) a ETE Cachoeirinha/Gravataí, e sistemas associados, incluindo 635 quilômetros de redes de esgotos, nestes dois municípios (Figura 26); (ii) a ETE São João/Navegantes; (iii) o sistema de resíduos sólidos de Porto Alegre, incluindo o aterro sanitário da zona norte da capital; (iv) os sistemas de tratamento de esgotos de Ipanema e de Belém Novo. Com estes investimentos, a população beneficiada por esgoto tratado na região metropolitana de Porto Alegre subiu de 273 mil, em 1998, para 650 mil, em 2003, e houve uma redução de 12% para 6,7% da população desta região com ligações inadequadas à rede de esgotos cloacais, segundo esta fonte. O controle da poluição industrial também 293 Com respeito à evolução das finanças públicas do estado do Rio Grande do Sul, com o aumento do estoque da dívida e a incapacidade de captar novos recursos, ver: SANTOS, Darcy Francisco Carvalho dos, CALAZANS, Roberto. Alternativas para a renegociação do Acordo da Dívida do RS . Porto Alegre, s/d, disponível em http://www.seplag.rs.gov.br/upload/Alternativas1.pdf, acessado em março de 2012. Conforme os autores, que são agentes fiscais do tesouro do estado do Rio Grande do Sul, “[...] cabe registrar que, a partir de 1999, o crescimento do estoque da dívida sofreu a influência do indexador, o IGP-DI, que se elevou muito mais que qualquer indicador de preços ao consumidor (IPCA, por exemplo). [...] Igualmente contribuiu para esse crescimento o acúmulo de resíduos provenientes do valor das prestações excedentes ao limite de 13% da RLR [receita líquida real].” Com respeito às dificuldades enfrentadas pelo “Pró-Guaíba” a partir de 1999, ver: NETTO, Andrei, CUSTÓDIO, Aline. Pró-Guaíba chega aos 10 anos perdendo fôlego (reportagem especial). In: Zero Hora. Porto Alegre, 5 de junho de 2004, pp. 4-5: “No ano em que o Módulo I do Pró-Guaíba deveria ser encerrado, o BID suspende os repasses para o Estado, afetando as obras. O BID e o Banco Mundial bloquearam os empréstimos depois que o governo federal alertou para o risco de inadimplência do Estado para com a União.” 240 alcançou resultados significativos, registrando-se redução na contaminação por metais como cromo, níquel e ferro, presentes nos efluentes despejados nos afluentes do Guaíba, numa região que contabilizava mais de 15 mil plantas industriais, das quais 3.900 com grande potencial de impacto ambiental. Foi implantada, em 2002, uma rede de monitoramento de qualidade do ar na região metropolitana. Dentro do subprograma de parques e reservas naturais, além da reabertura do Parque Estadual de Itapuã, houve a restauração de prédios históricos na Ilha da Pólvora, no Parque Estadual do Delta do Jacuí, em frente ao centro de Porto Alegre. No subprograma de educação ambiental, foram dadas aulas, diz a matéria, para cerca de 6 milhões de pessoas. No subprograma de manejo dos recursos naturais renováveis e das áreas rurais, o trabalho conjunto da Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER/RS) e do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) envolveu cerca de 10 mil famílias de pequenos produtores em atividades como a fixação de encostas nas margens dos rios da bacia do Guaíba, contribuindo para evitar seu assoreamento. E também no combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos.294 Figura 26. Estação de Tratamento de Esgotos Cachoeirinha/Gravataí 294 NETTO, Andrei, CUSTÓDIO, Aline, op. cit., pp. 4-5. Com respeito às atividades do subprograma de manejo dos recursos naturais renováveis e das áreas rurais, a reportagem traz os seguintes depoimentos: (i) Jatir Sulzbach, 33 anos, da comunidade de São Luiz, no município de Estrela, Vale do Taquari, “para quem o programa serviu de alavanca”: “Éramos mais de 20 famílias sendo ajudadas pelo Pró-Guaíba. Aquele projeto nos uniu em busca de algo melhor. Juntos, reflorestamos com mata nativa as margens dos arroios da região.”; (ii) Rudimar Müller, ex-coordenador do projeto no MPA, para quem o projeto “reverteu expectativas”: “Os produtores tinham medo dos órgãos ambientais. O Pró-Guaíba melhora a vida de quem é mais humilde, mais vulnerável.” 241 Um dos principais objetivos do “Pró-Guaíba”, como visto mais acima, era o de servir como um instrumento para a implantação de uma verdadeira política pública, nos moldes do que era preconizado pela Lei Gaúcha das Águas, aliando a proteção e a recuperação ambientais ao uso sustentável dos recursos hídricos. Dizia, em junho de 2004, a então secretária-executiva do programa, Vera Callegaro, “nossa expectativa é de que tenhamos criado um ininterrupto programa de gestão ambiental para o Rio Grande do Sul”.295 Neste sentido, estava sendo realizada uma rediscussão do Plano Diretor da Região Hidrográfica do Guaíba, a partir de 2003, o qual seria um balizador para as iniciativas a serem incluídas na segunda etapa do programa. O Módulo II deveria contemplar um investimento total de US$ 171,3 milhões, concentrado principalmente em obras de esgotamento sanitário, tratamento de resíduos sólidos e manejo do solo nas áreas urbanas. A principal obra contemplada seria a ETE Viamão/Alvorada, para a qual seria destinada a maior parcela dos US$ 75, 2 milhões referentes ao saneamento básico. O projeto referente ao manejo do solo agrícola, incluindo a continuidade das ações de reflorestamento e de proteção das nascentes de rios estava orçado em US$ 24,4 milhões. Como visto no capítulo anterior, a prefeitura de Porto Alegre assumira para si a responsabilidade de captar os recursos para a implantação do sistema de disposição e tratamento dos esgotos da Ponta da Cadeia, no que passou a ser denominado de PISA (Programa Integrado Socioambiental), diante do risco de interrupção do programa. O coordenador do “Pró-Guaíba” no Departamento de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul (DRH), Paulo Renato Paim, ainda acreditava, em 2004, diante da difícil conjuntura das finanças do estado, que “a qualidade dos projetos poderia viabilizar a obtenção de financiamentos sem a contrapartida do estado”. Disse então o engenheiro sanitarista, levantando, aqui, a conexão ainda existente entre os grandes programas e a busca de recursos externos pelo governo gaúcho: “O programa deve deixar de ser um captador de recursos para ser uma política pública. Daqui para a frente temos a possibilidade de ampliar o leque dos investidores”.296 Uma expectativa um tanto otimista, que não era compartilhada pelo secretário estadual de Coordenação e Planejamento, responsável pela captação de recursos externos para o programa, João Carlos Brum Torres, no governo de Germano Rigotto, do PMDB. O secretário Torres declarou então, através de sua assessoria de imprensa, que: 295 296 Idem. Idem. 242 O Módulo II do Programa Pró-Guaíba é um projeto muito vasto, com grande demanda por recursos públicos em contrapartida às linhas de financiamento do BID. Diante da atual situação financeira, o Módulo II é no momento um projeto inviável em razão do 297 esgotamento do limite de endividamento do Estado. O que veio a se confirmar, malgrado as declarações do coordenador ambiental do BID, Eduardo Figueroa, à imprensa naquele mesmo momento. Figueroa, então, reconheceu os resultados positivos alcançados pelo “Pró-Guaíba”, “um dos primeiros esforços, no continente, para colocar em prática um programa integrado de manejo de bacias hidrográficas de grande porte”, e afirmou que “é importante ressaltar que a continuidade do Pró-Guaíba está em sintonia com a estratégia do BID de apoio ao desenvolvimento social e econômico do Brasil”. Mas este apoio não deixava de estar subordinado às exigências no sentido do “saneamento” das finanças públicas do estado do Rio Grande do Sul (Figura 27). 