ELIZABETE CLEMENTE DE LIMA SER FAMÍLIA CONVIVENDO COM A CRIANÇA DEPENDENTE DE VENTILAÇÃO MECÂNICA: Uma Abordagem do Cuidado de Enfermagem Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Enfermagem Orientadora: Profa. Dra. Nair Regina Ritter Ribeiro Porto Alegre 2004 2 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) L732 Lima, Elizabete Clemente de Ser família convivendo com a criança dependente de ventilação mecânica: uma abordagem do cuidado de enfermagem/ Elizabete Clemente de Lima, Orient. Nair Regina Ritter Ribeiro. Porto Alegre: UFRGS, 2004. 138f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem, Curso de Mestrado em Enfermagem, 2002 1. Enfermagem. – 2. Família. – 3. Criança hospitalizada. – 4. Cuidados intensivos. – 5. Crianças com deficiências. – 6. Crianças incapacitadas. – 7. Doença crônica. – I. Nair Regina Ritter Ribeiro. – II. Título. CDU 614.253.5 (043.3) Lucia Vauthier Machado Nunes CRB 10/193 3 4 Aos meus pais (in memoriam) e aos meus irmãos, que me deram toda a base de valores de família que possuo; às famílias do estudo, que me ajudaram a fortalecê-los, e aos meus filhos – companheiros de viagem –, com os quais compartilho a experiência de vivê-los, dedico esta conquista como gratidão. AGRADECIMENTOS À Coordenadora do Curso de Mestrado, Professora Doutora Maria Alice Dias de Lima. À Professora Mestra Virgínia Leismann Moretto, Chefe do Departamento Materno Infantil da Escola de Enfermagem da UFRGS. À Professora Doutora Maria da Graça de Oliveira Crosseti, Coordenadora do Grupo de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pelo exemplo de administração e competência com que dirige a Equipe de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. À Professora Mestra Helena Becker Issi, Chefe do Serviço de Enfermagem Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pela amizade e por saber compartilhar com afeto e companheirismo seus conhecimentos sobre a criança hospitalizada e sua família. À Professora Doutora Dulce Maria Nunes pela base teórico-prática que proporcionou em minha trajetória profissional de enfermeira pediátrica, ensinando o caminho do cuidado humanizado à criança hospitalizada. À Professora Doutora Ingrid Elsen o meu respeito e admiração pelos seus ensinamentos e sua obra relacionada ao Cuidado de Enfermagem com Famílias. Às Professoras Doutoras, membros da Banca: Maria da Graça Corso da Motta pelo apoio e incentivo, amizade e por compartilhar saberes; Beatriz Lara dos Santos pelas contribuições teóricas na Qualificação; Ana Lúcia Bonilha por sua preocupação com minha pessoa e pelos conhecimentos teóricos que me proporcionou durante o Mestrado. Às Professoras do Curso de Mestrado pelo compartilhar de experiências e saberes. Às colegas do Curso de Mestrado pelos momentos alegres, de amizade e de aprendizado. Às colegas enfermeiras e técnicas de enfermagem da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre pela amizade e compreensão, pela troca de experiência e pela competência, profissionalismo e carinho com que prestam o cuidado à criança e sua família. À colega Maria Buratto Souto pela contribuição com material literário, pela amizade e carinho com que compartilhamos a nossa trajetória profissional. À revisora Lou Zanetti pela dedicação e profissionalismo na revisão. AGRADECIMENTOS ESPECIAIS À Professora Orientadora, Doutora Nair Regina Ritter Ribeiro pela dedicação e companheirismo com que me orientou no Mestrado e pelo apoio que sempre me ofereceu em toda a minha trajetória de enfermeira assistencial. Às famílias do estudo pelo exemplo de valores de vida que passam através de seu sofrimento e de seu esforço para manter seus filhos com a melhor qualidade de vida que possam oferecer a eles e obter para si. À Mariana, minha filha e companheira, pelo carinho, compreensão e incentivo que sempre me proporcionou nos momentos em que precisei me dedicar à pesquisa e à orientação. Sei que estamos fazendo o possível nesta nossa trajetória em busca da formação de uma família saudável. Ao Eduardo, meu filho e companheiro, pelo carinho que sempre me dedicou. Sei que compreenderá porque tínhamos que parar de brincar para que eu pudesse me dedicar à pesquisa. À minha mãe Madalena (in memoriam), exemplo de ser humano e de mãe, da qual adquiri a bagagem de valores de respeito ao ser humano e a importância do compartilhar os valores de família. Ao meu pai Altino (in memoriam) que, mesmo distante em vida, conseguiu me ensinar a importância da presença. Aos meus irmãos Beto, Nina, Rose e Maristela que, mesmo distantes, sempre me fizeram senti-los perto de mim. À amiga Maria Helena Schilling, por nossa antiga amizade, e a todos os amigos com os quais deixei de partilhar momentos agradáveis nesse período e que souberam compreender. À família Ritter Ribeiro que tão gentilmente me emprestou seu precioso tempo, teto, a mãe e esposa nos dias de orientação. A todos que, de uma ou outra forma, cuidaram para que este estudo se efetivasse. RESUMO Este estudo buscou evidenciar o processo de cuidado às famílias de crianças dependentes de ventilação mecânica em uma unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP); compreender de que modo a família vivencia o cuidado de um filho dependente de ventilação mecânica durante a hospitalização e como a família cuida o filho dependente de ventilação mecânica no domicílio. É uma pesquisa qualitativa, do tipo convergente assistencial, desenvolvida com quatro famílias na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, de um hospital geral e universitário da cidade de Porto Alegre-RS e no domicílio de duas dessas famílias. Para a coleta das informações foram utilizadas a entrevista semi-estruturada e a observação participante, propostas por Triviños (1994), e a análise de documentos. Neste estudo, a análise das informações baseou-se em Trentini e Paim (1999), as quais enfatizam que na pesquisa convergente assistencial, como em qualquer pesquisa qualitativa, a análise das informações se desenvolve em quatro etapas, mais ou menos seqüenciais: apreensão, síntese, teorização e recontextualização. O projeto foi avaliado pelo Comitê de Ética da instituição, e as exigências para as pesquisas com seres humanos foram cumpridas. No trabalho é desvelado o processo de cuidado às famílias de crianças dependentes de ventilação mecânica enquanto ainda estão na UTIP, com ênfase no cuidado de enfermagem e no preparo da família para a alta da criança utilizando a ventilação mecânica. Após a análise dos dados coletados junto às famílias, emergiram dois grandes temas com vários subtemas. O primeiro tema mostra a trajetória das famílias cuidando a criança dependente de ventilação mecânica no contexto da UTIP. Desvela suas dificuldades de adaptação ao ambiente, a necessidade de manter a família unida, os problemas financeiros que enfrentam e a necessidade de reorganização familiar. O segundo tema mostra o cuidar e o conviver das famílias com a criança no domicílio, a necessidade de uma nova organização familiar, os sentimentos de insegurança e medo vivenciados na permanência em casa e a necessidade de apoio. Os resultados deste estudo oferecem aos profissionais e acadêmicos da área da Saúde, especialmente os da enfermagem, subsídios a serem utilizados na prática de cuidado com famílias, para que possam identificar as necessidades e as forças de cada família a fim de concretizar o planejamento, a implementação e a avaliação das intervenções a serem realizadas com o objetivo de auxiliálas no enfrentamento de sua trajetória de vida. Palavras-chave: enfermagem – família – criança hospitalizada – cuidados intensivos – crianças com deficiências – crianças incapacitadas – doença crônica ABSTRACT This study aimed at evidencing the process of care to families with children undergoing mechanical ventilation in a Pediatrics Intensive Care Unit (PICU) and understanding how the family experiences the care of a child undergoing mechanical ventilation during hospitalization and how the family takes care of the child undergoing mechanical ventilation at home. It is about a qualitative research of the assisting converging type carried out with four families at the Pediatrics Intensive Care Unit of a general university hospital in the city of Porto Alegre, Brazil, and at the home of two of these families. In order to gather the information, one has utilized both the semi-structured interview and the participating observation proposed by Triviños (1994) as well as the analysis of documents. Within this study, the information has been analyzed according to Trentini and Paim (1999) who emphasize that on the assisting converging research, as in any qualitative research, the information analysis is developed over four steps, more or less sequentially: apprehension, synthesis, theorization and re-contextualization. The Ethics Committee of the institution has evaluated the project and the requirements for researches with human beings were met. The work unveils the process of care to families of children depending on mechanical ventilation while they are still in the PICU with emphasis on the nursing attendance and on the preparation of the family for the discharge of the child from the hospital but still utilizing mechanical ventilation. After the analysis of the data collected with the families, two great themes with several sub-themes have arisen. The first theme shows the trajectory of the families taking care of a child undergoing mechanical ventilation in the context of the PICU. It reveals the child’s difficulties to adapt itself to the environment, the need to keep the family united, the financial problems that they face and the need to reorganize the family. The second theme shows the care and the life experience along with the child at home, the need of a new family organization, the insecurity feelings and fears experienced while staying at home and the need of support. The results of this study provide data to professionals and academic students of the health realm, especially those of the nursing field, that can be utilized in the care practice with the families so that they can identify the needs and the strengths of each family in order to materialize the planning, implementation and evaluation of the interventions to be performed in order to help them to face their life trajectory. Key-words: nursing – family – hospitalized child – intensive care – child with handicaps – disabled children – chronic disease RESUMEN Este estudio buscó evidenciar el proceso del cuidado de las familias de niños dependientes de ventilación mecánica en una Unidad de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP); comprender de qué modo la familia vivencia el cuidado de un niño dependiente de ventilación mecánica durante la hospitalización y cómo la familia cuida del niño dependiente de ventilación mecánica en el domicilio. Tratase de una investigación cualitativa, del tipo convergente asistencial, desarrollada con cuatro familias en la Unidad de Terapia Intensiva Pediátrica de un hospital general universitario de Porto Alegre, Brasil, y en el domicilio de dos de estas familias. Para la coleta de las informaciones fueron utilizadas la entrevista semiestructurada y la observación participante, propuestas por Triviños (1994) y el análisis de documentos. En este estudio, el análisis de las informaciones se basó en Trentini y Paim (1999), los cuales enfatizan que en la investigación convergente asistencial, como en cualquier investigación cualitativa, el análisis de las informaciones se desarrolla en cuatro etapas, mas o menos secuenciales: aprehensión, síntesis, teorización y re-contextualización. El proyecto fue evaluado por el Comité de Ética de la institución y los requisitos para la investigación con seres humanos fueron cumplidos. El trabajo expone el proceso del cuidado a las familias de niños dependientes de ventilación mecánica mientras están todavía en la UTIP con énfasis en el cuidado de enfermería y en la preparación de la familia para el alta del niño utilizando la ventilación mecánica. Tras el análisis de los datos colectados junto a las familias han emergido dos grandes temas con varios subtemas. El primer tema muestra la trayectoria de las familias cuidando el niño dependiente de ventilación mecánica en el contexto de la UTIP. Él revela sus dificultades de adaptación al ambiente, la necesidad de mantener la familia unida, los problemas financieros que las familias enfrentan y la necesidad de reorganización familiar. El segundo tema muestra la atención y la convivencia de las familias con el niño en el domicilio, la necesidad de nueva organización familiar, los sentimientos de inseguridad y miedo vividos durante la permanencia en casa y la necesidad de apoyo. Los resultados de este estudio ofrecen a los profesionales y académicos del área de la salud, en especial aquellos de enfermería, datos para utilización en la práctica de la atención a familias para que puedan identificar las necesidades y las fuerzas de cada familia a fin de concretizar la planificación, la implementación y la evaluación de las intervenciones a ser realizadas con el objetivo de ayudarlas a enfrentar su trayectoria de vida. Palabras-llave: enfermería – familia – niño hospitalizado – cuidado intensivo – niños minusválidos – niños incapacitados – enfermedad crónica LISTA DE FIGURAS Figura 1: Figura 2: Figura 3: Figura 4: Figura 5: Figura 6: Figura 7: Figura 8: Genograma da família de Viviane ......................................................................... Ecomapa da família de Viviane ............................................................................. Genograma da família de Maria da Graça ............................................................. Ecomapa da família de Maria da Graça ................................................................. Genograma da família de Miguel ........................................................................... Ecomapa da família de Miguel .............................................................................. Genograma da família de Marcos .......................................................................... Ecomapa da família de Marcos .............................................................................. 51 52 54 56 57 58 59 61 SUMÁRIO 1 CAMINHADA EM DIREÇÃO AO TEMA ................................................................ 13 2 REFLEXÕES SOBRE A TEMÁTICA DO ESTUDO ............................................... 2.1 A FAMÍLIA DIANTE DO PROCESSO DE DOENÇA E HOSPITALIZAÇÃO DA CRIANÇA ...................................................................................................................... 2.2 REVENDO AS PATOLOGIAS DAS CRIANÇAS DESTE ESTUDO ........................ 2.2.1 Atrofia espinal progressiva de Werdnig Hoffmann ................................................... 2.2.2 Miopatia miotubular e centronuclear ......................................................................... 2.2.3 Encefalomiopatia necrotisante subaguda, ou síndrome de Leigh .............................. 3 CAMINHO METODOLÓGICO .................................................................................. 3.1 TIPO DE ESTUDO ........................................................................................................ 3.2 PARTICIPANTES DO ESTUDO ................................................................................. 3.3 CONTEXTOS ................................................................................................................ 3.4 COLETA DE INFORMAÇÕES .................................................................................... 3.5 ASPECTOS ÉTICOS ..................................................................................................... 3.6 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES ................................................................................ 4 O PROCESSO DE ALTA DE CRIANÇAS DEPENDENTES DE VENTILAÇÃO MECÂNICA NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA DO HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE .................................................. 4.1 O CONTEXTO DO CUIDADO .................................................................................... 4.2 O PREPARO DA FAMÍLIA PARA A ALTA .............................................................. 4.3 A ABORDAGEM DE ENFERMAGEM VISANDO AO CUIDADO DOMICILIAR .... 4.4 PROTOCOLO DE ALTA .............................................................................................. 17 17 21 24 26 26 28 28 29 29 30 33 34 38 38 40 41 47 5 APRESENTANDO AS FAMÍLIAS ............................................................................. 50 6 A FAMÍLIA VIVENCIANDO O CUIDADO DO FILHO DEPENDENTE DE VENTILAÇÃO MECÂNICA ....................................................................................... 6.1 A FAMÍLIA CUIDANDO O FILHO NA UTIP ........................................................... 6.1.1 Enfrentando mudanças no cotidiano .......................................................................... 6.1.2 Organizando e estruturando a família ........................................................................ 6.1.3 Deparando-se com a cronicidade da doença .............................................................. 62 62 63 80 88 6.1.4 Visualizando a possibilidade de alta hospitalar ......................................................... 6.2 A FAMÍLIA CUIDANDO O FILHO NO DOMICILIO ............................................... 6.2.1 Enfrentando o desafio da permanência em casa ........................................................ 6.2.2 Buscando melhorar a organização familiar ................................................................ 6.2.3 Refletindo sobre a qualidade de vida ......................................................................... 91 94 94 99 108 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 114 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 119 APÊNDICE A. APÊNDICE B. APÊNDICE C. APÊNDICE D. Questões Iniciais da Entrevista Semi-estruturada ..................................... Diário de Campo ....................................................................................... Diário do Observador ................................................................................ Termo de Consentimento Livre e Informado ............................................ 123 124 125 126 ANEXO A. Aprovação da Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde do HCPA ................ 127 ANEXO B. Protocolo de Alta Hospitalar a Pacientes Pediátricos Dependentes de Ventilação Mecânica ....................................................................................... 128 ANEXO C. Protocolo de Visita Domiciliar a Famílias de Crianças em Processo de Alta para o Domicílio em Uso de Ventilação Mecânica ........................................ 134 14 1 CAMINHADA EM DIREÇÃO AO TEMA Antes de decidir qual profissão escolher, questionei-me, diversas vezes, sobre quais eram meus objetivos e minhas expectativas para o futuro. Com o passar do tempo, concluí que gostaria de trabalhar com pessoas, e das profissões da área da saúde, percebi que a enfermagem era a profissão que me proporcionaria estar bem próxima das pessoas, interagindo com elas, auxiliando-as em suas necessidades. Em 1975, ingressei no curso de Enfermagem na Universidade Federal de Santa Catarina. Durante o estágio na disciplina de Enfermagem Pediátrica, conheci uma criança que me marcou profundamente como pessoa e como profissional. Ela foi minha primeira paciente pediátrica e me ensinou a gostar de cuidar de crianças e de estar com elas. Com ela aprendi a entender a fragilidade infantil e sua autenticidade. Até então meu mundo era o adulto, o qual tentava desvendar. A minha convivência com aquela criança no estágio curricular traçou a direção para escolher trabalhar com crianças na qualidade de enfermeira assistencial. Graduei-me em 1978, na Universidade Federal de santa Catarina – UFSC. Tinha noção que vencera meu primeiro grande desafio. Então, em Florianópolis, trabalhei um ano em uma Creche, na função de enfermeira. Em 1980, decidi enfrentar um novo desafio ao vir trabalhar no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), onde permaneci por três anos na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). Desde a inauguração dessa Unidade, os pais das crianças internadas ou responsáveis podiam permanecer com elas durante as doze horas diurnas. Cuidar a criança, ampliando este cuidado à sua família, me gratifica desde então, pois sempre acreditei que o ser humano – criança ou adulto – se sente mais aconchegado e seguro se tiver ao seu lado uma pessoa significativa que lhe proporcione o apoio necessário, durante o período de internação hospitalar. Em 1983, mudei-me para a cidade de Rio Grande - RS, onde permaneci até 1987. Nesse período, cursei Licenciatura em Enfermagem na Fundação Universidade de Rio Grande 15 e exerci a enfermagem por 2,3 anos na Unidade de Pediatria da Santa Casa de Misericórdia. Esse hospital não possuía UTIP, mas a família acompanhava a criança na Unidade de Internação Pediátrica. Em 1987, retornando a Porto Alegre, trabalhei na Unidade de Internação Pediátrica e na UTIP do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, por três anos. Com desejo de voltar a trabalhar no HCPA, retornei a UTIP deste hospital, em 1990, onde permaneço desenvolvendo minhas atividades assistenciais e, concomitantemente, exercendo a função de enfermeira-chefe, desde 2001. Desde a inauguração da UTIP do HCPA, em 1979, a equipe dessa Unidade vem desenvolvendo o sistema de permanência conjunta pais e filhos. Esta sistemática, pioneira no Brasil, incentiva a permanência da família com a criança durante todo o período de internação, e sua participação no processo de cuidado do filho doente. Desde que me graduei na UFSC, iniciando minha carreira em Florianópolis e passando por experiências em instituições hospitalares no Rio Grande do Sul, tenho me dedicado a trabalhar com a criança hospitalizada. Nessa trajetória compreendi que não poderia isolar o pequeno paciente de seu universo familiar, então voltei o meu olhar e o meu processo de cuidar também para a família das crianças internadas. Tenho constatado que as características culturais das famílias das crianças internadas e suas dificuldades emocionais, sociais, econômicas e espirituais exigem que a enfermeira busque uma compreensão mais abrangente do cuidado em pediatria. Assim, torna-se imprescindível aprofundar conhecimentos teóricos sobre este grupo social, a fim de compreender sua dinâmica e auxiliá-lo a enfrentar o processo de internação e doença de um filho internado em uma UTIP. Desde minha graduação em enfermagem, em 1979, tenho trabalhado na área pediátrica. Nesse período, 17 anos foram dedicados a Unidades de Terapia Intensiva. Portanto, tenho observado um significativo processo de mudança no perfil das crianças 16 internadas, em que o grau de gravidade dos pacientes tem aumentado e, conseqüentemente, o número de crianças com seqüelas importantes. Crianças com doenças crônicas, dependentes de ventilação mecânica, têm ocupado leitos da UTIP por longos períodos, com média acima de um ano de internação. Essa longa permanência produz intenso desgaste emocional para as famílias, advindo da desorganização familiar que sofrem e do convívio diário com o ambiente da UTIP. A ocupação prolongada de leitos por pacientes com doenças crônicas e alguns mantidos em ventilação mecânica por períodos prolongados provoca repercussões importantes na área da saúde pública, devido a redução de leitos para pacientes com doenças agudas. Se considerarmos que a taxa de permanência de um paciente na UTIP do Hospital de Clínicas de Porto Alegre é em torno de sete dias, um paciente que permanece por um ano internado nesta unidade ocupa o leito de mais 51 pacientes que poderiam ter internado com doenças agudas. A convivência diária com os diversos dramas familiares fez com que voltasse meu olhar de forma mais atenta à família que tem ou teve seu filho internado por longo período em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica. Preocupada com as conseqüências que a internação prolongada1 causa às famílias, venho acompanhando a trajetória de algumas que estão com o filho internado na UTIP do HCPA e das que se encontram no domicílio, com filhos usando ventilação mecânica. A ventilação mecânica no domicílio é uma situação diferenciada, e, nesse contexto, o processo do cuidado engloba o preparo da família para a realização de cuidados simples e complexos, capacitando-a para o cuidado domiciliar de uma criança com necessidades especiais.2 Internação prolongada: A equipe da UTIP do HCPA usa esta denominação para identificar a internação por período superior a 60 dias. 2 Wong (1999) define criança com cuidados especiais, dentre outras, aquelas dependentes de tecnologia, as quais requerem o uso rotineiro de um dispositivo médico para compensar a perda de uma função corporal de manutenção da vida, para os quais são necessários cuidados contínuos diários e/ou monitorização por pessoa treinada. 1 17 Percebo que um dos papéis do enfermeiro, frente à equipe multiprofissional, é o de fazer com que todos os envolvidos no cuidado à criança reconheçam a importância e o valor da família no cuidado de seus membros. No meu entendimento, o cuidado domiciliar de crianças, após a internação hospitalar prolongada, tem evidenciado, para algumas famílias, a oportunidade de se organizar para cuidar a criança doente em casa, estar próximo aos outros filhos, ao cônjuge e ao cotidiano familiar, o que parece amenizar o sofrimento de ter um filho com necessidade de cuidados especiais. Com a finalidade de aprofundar esta temática, estabeleci quatro objetivos para este estudo, ou sejam: 1. Desvelar o processo de cuidado de enfermagem às famílias de criança dependente de ventilação mecânica; 2. Compreender a vivência familiar de cuidado do filho dependente de ventilação mecânica, durante a hospitalização prolongada em uma UTIP; 3. Desvelar o processo de alta para o domicilio da criança dependente de ventilação mecânica; 4. Compreender a vivência familiar de cuidado do filho dependente de ventilação mecânica no domicilio. 18 2 REFLEXÕES SOBRE A TEMÁTICA DO ESTUDO A família se estrutura conforme aspectos socioeconômicos, de classe, étnicos, culturais e com influência da religiosidade dos membros que a compõem. Família formada por um pai e uma mãe ainda é a estrutura mais comum em nossa sociedade, embora estejam ocorrendo mudanças, quando podemos encontrar famílias sendo chefiadas por mulheres sozinhas, compostas por homossexuais, formadas por amigos, dentre outras. O que precisa ficar claro para o profissional de enfermagem é que a estrutura da família de que cuidamos poderá ser muito diferente da formação de nossa própria família ou do nosso conceito de família. Segundo Patterson (1992), família é aquilo que o cliente considera como tal. Para Wong (1999), a biologia compreende a família como um fator de perpetuação da espécie. A psicologia enfatiza os aspectos interpessoais da família e sua responsabilidade na formação da personalidade. Já a economia vê a família como uma unidade produtiva, e a sociologia a entende como a unidade social que interage como o meio. No processo saúde-doença, Elsen (1994) diz que a família possui seus próprios pontos de vista, tem necessidades individuais e grupais, cujo atendimento está condicionado aos recursos de que dispõe, incluindo os profissionais. Para podermos entender a família precisamos compreendê-la diante dos processos pelos quais ela passa no seu ciclo de vida, os diferentes contextos, as diferenças culturais, suas crenças e diferenças religiosas. A família que possui uma criança doente enfrenta um processo peculiar que necessita ser estudado e compreendido pelos profissionais da área de pediatria. Portanto, é importante, no estudo da criança, o preparo dos profissionais da área da saúde para trabalhar com famílias, já que se considera a criança como parte do contexto social que inclua sua família. 2.1 A FAMÍLIA DIANTE DO PROCESSO DE DOENÇA E HOSPITALIZAÇÃO DA CRIANÇA Em um país como o Brasil, com dimensão continental, onde se observam diferenças culturais e étnicas, existem diferentes formas de reação da família diante da doença de um de 19 seus membros, comportamentos que podem variar de região para região, e maneiras diferentes de procurar ajuda. Helman (1994) refere que, antes de buscar ajuda profissional, as pessoas procuram ajuda na rede social. Costumam seguir conselhos de vizinhos, parentes, curandeiros, participar de rituais de cura em igrejas, cultos ou grupos de auto-ajuda. Quando não conseguem resolver o problema, buscam, por fim, a ajuda profissional. Ribeiro (1999), em seu estudo com famílias de crianças que internaram em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, constatou que, ao identificar alterações na saúde de seus filhos, elas prestam os primeiros cuidados e ficam vigilantes. Quando não se sentem aptas a resolver o problema, buscam ajuda profissional que, dependendo da gravidade, pode evoluir para hospitalização. De maneira semelhante, Elsen (1994) refere que a família constitui o contexto social mais importante em que a doença ocorre e é solucionada. Quando não consegue solucioná-la, parte em busca de ajuda profissional. Em alguns casos, a procura por cuidados profissionais ocorre após as pessoas terem passado por outros tipos de ajuda. Contudo, para algumas, a profissional é a primeira opção, principalmente quando julgam que a doença é grave. A maioria das famílias sabe detectar os primeiros sinais e sintomas quando algo não está bem, desde as mais sutis mudanças no sensório, na aparência, na alimentação, na temperatura corporal ou nas eliminações, apesar de se constatar que, na cultura brasileira, a automedicação é prática freqüente. Helman (1994) comenta que cada cultura possui sua própria linguagem de sofrimento. Os fatores culturais determinam quais os sinais ou sintomas são anormais. Observa-se que, mesmo que o filho esteja sob cuidados profissionais considerados competentes pelos integrantes da família, ela busca o auxilio de curandeiros, de mentores espirituais, da medicina alternativa, para reforçar o tratamento, mesmo que a criança evolua favoravelmente. Essa questão cultural está presente no cotidiano da enfermagem. 