298 Figura 27. O BID e a continuação do Programa “Pró-Guaíba” 297 298 Idem. Idem. 243 A interrupção do “Pró-Guaíba”, por tempo indeterminado, ao final de sua primeira etapa, em 2004, não apenas teve reflexos negativos em importantes iniciativas nesta bacia hidrográfica que concentra dois terços da população do estado do Rio Grande do Sul, entre estas o manejo sustentável da agricultura, compatível com a preservação de nascentes e matas ciliares. Sem a continuidade dos investimentos em saneamento básico que estavam previstos no seu Módulo II, os moradores de Porto Alegre e região metropolitana ainda teriam de conviver por mais tempo com a paisagem degradada das águas do Guaíba e de muitos dos seus formadores, como o Sinos e o Gravataí. E também teriam de esperar um pouco mais, pelo menos, para que pudesse se tornar uma realidade a visão apresentada pela jornalista Eliane Brum, no aniversário da capital, em 1998, de uma Porto Alegre reencontrando-se com o seu rio: Em algumas noites escuras, quando os guindastes do porto parecem espectros de monstro de filme japonês, até tem acontecido de o Guaíba e Porto Alegre comungarem do mesmo sonho. Embalados por um Morfeu malicioso, sonham com o Pró-Guaíba totalmente executado, com os US$ 100 milhões necessários para acabar com o esgoto da Ponta da Cadeia. Sonham até com o verão em que os porto-alegrenses vão esquecer o carro na garagem, fazer figa para a freeway lotada e saltar sobre um barco adquirido somente para 299 saracotear pelo Guaíba. Como já lembrara Moacyr Scliar, em 1993, na primeira edição da Revista Ecos, uma empreitada como a da recuperação do Guaíba teria que demandar ainda muito mais trabalho e dinheiro. E também ainda mais tempo, como em Londres, onde a recuperação do Rio Tamisa, igualmente lembrada pelo autor, foi um processo secular. Mas, sobretudo, acredito, um envolvimento efetivo de uma base mais ampla da sociedade local com a mesma, para além de um consenso muitas vezes superficial sobre a importância do tema. 5.3. Epílogo: os difíceis passos no sentido de transformar “mega-projetos” em políticas públicas para a gestão de águas O ano de 2004 pode ser considerado, ainda que de uma forma um tanto arbitrária, como um marco temporal com respeito ao tema da recuperação ambiental da bacia hidrográfica do Guaíba, tendo em conta dois eventos bastante significativos. No âmbito estadual, como visto logo acima, houve a suspensão do programa “Pró-Guaíba”, depois de um período de quase dez anos de ações, que atravessaram três governos de diferentes orientações político-partidárias, ao final do Módulo I, sem a possibilidade de sua retomada, num horizonte de curto prazo. Uma situação que foi causada pelo 299 BRUM, Eliane. Porto Alegre: A cidade que se divorciou do rio. In: Zero Hora. Porto Alegre, 26 de março de 1998, pp. 77-80. 244 agravamento da crise das finanças públicas do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, as eleições municipais deram a vitória ao candidato oposicionista José Fogaça, da coligação liderada pelo PPS, dando fim a um período de 16 anos de governo da Administração Popular, uma aliança liderada pelo PT, e que apresentara entre seus principais marcos a implantação do sistema do Orçamento Participativo (OP), e, no setor das políticas ambientais, o programa “Guaíba Vive”. Mudança no poder municipal que ocorreu num momento em que a situação financeira da prefeitura municipal também havia piorado, inviabilizando, no curto prazo, a obtenção de financiamentos para a implantação do sistema de disposição e tratamento dos esgotos da área central da cidade, previstas no “Programa Integrado Socioambiental” (PISA). A postergação destes programas não significou, contudo, uma solução de continuidade no processo que vinha transcorrendo, há mais de dez anos, de implantação de sistemas de gestão de recursos hídricos, no estado e também no Brasil. Havia uma expectativa de que tais instrumentos pudessem servir como mais do que uma moldura para a execução de políticas públicas para este setor, impulsionando as medidas necessárias para o equacionamento de antigos e graves problemas, como o da contaminação das águas pelo lançamento de esgotos cloacais não tratados. E que fosse possível, com a sua aplicação, que as próprias populações de cada região hidrográfica definissem metas, prazos e recursos financeiros necessários para a conservação e / ou recuperação de suas águas, através de mecanismos como a outorga e a cobrança pelo seu uso, a serem consolidados nos planos de gestão, a serem elaborados com assessoramento técnico especializado, provido pelas agências aos comitês (“parlamentos”) de bacia. Seria possível, assim, superar a etapa dos “mega-projetos” de recuperação ambiental, como não havia deixado de ser o “Pró-Guaíba”, na medida em que surgira como uma iniciativa de governo, e se viabilizara somente com a obtenção de grandes financiamentos externos, em prol de uma efetiva política pública para o setor, o mesmo podendo ser dito com respeito ao PISA. O que viria ao encontro das expectativas de muitos de seus quadros técnicos e gerenciais, como expressas por Paulo Renato Paim, em 2004, no momento em que ocorriam as tratativas para o prosseguimento do programa conduzido pelo governo do Rio Grande do Sul. Uma série de medidas foi tomada neste sentido, desde a promulgação da Lei Gaúcha das Águas, em 1994, até os anos mais recentes. No âmbito federal, foi promulgada a Lei nº 9433/1997 (Lei Nacional das Águas), inspirada, em muitos aspectos, na lei do Rio Grande do Sul. No estado, foram implantados vários comitês de 245 gestão de bacia, somando-se aos pioneiros COMITESINOS e Gravataí, entre os quais o da bacia hidrográfica do Lago Guaíba. O Comitê do Lago Guaíba tornou-se um novo e importante fórum de participação de representantes do Estado e da sociedade civil para a discussão dos temas ligados à gestão ambiental desta bacia, que abrange uma grande parte do município de Porto Alegre, e também da cidade homônima em sua margem direita, com uma área de 2.324 km² na qual vivem cerca 1,1 milhões de pessoas. E o Plano Diretor de Controle e Administração Ambiental da Bacia Hidrográfica do Guaíba ficou como um importante legado do “Pró-Guaíba”, ao final de sua primeira fase. O processo de criação do Comitê de Gerenciamento do Lago Guaíba transcorreu entre abril de 1997 e outubro do ano seguinte, envolvendo a participação do governo do estado, que convocou um seminário específico, através do “Pró-Guaíba”, e da prefeitura de Porto Alegre, a qual articulou a criação de uma comissão provisória, tendo à frente a coordenação do programa “Guaíba Vive”. Como abordado por Patrick Laigneau em seu trabalho Democracia participativa e gerenciamento de recursos hídricos: o caso do comitê de gerenciamento do lago Guaíba, tomando como base depoimentos de algumas pessoas que atuaram com destaque no mesmo, como Nanci Begnini Giugno e Percy Soares Neto, teria havido certa disputa com respeito à “filiação” deste comitê. Esta teria se dado entre distintas concepções de “participação”: uma mais “política”, com origem na experiência do Orçamento Participativo, contraposta a outra mais “técnica”, com origem nas formulações adotadas para a criação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, e incorporadas nos demais comitês de bacia. A atuação deste e de outros comitês de bacia da região metropolitana de Porto Alegre, com respeito às iniciativas para a despoluição do Guaíba, bem como um levantamento de perfis e motivações dos agentes neles envolvidos, não cabe, todavia, no escopo do presente trabalho. Isto iria demandar o acesso e a análise de um volume de informações acima do que seria possível no tempo disponível para o mesmo, mas, sobretudo, iria estender a análise para um período muito recente. O trabalho de Laigneau contém, não obstante, um levantamento bastante exaustivo dos perfis, expectativas, motivações e percepções de participantes nas atividades deste comitê, do período inicial até o ano de 2004. Pode ser destacado, no mesmo, o processo de interação, em torno dos temas tratados neste fórum, entre agentes sociais com formações e posicionamentos bastante diferenciados, de um lado, predominantes em número, quadros técnicos e gerenciais de órgãos do estado, como a FEPAM, e do município, como o DMAE, e de outro, lideranças dos movimentos 246 comunitário e ambientalista. Dentre estas lideranças aparece, mais uma vez, Eduíno de Mattos, militante ambientalista e antigo conselheiro do OP e do PDDUA de Porto Alegre. Estão presentes, ainda, os representantes de grupos da região tão diversos como o dos produtores agrícolas, pescadores e associados de clubes náuticos. Laigneau explora aspectos como a troca de vivências e de “recursos” que se deu entre os atores sociais envolvidos, tais como, por um lado, de conhecimento e experiência técnicogerenciais específicos, de quadros das áreas de saneamento e gestão de águas, e, por outro, de conhecimento prático e intuitivo e de inserção em movimentos e instâncias participativas, de lideranças comunitárias. Trata-se, como pondera o autor, de um período inicial de aproximação, e de busca de um terreno comum, de um estabelecimento de “regras do jogo”, no qual ainda não estavam sendo colocadas em disputa questões mais substantivas.300 Mas ainda faltam, até o presente momento, alguns itens de grande importância para a consolidação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos. O estado do Rio Grande do Sul exerceu um papel de liderança no desenvolvimento do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, uma liderança que foi perdida. Enquanto outros estados, inspirados no próprio sistema gaúcho, avançaram na implantação dos seus sistemas, no Rio Grande do Sul pouco foi realizado do que fora então previsto. Ainda não foram totalmente implementados, até o momento, os instrumentos necessários para a gestão dos recursos hídricos, com exceção de alguns planos de bacia, de um plano estadual ainda em processo de desenvolvimento, e de um muito incipiente sistema de outorga. Não foram regulamentados os instrumentos restantes, de cobrança e rateio de custos, no âmbito de cada bacia. Faltam, ainda, as três Agências de Região Hidrográfica, correspondentes às três regiões hidrográficas principais em que esta lei dividiu o estado (Uruguai, Litoral e Guaíba), previstas na Lei nº 10350/1994, que seriam, na visão de quadros que atuam neste setor, como Luiz Fernando Cybis, presidente do Comitê do Lago Guaíba entre 300 Com respeito ao processo de formação do Comitê do Lago Guaíba, ver: LAIGNEAU, Patrick, op. cit., pp. 81-83. Com respeito ao perfil sócio-profissional dos participantes, e sua comparação ao dos conselheiros do OP de Porto Alegre, ver: Idem, pp. 60-62; a destacar o fato de que 91% destes tinham, em 2003, curso superior completo, e 86% tinham renda acima de 5 salários mínimos, ao passo que entre os conselheiros do OP, em 2002, apenas 30% tinham curso superior, mesmo incompleto, e 50% tinham renda abaixo de 4 salários mínimos. Nove dos 14 membros do comitê entrevistados pelo autor eram engenheiros. Com respeito às motivações e expectativas dos participantes do comitê, em seus primeiros anos, ver: Idem, pp. 84-101. Com respeito à “construção” do comitê, através de um processo de planejamento participativo, ver: Idem, pp. 109-127. 247 2005 e 2009, de fundamental importância para a sustentação técnica, administrativa e econômica dos comitês de bacias hidrográficas do Estado.301 Neste ponto cabe apenas especular, de forma breve, com respeito aos fatores que têm contribuído para tornar mais lenta e difícil a plena operacionalização do sistema previsto na Lei Gaúcha de Águas. Um dos aspectos que pode ser levado em consideração é a falta de um suporte mais efetivo por parte do Estado, não apenas com respeito aos componentes técnico-gerenciais requeridos, tendo em vista que o sistema proposto, conquanto descentralizado e voltado à participação, não deve prescindir do poder público, um ponto que já fora identificado por Luiz Antonio Timm Grassi e Eugenio Miguel Cánepa, que estiveram entre seus formuladores, no início dos anos 1990. Ao lado disso, tal sistema é baseado na aceitação de certo grau de racionalidade e consenso em torno de pressupostos de interesse comum, como o da sustentabilidade no médio e longo prazo, o que tende a entrar em choque com uma realidade sociopolítica em que prevalecem os conflitos de interesse e as tomadas de posição com base em avaliações em cenários de curto prazo. Não é provável, deste modo, que ocorra uma passagem fácil da aceitação de princípios mais genéricos, como os contidos nesta lei, para uma prática que pode envolver, de um lado, renúncias a ganhos imediatos e mais facilmente mensuráveis, e, de outro, mobilizações em torno de objetivos menos tangíveis e de mais longo prazo. Entendo ser necessário, aqui, ter em conta algumas diferenças que existiram entre as experiências levadas a efeito no município de Porto Alegre, com o programa “Guaíba Vive” e a priorização que foi dada ao saneamento básico através do OP, e no âmbito estadual, com o processo de implantação do modelo preconizado pela Lei Gaúcha de Águas para a gestão dos recursos hídricos. No primeiro caso, tratava-se de desdobramentos de orientações e estratégias políticas adotadas pelo grupo que esteve à frente do governo municipal, a partir de 1989, tendo em vista ampliar suas bases de sustentação, frente a um cenário inicialmente adverso, sem maioria parlamentar e estando em oposição aos governos estadual e federal. Neste contexto, o novo governo buscou, por um lado, o apoio dos 301 CYBIS, Luiz Fernando, XAVIER, Sabrina. O Papel dos Comitês Gaúchos no Desenvolvimento do Sistema de Recursos Hídricos Estadual. Artigo enviado pelos autores, por e-mail, em dezembro de 2010. O engenheiro civil Luiz Fernando Cybis é professor do PPG em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental do IPH da UFRGS. Com respeito às gestões que vem sendo realizadas para dar início à cobrança da água bruta por seus usuários, tais como indústrias e companhias de saneamento, no estado do Rio Grande do Sul, e de seus resultados em outros estados, ver: O valor da água. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 09/01/2011, capa e p. 15. 