20 Ribeiro (1999) ressalta que a busca de ajuda espiritual ocorre independente de religião ou credo e se diferencia na forma, intensidade e momento de início. Algumas famílias entregam-se às orações no momento em que percebem que algo não está bem; outras o fazem quando a gravidade da doença se intensifica. Silva e Pires (2000) comentam que as famílias transitam entre a medicina oficial e a popular, na procura da melhor possibilidade terapêutica para curar o filho. A religiosidade também é importante apoio para manter viva a esperança. Em algumas etapas da vida, o ser humano pode necessitar de cuidados profissionais, mas continua pertencente a um contexto familiar e social, ou seja, tem uma historia de vida a ser respeitada. E a sua história inicia na família e a ela permanece vinculado durante todo o período de internação hospitalar. Percebe-se que a família se considera co-responsável pelo processo de recuperação do paciente. De acordo com Ribeiro (1999), a equipe deve entender que cada família é única e passa pelo processo de doença de maneira própria. Portanto, é necessário conhecê-la, compreender seu comportamento, seus sentimentos, os signos e significados dessa vivência. Nesse contexto, a enfermagem procura interagir com a família, tentando compreendê-la e auxiliá-la nesse período de intenso sofrimento. Os profissionais deverão investir no processo educativo da família, assim como na formação de vínculos com o sistema primário de saúde para que a família tenha condições de se conduzir com autonomia após a alta da criança. Elsen (1994, p. 72) ressalta que a família já não pode ser vista apenas como aquela que deve cumprir as determinações dos profissionais de saúde, ao se reconhecer que ela assume a responsabilidade pela saúde de seus membros, ela precisa ser ouvida em suas duvidas, sua opinião deve ser considerada, e sua participação deve ser incentivada em todo o processo de cuidar/curar. Ângelo (1999) refere que a enfermeira precisa estar sensibilizada e instrumentalizada para trabalhar com famílias. Sensibilizada não no sentido de sentimentalismo, mas, referindose a uma disposição interna para agir, que denomina vontade, capacidade de desenvolver conhecimento, não exclusivamente acadêmico, mas proveniente da reflexão sobre a realidade 21 que a cerca, no cotidiano vivido com famílias. A instrumentalização, segundo a autora, consiste em dispor de recursos de conhecimento que a capacitem a pensar e agir com a família. No processo de doença, a mãe é considerada a cuidadora usual pela saúde da família. Referindo-se a famílias de baixa renda, Martin e Ângelo (1999) afirmam que a divisão de papéis entre os pais é bem definida, cabendo à mulher a responsabilidade de educar, socializar e cuidar dos filhos, e ao homem, o sustento da família. Observando-se a realidade dos hospitais do sul do país, percebe-se que a mãe é a pessoa que mais tempo se mantém junto ao filho internado, independente da sua classe social e econômica. Nas enfermarias, nos quartos de convênios e particulares ou na Unidade de Terapia Intensiva, a figura da mulher (seja ela mãe, avó ou tia) é maioria, cuidando, acompanhando ou visitando a criança internada. Apesar de as estatísticas comprovarem que a mulher está assumindo o papel de provedora na sociedade brasileira contemporânea (MÃE, 1998), em sua maioria, o pai continua sendo o provedor principal nas famílias das crianças internadas na UTIP do HCPA. Comumente, participa do período de internação do filho como acompanhante ou visitante em horários noturnos (após sair do trabalho) e nos finais de semana. O pai ou outro familiar geralmente substituem a mãe quando ela precisa ir a casa ver os outros filhos (é comum que isso aconteça nos finais de semana). Quando as mães trabalham, na maioria das vezes abandonam o emprego para dedicar-se ao filho doente. Vários autores, entre eles Crepaldi (1998), Motta (1998) e Ribeiro (2001), comentam que o fato de ter sempre um familiar junto à criança hospitalizada pode ocasionar alterações nos papéis familiares, geradas pela ausência de um ou de ambos os pais. Para permanecerem junto ao filho, acabam perdendo o emprego que, em inúmeros casos, é a única fonte de renda familiar. Segundo Motta (1997), a internação da criança produz uma nova dinâmica familiar, e os papéis sociais são redistribuídos, visando a um novo equilíbrio. Podem surgir problemas financeiros, instabilidade emocional, conflitos entre os membros da família, negligência em 22 relação ao cuidado dos outros filhos, ciúmes dos irmãos, sentimentos de perda pessoais e de culpa. Wright e Leahey (2002) argumentam que a Enfermagem sempre teve uma participação bastante efetiva na assistência à família. Como a Enfermagem se originou nas casas dos pacientes, nada mais natural que prestasse serviços centrados na família, onde os familiares participavam efetivamente dos cuidados ao membro doente. Com a transição da prática da enfermagem das residências para os hospitais, durante a Segunda Guerra Mundial, as famílias foram excluídas não apenas do cuidado, mas também de eventos familiares marcantes, como nascimento e morte. Devido aos altos custos do cuidado hospitalar, nas últimas décadas do século passado, observou-se um retorno ao cuidado domiciliar, principalmente com o crescimento do número de empresas privadas que fornecem cuidados médicos, de enfermagem e fisioterápicos, dentre outros. Marcon et al. (1998) salientam que o indivíduo portador de patologias denominadas crônico-degenerativas demanda, dependendo da idade, características pessoais e evolução clínica, cuidados permanentes, seja em nível hospitalar ou domiciliar. Algumas crianças portadoras de doenças crônicas têm ficado internadas por longo tempo nas UTIP, usando ventilação mecânica, devido a doenças de etiologias neuromusculares, metabólicas, anóxia neonatal e processos infecciosos graves. O crescente aumento do número de crianças hospitalizadas com doenças crônicas tem sido observado na maioria das Unidades de Terapia Intensiva Pediátricas do município de Porto Alegre e, provavelmente, é a realidade das demais UTIPs dos hospitais brasileiros. 2.2 REVENDO AS PATOLOGIAS DAS CRIANÇAS DESTE ESTUDO Com o desenvolvimento da tecnologia médica, o aprimoramento das pesquisas sobre doenças em seres humanos e a melhor qualificação dos profissionais da área da Saúde, observa-se o aumento do número de crianças portadoras de doenças crônicas em nossa sociedade. Wong (1999) conceitua doença crônica como aquela que interfere com o funcionamento diário por mais de três meses em um ano; causa hospitalização de mais de um 23 mês em um ano; tem como causa uma incapacidade que existe desde o nascimento; é causa de atraso do desenvolvimento; gera incapacidade mental e/ou física que tende a continuar indefinidamente; é causa de uma limitação funcional que interfere com capacidade de caminhar, levantar, ouvir, aprender; ou, ainda, a doença que causa uma dependência tecnológica para manter a vida. Portanto, a cronicidade da doença em uma criança gera uma série de transtornos e dificuldades para sua família, a qual necessitará de auxílio para enfrentá-los. Duas das crianças das famílias estudadas apresentavam atrofia espinhal progressiva de Werdnig-Hoffmann (Viviane e Marcos). Miguel é portador de miopatia centronuclear, e Maria da Graça tem um diagnóstico provável de encefalopatia de Leigh, uma forma de mitocondriopatia. As miopatias congênitas são doenças musculares que se apresentam ao nascimento decorrentes de defeitos em genes que codificam proteínas musculares. A perda ou disfunção dessas proteínas leva ao aparecimento de características morfológicas específicas nos músculos, que podem ser observadas em estudos ao microscópio (biópsia). As miopatias congênitas são classificadas de acordo com essas características morfológicas. Por exemplo, se observamos na biópsia uma área central clara (sem atividade oxidativa) no tecido muscular corado por um corante especial, a miopatia congênita é do tipo central core). Suspeita-se do diagnóstico de miopatia congênita diante de um recém-nascido hipotônico (flácido), com dificuldade para sugar, para respirar e fraqueza muscular generalizada. Pode haver relato de movimentos fetais diminuídos e aumento do líquido amniótico. Esse diagnóstico pode ser também pensado nos casos de atraso nas aquisições motoras (segurar a cabeça, sentar, andar), principalmente se associado a hipotonia no período neonatal. Algumas manifestações clínicas como ptose palpebral (pálpebra superior caída), rosto alongado, micrognatia (maxilar inferior pequeno), fraqueza da musculatura facial, palato ogival (céu da boca elevado), músculos pouco desenvolvidos, presença de deformidades 24 esqueléticas, como luxação congênita de quadril, pé torto ao nascer e artrogripose (deformidades articulares múltiplas presentes ao nascimento), sugerem o diagnóstico de miopatia congênita. Contudo, existem casos de miopatia congênita com manifestações clínicas iniciadas somente na idade adulta com fraqueza muscular proximal. A incidência das miopatias congênitas é desconhecida. Em uma série de crianças que apresentaram hipotonia neonatal e que foram submetidas a biópsia muscular antes de dois meses de vida, as miopatias congênitas foram encontradas em 14%. A freqüência de cada tipo de miopatia congênita é variada. Em uma série de 180 casos reunidos ao longo de 20 anos, observou-se a seguinte distribuição: miopatia nemalínica (20%), central core (16%), centronuclear (14%), multicore (10%), desproporção por tipo de fibras (21%) e miscelânea (19%). As miopatias congênitas são hereditárias e, em geral, apresentam herança autossômica dominante (basta que um dos pais seja portador do gene) e passam de pai ou mãe para filho, independente do sexo, com risco de ocorrência igual a 50% em cada gestação; ou autossômica recessiva com pais sadios (a doença se manifesta com o encontro de dois genes para a doença, um do pai e outro da mãe) com risco de ocorrência igual a 25% em cada gestação. Em algumas miopatias congênitas, como na central core, já se conhece o defeito genético. Nesse tipo de miopatia, em cerca de 50% dos casos encontra-se uma mutação em um gene do cromossomo 19. Existem também miopatias congênitas, como a nemalínica, que podem apresentar diferentes tipos de herança associadas a diferentes mutações em proteínas musculares distintas. O prognóstico é bastante variado. Existem algumas miopatias congênitas, como a centronuclear, que tem forma de apresentação neonatal mais grave e evolui com insuficiência respiratória precoce no primeiro ano de vida, e formas que se apresentam na infância ou mesmo na idade adulta, com fraqueza muscular de predomínio proximal, progressão lenta, com marcha independente até a quinta ou sexta década. A biópsia muscular com realização de estudos de histoquímica e microscopia eletrônica é fundamental. É importante lembrar que algumas características morfológicas só se tornam evidentes com a idade. Pode-se encontrar apenas predomínio de fibras do tipo I 25 (achado comum, mas inespecífico nas miopatias congênitas) no estudo do músculo de um bebê e a presença de cores centrais no músculo do progenitor comprometido. Outros exames que auxiliam o diagnóstico são a dosagem de enzimas musculares (ligeiramente elevadas ou normais) e a eletroneuromiografia (exame que mede a atividade elétrica do músculo). 2.2.1 Atrofia espinal progressiva de Werdnig Hoffmann De acordo com Vainzorf (2004), as atrofias espinhais progressivas (AEP), geralmente de herança autossômica recessiva, constituem a forma mais comum de doença do neurônio motor em crianças e jovens adultos. Sua incidência é de cerca de 1/10.000, e a freqüência de heterozigotos (portadores sãos da mutação) são de aproximadamente 1/50. Em alguns países, a incidência pode ser até mais alta (1/6.000 para os afetados e 1/40 para os heterozigotos). Clinicamente, os pacientes portadores de AEP apresentam uma fraqueza muscular progressiva, simétrica, de predomínio proximal, que muito se assemelha ao quadro clínico dos portadores de distrofias musculares. As atrofias espinhais progressivas são classificadas em três grupos: tipo I, ou Werdnig-Hoffmann (WH), que é a mais grave e que se manifesta já no período perinatal sob a forma de grave e generalizada hipotonia muscular; tipo II, ou forma intermediária, com idade de início geralmente antes dos 18 meses e com um curso mais benigno; tipo III, ou Kugelberg-Welander (KW), que é a mais leve de todas, com início na primeira ou na segunda década de vida e com grande variabilidade na evolução clínica. A herança ocorre por transmissão genética autossômica recessiva, com as anomalias localizando-se nos genes do braço longo do cromossomo 5 (5q13.1) no gene SMN (responsável pela sobrevivência dos neurônios motores) e no gene NAIP (proteína inibidora da apoptose neuronal), principalmente na amiotrofia espinhal infantil tipo I. Na prática, o exame de DNA, isto é, a análise molecular do gene SMN, tem se mostrado extremamente importante para confirmação do diagnóstico clínico e diagnóstico diferencial da AEP, sem necessidade de outros exames mais invasivos ou traumáticos como a 26 biopsia muscular ou a eletromiografia. Além disso, atualmente é possível oferecer aos casais que já tiveram uma criança com AEP (na qual se identificou uma deleção no gene SMN) um diagnóstico pré-natal de certeza, em uma futura gravidez, já que esses casais correm um risco de 25% de ter outra criança afetada. A alteração genética mais freqüente é a deleção (perda total ou parcial de material genético), correspondendo às formas clínicas mais leves da enfermidade, com deleções menores ou maiores, fundamentalmente do gene SMN. Nesses casos, quando são lesadas as colunas anteriores da medula espinhal e os núcleos dos VII e XII pares cranianos. Além disso, existem atrofia e desmielinização das raízes nervosas anteriores. A doença manifesta-se por hipotonia muscular simétrica, fraqueza e escassez de movimentos iniciam pela cintura pélvica e pela musculatura de membros inferiores, afetando depois os demais grupos musculares. Membros superiores flácidos, apresentando abdução e rotação externa. Predomínio da respiração diafragmática; tórax longo e estreito, em forma de sino. Sensório normal; ausência de dor. Inteligência, sensibilidade e funções esfincterianas normais. Abalos fasciculares, revelando-se principalmente na língua. Apresenta geralmente tecido adiposo abundante, com contraturas das grandes articulações, cifoescoliose e deformações torácicas, eletromiografia revelando atrofia neurogênica. Inicia-se geralmente no decorrer do primeiro ano de vida. Em muitos casos, a mãe refere escassez de movimentos fetais ou diminuição destes movimentos; o distúrbio se manifesta então logo após o nascimento. O prognóstico é desfavorável, geralmente levando a óbito nos primeiros anos de vida por pneumonia hipostática ou aspirativa. Alguns pacientes alcançam idade mais avançada e se tornam completamente imóveis. O tratamento é sintomático, com ginástica corretiva, para os quais os pais poderão ser orientados a realizá-los em casa; prevenção das contraturas articulares, alimentação rica em proteínas, profilaxia da obesidade. Proteção contra as doenças infecciosas. Estímulos intelectuais devem ser realizados pois as crianças preservam a inteligência. Orientação psicológica deverá ser oferecida aos pais a fim de se preparar para a árdua jornada de cuidado pois essas crianças poderão ter uma sobrevida longa. 27 O aconselhamento genético deverá ser oferecido pelo hospital devido ao fato de muitos casais se encontrarem em fase reprodutiva e podem querer ter outros filhos. Casos graves como na doença de Werdnig Hoffmann desenvolvem a necessidade de ventilação mecânica. 2.2.2 Miopatia miotubular e centronuclear Conforme a UNICAMP (2004), a miopatia miotubular (MTM) é uma afecção grave, que se caracteriza por uma hipotonia neonatal marcante, acompanhada de insuficiência respiratória que requer intubação e respiração artificial contínua. O quadro grave leva a óbito, logo após o nascimento ou algumas semanas depois (geralmente durante o primeiro ano de vida). O marcador morfológico mais importante da miopatia miotubular é a presença de um núcleo único grande e central na fibra muscular e ausência dos núcleos periféricos. Esta forma é de herança ligada ao cromossomo X e, portanto, afeta somente crianças do sexo masculino. Mutações no gene MTM1, que codifica a proteína miotubularina, são responsáveis por esta patologia. Mais de 60 mutações já foram identificados no gene MTM1 em pacientes com miopatia miotubular. Entretanto, em cerca de 2/3 dos casos, as mutações se concentram em seis dos 15 exons do gene, o que direciona o estudo molecular. Uma segunda forma de miopatia, a miopatia centronuclear (CNM), também é congênita porém de evolução mais branda, e afeta indivíduos de ambos os sexos. Ela compreende a forma infantil, de herança autossômica dominante, ou recessiva, ou também formas de início mais tardio, ou de adultos. As características clínicas são a presença de ptose palpebral ou oftalmoplegia e fraqueza facial associada a fraqueza dos membros generalizada ou proximal. As características anatomopatológicas são predominância e hipotrofia de fibras tipo I, com núcleos centrais em freqüência variada, que tende a aumentar com a idade. A presença de fibras tipo 2C, indicadores da imaturidade das fibras, também já foi relatada. 2.2.3 Encefalomielopatia necrotisante subaguda, ou síndrome de Leigh Segundo a UNICAMP (2004), a síndrome de Leigh é uma doença mitocondrial familial ou esporádica com ampla gama de manifestações clínicas. Em mais da metade dos 28 casos o início é no primeiro ano de vida, principalmente nos primeiros seis meses. O início é abrupto ou subagudo, às vezes precipitado por episódio febril ou cirurgia. Em crianças antes de um ano, há perda do controle da cabeça ou de outras aquisições motoras, hipotonia, deficiência ao sugar, anorexia, vômitos, irritabilidade e choro contínuo. Há também convulsões generalizadas e contrações mioclônicas. Se o início é no segundo ano, há dificuldade na marcha, ataxia, disartria, regressão intelectual, espasmos tônicos, distúrbios da respiração (como crises de hiperventilação ou apnéia), oftalmoplegia externa, nistagmo, distúrbios dos movimentos oculares semelhantes aos da síndrome de Wernicke, paralisia da deglutição e movimentos anormais nos membros, como distonia, movimentos coreicos ou balísticos. As alterações patológicas na síndrome de Leigh consistem em focos bilaterais simétricos de necrose espongiforme com degeneração da mielina, proliferação vascular e gliose. A localização é nos núcleos da base, tálamos, tronco cerebral e medula espinal. As lesões lembram as da síndrome de Wernicke (atiaminose), mas na síndrome de Leigh são mais extensas, às vezes envolvendo o striatum, e tendem a não atingir os corpos mamilares. As lesões são muito bem demonstradas em RNM. A histoquímica de músculo é normal, mas o número de mitocôndrias pode estar aumentado em ME. Várias mutações mitocondriais podem dar o quadro clínico e patológico da síndrome de Leigh. 29 3 CAMINHO METODOLÓGICO Neste capítulo serão explicitadas as etapas da pesquisa, desenvolvidas para compreender de que modo famílias de crianças portadoras de doenças crônicas, com dependência de ventilação mecânica, vivenciam o cuidado de um filho com necessidades especiais, durante o período de internação e no pós-alta, no domicílio. 3.1 TIPO DE ESTUDO Este é um estudo que se caracteriza por uma pesquisa qualitativa, com abordagem de pesquisa de campo convergente assistencial. Minayo et al. (1999, p. 21) afirmam que “a pesquisa qualitativa trabalha com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. Trentini e Paim (1999) entendem que a pesquisa de campo em enfermagem se refere à nossa prática assistencial. Segundo as autoras, a pesquisa de campo do tipo convergente assistencial é aquela que desenvolve elos entre a teoria e a prática, em que inclui atividades de cuidado/assistência dos clientes. Este tipo de estudo se propõe refletir a prática assistencial a partir de fenômenos vivenciados no contexto da práxis assistencial, na tentativa de descobrir realidades, resolver problemas específicos ou introduzir inovações em situações específicas em determinado contexto da prática assistencial. Estas autoras enfatizam que a pesquisa convergente-assistencial une o pensar e o fazer, constituindo-se em um método para pesquisar a prática assistencial de enfermagem, e pode ser desenvolvida pelas enfermeiras durante suas atividades assistenciais. Assim, este estudo tem as características da pesquisa convergente-assistencial, uma vez que as observações, orientações e cuidados às crianças e famílias fazem parte do meu 30 cotidiano profissional e, neste momento, visualizada com olhar de pesquisador buscando atender os objetivos da pesquisa. 3.2 PARTICIPANTES DO ESTUDO Os participantes do estudo foram famílias de quatro crianças portadoras de doenças crônicas, dependentes de ventilação mecânica, que vivenciaram um longo período de internação hospitalar na UTIP do HCPA. Durante o processo de coleta dos dados, duas famílias estavam em período de pré-alta, e duas já estavam no domicílio. No período pré-alta foram entrevistadas duas mães. Uma delas estava há dois anos e cinco meses com seu filho internado na UTIP, e a outra, sete meses. No domicílio, foram entrevistados dois casais (pai e mãe). Um dos casais estava com seu filho no domicílio há cinco anos, e o outro casal, um ano. O critério para a inclusão das famílias exigiu que fossem moradoras na Grande Porto Alegre e estarem vivenciando o período de internação ou no período pós-alta. A delimitação geográfica do domicílio das famílias foi realizada com a finalidade de facilitar o deslocamento da pesquisadora e viabilizar o estudo. Uma quinta família foi excluída do estudo, por estar com viagem marcada para tratamento do filho nos Estados Unidos. Os participantes da pesquisa foram convidados individualmente, momento em que foram informados dos objetivos do estudo. O fato de eu ser enfermeira assistencial na UTIP do HCPA e ter sido enfermeira do Programa de Apoio a Família facilitou a interação com as famílias durante o período de coleta dos dados, pois já existia uma inter-relação prévia e respeito mútuo. 3.3 CONTEXTOS Para melhor compreensão da trajetória das famílias estudadas foram utilizados dois contextos distintos: o ambiente hospitalar, composto pela UTIP do HCPA, cenário onde as quatro famílias deste estudo conviveram e se desenvolveu a abordagem de enfermagem para o cuidado domiciliar (descrito no tópico 4.1); e o domicílio de duas delas, quando foram realizadas orientações concomitantes a coleta de dados. Os domicílios serão descritos no capítulo 5 - Apresentando as famílias. 31 3.4 COLETA DAS INFORMAÇÕES A coleta das informações foi realizada mediante revisão de documentos, entrevistas semi-estruturadas (Apêndice A) e observações dos participantes, cujos dados foram registrados em diário de campo (Apêndice B) e diário do observador (Apêndice C). Triviños (1994, p. 146) entende como entrevista semi-estruturada “aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados por teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as repostas do informante”. Trentini e Paim (1999) argumentam que a entrevista semi-estruturada ou semifechada parte de tópicos relacionados ao tema da pesquisa; à medida que a interação entre o entrevistador e o entrevistado progride, a conversa vai tomando corpo, e surge a oportunidade para aprofundar e focalizar o assunto de acordo com o tema de pesquisa. O pesquisador elabora um roteiro, não de questões, mas de temas a serem abordados. A entrevista foi direcionada de maneira que os pais pudessem se reportar ao período de internação, a fim de relatarem o que significou para elas a experiência de terem seus filhos internados em uma UTIP, por tempo prolongado. Relativamente ao cuidado no domicilio, foi solicitado que relatassem o que significava para eles cuidar e conviver com uma criança dependente de ventilação mecânica em casa. Os diálogos foram gravados em fita cassete e, após, transcritos com a finalidade de assegurar a confiabilidade das informações obtidas. As entrevistas duraram, em média, 60 minutos. Concomitante às entrevistas, foram realizadas observações das famílias estudadas no contexto do cuidado na UTIP e nos domicílios. A observação participante, segundo Minayo (1999), realiza-se através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado, a fim de se obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. 32 Trentini e Paim (1999) ressaltam que, na observação participante, o envolvimento do pesquisador na situação de estudo poderá ser passiva, moderada ou completa. Na participação passiva, o que faz é obter um posto de observação, sem se envolver com a situação. A participação moderada ocorre quando o pesquisador tenta manter um equilíbrio entre pertencer e não pertencer ao grupo, contrabalança a observação com a participação, vê a situação de dentro e de fora. A participação completa ocorre quando o pesquisador investiga uma situação na qual ele já exercia uma participação trivial, portanto, está familiarizado com a situação, acrescentando objetivos à sua observação trivial. Para este estudo, foi realizada observação participante do tipo completa no convívio diário com as famílias na UTIP e em duas visitas às famílias que se encontravam no domicílio. Realizei conversas informais à beira do leito, participei de inúmeras reuniões de equipe, montei grupos de pais com essas famílias e treinamento das mesmas para o cuidado domiciliar. A experiência como enfermeira assistencial no cuidado a essas famílias promoveu importante sentimento de empatia, pois, no cotidiano da UTIP, tornei-me referência para as mesmas e para a equipe multidisciplinar. O inter-relacionamento ao longo desses anos facilitou a coleta das informações. A partir do momento em que decidi que essas famílias seriam objeto de estudo para o desenvolvimento de minha dissertação de mestrado, passei a manter um olhar mais atento para elas, anotando todas as observações que considerei pertinentes para o desenvolvimento do estudo. Para Gualda e Hoga (1997), é essencial o envolvimento do pesquisador, o qual deve possuir atributos pessoais de sensibilidade, empatia e capacidade de interação com os informantes. Portanto, foi possível realizar uma convergência de dados obtidos nas entrevistas gravadas, nas observações realizadas e no processo de interação diária no cenário assistencial. Trentini e Paim (1999) ressaltam que é humanamente impossível para um pesquisador assistencial registrar tudo o que ocorre ao mesmo tempo em que pesquisa e assiste o paciente e família. Recomendam lançar mão de gravações e de um diário onde realize anotações telegráficas (com palavras chaves que no final do dia deverão ser interpretadas). Segundo Sarter,3 citado por Motta (1997), as anotações são a ponte entre a coleta e a interpretação dos 3 SARTER, B. Paths to knowleadge: innovative research methods for nursing. New York, 1998. 33 dados. Portanto, utilizei os registros do diário de campo para anotar as observações realizadas no contexto do cuidado na UTIP e das reuniões realizadas, assim como no domicílio das famílias. Para melhor compreender a estrutura familiar, as relações intrafamiliares e com a comunidade, durante o período de coleta, foram utilizados o Genograma e o Ecomapa (WRIGHT e LEAHEY, 2002), os quais foram fundamentais para delinear a estrutura interna e externa das famílias estudadas. Segundo as autoras, o Genograma é um esboço gráfico de uma árvore familiar representando a estrutura interna da família. Propicia informações importantes ao longo do tempo, podendo incluir dados sobre saúde, ocupação, religião, etnia e migrações. Pode ser utilizado também para desencadear informações úteis, tanto para a família quanto para a enfermeira, a respeito do desenvolvimento e outras áreas de funcionamento da família. As autoras sugerem que o Genograma seja construído pela enfermeira e pelas famílias e ressaltam que elas têm sido extremamente receptivas e demonstram interesse em participar de sua montagem. O Ecomapa tem o objetivo de representar os relacionamentos dos membros da família com os sistemas mais amplos. Retrata as relações importantes de educação ou aquelas oprimidas por conflitos entre a família e o mundo. Demonstra o fluxo ou a falta de recursos e as privações. Delineia a natureza das interfaces e pontos de intermediação, pontes a construir e recursos a serem buscados e mobilizados para os conflitos. Adaptados ao processo de cuidado às crianças dependentes de ventilação mecânica e suas famílias, o Genograma e o Ecomapa poderão ser construídos a partir do momento da internação da criança, quando a enfermeira realiza a anamnese do paciente, e ser reelaborados ao longo do período de permanência da mesma na UTIP, dando seguimento em nível domiciliar. Acredita-se que a utilização destes instrumentos poderá auxiliar as enfermeiras no acompanhamento da família e das modificações que vai sofrendo em sua estrutura, ao longo de seu desenvolvimento. 34 Para a coleta das informações junto às famílias do estudo e para manusear a documentação necessária, foi solicitada a autorização da enfermeira-chefe do Serviço de Enfermagem Pediátrica do HCPA e das colegas co-responsáveis pelo processo de alta das crianças dependentes de ventilação mecânica do HCPA. Como existiram prazos a serem cumpridos para o término do estudo e este ser um processo prospectivo, o período de coleta e o número de encontros não foram definidos previamente. À medida que as informações coletadas atenderam aos objetivos propostos, a coleta das informações foi encerrada. 3.5 ASPECTOS ÉTICOS Quanto à ética relacionada à pesquisa com famílias de crianças doentes, deve-se seguir rigorosamente o Código de Ética de pesquisa envolvendo seres humanos, a qual, segundo Goldim (1997), consiste no manejo adequado das informações de maneira a proteger todas as pessoas envolvidas no estudo, respeitando-se a sua dignidade, autonomia e privacidade. O projeto desta pesquisa foi aprovado pela Comissão Científica e Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde do HCPA, sob o n. 01-352, no dia 07 de dezembro de 2001 (Anexo A). Ao abordar o familiar, informei-o sobre os objetivos da pesquisa e lhe forneci o documento de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice D). Expliquei-lhe que as informações seriam coletadas através de entrevistas gravadas e da observação da família, realizadas ou no hospital ou em sua casa. Nesse primeiro contato, informei ao familiar que teria todo o direito de cancelar seu consentimento a qualquer momento da realização da pesquisa, sem que isso prejudicasse o cuidado a seu filho durante o período de internação ou em caso de reinternações no HCPA. Por ser um estudo qualitativo e não utilizar medicações, procedimentos invasivos, não questionar a assistência recebida pelas famílias e também pela relação que mantinha com as famílias, cuidei para não expor os familiares a situações de risco ou constrangimento, colocando-os bem à vontade para decidir se aceitariam ou não fazer parte da pesquisa. 35 Foi assegurado ao familiar que receberia todos os esclarecimentos de que necessitasse, que a sua família e seus componentes não seriam identificados em hipótese alguma, e sua privacidade seria respeitada. Se fosse necessário o uso de fotografias, foi lhe garantido que teriam objetivos científicos, e o rosto das pessoas sofreria a técnica de mosaico. Foi ainda ressaltado que as fitas das entrevistas seriam inutilizadas assim que fossem transcritas para o papel, e as informações fornecidas seriam utilizadas apenas para o objetivo proposto. No entanto, atendendo à orientação da banca examinadora do mestrado que se baseia na Lei dos Direitos Autorais 9610/98 (BRASIL, 1998-a), as gravações serão guardadas por um período de cinco anos. O documento foi digitado em duas vias, uma permanecendo com o entrevistado, e a outra, com o pesquisador. Junto com a orientadora, coloquei-me à disposição dos familiares para posteriores esclarecimentos, mesmo depois de terminada a pesquisa. 3.6 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES Polit e Hungler (1995) conceituam análise como método de organização de informações de maneira que leve o pesquisador a responder os objetivos do seu estudo. Para isso, os dados precisarão ser processados e analisados de maneira sistemática, ordenada e coerente. Neste estudo, a análise dos dados baseou-se em Trentini e Paim (1999), as quais enfatizam que na pesquisa convergente assistencial o processo de coleta e análise das informações devem ser simultâneos, a fim de facilitar a interpretação. Estas autoras, citando Morse e Field,4 lembram que, em qualquer pesquisa qualitativa, a análise das informações se desenvolve em quatro etapas, mais ou menos seqüenciais: apreensão, síntese, teorização e recontextualização. Processo de apreensão. A apreensão inicia quando o pesquisador começa a coleta das informações, requerendo, para tanto, uma organização do relato das informações obtidas. MORSE, Janice M.; FIELD, Peggy. A qualitative research methods for health professionals. 2.ed. London: Sage, 1995. 4 36 Neste estudo, foi, no primeiro momento, a transcrição das entrevistas tal qual se apresentavam. Quanto à documentação, foram utilizados os prontuários dos pacientes, dos quais foram compiladas as informações referentes à composição do núcleo familiar, idade, profissão dos pais e diagnóstico. Dos demais documentos – livro de relatório das enfermeiras, atas de reuniões de equipe e diário de campo – foram retiradas informações que reforçassem as levantadas nas entrevistas e julgadas relevantes para alcançar os objetivos propostos. Processo de síntese. Nessa fase, o material foi submetido a um estudo aprofundado, quando foi realizada a síntese das informações e transcrita para a linguagem da pesquisadora. Segundo Trentini e Paim (1999), o processo de síntese é a parte da análise onde ocorre o exame subjetivo das associações e variações das informações. Assim, o pesquisador deverá imergir novamente nas informações trabalhadas na fase de apreensão e familiarizar-se totalmente com elas, além de envolver-se em profundo trabalho intelectual. Foram então realizadas leituras verticais dos materiais coletados de cada família estudada. Em seqüência, todo o texto foi demarcado em frases ou parágrafo identificados neste estudo como unidade de significado. Exemplificando com um trecho na fala de uma das mães entrevistadas: “... tu acaba aceitando, tu acaba tendo que aceitar. No começo é horrível, mas depois a gente foi tentando aceitar aquilo que tava acontecendo/, só que a dor, a dor nunca sai,/ só que tu tem que levar pra frente/ a gente sabe que pode levar ela pra casa um dia/ e ela pode reaparecer nos meus braços/ se acontecer alguma coisa eu não quero que seja aqui na UTI, pelo menos vai ser em casa, no cantinho dela, com a família dela” (mãe de Miguel). Após a demarcação de todo o texto, as frases ou parágrafos foram analisados, buscando um sentido lógico, momento em que lhes foram atribuídos um código – subcategorias. Em nova leitura, as unidades de significado foram agrupadas por semelhanças de códigos, dando origem às categorias. Posteriormente, foram realizadas leituras horizontais, ou seja, leituras dos materiais das quatro famílias, buscando identificar as categorias semelhantes, agrupando-as novamente chegando assim aos subtemas e aos dois temas principais relacionados às vivências das famílias. 37 Portanto, delineei os seguintes primeiros subtemas: Enfrentando mudanças no cotidiano, Organizando e estruturando a família, Deparando-se com a cronicidade da doença e Visualizando a possibilidade da alta hospitalar. Estes subtemas geraram o primeiro tema: A família cuidando o filho dependente de ventilação mecânica na UTIP. Analisando a vivência das famílias estudadas no domicilio, cheguei aos seguintes subtemas: Enfrentando o desafio da permanência em casa, Buscando melhorar a organização familiar e Refletindo sobre a qualidade de vida. Estes subtemas compuseram o segundo tema, ou seja, A família cuidando o filho dependente de ventilação mecânica no domicílio. Processo de teorização. As autoras citadas acima referem que, na fase de teorização, o pesquisador desenvolve esquema teórico partindo das relações identificadas no processo de síntese. Assim, neste estudo foram realizadas inferências e interpretações, apoiadas na experiência assistencial da pesquisadora com famílias e no referencial teórico de alguns autores contemporâneos como Elsen (1994), Marcon e Andrade (1998), Motta (1997) e Ribeiro (1999), dentre outros. Foi também realizada uma reflexão sobre a temática do estudo no capítulo 2, onde abordei a família diante do processo de doença e hospitalização da criança. Realizei uma revisão bibliográfica sobre as patologias das crianças envolvidas no estudo, a fim de facilitar o entendimento das doenças que levaram essas crianças a desenvolver uma doença crônica e dependência de ventilação mecânica. No capítulo 4, fiz referência ao processo do cuidado de enfermagem às famílias de crianças dependentes de ventilação mecânica na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Nele, abordei o contexto do cuidado, o preparo da família para a alta, a abordagem de enfermagem visando ao cuidado domiciliar e o protocolo de alta referendando o treinamento dos cuidadores familiares. No capítulo 5, fiz uma apresentação das famílias a fim de focalizar a estruturação social, cultural, econômica e religiosa das famílias estudadas. Processo de transferência ou de re-contextualização. O processo de transferência ocorre na medida em que o autor tenta contextualizar os achados a situações similares, sem buscar, no entanto, a generalização. Portanto, acredito que o resultado deste estudo poderá será utilizado por outros profissionais da área da saúde em sua prática assistencial no processo de cuidado de famílias que vivenciam a internação prolongada do filho com doença crônica. 38 Abaixo, apresento um quadro, exemplificando como, partindo de algumas unidades de significado, cheguei a determinadas categorias, subtemas e um dos temas deste estudo. UNIDADES DE SIGNIFICADO A gente não conhecia o ambiente. Era a primeira vez na minha vida que eu tinha entrado numa UTIP. Pra mim era um pânico! (pai de Miguel) Tu mudas todos os teus hábitos! Conviver dentro de um hospital não é fácil! Tem que ter muita persistência! (pai de Miguel) ... se eu não pudesse ficar com a minha filha ali dentro [na UTIP] ... sem poder trocar as fraldas, as roupinhas! (mãe de Maria da Graça) ... a gente não vai conseguir ajudar os sócios a pagar a terra que foi comprada. ... O que a gente já deu na entrada da terra a gente perde! (mãe de Marcos) Os dois anos e meio de internação foram complicados! Eu ficava muito tempo no hospital. Teve vezes em que quase nos separamos por causa disso! (mãe de Viviane) Eu ficava muito tempo no hospital e me esquecia do meu filho mais velho! Daí, ele ficou bastante revoltado (mãe de Marcos) Porque no inicio eu ficava todo o tempo no hospital. Depois ficamos eu e a minha sogra se dividindo. Com a ajuda dela eu consegui me organizar (mãe de Viviane) CATEGORIAS Defrontando-se com o ambiente da UTIP Mudando a rotina de vida SUBTEMAS TEMA 1 Cuidando o filho na UTIP Deparando-se com problemas financeiros Procurando manter a unidade familiar Relacionandose com os outros filhos Necessitando de apoio Enfrentando mudanças no cotidiano A família cuidando o filho dependente de ventilação mecânica na UTIP Organizando e estruturando a família 39 4 O PROCESSO DE ALTA DE CRIANÇAS DEPENDENTES DE VENTILAÇÃO MECÂNICA NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA DO HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE Anteriormente à apresentação dos temas sintetizados na análise das informações obtidas nas entrevistas, reuniões com as famílias e observação participante, relacionando com os objetivos propostos neste estudo, senti a necessidade de delinear um capítulo que mostrasse o contexto do cuidado e como ocorre a abordagem de enfermagem no cuidado às famílias de crianças dependentes de ventilação mecânica na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do HCPA. Neste capítulo, abordarei também o protocolo utilizado pela equipe da UTIP no processo de alta destas crianças. 4.1 O CONTEXTO DO CUIDADO O Hospital de Clínicas de Porto Alegre é um hospital público, universitário, de direito privado e de atenção múltipla.5 Possui 725 leitos, dos quais 104 são de pediatria, divididos em quatro Unidades de Internação. A equipe de enfermagem é administrada pelas Chefias de Unidade, pela Chefia do Serviço de Enfermagem Pediátrica e pela Coordenação do Grupo de Enfermagem. Desde sua inauguração, em 1979, a pediatria do HCPA desenvolve o cuidado de enfermagem baseada nos conceitos da permanência conjunta pais e filhos, os quais vêm sofrendo a influência dos referenciais do cuidado a criança, adolescente e família, desenvolvidos nos núcleos de pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do trabalho de integração docente, discente e assistencial. O Núcleo do Desenvolvimento Humano, Ensino, Saúde e Educação (NEDHESE) tem auxiliado nesta integração, conjuntamente aos estudos e às pesquisas com famílias realizados pelo O conceito de Hospital Universitário de Atenção Múltipla é traduzido na Missão Institucional do HCPA: formar recursos, gerar conhecimentos, prestar assistência de excelência e referência e, através da maximização do aproveitamento da infra-estrutura instalada, transpor seus objetivos próprios, atuando decisivamente na transformação de realidades e no desenvolvimento pleno da cidadania, qualificando-se, desta forma, como Hospital de Atenção Múltipla (HCPA, 1997). 5 40 Laboratório de Estudo Interdisciplinar com Famílias (LEIFAMS) da Universidade Federal de Santa Catarina. A presença do familiar durante o período de internação da criança pode ser vista como uma oportunidade de interação constante, proporcionando à equipe e à família momentos de intensa troca de informações, conhecimento e experiências, sendo fator decisivo para a família alcançar sua autonomia no cuidado à criança no domicílio. Nunes (1986), argumentando sobre a implantação do Sistema de Permanência Conjunta Pais e Filhos na pediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre em 1979, diz que o planejamento da assistência à criança e família pela equipe se fundamenta na atitude de interação, visando reduzir o período de separação criança/família e proporcionando a manutenção dos vínculos afetivos, adaptação à situação de hospitalização, reduzir o tempo de internação, ter os pais como participantes no tratamento e recuperação dos filhos e oferecer à família reforços educativos para hábitos de saúde. A autora ressalta que o objetivo não é ter os pais como meros espectadores do cuidado ao filho, mas fazendo parte do momento do cuidado. A Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do HCPA, classificada em nível três pelo Ministério da Saúde, conforme a Portaria nº 3432, de 12 de agosto da 1998 (BRASIL, 1998-b), possui treze leitos, divididos em duas áreas físicas contíguas. O objetivo da unidade é o atendimento de pacientes com risco iminente de morte, mas com possibilidade de recuperação e que requerem serviços de assistência médica e de enfermagem nas 24 horas, visando reduzir a mortalidade pela provisão de cuidados e observação contínua e integral (HCPA, 2000). O cuidado tem foco individualizado, relacionado às necessidades humanas básicas afetadas e valorizando a família como fator importante para a promoção, reabilitação e manutenção da saúde física, mental e afetiva da criança. O atendimento é realizado a pacientes com doenças respiratórias graves, transtornos hidroeletrolíticos, doenças infecto-contagiosas, doenças hematológicas e oncológicas e pósoperatórios de grandes cirurgias. Os pais podem permanecer com a criança nas 24 horas, durante todo o período de internação. Revezam-se entre si, com outros membros da família ou com pessoas que fazem parte do círculo de amigos. 41 O HCPA, por ser um hospital de referência para algumas doenças, recebe crianças de todas as regiões do Estado do Rio Grande do Sul, de outros Estados da Federação e de outros países. Possui um alojamento para as mães de crianças moradoras na Grande Porto Alegre e no interior do Estado. Localizada em prédio próprio, ao lado do HCPA, a Casa de Apoio tem como objetivo abrigar gratuitamente as mães de crianças que estão em tratamento nas Unidades de Internação Pediátrica e UTIP. Possui 54 leitos, banheiros com chuveiros, lavanderia, cozinha e sala de estar (HCPA, 1997). As mães podem repousar, realizar sua higiene, lavar, secar, passar suas roupas e cozinhar sua refeição. Até o momento, o hospital não dispõe de alojamento para os acompanhantes do sexo masculino, sendo necessário encaminhar os pais para albergues ou hotéis nas proximidades do hospital. 4.2 O PREPARO DA FAMÍLIA PARA A ALTA O processo de alta hospitalar das Crianças Dependentes de Ventilação Mecânica da UTIP do HCPA tem o objetivo de oferecer à família condições de melhorar sua qualidade de vida, convivendo e cuidando de uma criança que necessita cuidados especiais, e, nesse caso, a equipe interdisciplinar da UTIP exerce um papel importante. Este processo depende do interesse da família, das suas condições socioeconômica e cultural, de reorganização familiar, da capacidade cognitiva para o aprendizado no treinamento dos cuidadores domiciliares, do comprometimento dos profissionais e órgãos públicos envolvidos e da comunidade onde a família está inserida. A alta hospitalar dessas crianças é geralmente demorada, gerando ansiedade e angústia na família, fazendo com que necessite de apoio da equipe em cada etapa a ser vencida. Percebo que esse acompanhamento oferecido pela equipe tem sido o ponto norteador da busca pela autonomia da família nos cuidados prestados à criança ainda no ambiente da UTIP, visando o cuidado domiciliar. Motta (1997) diz que a família tem condições de cuidar se ela for cuidada. Se a família for assistida, pode dar suporte a seus membros e adequar-se às novas necessidades. Ribeiro (1999) ressalta que a substituição do cuidado profissional pelo familiar deve ser gradativa, à medida que a família se sinta capacitada para o cuidado. 42 Durante o período de internação, a equipe da UTIP vai gradativamente transferindo as ações de cuidado com a criança dependente de ventilação mecânica para a família, para que esta consiga assumi-los integralmente antes da alta para casa. Segundo Trotta et al. (2002), nesta fase de preparação da família para a alta, são necessárias intervenções da equipe da UTIP, como: Orientação: auxiliar o encontro de alternativas que amenizem as dificuldades enfrentadas pela família; Esclarecimento: levar os familiares da criança a adquirirem uma compreensão exata da situação vivenciada, capacitando-os a agirem de modo satisfatório e realista; Discussão reflexiva e interpretação: liberar os familiares de tensões, permitindo discernir a realidade e agir objetivamente; Apoio: baseado na compreensão da realidade, encorajando os familiares e reforçando suas possibilidades e potencialidades; Auxílio material: alcançar e/ou encaminhar a recursos para adquirirem materiais concretos. A rede de apoio da comunidade é acionada, usando-se a política de referência e contrareferência: a transferência da criança para sua casa exige que a comunidade se estruture para recebê-la. O hospital mais próximo é contatado para se organizar, a fim de oferecer os primeiros cuidados caso a criança apresente algum tipo de intercorrência e necessite retornar ao HCPA. Um pediatra a acompanha em visitas periódicas, podendo ser procedente da Unidade Básica de Saúde mais próxima, médico conveniado ou particular. 4.3 A ABORDAGEM DE ENFERMAGEM VISANDO AO CUIDADO DOMICILIAR Referindo-se especificamente à assistência desenvolvida pela enfermagem na UTIP, é proporcionado aos pais atendimento em grupo e individualizado através do Programa de Apoio à Família (PAF), cujos profissionais fazem parte do quadro de enfermeiros da UTIP e 43 são referências para as famílias. Caracteriza-se, portanto, como um programa desenvolvido por enfermeiros do Serviço de Enfermagem Pediátrica do HCPA e tem como objetivo a assistência de enfermagem à família das crianças internadas na pediatria. São realizados atendimentos aos pais, oficinas com os cuidadores familiar e profissional e pesquisas com famílias. O atendimento grupal é realizado semanalmente através de Grupo de Pais, com a participação do pai, mãe e/ou outro familiar da criança internada, da assistente social, de um médico residente do 3º ano, de acadêmico de psicologia e de um enfermeiro. O atendimento individualizado ocorre duas vezes na semana, com o pai e/ou a mãe, podendo incluir outros familiares. O enfermeiro ouve a família a fim de auxiliá-la na resolução de problemas e dificuldades, planejando as intervenções de enfermagem. Se necessário, é encaminhada para outros profissionais. O atendimento do enfermeiro do PAF é complementado pelo grupo de enfermeiros da UTIP, sendo que o primeiro é o organizador do cuidado às famílias. Além do atendimento em grupo e individualizado, o enfermeiro participa de reuniões sistemáticas com o casal de pais e outros integrantes da equipe interdisciplinar, com o objetivo de lhes oferecer um espaço para discussão de problemas, verbalização de sentimentos, angústias, dúvidas sobre o processo saúde/doença e sobre a alta hospitalar. Motta (1998) afirma que a família que experimenta a doença, passa a viver uma outra dimensão do existir. A doença faz com que os familiares precisem parar e se articular a fim de levar a vida adiante. O mundo familiar pode sofrer uma significativa desorganização. O enfrentamento da doença leva a família a transformar-se, a redimensionar o papel de cada integrante. Assim, durante o atendimento individualizado à beira do leito e em reuniões com os pais, o enfermeiro tem a oportunidade de abordar assuntos como, por exemplo, os sentimentos, a reorganização de papéis intrafamiliares, a atenção aos outros filhos e a ajuda da rede de apoio familiar e comunitária. A necessidade de preparar a família para a alta da criança dependente de ventilação mecânica exigiu da equipe de profissionais da UTIP o delineamento de um processo 44 educacional e legal, a fim de oferecer aos familiares cuidadores subsídios para cuidar a criança em sua casa. Este processo perdura por vários meses, podendo levar mais de um ano de duração, iniciando quando a família coloca sua vontade de levar a criança para casa, até o momento da alta hospitalar, podendo se estender com visitas sistemáticas da equipe a residência da família. O processo educativo desenvolvido durante o período de internação é imprescindível, a fim de preparar a família para o cuidado domiciliar. Segundo Miranda, citada por Marcon et al. (1998), a participação do paciente e da família na prestação de cuidados deve ser encorajada a manter-se desde o primeiro dia de hospitalização e, posteriormente, se necessário, no ambiente domiciliar. Para tanto, é de suma importância a participação da equipe da UTIP no processo de preparação da família para o cuidado domiciliar. Elsen e Marcon (1999) afirmam que a assistência à família, e em especial a assistência no domicílio, é permeada por um caráter imprevisível, uma vez que é a situação vivida pela família que determina a necessidade do cuidado. Isto, por sua vez, exige do profissional a utilização de recursos e estratégias adequadas a cada situação, atualização e reorganização de seu papel enquanto educador, além de uma constante revisão de sua própria postura profissional. Neste processo, ações de enfermagem vêm sendo implementadas e desenvolvidas com o objetivo de capacitar a família durante o período de internação da criança, para o cuidado domiciliar. Essas ações vão desde o reforço do cuidado que a família comumente desenvolve no cuidado a uma criança saudável em casa, até cuidados mais complexos para cuidar o filho com necessidades especiais no domicílio. Dias et al. (1999) renomearam as ações, já anteriormente desenvolvidas pelos enfermeiros no cuidado à família na UTIP do HCPA, baseadas no trabalho com grupos desenvolvido por Bissailon et al. (1997) no Toronto Hospital, Canadá. Estas ações compreendem: 1. Compartilhando informações; 2. Estando presente; 3. Promovendo ações educativas; 4. Preparando a família para o cuidado domiciliar de crianças com cuidados especiais. Para este estudo, realizei a conjunção da quarta ação à terceira, considerando que ambas incluem um processo educativo. Ao refletir sobre a operacionalização dessas ações, 45 incluo uma quinta ação, que tem relação à etapa de desvinculação da família e equipe. Portanto, as ações são desenvolvidas em três etapas: Compartilhando informações – mediante anamnese de enfermagem, o familiar transmite informações sobre a história de vida da criança e do seu contexto sócioeconômico-cultural. Durante o período de internação, enfermeiro e família trocam informações sobre as rotinas de funcionamento da unidade, sobre exames e procedimentos a serem realizados, evolução do tratamento e o processo de cuidado da criança e da família. Althoff et al. (1998) comentam que a conscientização das condições de vida da família é realizada através do levantamento de informações e observação da família, buscando compreender a sua história de vida, o seu espaço físico e social, os suportes e os recursos utilizados, as necessidades e as potencialidades da família. Fortes e Martins (2000) reforçam que a informação é o elemento vital para que a família possa tomar decisões. A equipe deve estar consciente da responsabilidade de esclarecê-la sobre questões que lhe dizem respeito, considerando as condições sócio culturais de cada família. Estando presente – o enfermeiro observa e interage com a família no cotidiano do cuidado, no momento de avaliação da criança, contato individual e em grupo. Estes contatos visam a conhecer os processos internos e externos da família, a fim de apoiá-la no enfrentamento das situações vivenciadas durante a internação do filho na UTIP. Santos (1996) ressalta que o enfermeiro deve enfocar os aspectos histórico, social, cultural, afetivo e econômico do contexto de cada família, valorizando-os no desempenho de suas ações no processo de interação com a mesma. Teixeira (2000) diz que, apesar de a enfermagem manter uma convivência contínua com os clientes, nem sempre a capacidade de ouvir as pessoas é desenvolvida no profissional. 46 Este, na maioria das vezes, desenvolve mais a visão, as habilidades manuais e se condiciona às rotinas institucionais, em detrimento da aproximação com o cliente. Portanto, concordo com Watson, citada por George (2000), quando diz que ter a família do paciente mais próxima permite ao profissional entrar no processo de cuidados transpessoais, confortando, ouvindo e permitindo a livre expressão de sentimentos relacionados às normas culturalmente relevantes da pessoa. Para trabalhar com famílias, o enfermeiro deverá estar aberto aos desafios e conhecer as suas realidades e da comunidade em que estão inseridas. Para conhecer a família e interagir adequadamente, buscando uma relação empática e de confiança mútua, o enfermeiro deve procurar destituir-se de valores pré-concebidos e aceitar os valores de vida da família. Promovendo ações educativas – engloba o ensinar procedimentos simples e procedimentos complexos. O enfermeiro orienta os pais na realização de cuidados que necessitem de reforço educativo, relacionados à higiene da criança, ao conforto físico e emocional, alimentação por via oral, estimulação e recreação. No processo de preparo para a alta da criança dependente de ventilação mecânica, o enfermeiro ensina técnicas mais elaboradas e complexas, preparando a família para o cuidado. Treinamento dos cuidadores familiares – O período que os familiares necessitam para o treinamento é longo e deve iniciar tão logo a equipe tenha um retorno favorável do estado e município ou do plano de saúde da família para a alta hospitalar da criança. A equipe tem que ter absoluta certeza de que os familiares consigam realizar corretamente os cuidados necessários. Com a proximidade da alta, diz Ribeiro (1999), devem ser revistas com os pais as dúvidas e necessidades relacionadas à continuidade dos cuidados do filho no domicílio. Os familiares receberão as seguintes orientações de enfermagem: banho e cuidados de higiene da criança em uso de ventilador mecânico; observação e medidas de sinais vitais; troca de curativos (traqueostomia, gastrostomia, outros); troca e aspiração de cânula de traqueostomia; ventilação com ressuscitador manual; cuidados na alimentação por sonda nasoentérica ou gastrostomia; prevenção de úlceras de decúbito; cuidados na mobilização do paciente; montagem e desmontagem equipamentos. A família recebe, 47 também, treinamento para casos de urgência, como obstrução ou retirada acidental da cânula de traqueostomia. Quanto aos cuidados de limpeza e desinfecção dos equipamentos, recebe treinamento específico da enfermeira da Comissão de Controle de Infecção do hospital. Ainda na fase de treinamento, a equipe médica da UTIP repassa ao cuidador familiar, conhecimentos de princípios gerais do funcionamento dos equipamentos, parâmetros do ventilador mecânico e saturômetro usados pelo paciente; medicamentos em uso e procura ao Sistema de Saúde. Os cuidadores familiares também serão orientados na preparação da alimentação do paciente, pela nutricionista. Caso o quadro clínico da criança torne-se instável, inviabilizando a alta, o treinamento poderá ser suspenso e ser retomado quando o paciente voltar a manter o quadro clínico estável. O processo de alta também poderá ser inviabilizado se a família nuclear não conseguir se organizar para a permanência da criança em casa, o que é o exemplo das que não conseguem auxílio da família ampliada. Sozinhos, alguns pais não têm condições de cuidar a criança pois necessitarão de auxílio para realizar as atividades domésticas, os cuidados com os outros filhos, manter atividades sociais e vínculo empregatício. Caso a família não tenha condições de assumir os cuidados, poderá se resguardar do direito de solicitar ao seu plano de saúde ou ao Ministério Público os serviços de uma empresa de cuidados domiciliares. A família, conforme seu próprio ritmo de aprendizado, vai assimilando as orientações que lhe são passadas no período de treinamento e assumindo os cuidados que irá realizar no domicílio. Este processo se desenvolve ao longo do processo de treinamento. Aos poucos, os cuidadores familiares vão assumindo os cuidados e tornando-se autônomos na sua realização. À medida que o dia da alta vai se aproximando, família e equipe vão assimilando uma fase que poderemos denominar de desvinculação. A equipe da UTIP não fornece os cuidados domiciliares à criança, esse cuidado tem sido exercido exclusivamente pelos pais das crianças dependentes de ventilação mecânica. Como os familiares saem do hospital na fase em que são considerados aptos para o cuidado domiciliar, as visitas domiciliares pós-alta não têm seguido uma sistemática preestabelecida. As famílias têm sido visitadas cada três meses no período de internação e se intensificando ao 48 chegar próximo da alta da criança. Têm como objetivo fazer com que a família se sinta segura e com mais autonomia na realização dos cuidados pós a alta. Segundo Dias et al. (1999), ao longo dessa metodologia de trabalho, o grupo de enfermeiros da UTIP do HCPA sentiu necessidade de avaliar o nível de assimilação de conhecimento das técnicas realizadas pelos familiares. Para tanto desenvolveu uma ficha de avaliação aplicada a cada familiar que entra no processo de treinamento. Pelo menos dois familiares precisam ser identificados pelos enfermeiros e habilitados para desenvolver esses cuidados durante a internação da criança na UTIP, a fim de aplicá-los no domicílio. 