248 movimentos comunitários, através de mecanismos como o do OP, mas também o de outros segmentos da sociedade local, como as classes médias e o empresariado, através de iniciativas como a do “Guaíba Vive”, um programa formulado e conduzido com a participação de lideranças ambientalistas, muitas das quais vinculadas ao partido no governo. Sendo elementos importantes de sua sustentação política, estas ações voltadas para o saneamento básico e o meio ambiente foram objeto de um apoio mais firme por parte dos sucessivos governos petistas em Porto Alegre. Não obstante, apesar de seu relativo sucesso, encontraram seus limites, ao final deste período, os quais eram inerentes à sua escala local, e foram agravados por um cenário nacional de deterioração das finanças públicas. De outra parte, iniciativas como a da Lei das Águas, bem como o próprio programa “Pró-Guaíba”, não ocorreram como desdobramentos de orientações políticas e programáticas dos grupos partidários que estiveram à frente do governo estadual, mas, antes, indicam as fontes, como uma resposta a pressões difusas, vindas de alguns segmentos da sociedade local, dentro de uma conjuntura que favorecia a troca da intervenção direta do Estado por mecanismos de gestão descentralizada e participativa. Entre estes segmentos encontrava-se o movimento ambientalista, especialmente atuante e com apoio de outros setores em áreas como a do Vale dos Sinos, onde já eram fortemente sentidos os impactos do processo de degradação dos cursos d’água, e ao qual se associaram quadros técnicos e gerenciais de Estado de áreas como o saneamento básico e o planejamento urbano e regional. Estes quadros foram, de fato, os principais formuladores do modelo proposto através da Lei Gaúcha das Águas, sendo responsáveis, em boa medida, por dotá-lo de um caráter fortemente “institucional”, na medida em que o mesmo está mais ancorado na burocracia de Estado e nos representantes de diferentes segmentos da sociedade do que no grupo político-partidário à frente do governo. Apesar da existência de certo consenso em torno das linhas gerais deste modelo, ilustrado por sua aprovação no legislativo, sem muito debate, a sua operacionalização, aí incluindo os necessários aportes por parte do Estado, bem como a regulamentação de aspectos críticos, como o dos critérios para a cobrança da água, não fazia parte das prioridades políticas dos governos estaduais, ao longo do período. E os temas ligados à gestão dos recursos hídricos, incluindo a própria expansão dos serviços de saneamento básico, e a recuperação ambiental dos cursos d’água, não se mostravam tão sensíveis ao público, no contexto das disputas eleitorais, quanto os que tendiam a pautar mais intensamente as mesmas, tais como a segurança pública e as diferentes 249 políticas de incentivo à instalação de empresas e geração de empregos. Nestas circunstâncias, não sendo um elemento importante para a sustentação política dos sucessivos governos estaduais, o efetivo funcionamento do modelo de gestão de recursos hídricos do Rio Grande do Sul, nos moldes em que foi pensado, terá de depender, em larga medida, da capacidade de mobilização de parcelas mais amplas da sociedade, através dos comitês de bacia, no sentido de pressionar os poderes públicos para o atendimento de demandas como a da universalização dos serviços de saneamento básico e a recuperação ambiental dos cursos d’água. Frente a uma realidade de permanente escassez de recursos para o investimento público, isto irá requerer a sua priorização, em detrimento de outras demandas. O que significa afirmar, em outras palavras, que este modelo, ainda que formulado com características “institucionais”, não poderá prescindir, para sua sustentação, de um forte componente político. 250 CONCLUSÃO Este trabalho teve como tema central as reações verificadas na sociedade local frente ao processo de degradação ambiental do Lago Guaíba e de sua bacia hidrográfica, na cidade de Porto Alegre e em sua região metropolitana, no período entre o início dos anos 1980 e 2004. Um tema que se insere numa envoltória mais ampla, a qual compreende aspectos como as possibilidades e os limites de participação de pessoas e de setores da sociedade civil na definição de prioridades para as políticas públicas. E também o dos custos e impactos dos processos de desenvolvimento, dentro das estruturas socioeconômicas vigentes, em termos de agressão ao meio ambiente, com a perda de recursos de lazer como as praias de água doce, e de distribuição socialmente desigual do acesso a bens como a infraestrutura de saneamento básico. O problema proposto foi verificar em que medida os avanços na recuperação ambiental do grande lago, e na extensão do saneamento básico, em Porto Alegre e sua região metropolitana, decorreram de uma participação popular mais intensa na definição das prioridades para os investimentos públicos, e de que forma tem-se dado esta participação, identificando agentes envolvidos, estratégias e limites de atuação. A avaliação do envolvimento dos diversos agentes e segmentos sociais com estes temas pode ter início procurando responder a uma questão levantada com respeito ao papel desempenhado pelos participantes no Orçamento Participativo de Porto Alegre (OP), a qual creio ser válida, em sua essência, também para integrantes do ativismo ambientalista e para os quadros técnicos e gerenciais ligados à gestão de recursos hídricos. A resposta dada por Marcelo Kunrath Silva, quanto a conselheiros e delegados do OP foi de que os mesmos eram, mais do que “representantes” de suas comunidades, grupos profissionais ou segmentos sociais, “participantes” do processo, nele representando, de fato, a si mesmos, na medida em que dotados de uma determinada inclinação ou atributo, que poderia ser definido como certa “disposição para a ação cívica”. Esta disposição não exclui, por certo, a existência de variadas motivações, bem como não deixa de ser limitada por uma série de condicionantes, tanto pessoais, tais como seus recursos sociais, materiais ou intelectuais, quanto externos, entre estes a existência, no âmbito do Estado, de certa disposição política para buscar a participação destes agentes e de estruturas institucionais para permitir seu exercício. Disposição esta, por sua vez, que também não deixa de ser o resultado da ação de movimentos sociais, que adquirem força política ao longo de processos de organização e de canalização de 251 demandas frente ao Estado, um aspecto destacado por Sérgio Baierle, para o caso específico das associações de moradores de Porto Alegre. As ponderações feitas por Silva e por Baierle foram abordadas anteriormente, no item 4.1 deste trabalho. Os dados empíricos obtidos pela análise das fontes consultadas nesta pesquisa permitem concluir que a existência desta atitude “participativa” se apresentou como um traço comum aos indivíduos envolvidos com estes temas, tanto entre lideranças comunitárias que atuaram nas instâncias do OP de Porto Alegre, quanto entre ativistas ligados às causas de proteção do meio ambiente, e entre os quadros profissionais dos setores de saneamento e recursos hídricos. É necessário destacar, também, a existência de várias situações de pessoas que tiveram filiação a mais de um destes segmentos, simultaneamente ou não, entre estes líderes comunitários e quadros técnicos de Estado com atuação no movimento ambientalista. Outro aspecto que deve ser abordado diz respeito à ausência de uma participação mais persistente e menos voltada para obtenção de objetivos imediatos e específicos. Uma avaliação neste sentido foi feita por Zander Navarro, para o caso específico do OP de Porto Alegre, como abordado no item 4.1 deste trabalho. Foi possível constatar, com efeito, que a participação de muitas pessoas dos segmentos mais populares tendeu a ocorrer desta forma. Mas esta forma de atuação também pode indicar a existência de certa autonomia frente às estruturas de poder político, na medida em que voltada à defesa de interesses específicos destes segmentos, como avaliado por Leonardo Avritzer, no mesmo item deste trabalho. E este é um tipo de comportamento que tende a ocorrer, de todo modo, também entre as lideranças de segmentos como o empresarial e o das altas burocracias de estado, geralmente dotados de maiores níveis de informação e instrução formal. Cabe lembrar aqui, de todo modo, as ponderações realizadas por Iris Marion Young, com respeito aos ganhos que podem ser obtidos no processo democrático a partir do ingresso no mesmo de pessoas e grupos com diferentes “perspectivas sociais”, através das contribuições aportadas por agentes sociais equipados, por vezes, com menores níveis de “preparo formal”, porém com maior “vivência” dos temas em pauta, muito presentes no seu cotidiano. A análise da participação popular na definição de prioridades para os investimentos públicos foi centrada no período em que os governos da Administração Popular estiveram à frente da prefeitura de Porto Alegre, entre 1989 e 2004, com a implantação da sistemática do OP, ponto abordado no quarto capítulo deste trabalho. Alguns pontos devem ser destacados aqui. Em primeiro lugar, o próprio fato de que o 252 tema da carência de saneamento básico só veio a transparecer como uma prioridade para o então novo governo depois que este iniciou um processo de consulta envolvendo as populações das áreas mais carentes da cidade e suas lideranças comunitárias. Um segundo aspecto a destacar diz respeito ao papel que também exerceu o Estado, no âmbito da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA), na manutenção deste tema como prioritário, ao longo da maior parte do período, o que se deu através da atuação do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), tanto em função de sua disponibilidade de recursos para os investimentos, quanto pela maior complexidade das obras, que acabavam por ser priorizadas como demandas “institucionais”, e/ou “da cidade como um todo”. Mas a adoção destes mecanismos de participação, de todo modo, levou a mudanças nas formas de relacionamento entre os quadros da tecnoburocracia do Estado e os representantes comunitários, no que se refere aos processos de priorização de investimentos públicos, e, mesmo, de sua fiscalização, na escala municipal. Por um lado, houve um esforço no sentido de aproximar os cidadãos comuns da linguagem técnica empregada por estes agentes do Estado nos processos de negociação das demandas institucionais e das regiões e de definição dos investimentos do município, bem como de buscar um maior envolvimento dos moradores em áreas carentes da cidade, e de suas lideranças, no acompanhamento e fiscalização das obras. Autores como Boaventura de Sousa Santos tenderam a superestimar os resultados deste processo, ao vê-los como transformações radicais na cultura profissional destes quadros. Não foi possível corroborar uma avaliação como esta frente ao elementos empíricos levantados neste trabalho, que se limitaram ao registro de alguns depoimentos, os quais dão conta, de todo modo, de uma maior aproximação entre as partes envolvidas, nos processos de priorização de investimentos públicos no âmbito do OP. Ao lado disso, é necessário ter-se em conta, para uma avaliação mais adequada destes resultados, as considerações de ordem política que levaram à postura então adotada pelo executivo municipal, no sentido de minimizar os componentes “técnicos” e de “planejamento” e maximizar o de “participação popular” no OP, como forma de aumentar a sua legitimidade frente a estes segmentos da população de Porto Alegre. Entre os integrantes e lideranças dos movimentos comunitários, por outro lado, houve mudanças em suas concepções acerca do papel do Estado e de suas relações com os mesmos, e no modo de transformá-las em seu favor, com as abordagens apenas reivindicatórias, sendo substituídas por estratégias centradas na intervenção nos espaços 253 estatais agora abertos, além de uma forma “participativa”. A opção por tais estratégias tornou necessária, para seu êxito, uma maior qualificação destas lideranças, no sentido da compreensão dos mecanismos e dinâmicas da administração pública, da capacidade de apresentar suas demandas como propostas de políticas públicas, do acesso e manuseio das informações, de modo a possibilitar uma intervenção eficaz nesses espaços públicos estatais, não sendo suficiente, neste novo contexto, a sua capacidade de mobilização dos moradores das comunidades. Este processo levou à formação de novas lideranças, a partir da aquisição destas novas habilidades, sem prejuízo das anteriores. O fato de que isto tenha ocorrido dentro de uma forte interação com o partido no poder, responsável pela implantação destas novas instâncias, não implica em negar o papel da participação popular para o atendimento destas demandas. Vale dizer, a significativa expansão da cobertura por esgotamento sanitário em Porto Alegre, no período estudado, decorreu da vontade das populações vivendo em áreas carentes, expressa através das instâncias do OP, associada à disposição política e capacidade financeira e técnica do poder municipal em atendê-la. Condição esta que não ocorreu em outros setores igualmente carentes, como a habitação, nos quais os limites da atuação do Estado, na escala local (PMPA), eram mais estreitos, tanto em termos de disponibilidade de recursos quanto de disposição para o enfrentamento de interesses contrários. É bem distinto o quadro com respeito ao envolvimento da sociedade local com a recuperação ambiental do Guaíba e de sua bacia, em Porto Alegre e região metropolitana. Ao contrário do que poderia indicar a presença de várias iniciativas governamentais neste sentido, incluindo a aprovação de uma lei estadual para a gestão das águas, o tema suscitou uma participação mais intensa restrita a segmentos específicos, como o dos quadros de Estado desta área, e de pessoas e organizações vinculadas à defesa do meio ambiente. Houve um quadro diferente, até certo ponto, na região do Vale do Rio dos Sinos, em cidades como São Leopoldo, com envolvimento maior de outros setores sociais, mas frente a um cenário de grave poluição das águas, evidenciada por eventos como mortandade de peixes e ameaças ao abastecimento de água potável. Mesmo ali, no entanto, as mobilizações se fizeram muito mais em torno do combate à poluição causada por indústrias, com menos ênfase na necessidade do tratamento dos esgotos domésticos. Ser a favor da preservação de um rio ou lago é algo muito diferente de participar de mobilizações para pressionar os governos neste sentido, ou de aceitar a cobrança de tributos ou taxas a serem aplicadas na sua recuperação. 254 Não se trata, por certo, de um quadro inteiramente estático, conquanto suas movimentações, abordadas ao longo deste trabalho, ainda não tenham se mostrado suficientes para alterar consideravelmente sua visão de conjunto. Em outras palavras, a agenda “ambiental” ainda permanece numa posição afastada do centro dos debates políticos, sendo sustentada por setores relativamente periféricos, conquanto influentes, da sociedade. Há, por um lado, uma percepção da crescente gravidade dos problemas ambientais, nas escalas local, regional e global, e de que estes decorrem da exploração ilimitada dos recursos naturais, associada ao crescimento econômico e populacional. No entanto, a visão predominante sobre o tema, tanto nos governos quanto na sociedade, de modo geral, ainda consiste em avaliar as medidas no sentido da proteção dos elementos naturais sob o prisma de critérios econômico-financeiros, dentro de uma interpretação bastante estreita da ideia de “sustentabilidade”. Cabe aqui lembrar Cornelius Castoriadis, enquanto um dos autores a dar conta desta questão, na medida em que analisou o impacto das estruturas vigentes nas sociedades capitalistas, nas quais se dá a generalização das relações sociais baseadas no mercado, e com sua busca do crescimento econômico ilimitado, no comportamento dos agentes sociais e no seu espectro de demandas. Trata-se aqui de considerar o peso da busca a padrões de consumo com altos impactos ambientais, como fins em si mesmos, no sentido de restringir a formulação de demandas e a mobilização dos agentes sociais por políticas públicas, entre as quais as ligadas à recuperação ambiental, que não se mostrem como diretamente voltadas ao crescimento econômico. A atuação dos segmentos acima mencionados, com respeito ao tema, apresentou algumas diferenças de enfoque, ao longo do período, a seguir destacadas, cabendo