4.4 PROTOCOLO DE ALTA Trotta et al. (2002) elaboraram um protocolo (Anexo B) para sistematizar o processo de alta domiciliar para pacientes em ventilação mecânica. Segundo as autoras, o primeiro passo do processo é identificar o paciente com patologia crônica, com dependência de tecnologia. Para a criança ser considerada apta para a alta, é necessário ser considerada clinicamente estável, ou seja, sem necessidade de mudanças freqüentes ou emergenciais de prescrição; sem necessidade de acesso venoso, exceto cateteres implantados de longa permanência; sem necessidade de exames complementares de urgência e sem disfunção aguda de órgãos ou sistemas. Como são pacientes dependentes de ventilação mecânica, faz-se necessário que esteja com cânula de traqueostomia e sem necessidade de mudanças freqüentes na concentração de oxigênio. É necessário que a criança mantenha uma ingestão nutricional adequada às suas necessidades de crescimento e desenvolvimento, e com acesso seguro à via digestiva ou via venosa, quando for o caso. Após, identifica-se o interesse da família em levar a criança para casa. Este desejo deverá partir dos pais, pois eles deverão ser as pessoas mais interessadas em levar o filho para o domicílio. Parte-se então para uma avaliação psicossocial da família, desenvolvida pela assistente social e pelas equipes médica e de enfermagem. Nesta etapa, são realizadas reuniões com os pais ou responsáveis legais, com a exposição da situação atual da criança e 49 possibilidade de alta hospitalar. Estas reuniões se manterão semanalmente, com a finalidade de esclarecer dúvidas e inquietudes. Neste processo serão observadas e avaliadas as habilidades cognitivas, emocionais e motoras dos cuidadores familiares assim como a realidade do sistema familiar (constituição e dinâmica familiar, identificação de conflitos familiares, identificação da compreensão da realidade de doença da criança, motivação, interesse e disponibilidade em levar a criança para o domicílio, identificação de outros membros da família que auxiliarão no atendimento a criança etc.). O próximo passo é a realização de uma visita à residência da família, à Unidade básica de saúde e ao hospital mais próximos ao domicilio. Quando a família é residente no interior do Estado, a visita é realizada pela assistente social da prefeitura do município de origem. A visita ao domicílio tem o objetivo de avaliar as condições socioeconômicas da família, estrutura física da residência, análise da rede de apoio familiar e da comunidade. Na Grande Porto Alegre, a visita é realizada por equipe interdisciplinar da UTIP do HCPA, formada por uma médica, uma assistente social e uma enfermeira. Nesta primeira visita, alguns pontos já são discutidos com a família, como, por exemplo, a melhor localização da criança na casa, a fim de dar mais visibilidade e segurança aos cuidadores domiciliares. A equipe utiliza um roteiro (Anexo C) com a finalidade de padronizar a avaliação realizada na primeira visita domiciliar. Após realizar a análise das condições de moradia da família, conversa com os pais a fim de estabelecer as necessidades e prioridades de melhoria da habitação para receber a criança e os equipamentos necessários ao processo de cuidado. Os pais deverão realizar as benfeitorias no domicílio consideradas essenciais. São aconselhados a morar em casa e não em apartamento, devido ao intenso ruído emitido pelo concentrador de ar e pelo gerador de energia. Atualmente, esse problema já está sendo solucionado com a troca dos respiradores por aparelhos de tecnologia mais avançada, que não exigem muitos acessórios. A equipe da UTIP também realiza uma visita de reconhecimento à Unidade Básica de Saúde e ao hospital mais próximos à residência dos pacientes moradores da Grande Porto Alegre. Previamente combinada, a visita aos administradores objetiva passar informações a 50 respeito do paciente e da maneira como devem ser prestados os cuidados domiciliares. A Unidade Básica de Saúde deverá ficar encarregada de acompanhar o peso do paciente e administrar as vacinas no domicílio da criança. Quanto às famílias moradoras no interior do Estado, a equipe da UTIP entra em contato com a Prefeitura, normalmente se dirigindo à assistente social, a fim de estabelecer um elo de comunicação, avaliação das condições socioeconômicas, localização da moradia e recursos da comunidade. Concomitante à avaliação psicossocial da família são realizados testes dos equipamentos apropriados para uso domiciliar, no próprio paciente. Se o paciente tem condições de adaptação a um tipo de respirador que permita sua permanência em casa com segurança, é elaborado um relatório com diagnóstico, histórico da doença no período de internação e seu estado de saúde no momento, o qual é entregue à família para que providencie, junto ao gestor de saúde de sua cidade de origem ou em Porto Alegre, a transferência da criança para casa. É realizada orientação à família para a obtenção dos equipamentos junto à instituição de assistência médica da qual é beneficiária (SUS ou convênios). Se o paciente estiver internado pelo Sistema Único de Saúde, o Estado é acionado. Se for do sistema de previdência do Estado, o Instituto tem assumido todo o processo de aquisição de equipamentos e manutenção do paciente no domicilio (ainda não tivemos caso de paciente do sistema privado de saúde). Posteriormente, realiza-se contato com as instituições que ficarão responsáveis pela assistência ao paciente, com o estabelecimento das competências nessa área (serviços de cuidado domiciliar, Secretarias de Saúde, recursos da comunidade). Neste ínterim, é realizado treinamento dos familiares nos cuidados com o paciente, por todas as equipes ou serviços envolvidos na assistência à criança. Finalmente, a família e equipe da UTIP assinam os formulários apropriados para a alta, e a mesma é incluída no Programa de Visitação Domiciliar a Pacientes Dependentes de Tecnologia Egressos da UTIP do HCPA. 51 5 APRESENTANDO AS FAMÍLIAS Optou-se em apresentar as famílias que participaram do estudo num capitulo à parte, devido à quantidade de informações a respeito da dinâmica familiar. Descreveu-se cada uma das quatro famílias, utilizando-se o Genograma e o Ecomapa para a melhor compreensão da. estrutura interna e das relações externas que as caracterizam. O Genograma da família mostra as três gerações que a compõem. O Ecomapa representa as relações intrafamiliares e as relações com a comunidade (HCPA, plano de saúde, governo, escola, recreação e lazer, dentre outras). No Ecomapa, as linhas contínuas e mais grossas representam relações fortes, e as finas e tracejadas, as relações que no momento estão fracas ou rompidas. As linhas ausentes representam falta de vinculação ou rompimento total na relação. A família de Viviane Viviane tem quatro anos de vida. É dependente de ventilação mecânica desde o primeiro mês de vida, quando internou na UTIP do HCPA por insuficiência respiratória. Permaneceu internada nessa Unidade por dois anos, e há dois anos está no domicílio. O diagnóstico médico de doença de Wernig-Hoffmann fez com que fosse à ventilação mecânica no primeiro mês de vida. Está traqueostomizada. Apresenta flacidez muscular generalizada, ptose palpebral bilateral que foi se acentuando. A visão e audição se mantêm preservadas. Realiza movimentos oculares voluntários, e estes são os únicos movimentos de mímica que consegue realizar a fim de responder as perguntas que lhes são dirigidas. Devido ao comprometimento dos músculos mastigatórios, necessitou de sonda nasoentérica para alimentação nos primeiros meses de vida e, posteriormente, foi colocado um bóton de gastrostomia. A defecação é comprometida devido à diminuição do peristaltismo intestinal, necessitando de dieta com fibras e medicação laxante. Micção se mantém espontânea. Como a patologia envolve o sistema nervoso autônomo, não realiza nenhum movimento muscular ativo, exceto os leves movimentos oculares para responder às perguntas que lhe são dirigidas – para cima, responde sim; para baixo, responde não. Realiza também um movimento quase que imperceptível com os dedos indicadores das mãos quando solicitada. 52 A família reside em um município distante 40 km do HCPA. O hospital da cidade ficou sendo a referência para prestar os primeiros cuidados à criança e encaminhá-la à UTIP do HCPA em caso de intercorrências. O acompanhamento médico de rotina é realizado pelo médico da Unidade Básica de Saúde do município, que a visita sistematicamente. O plano de saúde da família é o Sistema Único de Saúde (SUS). Viviane Figura 1: Genograma da família de Viviane O núcleo familiar é constituído pela mãe (27 anos), pai (27 anos), irmão (8 anos) e Viviane (4 anos). O pai é entregador de jornal, e a mãe é do lar. A mãe trabalhava antes de Viviane nascer e saiu do emprego quando soube da doença da filha. O filho mais velho é hígido e estuda na 2ª série do ensino fundamental, tem uma boa relação com a irmã (durante as visitas domiciliares, procura chamar a atenção sobre ele, mostrando brinquedos. Quando estimulado, mostra os temas escolares e parece ficar mais feliz quando se mostra a ele que é importante tanto quanto a irmã). A família não faz acompanhamento com profissional da área de saúde mental porque os pais têm dificuldades para aceitar a terapia. Durante a internação hospitalar da filha, a mãe de Viviane aumentou de peso e não conseguiu recuperar a forma depois que a filha foi para casa. O pai se manteve com o peso estável. A família é da raça branca, não souberam informar a origem étnica. A mãe é católica, e o pai, espírita. A família expandida é constituída por oito pessoas. Os avós paternos se separaram depois que a neta foi para o domicílio. Além do casal de pais, a avó paterna era a pessoa mais atuante no auxilio aos cuidados domiciliares de Viviane, mas, após a separação, 53 precisou trabalhar, sobrando menos tempo para auxiliar o casal. Os avós maternos também foram presentes durante todo o período de internação de Viviane e auxiliam eventualmente a família. A avó materna é asmática, tendo sido internada diversas vezes em crise de asma grave. O avô materno foi alcoolista durante 27 anos, tendo parado de beber depois que soube do diagnóstico da neta. O Ecomapa da família de Viviane foi construído a partir das relações atuais da família, sua estrutura interna, com as relações de apego e as relações com a comunidade: Trabalho Religião Lazer Religião Atividade física Equipe da UTIP Atividade física Trabalho Famílias de CDVM Recreação com os meninos da vizinhança. Viviane Família ampliada Escola Ambiente Estuda na 2ªsérie ensino fundamental: bom aproveitamento Governo Estadual Recreação Governo Municipal Legenda-: vínculo forte vínculo fraco vínculo rompido sem vínculo Figura 2: Ecomapa da família de Viviane A família ampliada tem auxiliado o casal com ajuda financeira, e percebe-se que mantém um bom vínculo com a família nuclear de Viviane. Sempre foi uma família presente e atuante durante o período de internação hospitalar da criança. 54 No cuidado domiciliar, a mãe é a pessoa que assume praticamente todos os cuidados com Viviane, a limpeza da casa e os cuidados com o marido e o filho mais velho. É a pessoa que toma as decisões em relação à manutenção da filha em casa, procurando a Secretaria da Saúde do Município ou do Estado quando necessita de ajuda (p. ex., a troca e consertos de aparelhos e medicamentos). O pai auxilia nos cuidados dos filhos e da casa quando está em folga do trabalho, mas é uma figura secundária na participação da dinâmica familiar. A família mora em uma casa de alvenaria construída pelas famílias materna e paterna, no mesmo terreno onde moram a avó e um tio paterno. A casa é constituída de dois cômodos – um quarto pertencente ao irmão de Viviane, um conjugado, que serve de quarto ao casal e à Viviane, estendendo-se como cozinha e lavanderia. A casa possui um banheiro. O cômodo que congrega o quarto, cozinha e área de serviço oferece ampla visibilidade da criança, facilitando o cuidado, pois, enquanto o familiar cozinha, lava roupa e limpa a casa, consegue observar a criança. Na primeira visita à casa de Viviane, quando pronta, a equipe sugeriu que o casal construísse um quarto privativo, logo que tivessem condições financeiras, a fim de manter sua privacidade de casal. A construção do quarto foi realizada antes de a criança receber alta do hospital, mas o casal optou em manter sua cama no cômodo conjugado, ao lado da cama de Viviane, e assim tem se mantido nesses dois anos em que a criança está em casa. O quarto privativo é utilizado pelo pai de Viviane durante o repouso diurno após o trabalho noturno. Na ausência do pai, a mãe de Viviane costuma colocar as duas crianças em sua cama, ou seja, a filha acoplada ao respirador artificial e o filho mais velho (refere que as crianças gostam de dormir com ela). O casal possui um carro que serve de meio de transporte para o trabalho realizado pelo pai, que é entregador de jornal. Em caso de necessidade, esse veículo transporta Viviane para o hospital mais próximo ou para o HCPA. A família ainda tem como referência para o transporte da criança, em caso de urgência, a ambulância da prefeitura do município onde reside. Viviane necessitou reinternar na UTIP do HCPA por três vezes desde que foi para casa, mas por, no máximo, três dias. A família raramente tem procurado os profissionais da UTIP do HCPA, conseguindo resolver suas necessidades com as secretarias estaduais e municipais de saúde. 55 A família de Maria da Graça Maria da Graça é dependente de ventilação mecânica desde os seis meses de vida, quando internou na UTIP do HCPA por suspeita de obstrução alta e insuficiência respiratória. Primeiramente, teve diagnosticado encefalopatia de Leigh. Maria da Graça permaneceu internada nesta unidade por dois anos e meio e atualmente está no domicílio. Como a patologia envolveu o sistema nervoso central, a criança não realiza nenhum movimento muscular ativo, somente contraturas musculares quando manuseada para realização de algum cuidado. Perdeu todo o contato com o ambiente e com as pessoas. Apresentava tecido adiposo abundante necessitando de restrição dietética. Mantém cânula de traqueostomia devido à necessidade de ventilação mecânica prolongada. Eliminações permanecem espontâneas. Necessita ser alimentada através de sonda nasoentérica porque os pais não permitiram a colocação de bóton de gastrostomia. Maria da Graça Figura 3: Genograma da Família de Maria da Graça O núcleo familiar é constituído por pai (25 anos), mãe (24 anos) e Maria da Graça (5 anos) que é a primeira e única filha do casal. A família reside em um município distante 400 km de Porto Alegre. O hospital de referência para internação de urgência é o da cidade mais próxima, distante 40 km da residência. A UTIP do HCPA continua disponível caso a família necessitar internar a criança em Porto Alegre. Os pais possuem o Plano de Saúde do Instituto de Previdência do Estado (IPE). O acompanhamento médico atual é realizado por médico credenciado pelo IPE. 56 A família mora em uma casa de alvenaria, construída pela família paterna. Possui um carro. Durante o período de internação hospitalar de Maria da Graça, o casal alugou um apartamento em Porto Alegre, próximo ao HCPA. O pai é funcionário público municipal, e a mãe se demitiu do emprego quando internou a filha no HCPA. O pai permaneceu em atendimento psiquiátrico pelo IPE, durante o período de internação da filha; a mãe não aceitou fazer terapia, embora tenha lhe sido oferecido atendimento por profissional do HCPA. São da raça branca, descendente de italianos e seguem a religião católica. O pai manteve-se presente ao lado da mãe, revezandose no cuidado à filha no hospital durante todo o período de internação. Não conseguiram manter um bom relacionamento com a equipe da UTIP e com os outros pais de crianças com longo período de internação. Comumente, demonstravam seus sentimentos de raiva e revolta pela doença da filha. A família ampliada é constituída de sete pessoas. O avô materno faleceu em 2001. A família auxiliou esporadicamente o casal no cuidado a Maria da Graça durante o período de internação da criança devido à distancia e às dificuldades econômicas para se manter em Porto Alegre. Percebeu-se, em contato com esta família, que, apesar da distância geográfica, a família nuclear e a ampliada mantiveram um bom vínculo de afetividade e apego. Mantinham contato telefônico constante, e um componente da família materna ou paterna se deslocava vez ou outra, a fim de ficar um tempo com o casal. Eram visitas esporádicas, mas ocorriam. O casal de pais sempre se manteve junto, procurando realizar todas as atividades e apoiando-se mutuamente. O Ecomapa da família de Maria da Graça foi construído baseado nas relações que a família mantinha durante o período de internação hospitalar, apesar de a criança ter ido para casa logo após a entrevista da mãe para este estudo. Não foi possível acompanhar a vivência dessa família no domicílio devido à distância e ao tempo previsto para o término da pesquisa. A pesquisadora procurou relacionar a relação da criança com o meio ambiente, a relação do casal e deste com o meio externo. 57 Família ampliada Moradia Amizades Lazer Trabalho Trabalho Religião Maria da Graça Equipe da UTIP-HCPA Religião Famílias de CDVM Terapia com Psiquiatra do IPE IPÊ Escola Ambiente Recreação Legenda – vínculo forte – vínculo fraco – vínculo rompido sem vínculo - Figura 4: Ecomapa da Família de Maria da Graça A família de Miguel Miguel tem sete anos de vida e encontra-se no domicílio há cinco anos, tendo permanecido por dois anos internado na UTIP do HCPA. Nasceu no Hospital e permaneceu internado na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal nos dois primeiros meses de vida. Ficou em ventilação mecânica por insuficiência respiratória por um mês, naquela Unidade. Teve alta aos dois meses para a Unidade de Internação Pediátrica e lá permaneceu até completar os três meses de vida. Foi, então, internado na UTIP por insuficiência respiratória e colocado em ventilação mecânica. Foi traqueostomizado. Nessa época, já tinha sido diagnosticada miopatia centro nuclear. Realiza movimentos com os braços, demonstrando reflexo de apreensão das mãos parcialmente preservados (consegue segurar um objeto com as mãos, mas o deixa cair com facilidade). Devido ao uso crônico de oxigênio e pelo fato de ter perdido o reflexo palpebral, desenvolveu úlcera de córnea e, em conseqüência, cegueira total. Alimenta-se através de bóton de gastrostomia. Eliminações permanecem espontâneas. 58 Miguel Figura 5: Genograma da família de Miguel A família nuclear de Miguel é constituída pelo pai (37 anos), mãe (35 anos), irmã (5 anos) e Miguel (7 anos). O pai tem um filho de 20 anos do primeiro casamento. São da raça branca e católicos não praticantes. A família mora em casa própria, situada num bairro de Porto Alegre distante 40 km do HCPA. A família de Miguel, pioneira no Estado a levar uma CDVM para o domicílio, teve que mudar-se para uma casa, logo nos primeiros três meses da alta hospitalar, devido ao ruído dos equipamentos. Possui um veículo de transporte escolar que é a atividade do pai. O plano de saúde da família é o SUS. A mãe, atualmente, é dona de casa e demitiu-se do emprego depois que Miguel nasceu. O pai desenvolveu obesidade mórbida, processo que iniciou quando o filho ainda se encontrava internado no HCPA. Realizou uma cirurgia para colocação de anel gástrico em 2001, mas, por ter retornado ao trabalho 20 dias após a cirurgia, desenvolveu uma hérnia abdominal, ainda não corrigida. O pai faz um trabalho voluntário duas vezes na semana, transportando duas crianças excepcionais carentes para fazerem fisioterapia. A mãe também aumentou de peso por não ter tempo para desenvolver atividade física e pela dedicação ao cuidado dos filhos e da casa. A família paterna é ausente nas relações com a família nuclear. A família sofreu a perda dos avós maternos nos últimos dois anos. Segundo o pai de Miguel, a avó materna teve presença marcante e os auxiliava muito nos cuidados de Miguel e de sua irmã. O tio materno e a esposa – padrinhos de Miguel –, que auxiliaram o casal no período de internação e no primeiro ano de permanência da criança no domicílio, casaram e tiveram um filho neste período. Diminuíram a ajuda, mas segundo os pais, estão sempre presentes quando necessitam deles. 59 A mãe de Miguel é quem praticamente lhe fornece os cuidados, auxiliada pelo pai quando não está trabalhando. O pai assume os problemas com equipamentos e com manutenção do filho em casa. O casal é muito parceiro. Segundo o pai, o filho mais velho (de seu primeiro casamento) tem um bom relacionamento com ele, mas mora com a avó paterna. Relaciona-se pouco com os irmãos. A irmã de Miguel necessitou de terapia com psiquiatra, pois, segundo os pais, a relação com uma filha sadia e um filho doente os deixava confusos. Não sabiam como auxiliar a menina e como trabalhar sua educação. O Ecomapa da família de Miguel foi construído a partir das relações atuais da família, vivenciando a experiência de estar com o filho no domicílio há cinco anos. Este relacionamento mudou à medida que os anos foram passando e a família nuclear sofreu perdas devido ao ciclo de vida de sua família ampliada. Mostra as relações intra e extrafamiliares e a relação de Miguel com o mundo externo. Avós maternos Família paterna Lazer Tios maternos Trabalho – transporte escolar Trabalho Religião Terapia Famílias de CDVM Governo Municipal Pré-escola: gosta Governo Estadual Miguel Ambiente Escola Recreação Recreação Terapia com psiquiatra: 2x mês Legenda: vínculo forte – vínculo fraco – – vínculo rompido sem vínculo -- Figura 6: Ecomapa da família de Miguel 60 A família de Marcos Marcos internou na UTIP do HCPA aos três meses de vida por insuficiência respiratória. No momento da internação, já apresentava flacidez generalizada. Foi à ventilação mecânica antes do diagnóstico de doença de Werdnig Hoffmann. No início do processo da doença, mantinha relativa relação com o meio ambiente, parecendo reconhecer os pais. Devido às implicações motoras, realizava somente leves movimentos de piscar de olhos e com os dedos indicadores das mãos. Com o passar dos meses, foi perdendo toda e qualquer relação com o ambiente e com as pessoas. Também foi traqueostomizado, devido a necessidade de permanecer longo período entubado para a ventilação mecânica. Usou sonda nasoentérica para alimentação e tinha eliminações espontâneas, apesar de necessitar de laxativo, pois, como as outras crianças, apresentava constipação. Chegou a ficar clinicamente estável, mas por períodos curtos de tempo. A família nuclear é constituída pelo pai (32 anos), mãe (31 anos) e irmão (9 anos) moradores de uma cidade localizada a 320 km da capital. A família materna mora no mesmo local onde a família de Marcos mora. A família paterna é moradora de uma cidade da Grande Porto Alegre. Marcos Figura 7: Genograma da família de Marcos O casal de pais exercia atividade agrícola em parceria com os avós e um tio materno. Era sócio na compra e exploração de um pedaço de terra de plantio de fumo, atividade 61 econômica da família. Quando internou Marcos, os pais estavam fazendo a colheita do fumo pela primeira vez, nas terras que tinham adquirido. Moravam em um galpão que servia de celeiro para armazenagem da produção de fumo. O acesso ao centro da cidade era feito por estrada sem asfalto ou calçamento, distante 8 km do hospital mais próximo. Segundo informações colhidas, o acesso era deficitário em época de chuvas, e a rede elétrica não era eficiente. Logo após ficarem sabendo do diagnóstico e prognóstico da criança, os pais solicitaram à equipe para levar o filho para casa a fim de se organizarem para ficar mais perto um do outro e dar apoio ao outro filho. A equipe da UTIP obteve auxílio da assistente social da Prefeitura Municipal da cidade de origem da família a fim de realizar a avaliação social da família. Neste estudo, foi importante saber quais as condições da moradia, a distância necessária para a busca de recursos médicos e hospitalares, as condições das estradas e da rede de energia elétrica local. A prefeitura do município de origem auxiliou os pais com transporte até a capital, todas as semanas, enquanto Marcos permaneceu na UTIP do HCPA. A instabilidade clínica da criança e a localização da moradia foram aspectos importantes para a equipe não liberar o processo de alta desta criança. Ao longo do período de internação foram realizadas várias reuniões com os pais, a princípio com o objetivo de se discutir a possibilidade de levar a criança para casa e, posteriormente, para prepará-los para a impossibilidade de levá-lo. Nas várias reuniões realizadas com estes pais, a equipe constatou um desejo enorme em levar o filho para casa. Para tanto, houve todo um empenho dos pais em melhorar a habitação – chegaram a comprar uma casa pré-moldada para poderem oferecer melhores condições ao filho. Demonstravam muito interesse em manter a família unida. A cada etapa vencida pelos pais, a equipe mantinha-se sempre ao seu lado. Apesar de terem resolvido as condições da moradia, ainda restava as dificuldades de transporte e da rede elétrica, e as condições clínicas da criança foram ficando difíceis à medida que o tempo passava. Discutidas as dificuldades clínicas da criança, os pais entenderam que o desejo de levar o filho para casa não poderia ser realizado. Conseguiram assimilar e reorganizar-se para seguir adiante. 62 Marcos foi a óbito ainda durante o período de internação na UTIP do HCPA. Não obtive mais informações desta família após o retorno dos familiares para o domicílio. A impossibilidade de levar o filho para casa certamente tenha deixado os pais com sentimento de frustração muito grande, mas acredito que os profissionais da equipe se empenharam para viabilizar a alta dentro do que foi possível. Portanto, é importante que todos os aspectos que envolvem o processo de alta sejam bem avaliados para que a criança não sofra e a família consiga obter assistência adequada em caso de urgência. O Ecomapa da família de Marcos diz respeito às relações durante o período de internação da criança na UTIP do HCPA. Prefeitura municipal Trabalho Religião Família materna Equipe da UTIP Família paterna Lazer – TV e casa de parentes Recreação com primos e vizinhos Marcos Escola – bom rendimento Famílias de CDVM Ambiente Avós maternos Recreação Legenda: vínculo forte: vínculo fraco: vínculo rompido: sem vínculo: Figura 8: Ecomapa da família de Marcos Acredito que a família de Marcos tenha conseguido se reestruturar sem a sua presença pois os pais mostraram uma grande capacidade de adaptação à situação da doença do filho, conseguindo se organizar para dar atenção ao filho que permaneceu em casa e manter o vínculo empregatício. 63 6 A FAMÍLIA VIVENCIANDO O CUIDADO DO FILHO DEPENDENTE DE VENTILAÇÃO MECÂNICA Durante o longo período de permanência da Criança Dependente de Ventilação Mecânica na UTIP, os pais enfrentam uma série de dificuldades para conciliar os vários papéis que necessitam desempenhar na família. Acompanhar e vivenciar a internação prolongada de um filho em uma UTIP não é tarefa fácil para estes familiares, que na maioria das vezes entraram pela primeira vez em um hospital quando o filho precisou internar. Vislumbrar a possibilidade de levar o filho com alto grau de dependência nos cuidados para casa gerou nestes pais a expectativa de conseguir uma melhora em sua qualidade de vida familiar. No domicílio, as famílias enfrentam dificuldade, mas nos revelam que a experiência pode trazer alguns resultados positivos. Portanto, este capítulo nos desvela a experiência de famílias enfrentando o processo de internação de um filho por período prolongado em uma unidade de terapia intensiva pediátrica e a experiência de cuidá-lo no domicílio. 6.1 A FAMÍLIA CUIDANDO O FILHO NA UTIP Para a família que vivencia a internação de um filho em uma Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, a experiência de sentir que poderá perder este filho é muito complicada e dolorida. Este enfrentamento envolve todas as pessoas que, direta ou indiretamente, se sentem envolvidas afetivamente com a criança e sua família. Se, para a família de uma criança que sofre uma doença de surgimento agudo, conviver com o drama da hospitalização é difícil, a doença crônica destina um longo período de permanência da criança e sua família no hospital. Após a análise das informações obtidas neste estudo, evidenciei neste primeiro tema a experiência da família cuidando o filho dependente de ventilação mecânica na UTIP. Mostra as dificuldades de adaptação da família ao contexto do hospital, a necessidade de mudança na rotina diária, de manter a unidade familiar, de que forma os pais se relacionam com os outros filhos, como resolvem os problemas financeiros advindos da internação prolongada, a dificuldade de aceitação do diagnóstico de doença crônica e a necessidade de apoio familiar e social. 64 6.1.1 Enfrentando mudanças no cotidiano Ao internar um filho em uma unidade de terapia intensiva, a família enfrenta várias dificuldades, principalmente quando o período de internação da criança se prolonga por vários meses ou anos. Os pais demonstram o quanto é difícil se adaptar a um ambiente totalmente diferente de seu mundo familiar, o quanto necessitam fazer mudanças em sua rotina diária, falam sobre a necessidade de acompanhar o cuidado ao filho no hospital e as dificuldades para manter o vínculo empregatício. Defrontando-se com o ambiente da UTIP Para a maioria das pessoas leigas, o hospital é um local onde se salvam vidas, onde seres humanos nascem e também morrem. Dentro dessas instituições, as Unidades de Cuidados Intensivos geram estresse e ansiedade nos familiares dos pacientes. Para muitos, são sinônimos de perdas, sofrimento e morte. A dinâmica de uma UTIP, com situações de urgência ocorrendo a qualquer momento, com equipes avaliando os pacientes, realizando procedimentos, exames, dentre outros, comumente deixa o familiar com alto nível de estresse. A necessidade de interagir com um ambiente que não lhe é peculiar e com pessoas que não fazem parte de seu convívio social faz com que essa Unidade seja percebida com apreensão pelos familiares das crianças que nela internam. Os pais de crianças dependentes de ventilação mecânica permanecem por longo período dentro das UTIPs, defrontando-se com um ambiente, inicialmente desconhecido, que os assusta, angustia e estressa. Para eles, a permanência por vários meses dentro de uma UTIP se torna um desafio diário. Ribeiro (2002) afirma que o integrante da família que permanece no hospital sente falta da privacidade do seu espaço doméstico e das interações positivas que lá ocorrem. Entretanto, os membros da família que permanecem em casa sofrem a ausência dos que estão no hospital. A mãe de Miguel, ao recordar o início de sua vivência na UTIP, diz: A gente não conhecia o ambiente. Era a primeira vez na minha vida que eu tinha entrado numa UTI. Pra mim era um pânico! 65 O pai de Miguel acrescenta: Além de tu receber a notícia que tem um filho neste estado, nesta situação, tem de conviver com pessoas completamente estranhas, fora de teu habitat natural. A aparelhagem pertencente ao cotidiano da UTIP, como os monitores cardíacos, respiradores artificiais e bombas de infusão, comumente assusta os pais enquanto não entendem o seu funcionamento. Inicialmente, quando soam os alarmes desses aparelhos, o familiar coloca-se em alerta, pois imagina que algo de errado deve estar ocorrendo com a criança. Com o passar dos meses, mesmo não podendo manuseá-los, aprendem a diferenciar os sons dos alarmes dos aparelhos e a interpretar dados simples, como valores da saturação de oxigênio, freqüência cardíaca e respiratória do paciente. No espaço da UTIP, os familiares passam a conviver com outras crianças portadoras de doenças graves, deparando com o sofrimento delas e de suas famílias, o que é um fator de acréscimo ao seu estresse. Quando o ambiente físico é uma sala com várias crianças internadas, os pais, invariavelmente, acompanham e observam o que ocorre ao seu redor. Compartilhar o mesmo ambiente físico com outras crianças e suas famílias é fator desencadeador de extrema angústia para os familiares que permanecem acompanhando a criança na UTIP. A mãe de Marcos fala sobre seu sofrimento: Ficar aqui na UTI é horrível!... A gente vê tantas crianças falecerem... Isso dói na gente, porque a gente nunca tinha passado por uma experiência dessas! Então é terrível pra gente ficar aqui dentro! Se fosse para ficar um, dois dias!... mas não assim direto!... A gente sofre muito! E eu estou aqui há quatro meses! A mãe de Maria da Graça tem uma vivência semelhante: Acompanhar o dia a dia da UTIP é horrível!... porque tu vê criança morrer, tu vê morte todos os dias, doenças horríveis! 66 Na UTIP, por ser a unidade que cuida de crianças graves, ocorre maior número de óbitos em relação às outras unidades, e desta forma, quanto maior o tempo de internação da criança, maior a probabilidade de as famílias acompanharem o óbito de outras crianças. A mãe de Miguel acredita que nos boxes individuais6 o sofrimento é menor: Porque a gente já sofre com o sofrimento da gente e mais o das outras pessoas. Fica difícil! É muito difícil pra gente ... Não tem como separar!... Seria bom se fosse tudo separado, daí a gente não via o sofrimento das outras pessoas também! O espaço privativo na UTIP tem várias vantagens, principalmente por oferecer mais privacidade à criança e sua família. Além disso, facilita a troca de informações entre pais e equipe, restringe o fluxo de pessoas e diminui consideravelmente o ruído no ambiente, o que oferece mais conforto à criança e à sua família. Nesse espaço exclusivo, a criança e o adolescente que contata com o ambiente podem ter mais privacidade. A equipe e os pais têm condições de criar momentos de lazer utilizando livros, revistas, trabalhos de desenho e pintura, aparelhos de som, videogame ou televisão. No entanto, a divisão física por box exige maior atenção por parte da equipe. Quando ocorre a realização de algum procedimento com a criança ou intercorrência grave em um dos boxes individuais, a família é convidada a retirar-se e permanecer na sala de espera, sem que os outros pais necessitem sair da Unidade. Já, na área com oito leitos agrupados, algumas rotinas precisam ser estabelecidas para que a equipe consiga dar um bom atendimento ao paciente, respeitando a privacidade da criança e de sua família. Freqüentemente, há a necessidade de os familiares de todas as crianças saírem desta área, para realização de procedimentos ou em momentos de intercorrências graves com uma delas. Este período de espera na sala de visitas gera angústia nos pais, pois sentem que perdem o controle sobre o que está ocorrendo com seu filho. Normalmente, no seu imaginário, passa a idéia de que a criança pode estar chorando ou necessitando de Os boxes individuais na UTIP do HCPA são quartos de 9 m², separados por paredes envidraçadas protegidas por cortinas. 6 67 atendimento, e a equipe, envolvida na intercorrência de outro paciente, não lhe prestará a devida atenção. Para o familiar da criança que está sofrendo a intercorrência, não saber o que está ocorrendo é muito estressante. Portanto, é importante que a equipe designe um de seus membros para conversar com a família. Em procedimentos médicos de passagem de cateter venoso, punção lombar e suprapúbica, dentre outros, procura-se utilizar biombos para manter a privacidade do paciente na área com oito leitos e diminuir a necessidade de saídas constantes dos familiares. A convivência com os familiares de outras crianças é motivo de aumento de estresse dos pais, principalmente em caso de intercorrências graves, como parada cardiorrespiratória ou óbito de um dos pacientes. Normalmente, as famílias das crianças internadas por um longo período formam vínculos com as outras famílias e acabam por compartilhar momentos de sofrimento. Para Motta (2002), ao vivenciar a doença do filho, a família ingressa num mundo novo, no mundo do hospital, cuja organização, dinâmica e lógica são muito diferentes de seu cotidiano, e ao viver a facticidade da doença do filho mostra-se solidária à criança e às outras famílias que vivenciam a mesma realidade. O convívio com o ambiente da UTIP, com o sofrimento próprio e o de outras famílias faz com que alguns sentimentos dos pais, quando não compreendidos, gerem conflitos internos que podem ser projetados sobre os outros pais e sobre a equipe. Segundo Zavaschi et al. (1997), se a equipe não estiver bem preparada, poderão ocorrer conflitos se os sentimentos demonstrados pelos familiares não forem devidamente analisados, compreendidos e assimilados pelos profissionais. Os conflitos podem ocorrer a qualquer momento, o que vai depender do nível de ansiedade e estresse dos familiares e da equipe e como esta última conseguirá abordar as dificuldades na inter-relação com a família. Nussbaum e Katz (1996), relatando suas experiências com famílias de crianças internadas em Unidade de Tratamento Intensivo do Memorial Miller Children’s Hospital da Califórnia (EUA), ressaltam que estratégias devem ser estudadas para diminuir o estresse da família durante o período de internação da criança na UTIP e suporte psicológico deve ser fornecido à equipe. Sugerem que, se necessário, um 68 mediador seja escolhido para intermediar o conflito e que tenha, de preferência, cargo de chefia na instituição para que possa ser respeitado por ambos. Para amenizar os conflitos que ocorreram entre a equipe e as famílias de várias CDVM que estavam internadas no mesmo período na UTIP do HCPA, a equipe resolveu criar um Grupo de Pais, específico para estas famílias. Teve como objetivo oferecer a estes familiares um atendimento focalizado nos problemas, necessidades e conflitos, decorrentes da internação prolongada. O grupo reunia-se semanalmente e contava com a participação de integrantes das famílias e da equipe interdisciplinar da UTIP (assistente social, psiquiatra, enfermeiro e médico residente). Concomitante às reuniões, os profissionais passaram a reunir-se com a equipe de bioética da instituição para discutir as dificuldades enfrentadas. Essas reuniões proporcionaram uma sensível melhora nas relações interpessoais. Essa melhora nas inter-relações está retratada na fala da mãe de Maria da Graça: Olha, desde quando eu vim para cá muita coisa melhorou! ... Durante todo esse tempo, foram cinco [famílias] que ficaram ali [na UTIP]. ... então o ser humano é difícil, é uma coisa complicada! Às vezes a gente tinha um arranca rabo7 ali, umas briguinhas! Mas é que no começo também é difícil para a equipe, porque devagarzinho tiveram que aceitar aqueles quatro, cinco pais ali! Crê-se que, mediante as muitas reuniões com essas famílias, a equipe evoluiu em relação à compreensão das reações e das dificuldades das famílias que permanecem na UTIP por longo período. Percebe-se, também, que os pais, por sua vez, conseguiram compreender a equipe. A mãe de Maria da Graça ressalta a evolução e o amadurecimento da equipe: Eu acho que a equipe mudou muito desde o começo [dos dois anos e meio de internação] ... Ficou mais humana! ... A equipe tentou ajudar mais os pais, tentou entender mais os pais! Arranca-rabo, s.m. (bras.) (pop.) Discussão acalorada; bate-boca; briga; rolo. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. RBS-Jornal Zero Hora. Porto Alegre, 1994. p.138 7 69 Shooter (2002) diz que é importante que a equipe não crie estereótipos de pais ameaçadores ou de que tenha que estar sempre na defensiva. Sugere que os profissionais troquem informações com a família, que procurem compreender suas dificuldades, que os pais participem de algumas tomadas de decisão e que tenham um profissional de referência na equipe, ao qual possam se dirigir sempre que necessário. Ter de relacionar-se com pessoas estranhas como os familiares de outras crianças e com a equipe não é tarefa fácil para os pais. A equipe nem sempre é receptiva, e a linguagem utilizada poderá ser incompreensível para eles. Para desenvolver o cuidado com famílias, é importante que a equipe se instrumentalize, que desenvolva grupos de discussão e estudos para que consiga compreendê-la em toda a sua integralidade. Mudando a rotina de vida Os pais alegam que conviver com o ambiente da UTIP é difícil, nada comparável ao estar em casa. Seguir regras e não ter autonomia no cuidado ao filho é difícil de ser compreendido. Independente das condições da moradia, os pais valorizam usufruir a liberdade de estar em casa. Em casa, a família encontra seu porto seguro, segue suas próprias normas e rotinas. O hospital tem regras e rotinas próprias que precisam ser respeitadas para que a dinâmica da Unidade não seja prejudicada e a equipe consiga trabalhar. O pai de Miguel faz referência às mudanças na sua rotina: Tu mudas todos os teus hábitos! Conviver dentro de um hospital não é fácil! Tem que ter muita persistência! A gente teve muita persistência... mas foi cansativo! Percebe-se que a fala desse pai pode ser estendida à vivência de outros pais que se encontram ou que já passaram pela experiência de hospitalização prolongada de um filho na UTIP. Observa-se que esses pais tendem a descuidar-se de si mesmos. Sua auto-estima fica severamente abalada. Em geral, aumentam consideravelmente de peso, associado ao alto grau de estresse, alimentação inadequada e pouca atividade física. Passam a vestir-se com mais simplicidade e a descuidar do corpo. O lazer fica restrito a leituras de livros religiosos, de auto-ajuda e revistas e a pequenos trabalhos manuais, desenvolvidos ao lado do filho. Algumas mães passam a se cuidar mais quando estimuladas por algum profissional. 70 O enfermeiro pode estimular os pais a realizar algum tipo de exercício físico como a caminhada, por exemplo. As mães, quando estimuladas, passam a cuidar-se mais. Algumas somente o conseguem depois de algumas conversas, quando se aborda a importância de manterem a auto-estima e a auto-imagem fortalecidas. Profissionais da área da saúde mental – psicólogo e/ou psiquiatra – podem dar atendimento mais direcionado a esses familiares sempre que necessário. Portanto, é preciso que a equipe auxilie a família no cotidiano da permanência prolongada na UTIP. O pai de Miguel, complementa: No meu caso e da minha esposa, a gente já tinha uma idade, tu está acostumado, tu te manda! E lá dentro do hospital tu és mandado! Tu tens que seguir....é claro, são normas! Tu tinhas que fazer como o hospital queria, como a UTIP queria! Não como a gente queria!... E ter que entrar lá pra dentro e seguir rigorosamente, religiosamente... regras...! Apesar de a UTIP do HCPA ter regras menos rigorosas quanto à permanência da família junto à criança, os pais sentem que estar no hospital não é bom. Têm regras a cumprir, não têm a liberdade e o conforto de suas casas. A mãe de Marcos fala do desconforto que enfrentaram no hospital: O meu marido é obrigado a ficar aqui no hospital, quando ele vem. Ele dorme no banco da salinha de espera aqui da UTI. É um banco de madeira, não tem conforto pra gente descansar. É aquele banco duro ali, não tem como! A Casa de Apoio do HCPA oferece alojamento apenas para as mães. A experiência de colocar homens e mulheres juntos no mesmo ambiente tem resultado em vários problemas de difícil resolução. Percebe-se que a solidão e o sofrimento enfrentados por essas pessoas é tão grande que acabam se solidarizando e trocando de pares. Juntar homens e mulheres na Casa de Apoio necessitaria de modificações na estrutura física do alojamento e um sistema de administração com regras para evitar conflitos. Enquanto isso não ocorre, o pai da criança internada na UTIP, se não tiver outra maneira de se hospedar, dorme em um banco de madeira colocado na sala de espera da Unidade. Vale salientar que essa sala de espera é, na realidade, 71 o aproveitamento do corredor de entrada da Unidade. Esse fato é resultado de falha no planejamento da estrutura física – realizado há cerca de trinta anos –, que não previa a necessidade de conforto aos pais. Os pais abdicam de alguns objetivos de vida para poderem permanecer com a criança no hospital. Ribeiro (1999) ressalta que, para algumas famílias, permanecer ao lado do filho representa a garantia de atendimento diferenciado. Acredita-se que esse sentimento esteja relacionado à insegurança dos pais em deixar seus filhos sob os cuidados de outras pessoas, mesmo que as considerem profissionais habilitadas. Portanto, observa-se que uma profunda afetividade liga os familiares à criança doente, e esse sentimento é a válvula mestra que permeia todo o envolvimento dos pais com as CDVM. Os pais referem que estar no hospital não é como estar em casa. Essa mudança gera angústia e estresse, pois os pais se sentem limitados na sua liberdade de ir e vir, apesar da flexibilidade da permanência deles na UTIP. No entanto, a equipe pode oferecer condições para que os familiares não se limitem a permanecer na Unidade como meros espectadores, mas que se sintam participantes do processo do cuidado. Os pais podem ser convidados a auxiliar a equipe em cuidados simples como o banho, troca de fraldas ou discutindo as condutas a serem tomadas no tratamento da criança. Quando se fala aqui em auxiliar a equipe, não se está querendo dizer que os pais devam ser obrigados a ajudar e muito menos substituir a equipe de enfermagem nos cuidados, mas que tenham liberdade para auxiliá-la em alguns procedimentos, de maneira a sentirem-se úteis e satisfeitos por estarem tocando o filho e poderem, assim, demonstrar carinho e afeto. O pai de Miguel comenta: Nossa!... Mesmo tendo as regalias que nós tínhamos lá dentro depois de dois anos, as facilidades que a gente tinha, ainda era muito pior [ficar lá]... ainda é muito pior... [quando precisa internar o filho na UTIP]. E a mãe acrescenta: É que o hospital ainda é muito pior do que ficar na casa de um parente! Tu tens que respeitar as normas! 72 Apesar das dificuldades vivenciadas por esta família durante a internação da criança, sentem-se diferenciados no tratamento fornecido pela equipe. Miguel, como as outras crianças que se encontram em ventilação mecânica no domicílio, tem prioridade para internar na UTIP sempre que se fizer necessário. Como a maioria dos profissionais da equipe da UTIP os conhece, sentem-se acolhidos quando precisam internar o filho. Este sentimento parece ter permeado sua vivência na UTIP quando referem ter regalias. Apesar do acolhimento, preferem estar em casa com o filho. Quando a mãe de Miguel coloca que estar no hospital é pior que estar na casa de parentes, imagina-se que esteja se reportando ao período em que precisou ficar na casa de seus pais para diminuir as despesas da família com o aluguel da casa. Reportando-se ao período em que estava na UTIP, o pai de Miguel fala sobre a mudança na dinâmica familiar: Nós abdicamos de tudo, nós não tivemos casa! Depois que o Miguel nasceu nós não voltamos pra casa! Os pais de Miguel entregaram o apartamento que moravam de aluguel e passaram a permanecer no hospital o maior tempo possível. Quando queriam descansar, cada um ia para a casa da família de origem. Não conseguiam se afastar do filho no hospital. O filho do primeiro casamento do pai de Miguel teve que ficar sob os cuidados dos avós. O relacionamento desse casal passou por momentos difíceis, mas, com a intervenção da equipe, juntamente com o auxilio de um psiquiatra, conseguiu-se resgatar a união. Alguns pais sentem tal dificuldade para se reorganizar após saberem do diagnóstico de doença crônica do filho que a sua vida se limita ao cuidado da criança doente. Souza e Ângelo (1999), ao relatarem sua experiência com o pai de crianças internadas na UTIP, ressaltam que a mudança em sua vida é percebida como crise cuja resolução poderá apresentar-se positivamente, com enfrentamento e crescimento pessoal ou deterioração do comportamento, representado por condutas depressivas, de apatia, agressividade e ansiedade. A mãe de Maria da Graça fala sobre seu sentimento a respeito da mudança de vida: Eu tinha uma vida antes, a gente tinha uma vida boa! A gente saía, a gente viajava, então... a gente nunca parou pra pensar numa desgraça dessas! ... então é horrível! 73 Quando uma criança desenvolve uma deficiência física, com alto grau de dependência nos cuidados, acaba gerando sentimentos de frustração e desesperança nos pais, que vêem seus planos futuros se desfazerem. Terão dificuldades de voltar a fazer passeios e viagens juntos. Até mesmo as visitas costumeiras a familiares e amigos ficam suspensas, pois se torna difícil o afastamento do hospital. O fato de ter gerado um filho com problemas e vê-lo sofrer acarreta um sentimento de culpa nos pais que pode impedir a realização de outras atividades que lhes traga satisfação e prazer. Quando um casal planeja ter um filho, constrói a expectativa de gerar um filho sadio. Maldonado (1989) comenta que ter um filho envolve modificações existenciais profundas na família, tanto em nível prático como nos planos de vida. Algumas renúncias são necessárias, as quais podem ser temporárias, mas geram temor de que se perpetuem. No caso de pais de crianças com doenças crônicas, esse temor se concretiza, pois, aos poucos, perdem a esperança quando deparam com a dura realidade da cronicidade da doença. Cuidando o filho na UTIP Para os pais das Crianças Dependentes de Ventilação Mecânica, aprender os cuidados desenvolvidos com seu filho pela equipe de profissionais da UTIP é um desafio considerável. Quando os pais percebem que cronicidade da doença do filho é fator determinante em suas vidas e decidem levá-lo para casa, desencadeiam um processo complexo de ensino aprendizagem com a finalidade de torná-los aptos para assumir o cuidado ao filho em seu domicílio. Normalmente, este processo é lento e exige da família e dos profissionais um intercâmbio de informações necessárias para que os familiares cuidadores se tornem aptos ao cuidado à criança. Durante o período de permanência no hospital, pai e mãe enfrentam uma série de dificuldades para conciliar os vários papéis que desempenham no seu cotidiano. Neste estudo, comentando os seus vários papéis, os pais falam da dificuldade de ficar em casa e deixar o filho no hospital. Sentimentos de culpa normalmente não os deixam relaxar. Quando estão em casa, pensam no filho que ficou no hospital, e quando estão com ele, se preocupam com os outros filhos e com a casa. Esta ambivalência causa dor e sofrimento. 74 A família que, até a chegada da criança ao hospital, era a responsável pela saúde do filho, precisa entregá-lo aos cuidados de profissionais e passa a dividir com eles o direito de cuidar do filho. Os pais dizem que se sentem preteridos no cuidado e que perdem sua autonomia. Elsen (1994) salienta que a família, ao buscar ajuda profissional, não se sente isenta de responsabilidade sobre o filho, ela somente delega o cuidado à saúde de seu membro. Ribeiro (1999) afirma que a responsabilidade sobre o filho é um dever e um direito da família e que, normalmente, a família não abdica desse direito e deseja participar das decisões relacionadas à sua saúde. A mãe de Maria da Graça fala sobre a importância de estar com a filha na UTIP e fazer parte do processo do cuidado: Olhe, eu acho que se eu não pudesse ficar com a minha filha ali dentro eu já tinha morrido! Eu fico me imaginando sem poder ver ela todo dia, sem poder trocar as fraldas, as roupinhas! A família permanece atenta, sugere condutas, exige soluções, salientando sua responsabilidade sobre o filho. Quando a equipe não oferece esse espaço, poderá haver conflitos. Assim, é importante que a equipe discuta, em cada caso, que nível de cuidado a criança exige, para poder estabelecer um plano incluindo a família nos cuidados para que se sinta participante do processo. Freqüentemente, percebe-se que os pais demonstram sentimentos de onipotência em relação ao filho. Têm medo de se ausentar e chegam a falar sobre a falta de confiança na equipe, como se a sua presença junto ao filho garantisse um bom atendimento, livrando-o de intercorrência que poderia lhe causar algum dano. Esse sentimento fica claramente retratado na fala da mãe de Viviane, ao recordar do período em que estava na UTIP: Eu tinha medo que acontecesse alguma coisa com a Viviane [se eu me ausentasse].Ter de sair de lá e deixá-la era complicado!. Para Ribeiro (1999), a internação da criança é percebida, inicialmente, como ameaça. Para a família, a representação simbólica da hospitalização é de perigo e risco de vida para o 75 filho. Dentro do hospital, a UTIP é a unidade mais temida, representando o isolamento e a morte. Apesar de valorizarem o cuidado profissional, os pais têm a percepção de que a prioridade do cuidado para com o filho é deles, pois, culturalmente, a família é que detém o poder sobre sua prole e o dever de cuidar da sua saúde. A mãe de Marcos comenta a ambivalência que sente em querer permanecer com o filho no hospital e, ao mesmo tempo, dar atenção ao que ficou em casa. O medo de receber notícias ruins sobre o filho hospitalizado também está sempre presente: Às vezes, em casa, eu ligo aqui para o hospital pra saber noticias do Marcos e fico com pressentimento que a qualquer hora eu vou receber uma noticia ruim! E eu não fico tranqüila em casa. Eu gostaria de estar sempre, direto junto com ele, mas como eu tenho meu outro filho, não dá! O fato de os pais deste estudo conviverem por longo tempo dentro da UTIP, entrando em contato com intercorrências e morte de outras crianças, faz com que evidenciem sentimentos de insegurança e medo para com a integridade física e emocional do filho. Não suportam vê-los chorar por sua ausência, mesmo que seja por alguns minutos de afastamento real para atender suas necessidades pessoais. Nas reuniões da equipe com os pais de crianças que permanecem longo tempo de na UTIP, é comum o profissional ouvir os pais dizerem que têm medo de deixar seus filhos sozinhos. Temem que eles sintam sua falta, que sejam negligenciados ou que a equipe não compreenda os desejos da criança. As CDVM, na sua maioria, são pacientes com doenças degenerativas e que perderam a capacidade motora. Os familiares desenvolvem formas de se relacionar e compreender a criança e receiam que os profissionais tenham dificuldades para entender os sinais emitidos por ela. Esses sinais, comumente, são muito sutis, podendo ser um pequeno movimento de um dos dedos da mão, da comissura labial ou ainda um leve piscar de olhos. Ao conviver com estas famílias observa-se que alguns pais demonstram insegurança até mesmo em relação a alguns integrantes de sua família. Quando determinado familiar 76 permanece com o paciente no hospital, as mães costumam chegar mais cedo porque têm receio de que a criança sofra com seu afastamento, que o familiar não cuide bem ou que não saiba atender as necessidades da criança. Houve casos em que a mãe não confiava nem mesmo na competência do pai da criança. Cristóvão et al. (1996) comentam que a perda da onipotência parental provoca depressão e aumento das culpas. A falta de confiança no cuidado oferecido pela equipe ou por outros integrantes da família pode estar relacionada ao sentimento de culpa por ter gerado um filho com problemas. Geralmente, a mãe é a cuidadora mais encontrada nas unidades pediátricas dos hospitais, dividindo-se entre o filho internado, os que ficaram em casa, o marido e os afazeres domésticos. Ela é destinada culturalmente a ficar com a criança no hospital. Na UTIP do HCPA, as mães também são as pessoas que se mantêm a maior parte do tempo ao lado das CDVM, ao longo de meses ou anos de internação hospitalar. Denardin (1999) afirma que a mulher é quem detém o saber sobre o cuidado e que este saber é passado de geração a geração. Ela se organiza, faz arranjos internos na família, deixa outras atividades e passa a se dedicar ao familiar doente. A maioria dessas mães deixa o emprego para se dedicar ao filho internado. Ribeiro (1999) comenta que a mãe é quem, na maioria das vezes, permanece o maior período no hospital, reproduzindo a idéia de mulher cuidadora, responsável pela saúde e educação dos filhos. Ela assume de tal forma esse papel que, quando recebe ajuda do esposo ou de outro familiar, refere sentimento de culpa por se perceber descuidando do filho doente. É comum que a própria mulher se sinta responsável pelo cuidado dos filhos, desdobrando-se entre o que está no hospital e os que ficaram em casa Quando a internação começa a se prolongar, é importante que a equipe observe mais atentamente como os pais estão se relacionando com os outros filhos e os ajude a dividir sua atenção para que os que ficaram em casa não se sintam negligenciados. De maneira semelhante às situações relatadas e a literatura, a mãe de Viviane ressalta o seu papel de cuidadora: 77 Daí, eu consegui me organizar um pouco. Ficar lá [no hospital] e cuidar da Viviane, ficando em casa e cuidando do meu outro filho! As mães são levadas a acompanhar o filho no hospital por fatores socioculturais, pressionadas pelas outras mães, pelo contexto familiar e, às vezes, pela própria equipe. As mães das crianças de CDVM, com longa permanência na UTIP, exercem pressão umas sobre as outras, entendendo que a mulher/mãe tem a obrigação de acompanhar o filho doente no hospital. Aquelas que, após intervenção da equipe, conseguem compreender a necessidade de preocuparem-se com sua auto-estima, com seu autocuidado, comumente são criticadas pelas outras mães que não conseguem fazer o mesmo. A mãe de Maria da Graça revela sua opinião a respeito: A gente se revolta às vezes em ver mães que vêm ali, com os filhos que não têm coisa grave que nem os filhos da gente, vêm e largam ali na UTI!... isso revolta a gente! Conversando a respeito do seu sentimento em relação às ausências de outras mães, a mãe de Maria da Graça dizia ter dificuldades em aceitar que as mães de outras crianças as deixassem no hospital para realizar alguma atividade externa. Achava que se amassem os filhos como ela amava sua filha deveriam permanecer junto da criança. Na maioria das vezes, o pai mantém o papel de provedor e permanece em casa com os outros filhos. Costuma visitar o filho doente aos finais de semana ou diariamente, nos intervalos do trabalho. A família de Maria da Graça conseguiu se estruturar de maneira que pai e mãe permanecessem juntos durante todo o período da internação da criança. O pai, nas demais famílias estudadas, dividia-se entre o trabalho, os outros filhos e os períodos de permanência no hospital. Souza e Ângelo (1999) referem que o papel do pai como provedor da família surge como o dever incorporado nas relações familiares e sociais, de providenciar o sustento do clã, suprindo suas necessidades básicas, o que é encarado como obrigação, não se permitindo falhar neste ponto. O pai teme que o vínculo empregatício seja abalado por faltas, atrasos e licenças e vê na continuação de suas atividades a segurança financeira que precisa proporcionar à família. 