observar, inicialmente, que a própria divisão deste universo de pessoas e grupos em “quadros de gestão de águas” e “ambientalistas” é um tanto arbitrária, considerando, entre outros aspectos, a existência de vários casos de dupla filiação. Visto como um todo, o segmento ambientalista caracterizou-se por um viés mais crítico, que se expressava, em termos gerais, através da denúncia de problemas decorrentes de modelos de desenvolvimento e estilos de vida avaliados como insustentáveis, em termos ambientais e sociais. Mas também, de forma mais específica, em questionamentos a algumas soluções que foram propostas no âmbito das companhias de saneamento, como foi o caso da alternativa apresentada no “Projeto Rio Guaíba”, prevendo o envio dos esgotos da área central de Porto Alegre para tratamento em lagoas de estabilização na Ilha das Flores, em área de preservação permanente, no 255 Parque Estadual do Delta do Jacuí. Este projeto também recebeu fortes críticas dos ambientalistas com respeito à sua concepção geral, por carecer de uma visão mais integrada da conservação dos recursos naturais, restringindo-se à implantação de sistemas de coleta e tratamento de esgotos. Críticas a que se associavam os quadros da área de saneamento do município de Porto Alegre, tendo em vista, igualmente, que o modelo empresarial nele considerado contemplava a absorção de grande parte das atribuições do DMAE pela Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN). Isto ocorreu num momento em que integrantes do movimento ambientalista já começavam a ingressar na política partidária, exercendo mandatos legislativos em partidos da oposição ao regime autoritário, entre os quais o PMDB, o PDT e o PT. Um pouco depois, com a ascensão deste partido à prefeitura de Porto Alegre, o novo governo teve o apoio de uma parte significativa dos ativistas deste segmento, através do programa “Guaíba Vive”. Alguns deles estiveram presentes em sua concepção, que via na degradação do meio ambiente um problema com raízes culturais, cuja superação deveria requerer, portanto, um esforço de conscientização, e não apenas a realização de investimentos, considerando, por outro lado, uma visão mais pragmática acerca das questões ambientais, mais próxima de uma abordagem “conservacionista” e do conceito de “sustentabilidade”. O papel do ativismo ambientalista nas mobilizações que levaram à criação dos primeiros fóruns voltados à gestão sustentável dos recursos hídricos no estado, os comitês de bacia do Gravataí e do Rio dos Sinos, com a participação de representantes do Estado e da sociedade civil, já foi abordado em profundidade em diversos trabalhos acadêmicos. Estas intervenções de integrantes do movimento ambientalista, tanto no caso de Porto Alegre quanto dos primeiros comitês de bacia, contribuíram, somando-se às de outros setores da sociedade, para os passos que foram dados em seguida, no âmbito do poder público estadual, como as disposições sobre o tema na nova Constituição Estadual, o programa “Pró-Guaíba” e a Lei Gaúcha das Águas (Lei nº 10.350/1994). No que diz respeito a este programa, cabe destacar as mobilizações dos ambientalistas com vistas à implantação efetiva de grandes unidades de conservação na Região Metropolitana de Porto Alegre, como os parques estaduais de Itapuã e do Delta do Jacuí. É necessário comentar, por outro lado, a prevalência de uma abordagem com respeito ao manejo destas áreas que tendeu a se aproximar, muitas vezes, de uma visão que poderia ser definida como “preservacionista”, cuja rigidez contribuiu para o surgimento de conflitos de caráter socioambiental envolvendo a remoção de antigos moradores e o cerceamento de algumas atividades exercidas nestas 256 áreas, um ponto que tem sido objeto de vários trabalhos acadêmicos. Cabe lembrar, por fim, a atuação dos eco jornalistas, não apenas em veículos especializados e de circulação mais restrita, como a Revista Ecos, publicada a partir de 1993 pelo DMAE, mas também, por vezes, em jornais, rádio e televisão. Seria uma simplificação excessiva considerar o segmento dos quadros técnicos e gerenciais atuando nas áreas de saneamento básico e gestão de recursos hídricos como um conjunto homogêneo. Dentro deste existiam várias linhas de diferenciação, tais como a atuação na administração estadual ou do município de Porto Alegre, perfis mais técnicos ou mais gerenciais, presença de vínculos político-partidários, diferentes formações profissionais, e assim por diante. Ao lado disso, durante boa parte do período estudado houve a presença à frente do governo da capital, de um grupo com orientação político-partidária de esquerda, em oposição à do governo federal, que tendia a tratar temas como os da proteção do meio ambiente e da expansão da infraestrutura urbana para as populações mais carentes de uma forma mais politizada. No âmbito estadual, em contraste, houve o predomínio de grupos político-partidários mais próximos das orientações seguidas pelo governo central, uma relativa alternância de partidos no poder, e uma menor politização destes temas. Um quadro que se modificou, consideravelmente, com a ascensão do PT e seus aliados ao governo estadual, em 1999, e federal, em 2003. Conquanto isto não implique, necessariamente, na existência de diferenças significativas nos posicionamentos frente a estas questões, entre quadros vinculados à prefeitura de Porto Alegre e ao governo do estado, foi dentro desse primeiro contexto que se deram as intervenções destes últimos, com atuação nas áreas de planejamento, gestão de águas e saneamento básico, no âmbito da administração direta e indireta do governo gaúcho. Alguns aspectos devem ser destacados com respeito a esta atuação. Em primeiro lugar, a confluência entre mobilizações de base social mais ampla, provocadas pelo agravamento das condições ambientais em áreas como o Vale do Rio dos Sinos, e as formulações já realizadas no âmbito destes quadros, para a criação de sistemas legais e institucionais, inspirados em experiências de países como a França, que permitissem o desenvolvimento de uma política pública para gestão dos recursos hídricos, envolvendo a sociedade, mas com a presença reguladora do Estado. O que se tornou possível a partir da superação do regime autoritário de 1964, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, cujos dispositivos no sentido da propriedade estatal das águas abriram o caminho para a instituição de sistemas de gestão de recursos hídricos com abrangência 257 nacional e estadual. Dispositivos de mesmo teor foram incluídos na Constituição Estadual de 1989, a partir de sugestões destes quadros. Esta nova orientação para o setor deveria consistir no abandono do controle ambiental baseado apenas no estabelecimento, por parte do Estado, de padrões de controle a serem obedecidos, as chamadas “políticas de mandato-e-controle”, que deveriam ser progressivamente substituídas por políticas baseadas no uso de instrumentos econômicos de incentivo, de forma a atingir padrões de qualidade ambiental a serem politicamente negociados e estabelecidos, “a um custo mínimo para a sociedade”. A conjuntura política que o país atravessava, no processo de superação do regime autoritário também contribuiu para a preferência destes quadros por um modelo de gestão descentralizado, como era visto o francês. Isto na medida em que esta associava pressões em favor de uma maior autonomia e participação dos municípios, regiões e estados, e dos diversos segmentos da sociedade, a uma perda de legitimidade e poder efetivo do Estado, resultante do esgotamento do modelo até então vigente, excessivamente centralizador. O modelo proposto por estes quadros, e incorporado à legislação estadual, conquanto busque a participação da sociedade civil, através de uma gestão descentralizada, é fortemente lastreado numa visão que acredita na superação dos conflitos através da busca de consensos, com o recurso às formas racionais de argumentação. Não deixa de apresentar, assim, um viés tecnocrático, e, ao lado disso, não prescinde de uma presença forte do Estado, como agente regulador. E a capacidade destes agentes de influenciar de uma forma mais decisiva o poder público no sentido de dar apoio às medidas necessárias para colocar efetivamente em marcha o sistema que fora concebido para a gestão sustentável dos recursos hídricos no Rio Grande do Sul teria de ser um fator chave para os objetivos pretendidos. Entre estas medidas estavam a instalação das agências de bacia, responsáveis pelo suporte técnico e gerencial aos comitês, e a instituição da cobrança pelo uso da água. Outro fator necessário seria a sua capacidade de obter um maior envolvimento por parte de um espectro mais amplo da sociedade civil, de modo a reforçar as pressões sobre o poder público, em especial sobre o executivo estadual. O sucesso destes quadros de Estado quanto a estes dois fatores não foi, no entanto, suficiente para atingir os objetivos propostos dentro do horizonte esperado, e sem soluções de continuidade. Uma primeira indicação neste sentido pode ser vista no processo de elaboração do programa “Pró-Guaíba”, o qual, mesmo no momento em que já havia todo um trabalho destes agentes no sentido de formular esta nova política para a 258 gestão dos recursos hídricos, foi inicialmente concebido pelo governo estadual como um programa voltado ao saneamento básico. Somente depois de apresentado aos técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no processo de negociação para seu financiamento, o programa foi modificado, para ganhar as características mais amplas de um plano voltado não apenas para ações pontuais de recuperação, mas também para a gestão sustentável da bacia hidrográfica do Guaíba. Conquanto tais modificações estivessem em sintonia com a visão defendida por estes agentes do Estado, e também com as de outros setores, como o dos ambientalistas, foi bastante claro, neste momento, o papel indutor desta agência de fomento, junto ao executivo estadual. Para o que pesou, por certo, a possibilidade de obtenção de novos recursos financeiros por parte do governo do Rio Grande do Sul, contribuindo, de alguma forma, para o contingenciamento de sua elevada dívida pública. A busca por um maior envolvimento de parcelas mais amplas da sociedade local com este programa, por outro lado, se deu durante o processo de elaboração do seu Plano Diretor de Controle e Administração Ambiental, um dos catorze projetos integrantes do primeiro módulo do “Pró-Guaíba”. Na ocasião, o trabalho inicial de técnicos e especialistas foi enriquecido pelas contribuições de representantes das prefeituras, universidades, sindicatos e outras entidades estatais ou não governamentais da região, dentro do que os quadros nele envolvidos caracterizaram como um “processo de construção coletiva”. Os encontros regionais então realizados permitiram evidenciar a gravidade do quadro existente com respeito ao saneamento básico, tema eleito como alta prioridade em sete das oito sub-bacias da região hidrográfica do Guaíba. Ao passo que as áreas de preservação foram vistas como alta prioridade nas sub-bacias do Rio dos Sinos e do Gravataí, as áreas com maior degradação de suas águas, e onde já despontava há mais tempo um ativismo voltado à proteção do meio ambiente. Esta procura por um maior envolvimento dos diversos setores da sociedade local com as questões relacionadas à gestão sustentável das águas tem prosseguido, com a criação de novos comitês de bacia e a manutenção e ampliação dos já existentes. Mas seus resultados, em termos de uma maior preocupação com estes temas no âmbito da sociedade local, e de seus representantes nos poderes executivo e legislativo estaduais, não tiveram impacto suficiente para provocar alguma reação mais efetiva, no momento em que o governo do Rio Grande do Sul mostrou-se incapaz de obter as linhas de crédito necessárias para o prosseguimento do programa “Pró-Guaíba”, com o seu segundo módulo, em 2004. 259 Medidas como a universalização do saneamento básico e o controle da poluição dos rios pareciam ter um caráter muito consensual para figurarem como pontos de disputa nas agendas políticas e eleitorais, sendo este um fator que pode ter levado a que noticiário sobre as dificuldades e atrasos em seus programas dificilmente fosse acompanhado por cobranças mais específicas por parte da imprensa local voltada para o grande público. Estes temas foram tratados, muitas vezes, inclusive em matérias que exploravam um viés mais cultural da convivência das populações urbanas com o Guaíba, mas raramente explorando suas relações com conflitos de interesse e com as relações de força envolvidas na priorização dos investimentos públicos. Aspectos que foram abordados, no entanto, em trabalhos e publicações voltadas a estes temas, como a Revista Ecos. Esta revista especializada, ainda que se tenha em conta seu perfil setorial e seu vínculo ao governo de Porto Alegre, conseguiu expressar uma visão mais integrada dos temas da defesa do meio ambiente, da gestão de recursos hídricos e do saneamento básico, servindo como fórum de debates destes temas, não apenas com enfoques mais técnicos, mas também mais amplos. Os quais incluíam não apenas artigos escritos por escritores e intelectuais sobre as relações dos porto-alegrenses como o seu lago (ou rio), mas também todo o processo de discussão em torno das políticas públicas para o setor de saneamento básico ao longo dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Este foi um período em que o governo federal promoveu um conjunto de ajustes voltados para a estabilização econômica e para uma redefinição do papel do Estado, dentro de uma conjuntura internacional marcada por um incremento da concentração de riqueza nos detentores do capital financeiro, sustentada no plano ideológico por conceitos como o da “globalização” e o de um suposto “Estado mínimo”. O exame desta fonte permitiu formar uma ideia um pouco mais aprofundada de um quadro que se caracterizava pela existência de fortes conflitos de interesse, com o núcleo econômico do governo federal buscando a privatização dos serviços de saneamento básico, através de medidas de restrição ao crédito para as autarquias e empresas públicas do setor, principalmente as municipais. Dentro desta mesma política de estabilização financeira, a expensas do investimento público em setores carentes de infraestrutura, o presidente Cardoso vetou, em 1995, o projeto de lei que havia sido aprovado no Congresso Nacional visando à criação de uma política de incentivo ao desenvolvimento deste setor, com a criação de fundos específicos para seu financiamento. Isto resultou em consideráveis atrasos na busca da universalização destes serviços, do mesmo modo que as restrições impostas ao governo estadual do Rio 260 Grande do Sul, na obtenção do aval do governo federal para a obtenção dos créditos adicionais necessários para o prosseguimento do “Pró-Guaíba”, em 2004, já no primeiro mandato do presidente Lula. E também à prefeitura de Porto Alegre, que teve de postergar em vários anos o “Programa Integrado Socioambiental”, por dificuldades na obtenção de seu financiamento. A despoluição do Guaíba, com a recuperação da balneabilidade de suas praias constitui apenas um dos aspectos com respeito às relações entre a sociedade local e esta paisagem da cidade de Porto Alegre. Foi tendo isto em conta que procurei abordar, no