78 Apesar do papel de cuidador, culturalmente aceito, ser quase que exclusivo da mãe, os pais têm desempenhado um papel significativo se dividindo no cuidado do filho internado e dos que ficaram em casa, dedicando-se ao emprego e dando suporte à esposa. Deparando-se com problemas financeiros A família faz tentativas de reorganização para que seus integrantes sofram o menos possível com o afastamento a que seus membros precisam se submeter, a fim de acompanhar a criança no hospital e manter suas outras atividades incluindo a preservação do emprego. Diante da comunicação do diagnóstico e prognóstico da doença crônica do filho, os pais sofrem um impacto psicológico muito grande. Nesse momento, ocorre uma desorganização que pode levar os pais a abdicar inclusive do emprego. Essa realidade está retratada na fala da mãe de Marcos, residente no interior do Estado, quando fala sobre a possibilidade de terem que se mudar para mais perto do Hospital: Nós vamos sair perdendo financeiramente se nós voltarmos pra cá. A gente não vai conseguir ajudar os sócios a pagar a terra que foi comprada. Então nós vamos ter que entregar pra eles continuarem pagando. O que a gente já deu na entrada da terra a gente perde! Quando os pais de Marcos, agricultores de uma cidadezinha distante quatro horas de Porto Alegre, revelaram suas pretensões em mudar-se para uma cidade mais próxima e deixar o que conquistaram para trás, foram orientados pela equipe a organizarem-se de forma a não perderem a atividade econômica que realizavam na zona rural onde moravam. O apoio dado pela equipe foi de extrema importância para que a família não perdesse a sua fonte de renda. Os pais repensaram e decidiram continuar onde estavam, organizando-se de forma a que um deles acompanhasse o filho no hospital de segunda à sexta-feira, enquanto o outro permanecia com o outro filho e continuava trabalhando na lavoura. Nos finais de semana reuniam-se em casa. 79 Esta decisão foi resultado de algumas reuniões realizadas pela equipe com o casal, sob o argumento que seu filho poderia ficar internado no hospital por meses ou anos até obter condições de alta para o domicílio, usando respirador artificial. A manutenção da fonte de renda familiar mediante atividade agrícola, que era a base da economia da família, era importante, pois precisariam gastar com o deslocamento e a manutenção deles em Porto Alegre. Mais tarde, se as condições clínicas da criança e a estrutura familiar oferecessem condições de alta para o domicílio, precisariam fazer benfeitorias na casa.. Além disso, os pais poderiam contar com o apoio da família materna, que morava próxima à sua residência e com quem o casal dividia as terras que comprara em parceria. De maneira semelhante, outras famílias apresentam dificuldades em fazer determinadas escolhas. A mãe de Maria da Graça fala sobre a dificuldade que o esposo teve em se definir sobre qual seria a melhor maneira de prestar assistência à esposa e à filha e, ao mesmo tempo, manter o emprego: Combinamos que ele iria vir só aos finais de semana e ia embora trabalhar durante a semana. Ele tentou, mas não deu certo, ele não agüentava, ele ficava lá nervoso!... trabalhava nervoso! O pai de Maria da Graça ficou extremamente ansioso e deprimido em ter que ficar na sua cidade de origem para trabalhar e deixar a jovem esposa e sua primeira filha em Porto Alegre. A mãe pediu demissão do emprego logo que a filha ficou doente, aos 6 meses de idade. Como o pai entrou em depressão e foi licenciado do trabalho, conseguiu permanecer junto da família no Hospital. Os avós tinham boa condição financeira e puderam auxiliar o casal no aluguel de um apartamento próximo ao HCPA e nas despesas mensais. Os pais revelam dificuldade em manter o emprego durante o período de internação prolongada da CDVM. Freqüentemente, tendem a sair do emprego para poder acompanhar o filho doente. Algumas vezes, são demitidos pelos patrões que não aceitam o longo período de ausência do empregado. Poucos são os que conseguem entrar em acordo com a empresa e se afastar através da liberação de férias, licenças ou com garantia de retorno após um período longo de afastamento. A mãe, por ser a cuidadora oficial da criança, é a primeira a afastar-se do emprego para acompanhar o filho no hospital. O pai tenta permanecer como provedor, a fim de manter o sustento da família. 80 Nas famílias estudadas, três dos pais mantinham, sozinhos, o sustento da família, sendo que as mães se demitiram do emprego logo que souberam do diagnóstico de doença crônica em seus filhos. A quarta família conseguiu se organizar de maneira que pai e mãe fizessem rodízio para se dedicar à atividade agrícola que lhes fornecia o sustento financeiro. A mãe de Marcos relata como se organizaram para providenciar a colheita da produção de fumo que plantavam em parceria com seus familiares: Quando nós internamos aqui com o Marcos era tempo da safra, o fumo estava na roça. Então, nós trabalhamos com os sócios. Então, quando a gente tava aqui no hospital, a gente [pagava] peão8 pra ajudar a colher o fumo. Assim, não perdemos nada na roça! Dados estatísticos atuais demonstram que atualmente um grande contingente de mulheres é chefe de família na sociedade brasileira contemporânea, e, portanto, são elas as provedoras de suas famílias que, muitas vezes, abrigam mais de uma geração sob o mesmo teto. Esse aspecto, no entanto, não ficou evidenciado nas famílias aqui estudadas. Wong (1999) comenta que, independente das condições financeiras da família, os custos de cuidar de uma criança com cuidados especiais é muito grande. Além disso, o provedor da família poderá perder oportunidades de emprego ou de melhor de sua renda a fim de permanecer próximo de um serviço de atendimento médico. O nível econômico das famílias de CDVM tende a cair devido ao alto custo do período prolongado de internação hospitalar que enfrentam. As famílias têm despesas no deslocamento do hospital ao domicílio, na alimentação ou no preparo para a alta hospitalar da criança. O acompanhante residente em Porto Alegre pode receber auxílio–transporte do hospital, mas perde o direito a uma refeição diária. Algumas famílias residentes no interior do Estado recebem auxílio transporte das prefeituras. Na sua maioria, os pais são transportados pelas ambulâncias municipais, que trazem pacientes para tratamento de saúde na capital. Peão: Homem que se ajusta ao serviço do campo; amansador de animais de sela; serviçal de estância. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. RBS-Jornal Zero Hora. Porto Alegre, 1994. p. 533 8 81 A legislação não garante refeição para os pais ou responsáveis pela criança internada na UTIP, porque não reconhece que a família possa acompanhar o filho dentro desta unidade. O SUS paga três refeições diárias para um acompanhante da criança internada em unidade de internação pediátrica, mas, se a criança for transferida para a UTIP, ele perderá este direito. O HCPA oferece uma refeição a um dos acompanhantes da criança internada na UTIP, três vezes por semana, como auxílio às necessidades dos familiares. Dessa maneira, o acompanhante terá que custear suas outras refeições diárias e todas as dos finais de semana e feriados, nos quais não tem direito a refeições. Se a família dispuser de mais de um acompanhante, a permanência no hospital passa a ser mais onerosa ainda. Freqüentemente, o enfermeiro fica com dificuldades em auxiliar os pais na sua necessidade de alimentação. Os que internam seus filhos na sexta-feira à tarde e no final de semana não têm acesso ao Serviço Social, que não faz atendimento nesse período. Apesar de o hospital dispor da Casa de Apoio para as mães, nem sempre se sentem segurança para usufruir os benefícios que a casa oferece. Algumas mães, nos primeiros dias de internação, têm medo de se deslocar dentro do hospital e se alojar na Casa de Apoio, necessitando de auxílio da equipe de enfermagem ou de outras mães para acompanhá-la. Como o pai não tem acesso à Casa, permanecer no hospital torna-se complicado, pois, além das dificuldades para se alimentar, a falta de conforto inviabiliza a permanência dele por períodos prolongados de internação. Quando acompanhados pelas esposas, estas podem preparar os alimentos fornecidos pela Casa de Apoio e lhes trazer as refeições na sala de espera da UTIP. Portanto, é imprescindível que a equipe da UTIP esteja alerta, a fim de identificar as reais necessidades do acompanhante da criança e auxiliar no processo de reorganização familiar. 6.1.2 Organizando e estruturando a família Apesar de a família poder acompanhar a criança nas 24 horas do dia na UTIP do HCPA, os familiares dizem se sentir cerceados em sua liberdade de ir e vir e na condição de cuidadores, pois o processo do cuidado torna-se quase que exclusivo da equipe. Para conseguir acompanhar o filho no hospital, a família necessita se reorganizar, mudar hábitos e rotinas de vida. A ausência de um dos pais e da criança doente pode desorganizar a família, 82 fazendo com que seus membros necessitem se adaptar a uma nova dinâmica no cotidiano da vida familiar, com redefinição de papéis e atribuições. É importante que seja definido quem irá cuidar das outras crianças, quem os levará à escola, quem os ajudará nos temas, quem cuidará dos afazeres domésticos e quem será o provedor da família. Procurando manter a unidade familiar O fato de o casal ficar muito tempo afastado um do outro, acrescido da perda do filho idealizado, além da crise familiar relacionada à doença grave e crônica, pode abalar a estrutura do casamento. Alguns casais sofrem conflitos sérios de relacionamento no período de permanência do filho no hospital. Podem entrar em atrito por divergirem em alguns aspectos, principalmente por apresentarem prioridades diferentes. Em alguns casos, um dos dois pode sentir-se solitário, seja no hospital ou em casa. Alguns se queixam que o cônjuge prioriza o filho doente, deixando o restante da família em segundo plano. Como os pais precisam se dividir entre o hospital, a casa, os outros filhos, o emprego e a escola das crianças, ficam com pouco tempo para si próprios e para a vida a dois. A dificuldade evidenciada por alguns casais em cultivar o vínculo afetivo pode ser causa de conflitos sérios que, se não forem trabalhados pela equipe da UTIP, provavelmente contribuirão para o afastamento e/ou possível separação dos cônjuges. A mãe de Viviane fala sobre essa possibilidade: Os dois anos e meio de internação foram complicados! Eu ficava muito tempo no hospital. Teve vezes em que quase nos separamos por causa disso! É necessário que esses pais se permitam ausentar-se da UTIP para passear, conviver com a família, cultivar momentos de lazer e cuidar de si próprios, dar-se o direito de preservar a vida a dois, incluindo a manutenção das relações afetivas e sexuais. Esse comportamento sugere que o casal está conseguindo manter-se saudável diante desse momento existencial. Observa-se que alguns casais se separam definitivamente quando as dificuldades e as divergências não são resolvidas. 83 A mãe de Viviane, reportando-se ao período de internação, fala sobre a necessidade de permanecerem mais tempo juntos: O que a gente passou lá!... [Estávamos] sempre separados um do outro, nunca juntos! Quando que a gente passava nós quatro? Só Ano Novo e Natal que a gente ficava lá dentro juntos! Diante dos relatos dos pais, referindo-se à rotina de entrada individual do familiar para permanecer com a criança, sugerindo que não lhes proporcionava tempo suficiente para fortalecerem os laços de convívio conjugal, foram liberadas seis horas diárias distribuídas entre os turnos manhã, tarde e noite para o casal entrar junto na UTIP. Em situações especiais – Dia das Mães, Dia dos Pais, Páscoa, festas do final do ano e aniversários – se permite que a família – pais, irmãos, avós e padrinhos – se reúna na UTIP, em torno do leito do paciente, para uma comemoração em família. Este compartilhar tem proporcionado momentos de apoio mútuo, fortalecendo os laços afetivos e a unidade familiar. Relacionando-se com os outros filhos A ausência dos pais por um período prolongado no hospital pode trazer conseqüências negativas para as criança e adolescentes que permanecem em casa. Estes poderão sentir-se desamparados, o que poderá refletir sobre o desempenho escolar, na relação com o irmão doente e com os pais. Os irmãos pré-púberes e adolescentes correm o risco da delinqüência juvenil, pois, sentindo-se negligenciados, podem juntar-se a más companhias, envolvendo-se com drogas e/ou álcool. Os pais são orientados pela equipe para manterem a vigilância sobre os filhos que permanecem em casa, tentando com que o foco do cuidado familiar não fique direcionado apenas à criança hospitalizada. Segundo Wong (1999), com a internação de um filho, os pais tendem a deixar os outros filhos em segundo plano. Comumente, as crianças e adolescentes, ressentem-se pelas ausências prolongadas dos pais, o que os excluem inclusive das suas atividades escolares e de lazer. A condição do irmão doente pode interferir na celebração de datas especiais, feriados e nas férias, o que poderá deixar a criança frustrada e sentir-se desvalorizada pelos pais. 84 Freqüentemente, precisam deixá-la na casa de parentes ou amigos, e algumas vezes, mesmo estando presentes em casa, os pais podem não estar física ou emocionalmente disponíveis para ela. A mãe de Viviane refere sua experiência com seu filho mais velho, nos primeiros meses da permanência da filha na UTIP: Eu ficava muito tempo no hospital e me esquecia do meu filho mais velho! Daí, ele ficou bastante revoltado. Guimarães e Ribeiro (1997) comentam que as reações da criança sadia à doença do irmão podem ser diversas, manifestando sentimentos de revolta, irritabilidade, ciúme, culpa ou diminuição do rendimento escolar. O irmão de Viviane demonstrava tristeza e permanecia sem falar praticamente todo o tempo que passava com a família, durante suas visitas no hospital. Seu olhar parecia pedir atenção e aconchego. As autoras perceberam, em estudo com irmão de crianças internadas, que as mães reconhecem que abandonam os filhos sadios gerando um desequilíbrio familiar, pois as crianças manifestaram se sentir abandonadas. O sentimento de abandono foi observado mesmo que outros familiares tenham assumido os cuidados dessas crianças. A mãe de Viviane, durante meses, só conseguia se preocupar com a filha doente. Achava que o filho mais velho estava bem, sob os cuidados da avó paterna. Tinha dificuldades de ver a importância que ela mesma tinha na vida do filho, que, até a filha nascer, era a única criança da casa. Aos poucos, após algumas orientações, começou a entender que o filho também precisava dela. A partir daí, começou a dividir-se entre as duas crianças. Quando estava em casa, acompanhava o filho até a escolinha, passou a auxiliá-lo nos temas e a brincar com ele. Várias vezes ao mês, ele visitava a irmã, acompanhado por um familiar. A mãe de Marcos revela sua percepção sobre os sentimentos de seu outro filho e reconhece a importância de seu papel de mãe e sua ambivalência na relação com o filho doente e o sadio: Meu outro filho gosta que eu o ensine nas coisas do colégio e não o meu marido. Então, ele prefere que eu esteja em casa e não o pai! 85 E reforça: Mas eu tenho que ficar um pouco com o Marcos, porque a gente não pode escolher ficar só com um filho e com o outro não! Eu gostaria de estar com os dois junto comigo! Os pais de Marcos organizaram-se de maneira que um deles ficava com o filho no hospital, durante a semana, e o outro se dedicava ao que estava em casa. Nos finais de semana, os três se reuniam, deixando o filho doente sob os cuidados da equipe da UTIP. No cotidiano do cuidado à família, o enfermeiro aborda o relacionamento dos pais com os outros filhos e, através da compreensão das relações intrafamiliares, os auxilia na reorganização da vida familiar. É importante que se discutam esses aspectos com os pais, pois, normalmente, não percebem os problemas que a sua ausência poderá causar nos outros filhos. Após algumas reuniões do grupo de pais e de atendimentos individualizados, passam a dividir as atenções entre as crianças. Torna-se comum às mães trazerem para a equipe suas dificuldades relacionadas aos filhos que ficaram em casa, seja na mudança de comportamento, no relacionamento com eles ou no rendimento escolar. Sugere-se que os pais ouçam seus outros filhos para saber o que pensam a respeito da nova dinâmica familiar, procurando apoiá-los nas suas dificuldades e necessidades. Quando necessário, a equipe faz o encaminhamento do irmão da criança internada para acompanhamento e suporte emocional. Preocupados em auxiliar a família no cuidado com os outros filhos, os profissionais da equipe da UTIP incentivam os pais a trazê-los para visitar a criança no hospital em horário livre para que não tenham dificuldades para trazê-los no horário exclusivo a visitas de outros familiares. É comum que a criança ou adolescente se interesse pelos aparelhos que vê em torno do irmão e das outras crianças internadas. Os pais são orientados sobre as informações que devem passar aos filhos em casa, antes da visita ao irmão, a fim de prepará-los para encontrá-lo e participar do ambiente da UTIP. Quando chegam à Unidade, são acompanhados por um membro da equipe, que lhes fornecerá informações apropriadas ao seu nível de compreensão. 86 A fim de reforçar aspectos positivos no relacionamento pais/irmãos das crianças dependentes de ventilação mecânica, a equipe preocupa-se em orientar os pais para que estabeleçam uma agenda semanal de rodízio com outros familiares ou pessoas significativas para as crianças, de maneira que consigam dar atenção ao que está internado e aos que estão em casa. Estabelecer esta divisão é importante para que as crianças e adolescentes não se sintam negligenciados. É importante enfatizar aos pais para que proporcionem momentos de reunião da família, principalmente em dias de aniversários, Natal, Ano Novo, Dia dos Pais, dentre outros que tenham significado especial para eles. Algumas datas poderão ser festejadas no hospital se previamente combinadas com a equipe. Semelhante à bibliografia estudada, o enfermeiro na UTIP do HCPA auxilia os pais a reconhecer que os outros filhos também sofrem com a sua ausência e a do irmão doente. São orientados para a compreensão de que nem sempre os outros filhos reagirão da mesma maneira no enfrentamento da situação de doença do irmão hospitalizado. Reforça-se que os pais devam procurar acompanhar os filhos nas atividades escolares, ajudando-os nos temas, nos exercícios, nas pesquisas e participando de reuniões; se se fizer necessário, conversar com os professores das crianças, explicando-lhes a situação enfrentada pela família, para que possam auxiliar os filhos a manter um bom rendimento escolar. Para isso, é importante que os pais consigam estabelecer uma agenda semanal de rodízio com pessoas significativas para o acompanhamento das crianças para que não se sintam negligenciadas. A equipe precisa ser flexível e pode proporcionar momentos de reunião da família, principalmente em dias de aniversario e outras datas significativas. É comum na UTIP do HCPA que o aniversário das crianças com longo período de permanência seja comemorado na sala de reuniões, deslocando-se a criança com o respirador e outros aparelhos para que a família consiga ter mais privacidade e, ao mesmo tempo, respeitando as outras famílias das crianças internadas. Normalmente, os irmãos, avós e tios participam das atividades familiares, acompanhando os pais não somente nos momentos difíceis, mas, também, nos momentos de alegria em que festejam alguma data especial. O auxílio da família ampliada se faz importante nesses momentos. Os avós e tios, na maioria dos casos, fornecem apoio em várias frentes, fazendo rodízio com os pais no 87 acompanhamento da criança internada e dos irmãos, dando apoio psicológico ou apoiando-os financeiramente. Necessitando de apoio Devido ao longo tempo de permanência da criança dependente de ventilação mecânica na UTIP e dos problemas decorrentes da internação prolongada, a família nuclear necessita de apoio incondicional da família ampliada e da rede social, normalmente representada pela comunidade onde reside. A rede de apoio familiar tem uma grande importância durante o período de internação da criança. O auxílio que os parentes fornecem aos pais é fundamental, pois eles, sozinhos, têm dificuldades para conciliar todas as atividades cotidianas, ou seja, cuidar da criança doente, dos irmãos, dos afazeres domésticos e manter o vínculo empregatício. O apoio de integrantes da família ampliada pode auxiliá-los a se organizar no cuidado do filho doente. Os avós, tios, padrinhos e amigos podem permanecer alguns períodos na UTIP, acompanhando o paciente enquanto os pais descansam, apoiam outros filhos, cuidam da casa ou retomam o trabalho. Essas pessoas também são fundamentais no cuidado das crianças que permanecem em casa. Na maioria das famílias, são os avós e tios que ficam com a guarda das crianças enquanto os pais cuidam o filho doente no hospital. Os pais moradores no interior do Estado sofrem com o fato de não poderem usufruir um contato mais direto com seus familiares durante a hospitalização da criança, os quais, geralmente, permanecem no município de origem. Normalmente, os parentes precisam gerenciar suas próprias vidas, têm emprego e outros filhos, apresentando, inclusive, dificuldades financeiras para permanecer em Porto Alegre e apoiar os pais d criança internada. A mãe de Maria da Graça, residente em cidade do interior, se refere à família ampliada: Porque a gente não tem família aqui, toda a nossa família é de lá! Daí fica mais complicado ainda porque como é que eles vão vir? 88 A distância também faz com que o acompanhante da criança se sinta muito só sem os outros integrantes de sua família. Geralmente, os pais das crianças dependentes de ventilação mecânica são pessoas jovens, que enfrentam dificuldades sem o apoio dos seus pais e de outras pessoas que lhes são significativas. A importância do apoio da família também é evidenciada na fala da mãe de Viviane: Porque no inicio eu ficava todo o tempo no hospital. Depois ficamos eu e a minha sogra se dividindo. Com a ajuda dela eu consegui me organizar ... Os avós têm exercido um papel importante no auxílio a essas famílias. Além do apoio fornecido aos pais no hospital e cuidando o irmão, os avós de Viviane ajudaram o casal a construir uma nova casa, a fim de melhorar as condições da moradia para receber a neta dependente de cuidados especiais. Os avós paternos de Maria da Graça também forneceram uma grande ajuda ao casal durante todo o período em que a criança permaneceu internada na UTIP do HCPA, inclusive, construindo uma nova casa nova para o casal. Os integrantes da família ampliada também podem auxiliar os pais a buscar apoio na comunidade. Além do apoio fornecido pela família ampliada e pelo hospital, alguns pais das CDVM obtêm auxílio de amigos e pessoas que lhes são referenciadas por conhecidos em sua cidade de origem. Podem ficar hospedados em casa de parentes ou amigos residentes na Grande Porto Alegre. As prefeituras dos municípios de origem destas famílias têm auxiliado com translado dos pais. A mãe de Marcos faz referência à ajuda obtida na Prefeitura: Eu venho na segunda-feira e volto para casa na sexta, com a ambulância. [da prefeitura]. Agora estamos conseguindo ambulância para levar e trazer a gente. Daí, nós passamos o final de semana em casa! Outro tipo de auxílio pode vir da igreja da comunidade onde os pais residem. Uma das crianças que ficou internada na UTIP do HCPA por nove meses, dependente de ventilação mecânica, teve ajuda incondicional da Igreja Evangélica, da qual participavam. Os integrantes 89 da igreja os auxiliavam com a criança no hospital e ajudavam a cuidar as suas irmãs que permaneceram em casa. Quando foi deflagrado o processo de alta hospitalar com o uso do respirador no domicílio, eles foram os responsáveis pela aquisição de todos os aparelhos que a criança necessitava. Outra família foi auxiliada pela comunidade através de campanha acionada pela emissora de televisão local, cuja verba foi suficiente para adquirir todos os equipamentos que a criança necessitava a fim de ser transferida para o hospital do seu município, onde os pais puderam ficar mais próximos à sua residência e à família ampliada. Ressalto, ainda, a importância do suporte família a família, desempenhado por pais de crianças que já se encontram no domicílio. Estes pais representam importante fonte de suporte emocional e de experiências que poderão ser compartilhadas com as famílias que ainda se encontram no hospital e após a alta para o domicílio. 6.1.3 Deparando-se com a cronicidade da doença O diagnóstico de doença crônica em uma criança que resulte em dependência de cuidados complexos é gerador de muito estresse e sofrimento para a família. Normalmente, esse tipo de diagnóstico é recebido com certa incredulidade pelos pais e pode estar relacionado ao desconhecimento da patologia e ao sentimento de negação referente ao fato de que o filho não será uma criança normal. A maioria dos casais constrói seus planos para o futuro e, entre eles, incluem a geração de filhos sadios, que lhes perpetuem a genética e a cultura familiar. A presença de uma diferença/deficiência destrói os sonhos que foram construídos pelo casal acerca da criança. Para as famílias de CDVM, provavelmente as dificuldades são maiores, pois, na maioria dos casos, não há perspectivas a respeito do futuro daquele filho. Silva e Pires (2000) mencionam que, o nascimento de uma criança com cuidados especiais, geram, nos pais, sentimento de “perda” do filho idealizado. Os pais vivenciam, durante todo o período de internação, as fases do luto, da perda “virtual” deste filho, podendo verbalizar sentimentos de culpa e raiva e projetando estes sentimentos sobre a equipe. 90 Percebendo as limitações do filho A mãe de Viviane percebe suas limitações e expressa seu sentimento de revolta quanto à condição da filha: É difícil pensar na minha filha vivendo dentro de um hospital, uma vida inteira num respirador! ... Eu acho terrível ela não poder sair na rua, não poder brincar, não poder sair de cima da cama! ... Ela passa com esse calorão em cima da cama! Dá uma pena ver as costas dela!... Queima as costas dela! É importante que a equipe proporcione momentos para que os pais coloquem seus sentimentos. Ouvindo-os, os profissionais poderão auxiliá-los a atender suas angústias e amenizar seu sofrimento. O casal precisa se adaptar ao novo estilo de vida, com novas regras, novos horários, novos relacionamentos e ao fato de o filho não responder às suas expectativas. No mundo fora do hospital, a realidade também lhes gera sofrimento. Por diversas vezes, os pais de Maria da Graça disseram que sentiam dificuldades de sair para parques, pizzaria e outros locais onde encontravam crianças sadias porque, ao observá-las, sofriam, pois sabiam que a filha jamais poderia vir a brincar, correr, gritar ou sorrir. A mãe de Maria da Graça diz: Dói na alma ver a minha filha naquele estado, ali daquele jeito, vegetativa na cama! Maria da Graça permaneceu na UTIP por mais de dois anos, sem contatar com o ambiente, sem olhar nos olhos de seus pais, sem lhes dirigir um sorriso. Dia após dia, os pais ficaram ao seu lado. Por várias vezes, comentaram sua revolta em ver a filha naquela situação e falavam sobre o quanto a gravidez da filha foi planejada. O diagnóstico de uma doença crônico-degenerativa os pegou de surpresa e, inicialmente, revoltados, projetavam sua raiva contra a equipe, mantendo, por algum tempo, um relacionamento difícil. 91 Observa-se a dificuldade de aceitação do diagnóstico e prognóstico nas palavras das mães de Maria da Graça e de Marcos, respectivamente: Nos primeiros tempos tu fica louca, tu fica estressada, tu não sabe o que fazer, tu tem vontade até de se matar pelo sofrimento de ver a nossa filha com aquela doença rara! Porque foi muito difícil.... doía dentro de mim porque eu não aceitava, eu não aceito que ele tenha essa doença genética! ... porque, pra mim, de uma hora para outra, parece que ele vai melhora! Eu não aceito que ele esteja ali, daquele jeito! Os pais podem oscilar entre sentimentos de revolta e de aceitação da situação que enfrentam. Em alguns momentos, nas falas dos pais, evidenciam-se sentimentos de resignação ou de aceitação do diagnóstico e cronicidade da doença. É o que se percebe na fala da mãe de Viviane: A gente pensa que não precisava ser assim, mas, fazer o que? É assim, ela veio para nós, não tem como não... [aceitar!] Na fala da mãe de Miguel: Só que tu acaba aceitando ... Tu acaba tendo que aceitar... No começo é horrível, mas depois a gente foi tentando aceitar aquilo que tava acontecendo! E também na fala da mãe de Marcos: Com o passar do tempo a gente foi ... Não acostumando, mas aceitando aquela situação! Wong (1999) diz que uma incapacidade ou doença grave de um membro da família pode causar estresse ou crise significativa em qualquer estágio do ciclo de vida familiar. É importante que a equipe de profissionais da UTIP esteja atenta aos sentimentos evidenciados pelos pais para que consiga auxiliá-los através do diálogo e de apoio e encaminhando-os a profissionais da saúde mental. 92 A família necessitará ser informada sobre as causas da doença, o prognóstico e as implicações para uma nova gravidez. Dependendo da patologia, a possibilidade do casal vir a ter outro filho com a mesma doença é muito significativa. A maioria dos pais, por estarem em idade reprodutiva, necessitam de orientação e aconselhamento genético realizado pela equipe de genética do hospital ou ser encaminhada a um centro de referência. 6.1.4 Visualizando a possibilidade da alta hospitalar A partir do momento em que manifestam a vontade de levar o filho para casa, os pais começam a vivenciar um clima de esperança. Esperança de conquistar algumas vantagens sobre a permanência no hospital, mesmo com alto grau de dependência do filho para os cuidados. Esperando melhora na qualidade de vida A possibilidade de levar o filho para casa faz com que os pais fiquem esperançosos de que conseguirão uma melhora na qualidade de vida da família. O fato de poder estar mais próximo dos membros da família nuclear e dos integrantes da família ampliada os deixa na expectativa de que poderão melhor se apoiar. A mãe de Maria da Graça comenta: Vai ser melhor para mim, para o Marcos, para todo mundo! Todo mundo vai ficar perto um do outro, pra se ajudar! A mãe de Marcos também é de opinião de que se sentirão mais próximos, levando-o para casa: Eu fico imaginando... o meu outro filho vai para o colégio, daí pelo menos à noite nós vamos estar juntos... nós quatro! É importante que a equipe esteja sempre presente, ouvindo os pais, observando e analisando suas expectativas quanto à volta para casa, dirimindo dúvidas técnicas, auxiliandoos a entender seus próprios sentimentos de medo e, ao mesmo tempo, de expressarem a esperança de uma qualidade de vida melhor. 