segundo capítulo deste trabalho, o período anterior à degradação ambiental do lago, para problematizar este aspecto da vida social da cidade, seu suposto caráter também praiano. É possível ver, nos dias de hoje, uma espécie de “memória coletiva” sustentando que a perda desse caráter praiano decorreu somente da degradação ambiental do Guaíba, que tem se expressado, também, em diversas matérias produzidas na imprensa, dando conta de que existira, até os anos 1960, algo como uma “época dourada”, ou “romântica” destas praias. A consulta às reportagens produzidas naquele período mostrou, no entanto, uma situação um tanto diferente, indicando que o processo de decadência destas paisagens praianas fora bem mais complexo, e associado também a outras causas, como seu acesso intenso por pessoas das camadas mais populares, e seu abandono pelas camadas mais afluentes da sociedade, também facilitado com a inauguração da autoestrada para as praias do litoral norte. Isto não significa, por certo, que apenas a existência de uma maior valorização destas paisagens praianas, por parte da sociedade local, teria sido suficiente para evitar o processo de degradação do Lago Guaíba, ou de antecipar os passos para sua recuperação, tendo em conta o grande volume de recursos financeiros necessários para tanto. Creio ser necessário destacar, no entanto, a existência, talvez desde aquele período, dentro de um consenso amplo no sentido da valorização da paisagem da orla do Lago Guaíba, em Porto Alegre, de visões e de expectativas muito diferenciadas do que isto deva significar. Assim, a despoluição das águas e o retorno da balneabilidade das praias não tendem, muitas vezes, a ser tão valorizadas como a implantação de projetos de aproveitamento urbanístico e empresarial de áreas como o Cais do Porto, envolvendo a construção de altos prédios, muitas vezes sem cuidados com seus impactos no ambiente urbano. Ou, em sentido oposto, a manutenção da orla virtualmente sem ocupação, como uma espécie de “sacralização” de um espaço visto como apenas “natureza”, dissociada de seu entorno humano e cultural. 261 Ainda que careça uma análise mais exaustiva, o cenário das discussões sobre este tema que transparece em boa parte dos meios de comunicação, inclusive em espaços como os criados através da internet, tende a ser dominado pela expressão de grupos de interesses bem definidos em torno de cada uma destas visões. Ao passo que a despoluição das águas do Guaíba tende a ser vista apenas como algo de menor impacto na vida social da cidade, bem como simples execução de obras públicas, desvinculada de todo um processo histórico, que não tem excluído a presença de conflitos e de exercício de protagonismo por parte de muitos agentes sociais nele envolvidos. A recuperação ambiental do Lago Guaíba e de sua grande região hidrográfica, no Rio Grande do Sul, tem se constituído em tarefa para muitas décadas, e várias gerações. E que não envolve apenas os esforços para a universalização do saneamento básico, conquanto esta seja imprescindível para retomar a qualidade de suas águas e permitir que a população volte a se banhar em suas praias. Muitas outras medidas são igualmente necessárias, como o controle da poluição gerada pelas atividades industriais e agropecuárias, e a conservação da cobertura florestal de seus rios, dentro de uma efetiva gestão sustentável desta região. São necessários, para tanto, esforços visando disseminar a educação ambiental, por certo, mas estes precisariam ser acompanhados por uma pressão mais intensa sobre o Estado, a partir de uma parcela ampliada da sociedade civil, no sentido da implantação das medidas preconizadas na legislação gaúcha e brasileira das águas, tais como os mecanismos de cobrança pelo seu uso. Apenas desta forma, acredito, seria possível superar o estágio em que esta recuperação depende da realização de “mega-projetos”, sujeitos, muitas vezes, a quebras de continuidade, passando a tê-la como uma política pública permanente. O agravamento dos impactos da atividade humana sobre o meio ambiente é uma realidade inescapável, e o cenário do futuro imediato se apresenta com traços bastante sombrios, com ameaças tão fortes como as representadas pelos efeitos da queima crescente dos combustíveis fósseis e do desmatamento das grandes florestas, não apenas na Amazônia. Neste contexto, a solução de carências como a do saneamento básico, em países como o Brasil, poderia não representar muito frente a visões mais próximas da chamada “ecologia profunda”, que chegam a propor mudanças radicais para o cenário mundial, tais como a redução da atividade econômica e até mesmo da população, o que se constitui num ponto bastante controverso. Iniciativas como esta, no entanto, ao lado de outras no âmbito da gestão sustentável das águas, representam formas concretas de conservar e recuperar os recursos naturais, além de contribuírem para reduzir os 262 desequilíbrios socioeconômicos, não sendo incompatíveis, de forma alguma, com desdobramentos mais amplos nesse sentido, em benefício, também, das futuras gerações. 263 FONTES 1. Documentos Oficiais COMISSÃO DE SERVIÇOS E OBRAS PÚBLICAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, Atas – Período de 1965 a 1976. RIO GRANDE DO SUL. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Poluição e desenvolvimento. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1972. Anais da Comissão Parlamentar Especial que estudou os problemas da poluição e do meio ambiente. SECRETARIA DA COORDENAÇÃO E PLANEJAMENTO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Executiva do Pró-Guaíba. Baía de todas as águas: preservação e gerenciamento ambiental na Bacia Hidrográfica do Guaíba, org. por Luiz Corrêa Noronha. 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A pesquisa nestes jornais foi realizada no Setor de Imprensa do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa e no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Revistas Revista Ecos, Porto Alegre: DMAE, período de 1993 a 2004, disponível em http://dmaerevista.procempa.com.br/revistas/, acessado em março de 2012. Revista do Globo, Porto Alegre – todo o período de sua publicação (1929 a 1967). A consulta aos exemplares digitalizados deste periódico foi feito através da página virtual do Laboratório de Acervos Digitais do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (IPCT / PUCRS), http://www.ipct.pucrs.br/letras/index_allglobo.shtml, acessada no período de março a outubro de 2007. Realidade, São Paulo – maio de 1972. Esta revista foi consultada no Setor de Imprensa do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. 7. Imagens Fotográficas Além das imagens fotográficas contidas na Revista do Globo e nos jornais de Porto Alegre citados acima, foram acessadas as imagens fotográficas da cidade de Porto Alegre disponíveis na Fototeca Sioma Breitman, do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo, e no Setor de Fotografia do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. 267 8. Audiovisuais Porto que te quero alegre. RBS-TV. Porto Alegre, março de 1987. Programa exibido na semana de aniversário da cidade. 268 BIBLIOGRAFIA ABERS, Rebecca, JORGE, Karina Dino. Descentralização da Gestão da Água: Por que os comitês de bacia estão sendo criados? In: ABERS, Rebecca, JORGE, Karina Dino. Descentralização da gestão da água, disponível em http://www.scielo.br/pdf/asoc/v8n2/28607.pdf, acessado em março de 2012. ARRETCHE, Marta Teresa da Silva. O processo de descentralização das políticas sociais no Brasil e seus determinantes. Tese de Doutorado, PPG em Ciência Política UNICAMP. Campinas, SP, 1998. 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