93 À medida que o dia de ir para casa com o filho doente se aproxima, os pais referem toda a sua ansiedade. A mãe de Maria da Graça comenta: A gente está num estresse! Estamos ansiados, a nossa família também! O que a gente mais quer é levar ela pra casa! É comum que se preocupem com seus sentimentos na hora de sair do hospital. Ainda, a mãe de Maria da Graça prevê sua reação no momento da alta: Eu fico pensando como é que vai ser o dia que eu sair do hospital! Eu acho que eu vou chorar o tempo todo! Em todos os casos de crianças dependentes de ventilação mecânica que foram para casa, os pais realmente ficaram muito sensibilizados na hora da despedida da equipe e dos amigos que deixaram. Nos últimos dias de sua permanência na Unidade, os pais comumente são visitados por outros familiares de crianças que passaram pela UTIP. A equipe demonstra um misto de alegria e tristeza, pois sempre se formam vínculos preciosos com essas famílias. Aos poucos, os integrantes da equipe vão se despedindo, tiram fotos com os pais e a criança, transmitem mensagens de felicidades e bom retorno ao domicílio. O momento em que a ambulância chega a UTIP tem gerado um impacto emocional muito grande nos pais. Dizem que o vislumbrar de uma nova etapa em suas vidas os deixam ambivalentes em seus sentimentos, com um misto de alegria e tristeza. Normalmente, os pais choram bastante ao se despedirem dos integrantes da equipe. A hora tão almejada por mais de ano finalmente chega. Apesar da satisfação que evidenciam ao levar o filho para casa, os pais demonstram que têm consciência de que não estão levando uma criança normal. A mãe de Maria da Graça percebe que a filha não irá para casa da maneira que ela gostaria, e isto a deixa frustrada, angustiada e triste: Nós queremos levar ela pra casa, então a gente fica angustiada!...Porque ela entrou [no Hospital] no meu colo, agora ela vai sair carregada [em uma maca] numa ambulância... num respirador, então vai doer, está doendo... Estou com um pouco de alegria porque estou indo embora, mas estou mais é triste, com uma dor, porque ... o 94 que eu queria é sair com ela no meu colo, levar ela normal no meu colo! Os pais referem que em casa encontrarão mais conforto, pois estarão em seu espaço privado, resgatarão a sua autonomia como unidade familiar. Aguardam ansiosos pela alta hospitalar, já que, na sua percepção, têm uma chance que a vida recomece com uma melhor qualidade. Reconhecem que estarão mais próximos da família ampliada, e isso é percebido como proteção. A mãe de Maria da Graça enfatiza esses aspectos: Mas, pelo menos ela vai, ta indo pra casinha dela! Pelo menos eu vou estar em casa, vou ter a minha cama, a minha televisão, vou ter o conforto da minha casa, vou estar mais perto da minha família... Vamos ter mais aconchego da família! Os pais admitem que levar o filho para casa, mesmo na situação de total dependência nos cuidados, ainda é melhor do que permanecer no hospital. Querem dar esta chance ao filho e a si mesmos. É o que a mãe de Maria da Graça reforça: Eu acho muito importante poder ir para casa, mesmo que ela tivesse uma hora de vida eu queria levar ela pra casa! A mudança para o domicílio gera muita expectativa nos pais, no entanto, têm convicção de que a vida não será fácil. Sabem que ir para casa trará vantagens que justificam sua escolha, mas têm consciência de que levar o filho não modificará o diagnóstico e prognóstico dele. A mãe de Maria da Graça enfatiza esse aspecto, mostrando-se realista com a situação da filha: A gente sabe que não vai ser fácil, a gente sabe que não vai ser um mar de rosas em casa, porque ela vai continuar vivendo como ela está vivendo aqui! 95 Levar o filho para casa, mesmo com cuidados complexos como a necessidade de ventilação mecânica, passa a ser o objetivo desses pais, que, não vendo perspectiva de melhora no quadro crônico do filho, almejam uma melhora na qualidade de vida. A agilização do processo tem dependido do empenho da família, dos profissionais da UTIP, dos planos de saúde, da comunidade onde a família está inserida e da participação efetiva dos gestores de saúde. 6.2 A FAMÍLIA CUIDANDO O FILHO NO DOMICÍLIO A experiência durante o longo período de internação na UTIP mostrou as dificuldades perpassadas pelas famílias deste estudo. Seguindo as suas trajetórias, este tema aborda o modo de a família vivenciar o cuidado do filho no domicílio, do qual emergiram sentimentos de medo e insegurança, preocupação com a nova rotina familiar, necessidade de reorganização da família e importância do apoio da família ampliada e da rede social. Por ultimo, os pais fazem uma reflexão sobre a qualidade de vida do filho dependente de ventilação mecânica e de sua família. 6.2.1 Enfrentando o desafio da permanência em casa Apesar dos pais terem manifestado seu desejo de levar o filho para casa e, para isto, participarem de treinamento e demonstrarem estar preparados para assumir o cuidado, percebe-se que o início da permanência no domicílio é dotado de sentimentos de insegurança e medo. Estes sentimentos podem estar relacionados à possibilidade de piora no estado clínico da criança, muitas vezes previsível, como infecções respiratórias, desnutrição, crises convulsivas ou possíveis falhas na tecnologia. Intercorrências como obstrução ou deslocamento da cânula de traqueostomia, falhas no respirador artificial ou mesmo a falta de energia elétrica mantêm os pais em alerta. Estes fatores são geradores de sentimentos de insegurança e medo e podem levar a criança necessitar de intervenções que signifiquem o seu retorno ao hospital. 96 Acompanhando o receio de uma piora clínica, a possibilidade da perda do filho é vista como muito sofrida pelos pais. A família de Miguel se sente mais instrumentalizada para o cuidado devido a experiência adquirida com os cinco anos de permanência do filho no domicílio, mas, mesmo assim, o pai admite ter receio que alguma intercorrência que possa ocorrer com o filho em casa e que não consiga resolver: Hoje por exemplo, ele fez umas crises de arritmia... ficamos eu e a minha esposa, um de cada lado da cama e ... a gente se estressa! A gente não sabe se de repente ele dá uma parada, e daí? A gente tem um certo ensinamento mas... o medo acompanha a gente! Quando chega ao domicilio, a família necessita de um período de readaptação à nova rotina doméstica. Assumir o cuidado de uma criança dependente de ventilação mecânica no domicilio, sem a presença dos profissionais da UTIP, gera insegurança e medo mais intensos no primeiro período da permanência em casa. Estes sentimentos geralmente levam meses para serem amenizados, à medida que os pais vão adquirindo experiência e segurança. A equipe da UTIP permanece presente nas 24 horas cuidando a criança no, e, em casa, eles não têm esta retaguarda. Os pais de Miguel relatam seu receio com a cânula de traqueostomia: Em relação à traqueostomia, o nosso maior medo foi de um dia a [cânula] traqueostomia sair e a gente não conseguir recolocar! Uma das preocupações da equipe da UTIP do HCPA é a de instrumentalizar os pais caso a cânula se desloque. Durante o processo de treinamento no período de internação, eles aprendem a troca diária do curativo e a troca mensal da cânula e são orientados a introduzir um tubo endotraqueal no traqueostoma, caso não consigam recolocar a cânula. Miguel já se encontra no domicílio há cinco anos, e não ocorreu nenhum incidente deste tipo com ele. Já ocorreu que a mãe de um outro paciente egresso do HCPA não conseguiu recolocar a cânula na criança e, após introduzir o tubo conforme orientação recebida, contatou com o pediatra, que a recolocou no hospital do município onde a família reside. A necessidade de reinternação da criança é vista pelos pais como um receio sempre presente e não superado. Reinternar parece gerar sentimentos de falha, de incompetência nos 97 pais. Este receio está presente nas famílias que levaram seus filhos dependentes de ventilação mecânica para o domicílio. A mãe de Viviane verbalizou este sentimento alguns meses após a alta da filha: Agora a gente tá tão bem em casa!... Ter que voltar pra lá... Espero que não aconteça!... Foi terrível! Farei de tudo para que não aconteça de novo ... Mas, agora já passou, graças a Deus! ... Espero que nunca mais passe por isto de novo! Depois da primeira alta para o domicílio, Miguel e Viviane precisaram internar algumas vezes, mas a média de dias de internação não ultrapassou três dias. A etiologia ficou relacionada principalmente à infecção respiratória, e a necessidade de reinternação foi espaçando com o tempo. Houve uma exceção no mês de julho de 2002, quando as duas crianças ficaram internadas por uma semana na UTIP com a finalidade de testar o novo respirador, o que deu à família um pouco mais de autonomia. Os pais referem, que após algum tempo em casa, se sentiram mais tranqüilos à medida que foram conseguindo resolver os problemas surgidos. Constata-se que as reinternações ocorrem com mais freqüência nos seis primeiros meses, mais por insegurança da família do que por necessidade clínica ou problemas com os aparelhos, entretanto, o tempo de internação se limitou à média dos três dias já relatados. Com relação a sentimento de insegurança, o pai de Miguel comenta: Ele baixava [internava] mais no começo. Isto acontecia devido a nossa insegurança. Qualquer coisa nós já ligava pra lá [para a UTIP] e já pedia um leito. Imagino que nos primeiros seis meses que o Miguel estava em casa, deve ter baixado umas três a quatro vezes. A monitorização eficiente dos sinais vitais por aparelhos modernos dá mais segurança à família. O conhecimento adquirido durante a permanência no hospital e no treinamento recebido oferece tranqüilidade e mais autonomia aos pais. Eles têm conseguido assimilar bem o treinamento e passam inclusive a desenvolver uma linguagem mais técnica. 98 Com relação à monitorização eletrônica da criança, a mãe de Viviane relata de que maneira programa o saturômetro de oxigênio9 antes de ir dormir a noite: Eu não boto o alarme mínimo da saturação em 90, eu boto em 92 porque... se chegar em 92 é porque tem alguma coisa [problema], não é? Quando a criança vai para casa e fica totalmente sob os cuidados da família, é normal que aflorem sentimentos de insegurança ou impotência, pois os familiares não têm formação para tomar decisões terapêuticas. Como dependem do médico pediatra da criança para tratá-la em casa, a interação com o novo profissional também exige tempo para que se estabeleça uma relação de confiança entre ambos. Como estes casos não são comuns no Rio Grande do Sul, os profissionais que atendem essas crianças no domicílio precisam adquirir experiência e segurança no atendimento. Com o passar dos meses, vão estabelecendo uma relação mais tranqüila com a situação. É o que a mãe de Viviane comenta: Não tenho mais aquele pânico que eu tinha à noite! De noite era um pânico de acontecer alguma coisa e eu não ver! ... Mas graças a Deus está bem, eu não me preocupo, eu não tenho tanto medo das coisas que vai acontecer! Respectivamente, os pais de Miguel e Viviane se percebem mais tranqüilos depois de algum tempo em casa: Depois as coisas se acalmaram e a gente aprendeu... a lidar mais com ele. Perdeu um pouco do medo! No começo tinha mais medo! ... Agora está muito bom! ... entendemos dos aparelhos agora! As crianças dependentes de ventilação mecânica, egressas do HCPA não tiveram atendimento por serviço privado de atendimento domiciliar, devido a não aceitação das O saturômetro de oxigênio é um monitor digital da taxa de oxigênio circulante no sangue do paciente. O aparelho realiza a dosagem de oxigênio através de um sensor com célula fotoelétrica fixado ao cabo do monitor, o qual é colocado em um dedo, lóbulo da orelha ou enrolado na mão ou pé da criança. 9 99 famílias. O fato de permanecerem durante anos no hospital, disputando o cuidado do filho com várias pessoas, gera nos pais a necessidade de querer autonomia em relação ao cuidado, ter mais privacidade e tomar decisões com mais liberdade. Além dos receios relacionados ao estado clínico da criança, os pais admitem sentir medo e insegurança com a necessidade de uso de tecnologia para a sobrevivência da mesma. Apesar de os aparelhos serem eficientes, intercorrências podem ocorrer a qualquer momento. Portanto, referem ter medo que falte energia elétrica por muitas horas, que ocorra algum problema com a cânula de traqueostomia ou com o respirador e saturômetro. Os pais de Miguel comentaram que um dos grandes receios que tiveram foi que faltasse luz e o gerador não funcionasse. Este sentimento tem fundamento importante, pois os equipamentos que mantêm a oxigenação e controle dos sinais vitais da criança são elétricos. As baterias precisam estar funcionando corretamente, e, mesmo assim, o tempo de autonomia delas é relativamente curto para o respirador e saturômetro de pulso. Portanto, é necessário que, entre os equipamentos para a manutenção da criança em casa, esteja um gerador de energia (geralmente a óleo diesel). A alternativa que os pais têm, em caso de falha, é usar o ambu até que a luz volte. Mas isso exige bastante do familiar. Em julho de 2002, Miguel e Viviane receberam do Governo do Estado um respirador com um dispositivo que fornece oito horas de autonomia de energia para manter os aparelhos em funcionamento, o que deu mais segurança e autonomia às famílias. Relembrando como foram os primeiros meses em casa, os pais colocaram seus medos e inseguranças iniciais, que, segundo eles, foram se dissipando à medida que adquiriram mais experiência. Referiram que, após algum tempo em casa, aprenderam mais sobre a criança e o manejo da aparelhagem, o que lhes trouxe mais tranqüilidade. Poder estar mais perto um do outro trouxe mais equilíbrio à família. A rede social de apoio tem sido importante para a organização da família e a melhora na qualidade de vida em relação ao período de internação hospitalar do filho. 100 6.2.2 Buscando melhorar a organização familiar Poder estar com o filho em sua casa significa para os pais uma grande mudança, que é dotada de muita responsabilidade para com a manutenção da vida do filho. O início da reorganização familiar com a presença da criança no domicílio exige uma reorganização na rotina da família. Ela se organiza na realização das tarefas domésticas, cuidado aos filhos, relação conjugal e trabalho fora do lar. A mudança na rotina familiar é percebida pela família após passarem mais de dois anos se dividindo entre o hospital e o espaço doméstico. Ribeiro (2001) diz que, ao sair do hospital, a família tem esperança que a dinâmica familiar volte a ser igual ao período anterior à hospitalização. Após alguns dias se deparam com uma realidade diferente, fazendo com que a atenção seja redobrada nos aspectos de saúde. Apesar disto, as famílias deste estudo têm realizado um movimento favorável à sua readaptação às rotinas do lar. Adaptando-se à nova rotina diária Percebo que os pais deste estudo têm se organizado de maneira a lograr estabelecer uma rotina diária em que consigam conciliar a tarefa doméstica, o cuidado dos filhos, o preparo da alimentação – que fazem parte das atribuições da mãe – e o trabalho fora do lar, atribuição do pai. A mãe de Viviane fala sobre sua rotina diária: Eu faço as minhas coisas e ela fica ali. Tenho o meu tempo pra ela e tenho o meu tempo para o meu filho! Às 11 horas eu faço a fisioterapia nela. Então, de manhã, enquanto ela vê desenho com o irmão, eu vou lavando as roupas, a louça, varrendo a casa! Depois eu faço o almoço! Nas duas famílias estudadas no domicílio, a mãe é a pessoa que administra a casa, o cuidado ao filho doente e ao outro filho, enquanto que o pai mantém a função de provedor. Quando em casa, o pai auxilia nos trabalhos domésticos e no cuidado das crianças. 101 Apesar do auxílio do pai, a mãe é quem organiza e distribui as tarefas, nela ficando concentrada a maior parte das tarefas cotidianas. Na família de Viviane, é a mãe quem assume as relações com o sistema que mantém a criança em casa, ou seja, a Secretaria da Saúde do Estado, a empresa que fornece a manutenção dos aparelhos, a empresa que faz reposição dos gases e a Unidade Básica de Saúde. É ela também quem contata a UTIP do HCPA quando necessita. Na família de Miguel, normalmente a relação com o sistema é realizada pelo pai, e a rotina dos afazeres domésticos geralmente é enfrentada pela mãe. Às vezes, a rotina se torna bastante cansativa, os pais precisam atender a criança nas 24 horas do dia. A mãe de Miguel refere que fica muito pesado quanto ele não dorme à noite e ela precisa lhe dar atenção, poupando o marido, que precisa acordar cedo para o trabalho. Quanto a isto, ela comenta: Tem noites que ele não quer dormir, que ele quer ficar fazendo bagunça! Aí, eu brigo com ele. Nas visitas que fiz às duas famílias para realizar o estudo no domicílio, observei que os pais de Miguel e Viviane são bastante presentes na realização dos cuidados à criança doente e seus outros filhos. Em uma das visitas, enquanto conversava com a mãe de Viviane, o marido terminou de liquidificar a sopa para administrá-la por gavagem pela sonda nasoentérica da criança. Na casa de Miguel, o pai deu banho em sua outra filha, enquanto eu conversava com sua esposa, mesmo tendo participado ativamente da entrevista realizada. A mãe de Miguel diz que procura fazer sua rotina de cuidados sem estresse, mas tem dias que fica se sentindo sobrecarregada: Quando dá se faz, se não der não se faz, senão acabo enlouquecendo! Cuido do Miguel enquanto meu marido está fora trabalhando e minha filha está no colégio. No início eu tive ajuda de uma doméstica, agora faço tudo sozinha. A rotina diária é estabelecida pela família, que tenta dividir papéis. Se não tiver ajuda de uma outra pessoa da família ampliada, a mãe poderá realmente se sobrecarregar com a carga diária de afazeres domésticos e cuidados aos filhos. A mãe de Miguel ficou sozinha para realizar suas tarefas, depois que tiveram que dispensar os serviços de uma empregada 102 doméstica por falta de recursos financeiros. A perda da sogra também foi um fator determinante para se sentir sobrecarregada, pois os outros membros da família não têm se mostrado presentes. Para a mãe de Viviane, a rotina diária parece ser enfrentada com mais desenvoltura: Pensei que fosse ser mais complicado lidar com a casa, a Viviane, meu outro filho e do marido. Cuidar dos três. Que nada! Às vezes o gurizinho aí da frente vem pra cá e eu fico cuidando dele também! Acredito que a maneira como cada família se organiza e visualiza a carga de afazeres e cuidados diários parece ser muito individual, dependendo da expectativa de vida de cada envolvido, seus valores e suas crenças. Para a mãe de Miguel, abdicar de uma vida profissional e social que lhe trouxesse mais prazer deve estar contribuindo para a diferença de percepção entre as duas mães. Relacionando-se com o outro filho Nas visitas realizadas a estas famílias, percebi que os pais têm dificuldades no relacionamento com o filho sadio. Ter que conviver com um filho totalmente dependente de cuidados e outro que brinca, corre, grita e faz exigências não tem sido fácil para eles. No caso de Viviane e Miguel, a doença genética que possuem está ligada ao “X”, portanto, ligado ao gene feminino, o que gera sentimentos de culpa, principalmente nas mães, dificultando seu relacionamento com o filho sadio. Guimarães e Ribeiro (1997) comentam que, na maioria das vezes, os pais não se apercebem dos sentimentos que a doença e o envolvimento da família geram nos irmãos. Os pais ficam confusos, pois se sentem divididos entre as necessidades do filho doente e as do sadio. Para Motta (1998) a preocupação dos irmãos com a possibilidade de perder o amor dos pais é percebido no vivido deles, e esta percepção gera culpa nos pais. Os pais de Miguel falaram que têm muitas dificuldades com a filha sadia, de 5 anos. Brigam com ela e chegam a lhe bater, pois pensam que ela precisa compreender que o irmão é 103 doente. Não percebem que ela é a criança normal que possuem e que, sendo sadia, irá fazer as brincadeiras e exigências compatíveis com a sua faixa etária. Para tentar amenizar as dificuldades, decidiram procurar um psiquiatra no HCPA para tratar a criança. Após alguns meses em tratamento, os pais alegaram que a terapeuta os ajudou a entendê-la melhor. A criança sadia disputa a atenção dos pais em casa numa tentativa de se sentir valorizada. Outro ponto a ser analisado é que ela também idealiza um irmão sadio, com quem consiga brincar e se relacionar. No caso de Viviane e Miguel, pouco eles conseguem interagir, gerando sentimento de frustração no irmão. Mesmo que as crianças sejam pequenas, é importante que os pais consigam conversar com elas e lhes dar a atenção necessária para que sintam que também são importantes no contexto familiar. Sempre que possível, devem buscar envolvê-los com outras crianças, seja em creche, escola ou vizinhança, para que desenvolvam relacionamentos sadios. Nas visitas realizadas à família, observa-se que os irmãos procuram chamar a atenção sobre si. Quando percebem que estão sendo excluídos da atenção dos visitantes, procuram ficar por perto. O irmão de Viviane é bastante tímido e fala pouco, mas responde quando questionado sobre o colégio, mostra os trabalhos realizados, procurando se valorizar como indivíduo. Certamente, a situação é difícil para uma criança compreender. Portanto, é importante que, nas visitas pós-alta da equipe da UTIP, os profissionais questionem e observem a relação dos pais com os outros filhos com a finalidade de avaliar esta inter-relação e auxiliá-los a compreender seus sentimentos e atitudes, e, se possível, que procurem buscar ajuda para manter a unidade familiar e a saúde mental dos membros da família. Verbalizando sobre a relação conjugal Referindo-se a vida conjugal, os pais de Viviane e de Miguel alegam ter pouco tempo para a vida a dois. As relações sociais do casal ficam restritas a visitas que recebem dos familiares, de vizinhos e de alguns amigos. Os dois casais praticamente aboliram as saídas a sós. Após julho de 2002, com a aquisição do respirador atual, a família de Viviane tem conseguido sair de casa para visitar os parentes e outras crianças dependentes de ventilação mecânica, ir a shopping e levar o outro filho à lanchonete de sua preferência. 104 A mãe de Viviane fala sobre o tempo que ela e o marido têm para a vida íntima, a qual fica restrita aos finais de semana, devido ao trabalho noturno do marido: Para nós dois fica só o final de semana, né! Porque ele ta em casa só no sábado de noite. É a única noite que ele está em casa! Então, a única noite que nos sobra é no sábado. Sábado à noite e domingo o dia inteiro!... Porque ele trabalha de noite, daí ele tem que dormir durante o dia. E diz, conformada, quando lembra do tempo em que passou com a filha no hospital: O que sobra pra nós é no fim de semana. Mas, já ta bom! Antes era raramente! A Viviane ficou dois anos e meio no hospital! A mãe de Miguel fala sobre o envolvimento pessoal deles no cuidado ao filho em casa: É que é brabo no caso dele! O Miguel é 24 horas com a gente! A gente não sai nunca! ... É isso o que eu digo, se a gente não tivesse medo, ficasse aflito, ansioso... [poderia deixá-lo com alguém]. Apesar de o casal admitir que a relação conjugal está prejudicada, ressaltam que está melhor do que durante a internação do filho, quando tinham que fazer rodízio no cuidado. Até o momento atual, o casal prioriza o cuidado do filho doente em detrimento das atividades domésticas, do cuidado ao outro filho, da vida conjugal e do lazer da família. O pai de Miguel comenta sobre a dificuldade de saírem juntos de casa: Dá para contar nos dedos às vezes que nós saímos juntos!... Faz seis anos que quando a minha esposa vai numa festa eu não vou! Quando eu vou, ela não vai! Festa da minha família, eu vou, da família dela, vai ela! Foram raras as vezes que saímos juntos! Por sua vez, os pais se preocupam em não incomodar outras pessoas e acreditam que o dever de cuidar do filho doente é deles. Têm dificuldades em deixá-lo com alguém e sair de casa despreocupados para se divertir como qualquer outro casal. Têm receio que alguma intercorrência venha acontecer na sua ausência, deixando-os aflitos. Por isso, não se permitem momentos de lazer a sós. Comentaram que não gostariam que os seus familiares se sentissem 105 culpados por algum problema que ocorresse na ausência deles. A equipe poderá trabalhar estes sentimentos com a família, de maneira que compreendam que as intercorrências poderão ocorrer em sua presença também e que necessitam retomar uma relação de casal mais saudável. A terapia com um profissional da área da saúde mental auxiliaria estes pais a enfrentar suas dificuldades, mas eles alegam dificuldade de deslocamento até o HCPA e de conseguir alguém para cuidar as crianças, o que os desestimula a procurar ajuda terapêutica. Entretanto, no período de internação, também tiveram dificuldade em aceitar atendimento com profissional da saúde mental. Enfrentando dificuldades financeiras A família nuclear sente diminuir seu padrão de vida desde a internação do filho na UTIP. Os pais tiveram despesas com o deslocamento entre o domicílio e o hospital, com as benfeitorias que precisaram realizar, e enfrentam novas despesas com a manutenção da criança em casa. Apesar do auxílio fornecido pelo governo com a compra e manutenção dos equipamentos, os pais precisam gastar com a aquisição de medicamentos, fraldas descartáveis e algum equipamento que não seja substituído a contento. Após alguns anos, a família de Miguel conseguiu uma ajuda de custo em torno de três salários mínimos junto ao Governo Estadual para a aquisição de material de consumo diário e reposição de peças de equipamentos. A família de Viviane recebe um salário mínimo do auxílio-doença a que a filha tem direito, o que complementa a renda familiar de um salário mínimo percebido pelo pai. Motta (1998, p. 167) comenta: A doença desarticula o mundo da família em todas as suas dimensões. O abalo na área econômica é um fato concreto e a primeira a ser atingida. A situação econômica altera-se em conseqüência dos gastos relacionados ao tratamento e, principalmente, pela diminuição da renda familiar devido à impossibilidade de um ou mais integrantes da família continuar a trabalhar e cooperar no seu sustento. Os meses de férias escolares são complicados para a família de Miguel devido ao fato de o pai trabalhar com transporte escolar. Nestes meses, procura fazer transporte de turistas para a serra gaúcha e para as praias, mas nem sempre consegue manter sua renda familiar 106 mensal suficiente para cobrir suas despesas. Nestes últimos anos, tem tentado se revezar com outras pessoas da família para tentar melhor aproveitamento do veículo escolar nos meses de férias, a fim de não ficar ocioso e manter a renda mensal da família. Um de seus cunhados tem auxiliado neste sentido, revezando-se com o pai de Miguel nas viagens que realiza transportando turistas para a serra gaúcha e para as praias. Recebendo apoio da família ampliada e da rede social Quando a criança vai para o domicílio, o auxílio da família ampliada se faz presente, principalmente no período inicial. Apesar das dificuldades, os avós, tios e padrinhos têm tentado se revezar para apoiar a famílias das duas crianças. A família dos avós paternos de Viviane se reestruturou para mantê-los no mesmo terreno em que moram e ajudaram seus pais a construir a nova casa. A família de Miguel recebe a ajuda dos padrinhos, que vez em quando ficam com ele para que seus pais saiam um pouco. Constatei que a ajuda da família ampliada foi diminuindo à medida que seus membros necessitaram, valorizando outros aspectos de sua vida, ou seja, emprego, estudo ou constituindo suas famílias. A perda de um familiar de referência por mudança de endereço, volta ao trabalho ou morte complica a vida do casal, que, necessariamente, precisa fazer um novo remanejo interno. Os pais de Miguel sentiram a dificuldade de os padrinhos continuarem a lhes ajudar quando começaram a ter seus próprios filhos. A avó paterna de Viviane, que auxiliava nos serviços domésticos, precisou retomar seu trabalho após ter se separado do marido, fazendo com que os pais de Viviane solicitassem ajuda à família materna. Como o pai de Viviane trabalha no período noturno, de segunda a sábado, sua mãe muitas vezes permanece sozinha com as crianças em casa. O casal, então, realiza uma comunicação própria para se ajudar no controle da criança no período da noite. Apesar de a criança ser mantida monitorada 24 horas por aparelhos que alarmam ao menor sinal de problema, a família desenvolve algumas formas de ajuda para poder supervisionar a criança com segurança. Para tanto, a mãe de Viviane relata: 107 À noite ela é super tranqüila! O meu marido me liga [do trabalho] de madrugada e pergunta como ela tá! Já é um alerta pra eu me acordar se eu dormir demais. Ele me liga sempre as três ou quatro horas! Quando consegue ajuda dos familiares, a mãe de Viviane se sente mais segura: À noite tem a minha sogra que às vezes dorme aqui em casa, tem o meu marido nos domingos e às vezes, tem a minha mãe que vem pra cá também, ela e o pai. Aí é bem bom! Durante o período de pré-alta de Miguel, os pais se preocuparam em se organizar caso o filho precisasse de reinternação. Para isso, a família ampliada os ajudou com a filha mais nova, a qual foi preparada para ficar hospedada na casa da avó paterna caso fosse necessário. O pai de Miguel relembra: Logo que a nossa filha nasceu, eu e minha esposa ficávamos nos perguntando se ele precisasse baixar [internar] o que nós faríamos com a menina?... A gente se preparou e as duas avós pra ficar com ela. Começamos a deixar, de vez em quando ela passar um dia na casa de um tio também. Os imprevistos podem ocorrer, e os pais precisam estar preparados para tomar decisões. Os pais de Miguel se assustaram quando viram que quem precisou internar foi a filha mais nova: E no fim... Quem acabou precisando baixar hospital foi ela! E a gente não sabia o que fazer com o Miguel! Foi quando ela baixou pra fazer [a cirurgia] o apêndice. Que sufoco! Tava todo mundo preparado pra que se um dia o Miguel precisasse!... E foi o contrário! Os pais de Miguel relataram que, como estavam sozinhos nesta situação, sem ter com quem deixar o filho, o levaram para o mesmo hospital onde a filha estava internada e, usando suas palavras, “acamparam” com ele no mesmo quarto. Tiveram que entrar em acordo com o hospital para usar o oxigênio a fim de manter o respirador funcionando. A princípio, pensaram em se dividir, um deles ficaria no hospital com a filha, enquanto o outro permaneceria em casa com Miguel. Como a filha precisou ficar internada por cinco dias, o pai 108 entrou em desespero porque teria que voltar ao trabalho e não teve alternativa a não ser juntar os filhos no mesmo quarto do hospital para que a mãe pudesse cuidá-los e o pai retornasse ao trabalho. Os pais referem se sentir inseguros em dividir o cuidado da criança com outros membros da família. Nas duas situações, os familiares foram se afastando progressivamente da família nuclear, à medida que os pais foram adquirindo mais segurança nos cuidados e os familiares, retomando seu ciclo normal de vida. A família ampliada de Miguel foi muito presente na internação prolongada na UTIP. Por se encontrar no domicílio há pouco mais de cinco anos, os pais atualmente encontram-se praticamente sozinhos no cuidado aos filhos, afazeres domésticos e trabalho, embora a família os auxilie esporadicamente. A avó materna, que os auxiliava no cuidado das crianças e da casa, faleceu neste período. Além do apoio familiar, a comunidade tem desempenhado um papel muito importante na permanência dessas crianças no domicílio. As Prefeituras Municipais têm auxiliado estas famílias fornecendo, por exemplo, o leite especial que Miguel precisa receber, assistência médica à Viviane e o transporte das duas crianças quando precisam internar no HCPA. O Governo Estadual tem fornecido a manutenção e a reposição dos equipamentos utilizados pelas crianças. Como já foi mencionado anteriormente, em 2002, a Secretaria da Saúde do Estado trocou os respiradores utilizados por Miguel e Viviane por um de última geração, mais moderno e com bateria que fornece o dobro de autonomia em relação ao aparelho anterior. Além disso, as duas crianças têm recebido o auxílio-doença, fornecido pelo Sistema Único de Saúde. Para finalizar, o apoio família a família tem demonstrado ser eficiente no retorno das famílias para o domicilio. Os pais deste estudo e outros que se encontram atualmente no domicilio têm mantido uma rede de amizade e apoio mútuo bastante interessante. Costumam trocar idéias sobre novas tecnologias, realizam viagens para se visitar, comunicam-se sistematicamente por telefone e mantêm-se informados sobre tudo o que ocorre com cada família. Percebe-se o grande vínculo afetivo que liga os pais a seus filhos, lutando diariamente pela sobrevivência deles. A família tem mantido uma qualidade de vida discutível, mas 109 demonstra dedicar-se ao máximo para que as crianças recebam o amor, carinho, respeito e afeto. 6.2.3 Refletindo sobre a qualidade de vida A vida destas pessoas muda bruscamente depois que um filho desenvolve uma doença crônica incapacitante, tornando-o dependente de cuidados intensivos durante toda a sua existência. Percebo que, da maneira como estas crianças são cuidadas, poderão ter uma sobrevida longa, e os pais, geralmente jovens, dentro da fase produtiva e reprodutiva do ciclo de vida familiar, têm sido eficientes no processo de cuidar o filho. Eles mostram a ambivalência entre o amor que sentem pelo filho, a necessidade de cuidá-lo e a dificuldade de manter uma boa qualidade de vida. O inicio da permanência em casa foi o período mais difícil, mas, com o passar do tempo, os pais foram adquirindo experiência e tomando as decisões de maneira mais tranqüila. Aos poucos, a vida vai tomando um rumo de mais harmonia entre os pares, e as dificuldades vão sendo amenizadas. A mãe de Viviane verbaliza seu sentimento a respeito: No começo a gente estranhou bastante! A gente se acostumou tanto a ficar lá dentro do hospital que quando chegamos em casa a gente estranhou!... Estranhava assim... em poder ficar do lado dela, em ver televisão e em fazer as coisas em casa. Estar em casa com o filho doente e o outro filho é visto pelos pais como um momento mais tranqüilo em suas vidas, preferindo estar em casa a permanecer no hospital. A mãe de Viviane diz: Agora tá maravilhoso!... Não tem comparação! Mil vezes ela assim comigo, do que eu ter que ficar lá no hospital! ... Beleza, tá ótimo, bem tranqüilo assim! Não tem aquele estresse que achava que teria. Posso dar atenção a ela, ao meu outro filho e ao meu marido! Os pais de Miguel demonstram valorizar o estar em casa: 110 O hospital é completamente diferente! A casa pode ser um cubículo, mas é o teu canto, se tu quiser deitar tu deita! ... Quando que a gente ia andar de sandália de dedo, de short e sem camisa? Em casa, é diferente! Entretanto, com o passar do tempo, os pais podem desenvolver uma certa autonomia e sentimento de onipotência, tomando decisões médicas que não são de sua competência. Quando foram para casa, os pais de Viviane desenvolveram um pensamento mágico em relação a levar a filha para casa. Achavam que, em casa, ela poderia recuperar algumas funções. Um exemplo disso foi terem diminuído a dose de seus anticonvulsivantes, o que desencadeou crises convulsivas no terceiro dia da estadia no domicílio e seu retorno ao hospital. Em alguns momentos de seu discurso, a mãe de Viviane parece não vê-la como uma criança doente. Doença para ela parece estar relacionada à necessidade de internação hospitalar e sente medo: Tá ótimo! Dá até medo! Às vezes eu fico com medo dela ficar doente e ter que voltar para lá! [para a UTIP] ... Eu pensei que ela viesse pra casa e fosse melhorar, mas acho que o organismo estava muito fraco! A equipe da UTIP deve se manter alerta para que os pais compreendam que a estabilidade clínica do filho no domicílio depende de cuidados médicos que deverão respeitar para proteger a criança de intercorrências que a coloque em risco. Apesar do forte vínculo afetivo que os liga aos filhos, os pais se questionam sobre a qualidade de vida da criança e da família. Por ser um assunto delicado para eles, procuram não falar a respeito. Este é um dos motivos que os faz ter restrições a fazer terapia com profissional da saúde mental. A maioria dos pais de CDVM, que passaram pela UTIP, não aceitou auxílio de terapeuta por muito tempo. Alegavam não querer falar sobre seus sentimentos em relação ao filho. Entretanto, não negam que conversam entre si a respeito da possível perda da criança e de sua qualidade de vida. O pai de Miguel comenta seu sentimento a respeito da mudança percebida em suas vidas: 111 Quando eu falo que a nossa vida mudou dentro da UTI... até hoje... Até hoje, toda a nossa vida mudou! Em trabalho desenvolvido com crianças com paralisia cerebral e o impacto do diagnóstico sobre a dinâmica familiar, Murata e Petean (2000) comentam que a presença da criança, por si só, modifica a organização da família, sendo que o tipo de modificação – positiva ou negativa – e a intensidade da mesma dependerão de cada família, da gravidade da deficiência e do significado que esta tem para cada uma delas. Os pais de Miguel mencionaram que, em certos momentos, conversam sobre a possibilidade da perda do filho, mas, ao mesmo tempo, se culpam em ter este tipo de pensamento e não se permitem planejar o futuro sem a presença dele. A mãe de Miguel fez um comentário em que se mostra ambivalente em seus sentimentos: Olha, se a gente se acostumou com uma situação desse tipo assim, que nem se imaginava que a gente ia ter que passar.... eu fico pensando assim.. .a morte é uma coisa que vem e ... não é só pra ele que é doentinho, é pra todo mundo! Tem pessoas saudáveis que também morrem! Questionados se concordam que a criança com diagnóstico prévio de patologia crônico-degenerativa – tipo a doença de sua filha – deva ser colocada ou não em respirador, os pais de Viviane manifestam opiniões contrárias. A mãe de Viviane demonstra a ambigüidade de seus sentimentos. Quer a filha consigo mas coloca em dúvida a qualidade de vida da criança: Quando nasce, tu amas o teu filho! Mas tu não sabes quanto tempo ele vai ter que ficar em cima de uma cama, dependendo de respirador, correndo risco de vida a qualquer momento! O pai de Viviane comenta que não concorda em questionar o investimento que faz na vida da criança. Se ela veio assim doente para nós, se nós fomos escolhidos pra passar esta fase e cuidar dela, se ela veio assim, pra passar este período na terra, ela tem que passar, então a gente não tem o que decidir, se ela fica ou não fica, quanto tempo ela vai durar! 112 E enfatiza, convicto: Eu não sou de acordo em desligar aparelho! Então eu sou da opinião assim, eu vou até onde tiver que ir! A mãe o interrompe durante a entrevista e ressalta que não se está discutindo o desligar o respirador, mas não colocar a criança no aparelho quando o diagnóstico já foi definido previamente. Como a doença não tem cura, colocar a criança no respirador só prolonga a vida, sem chances de recuperação na atualidade. Nesse momento, a mãe de Viviane demonstra a clareza de sentimentos, que tenta ocultar quando diz que estar em casa é maravilhoso. Percebe-se que estar em casa tem sido uma experiência mais agradável para os pais das CDVM em relação à vivida no hospital, mas ainda é uma experiência difícil para essas famílias. Em relação ao comentário anterior feito pelo esposo, a mãe de Viviane responde: Depende muito de cada caso. Se a equipe médica conseguir ter o diagnóstico da doença antes de colocar no respirador! Tem que estudar bem a família. Pra saber se a família tem condições de agüentar sabe lá quanto tempo dentro do hospital! Precisa ver se a família aceita viver uma vida assim. Se a família não tem condições acho que é um sofrimento para a criança e para a família. Então, é já tirar, cortar! Como se diz: – Cortar o mal pela raiz! Pra não ter tanto sofrimento assim! E termina assim seus comentários: Eu acho que é pior como eu vejo, eu acho que é pior vê-los nesse estado assim, em cima da cama, dependendo de um aparelho! Apesar de todo o investimento que faz na filha, a mãe de Viviane questiona a qualidade de vida da criança. Durante a permanência no hospital, conversou com outras famílias de crianças com a mesma patologia de Viviane sobre a validade de colocar seus filhos no respirador, prolongando suas vidas. Ressaltou que se os pais de crianças com doença similar não tiverem conhecimento da história de vida das famílias de CDVM, não terão noção, como eles não tiveram, da dura realidade que os espera. Reforçou que, na sua opinião, a equipe da UTIP deva se preparar mais a fim de auxiliar os pais na decisão, pois estes pais não têm noção do percurso de vida que terão que enfrentar. 113 As crenças de cada familiar têm influência significativa sobre as decisões familiares, e estas devem ser respeitadas pelos integrantes da equipe de saúde. Wright e Leahey (2002) comentam que crenças e comportamento estão ligados de maneira intrincada e que cada ação e cada escolha feitas pela família e pelos indivíduos se desenvolvem a partir destas crenças, evidenciadas na fala do pai de Viviane. A equipe da UTIP do HCPA tem oferecido ajuda aos pais, no sentido de manterem um vínculo de ajuda terapêutica a fim de auxiliá-los a compreender seus sentimentos e amenizar possíveis sentimentos de dor e culpa por pensamentos que não desejam ter. Mas, a decisão de aceitar atendimento de profissional da saúde mental é dos pais. Considerando o conceito de família saudável, eles têm nos mostrado que, apesar das dificuldades enfrentadas, têm conseguido manter a unidade familiar, o cuidado aos filhos e o vínculo empregatício mas a qualidade de vida pare questionável. Para Elsen (1994): A família saudável é a que se constitui a partir de laços de afetividade, respeito mútuo, de carinho e amor que servem de base para o enfrentamento do processo de doença. A manifestação de sentimentos de dúvidas precisa ser valorizada pela equipe e esta deve ter preparo suficiente para entender estes sentimentos expressos pela família e auxiliá-la nas decisões mais difíceis. No entanto, os profissionais da área pediátrica, os gestores de saúde, os comitês de ética dos hospitais e o judiciário deverão se questionar sobre o grau de investimento a ser oferecido a estas crianças, sobre até onde a tecnologia atual poderá influenciar sobre o prolongamento de uma vida com qualidade questionável em detrimento de uma morte digna. Pessini (1997) refere que o conhecimento biológico e o desenvolvimento da tecnologia serviram para tornar o morrer mais problemático e mais difícil de lidar. Argumenta que não se está questionando a medicina tecnológica, mas sim a tecnolatria. A morte deve ser admitida como um evento natural, próprio do ciclo de vida de todos os seres humanos. Devemos nos questionar não como ou quando vamos morrer, mas sim se teremos o direito a uma morte digna. 114 Jungues (1999) afirma que o domínio da tecnologia na medicina favorece uma obstinação terapêutica que não respeita a dignidade do morrer. Hoje, a medicina e o progresso tecnológico podem prolongar uma vida vegetativa em detrimento da vida do enfermo. Acredito que não está somente nos pais a resposta, mas a equipe deverá lhes oferecer a oportunidade de escolha. Mas, para isto, os pais deverão ter a oportunidade de saber a experiência que a criança e a família terão a enfrentar. Acredito na importância dos pais de crianças que venham a internar com estes diagnósticos conheçam a realidade das famílias que estão com seus filhos dependentes de ventilação mecânica no domicílio. Que os novos pais tenham a oportunidade de trocar idéias, ouçam os pais que já vivenciam estas experiências há mais tempo, para poder se instrumentalizar a fim de fazerem uma reflexão e, junto à equipe, tomar a decisão de colocar ou não a criança em ventilação mecânica. 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos últimos 20 anos, as Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica vêm sendo organizadas com a finalidade de oferecer atendimento mais especializado e, prioritariamente, diminuir as taxas de morbi-mortalidade da clientela infantil. Porém, na maioria dos hospitais brasileiros, a família pouco participa do processo de cuidado do filho internado nestas unidades, apesar de o artigo 4o da Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados (BRASIL, 1995) afirmar que é um direito da criança ser acompanhado pela mãe, pai ou responsável e receber visitas durante o período de internação. A permanência dos pais nessas Unidades tem-se limitado a períodos curtos e fixos, previamente definidos pelas equipes que nelas trabalham. Permanecer ao lado do filho no hospital durante o período de internação, por um período curto ou prolongado, é uma necessidade premente dos pais que se sentem com a responsabilidade de estar ao lado do filho em todos os momentos do enfrentamento do processo de doença. Algumas crianças têm permanecido por longos meses internadas devido a necessidade de algum artefato tecnológico que as auxilia na preservação da vida, seja uma sonda especial até a dependência de oxigenioterapia, sendo que a necessidade mais complexa é a de ventilação mecânica. Crianças com doenças crônicas, dependentes de ventilação mecânica, têm permanecido por longos períodos internadas em Unidades de Terapia Intensiva Pediátricas, onde as famílias necessitam enfrentar vários problemas a fim de acompanhá-las. A possibilidade de alta para o domicílio, sob os cuidados exclusivos da família, é uma realidade 116 atualmente. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre foi pioneiro no Estado do Rio Grande do Sul, e, atualmente, a equipe da UTIP assessora outros hospitais da Grande Porto Alegre com sua experiência. A experiência da equipe da UTIP do HCPA com o sistema de permanência dos pais junto à criança mostra que, quando se consegue desenvolver um cuidado centrado no binômio criança e família, como apregoam os estudiosos do cuidado de enfermagem em pediatria, algumas famílias conseguem cuidar o filho dependente de ventilação mecânica no domicilio. A dinâmica de uma Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica com suas situações de urgência, onde a dor e a morte estão constantemente presentes, deixa o familiar num nível de estresse alto. Associado a este estresse, a família sofre uma grande mudança em seus hábitos de vida, na relação com a rede social (família, vizinhos, lazer etc.) e na manutenção do vínculo empregatício, resultando na necessidade de uma reorganização familiar durante o período de internação, que se estende em sua vivência no domicílio. Durante o longo período de permanência da criança no hospital, a família precisa se adaptar a uma nova rotina para atender suas necessidades de alimentação, repouso, de interação familiar e com os novos relacionamentos que surgem, seja com a equipe da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, seja com os familiares de outras crianças e com a rede social de apoio. O tempo prolongado de internação de uma criança conduz os pais ao enfrentamento de uma série de dificuldades para a estrutura psicológica, econômica e social da família. Além de lutar com sentimentos próprios no cotidiano da convivência em uma UTIP, os familiares de crianças internadas deparam-se com o processo de sofrimento de outros pacientes e suas respectivas famílias. Ao mesmo tempo, permanecer em casa, longe do filho, é uma experiência difícil para os pais, os quais têm demonstrado priorizar o cuidado ao filho em detrimento de si próprios, da relação conjugal, da relação com os outros filhos, da rede social e do lazer. A necessidade de interagir com um ambiente desconhecido é percebida com muita apreensão pelos familiares das crianças que nela internam. Apesar do sofrimento evidenciado durante o 117 período de internação do filho na UTIP, eles preferem estar junto, acompanhando-o, oferecendo-lhe afeto, proteção e segurança. Neste estudo, foram analisados os significados que emergiram das mensagens que os pais das crianças dependentes de ventilação mecânica trouxeram sobre as mudanças ocorridas na vida familiar, no que diz respeito aos aspectos estruturais da família, sociais, econômicos e espirituais de suas trajetórias convivendo com o filho dependente de ventilação mecânica no período de internação hospitalar e na experiência vivida no domicílio. Para melhor compreensão desta experiência, trouxe a experiência da equipe interdisciplinar da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre no trabalho com famílias, focalizando a abordagem de enfermagem como facilitador para tornar a família capaz de cuidar uma criança com cuidados complexos no domicílio. Portanto, ações educativas só atingiram resultados eficientes, porque a família teve acesso às informações e fez parte de um processo educativo que lhe permitiu desenvolver autonomia e segurança no cuidado à criança. Equipe e família devem desenvolver um relacionamento amplo, diário e contínuo, a fim de estabelecer prioridades e concretizar ações necessárias para viabilizar o processo de alta. Percebe-se que o nível socioeconômico das famílias sofre uma queda devido às dificuldades para os pais manterem seus empregos de maneira a manter um cuidador familiar 24 horas ao lado da criança no domicílio. A mãe, que nas quatro famílias estudadas é quem se detém a maior parte do tempo ao lado do filho doente, pára de trabalhar fora do lar para poder continuar a cuidar a criança. A mãe detém a maior parte do cuidado à família, tanto no período pré como no pós-alta. O pai permanece sendo o provedor principal. Se fecharmos o foco sobre as famílias após alguns anos vivenciando o domicílio, percebe-se que a qualidade de vida está aquém do que seus membros almejavam, mas os pais aceitam o seu momento atual e querem estar ao lado dos filhos, doentes ou sadios, vivenciando seu percurso de vida. A família ampliada tem exercido um papel muito importante no processo de alta destas crianças, apoiando os pais no período de internação e no período pós-alta. Estas famílias, apesar do movimento de seu ciclo normal de vida, têm recebido apoio de seus ascendentes, tanto no cotidiano do cuidado como também em ajuda financeira. 118 A rede social de apoio tem demonstrado eficiência. À medida que as famílias foram se mobilizando em busca de recursos da comunidade e de recursos governamentais, observou-se um movimento nestas instituições para se instrumentalizar em busca de subsídios necessários para levar e manter estas crianças no domicílio. O auxílio governamental em nível municipal, estadual e federal tem sido preponderante, com a liberação de recursos financeiros para a aquisição de materiais de consumo diário e equipamentos necessários para a permanência da criança em casa. Também enfatizo a importância do suporte oferecido por outras famílias que estão enfrentando ou já enfrentaram a experiência de ter um filho dependente de ventilação mecânica internado em uma UTIP ou no domicilio. A rede de apoio família-família tem se mostrado muito importante, auxiliando os pais nas trocas de informações e fortalecendo os laços afetivos e sociais destas famílias. A alta hospitalar destas crianças é percebida pelos pais como uma possibilidade de melhora na qualidade de vida da família, e, apesar das dificuldades enfrentadas, não houve ruptura nos núcleos familiares estudados, mantendo-se os vínculos afetivos que os une. Observando a qualidade de vida das famílias no domicílio, se comparado ao período de internação, estão mais felizes. A união dos membros da família nuclear dá prazer aos pais, e estar mais próximo ao cônjuge e aos outros filhos tem sido uma experiência mais confortante para todos. A reflexão em torno da compreensão da trajetória de vida dessas famílias levou-me ao encontro de algumas indagações cotidianas ao longo dos 20 anos de experiência profissional em terapia intensiva pediátrica. Tenho me questionado sobre a qualidade de vida destas crianças, limitadas atualmente ao espaço do berço e do próprio corpo, dependendo de uma máquina para manter uma maior sobrevida. Questiono-me também sobre estas famílias e seu envolvimento diário no processo de cuidado, abdicando de muitos projetos de vida. Atualmente, observei que os pais que não possuíam outro filho resolveram não correr o risco de tentar uma nova gravidez. Com exceção, os pais de Viviane tiveram a coragem de ter outro filho no ano de 2004, mesmo com a possibilidade em torno de 25% de ter uma outra criança com a doença. Questionada, a mãe de Viviane disse acreditar que teria um filho sadio e tiveram um menino, hoje com 4 meses de vida e que, até este momento, se mantém sadio. Os pais de Maria da Graça não cogitam a hipótese de adoção, envolvem-se totalmente com os cuidados à filha. Os pais de Miguel não planejam ter outro filho, e a filha mais nova é portadora sã do gene causador da doença. Dos pais de Marcos não obtive informações mais 119 atualizadas. A mãe de Miguel teve crise de depressão em 2003, necessitando de atendimento médico. As crianças continuam crescendo, sem evolução favorável, mas com quadros estáveis dentro de suas limitações pessoais. Acompanhando, ano após ano, estas famílias e seu desenvolvimento, freqüentemente me questiono sobre o investimento que foi realizado quando se colocaram estas crianças no respirador e não se pôde mais retirá-las. Os pais, pelo amor dedicado aos filhos e baseados nos seus valores religiosos, culturais e espirituais, não conseguem, em sua maioria, se dar o direito de expressar seus verdadeiros sentimentos a respeito da qualidade de vida do filho e da família. A família deverá suportar este ônus por quanto tempo? Durante toda uma geração? E a que preço? Ao mesmo tempo, as equipes têm o direito de interferir na história de vida destas famílias? Observando o movimento perpetrado por estas famílias para estar ao lado de seus filhos, constato que as famílias têm demonstrado, ao longo dos séculos, que é o grande sustentáculo da sobrevivência humana. É nela que o homem desenvolve valores éticos e morais a fim de enfrentar os grandes desafios da vida. Apesar das indagações que permeiam os resultados do estudo, as informações reveladas pelas famílias desvelam o que há de mais digno no relacionamento humano: o respeito pela vida. Estas famílias provam que o amor está acima de qualquer dificuldade. A elas deixo registrado todo o meu respeito e admiração pelo exemplo de dignidade e valor humano que demonstram no cotidiano de suas vidas, pois, com certeza, este estudo representou um grande marco em minha existência. Acredito que os resultados deste estudo poderão contribuir para a ação/reflexão de profissionais da área pediátrica no exercício do cuidado à criança e às famílias que vivenciam situações semelhantes, assim como auxiliar na formação dos acadêmicos de enfermagem, preparando-os para o trabalho com famílias. Este estudo não está esgotado, pois há a necessidade de aprofundar esta temática principalmente no que diz respeito às polêmicas implicações éticas. Certamente, os profissionais da área de pediatria precisam desenvolver grupos de discussão buscando os comitês de ética de suas instituições, os gestores de saúde, e representantes da sociedade, para, juntos, refletirem sobre os rumos que o desenvolvimento tecnológico pode tomar no percurso de vida dos seres humanos. 120 REFERÊNCIAS ALTHOLFF, Coleta Rinaldi; ELSEN, Ingrid; LAURINDO, Alessandra C. Família: o foco de cuidado na enfermagem. Texto e Contexto: enfermagem, Florianópolis, v. 7, n. 2, p. 320327, maio/ago. 1998. 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Como está sendo a experiência da sua família em cuidar de uma criança em ventilação mecânica em casa? Obs.: O pesquisador desenvolveu cada questão de acordo com o desenrolar da entrevista, buscando contemplar os objetivos do estudo. 125 APÊNDICE B – Diário de Campo Local de observação: Data: Período Observado: Nota de Campo Notas Teóricas Notas Metodológicas 126 APÊNDICE C – Diário do Observador Data: Observações Percepções 127 APÊNDICE D – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Prezado(a) Sr(a) Sou enfermeira da UTIP do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e aluna do curso de Mestrado em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Estou realizando uma pesquisa com o objetivo de compreender como a família vivencia o cuidado de um filho dependente de ventilação mecânica, em que terei como Professor orientador a Dra. Nair Regina Ritter Ribeiro, da Escola de Enfermagem da referida universidade. Os dados serão coletados através de entrevistas gravadas e da observação da família realizadas em sua casa. O(a) senhor(a) terá o direito de cancelar seu consentimento a qualquer momento, sem que isto reflita em prejuízo no cuidado a seu filho em caso de reinternações. Asseguro que receberá todos os esclarecimentos que necessitar, que a sua família e seus componentes não serão identificados em hipótese alguma e que sua privacidade será respeitada. Se necessitar o uso de fotografias, garanto-lhe que as mesmas terão objetivos científicos, e o rosto das pessoas envolvidas não ficará em evidência. Ressalto que as fitas das entrevistas serão desgravadas assim que forem transcritas para o papel, e as informações fornecidas serão utilizadas apenas para o objetivo proposto. Este documento será digitado em duas vias, uma permanecendo com o entrevistado, e a outra, com o pesquisador. Coloco-me à disposição para os esclarecimentos que se fizerem necessários. Telefone para contato: 3316-8700. _________________________________________ Enfermeira Elizabete Clemente de Lima Concordo em participar do estudo acima referido, após ter sido esclarecido(a), de forma clara e detalhada, do objetivo e finalidade da pesquisa a que serei submetido(a). _________________________________ Nome do(a) entrevistado(a) _____________________ Local e Data 128 ANEXO A – Aprovação da Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde do HCPA 129 ANEXO B – Protocolo de Alta Hospitalar a Pacientes Pediátricos Dependentes de Ventilação Mecânica* 1. JUSTIFICATIVA O desenvolvimento da qualidade da assistência a crianças gravemente enfermas tem propiciado, no nosso meio, o crescimento do número de pacientes que, após passada a situação de risco de vida, tornam-se dependentes de cuidados especiais, por longos períodos ou de forma permanente (FRASER et al., 1998). Há uma variedade de condições médicas que resultam na necessidade de suporte tecnológico, sendo o mais freqüente a ventilação mecânica prolongada ou permanente de Terapia Intensiva Pediátrica, e essa situação torna-se mais importante. Os levantamentos de custos de manutenção de pacientes em ventilação mecânica domiciliar, por exemplo, têm mostrado uma redução substancial de gastos, quando comparados a pacientes hospitalizados, em muitos países. Fields et al. (1991) constatam que, em várias partes do mundo, notam-se esforços crescentes para transferir as crianças e suas famílias novamente para seus lares. 2. OBJETIVO Estabelecer um protocolo sistematizado de preparação de pacientes da UTI Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, dependentes de tecnologia, e suas famílias, para alta hospitalar com cuidados domiciliares. 3. METODOLOGIA 1º Identificação dos pacientes dependentes de tecnologia em condições de alta hospitalar. 2º Identificação do desejo da família na alta hospitalar. Protocolo desenvolvido na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do HCPA, em aprovação pela Comissão de Protocolos do Hospital, tendo como autoras: Dra. Eliana de Andrade Trotta – Médica Chefe; Enfª. Elizabete Clemente de Lima – Enfermeira Chefe; e Ass. Soc. Myriam Fontes Marques – Assistente Social. * 130 3º Realização de uma avaliação psicossocial da família, juntamente com o Serviço Social e com a concorrência, se necessário, de outras equipes e serviços do hospital. 4º Realização de uma visitação domiciliar, pelas equipes da UTIP e Serviço Social, e outras do HCPA, se necessário, ou com o auxílio de recursos da comunidade (e.g., Secretarias Municipais de Saúde, Prefeituras Municipais, entre outros). 5º Teste dos equipamentos apropriados para uso domiciliar, no próprio paciente. 6º Elaboração de um Relatório, com o histórico e situação atual do paciente, entregue à família. 7º Orientação à família na obtenção dos equipamentos junto à instituição de assistência médica da qual é beneficiária. 8º Contato com as instituições que ficarão responsáveis pela assistência ao paciente, com o estabelecimento das competências nessa área (e.g., serviços de cuidado domiciliar, Secretarias de Saúde, recursos da comunidade). 9º Treinamento dos familiares nos cuidados com o paciente, por todas as equipes ou serviços envolvidos na assistência e na alta da criança. O manejo dos equipamentos será orientado pelas equipes da UTIP ou pelo fornecedor da assistência domiciliar, conforme cada caso. Treinamento das equipes de futuros cuidadores do paciente a domicílio, quando for o caso. 10º Assinatura, pela família e equipes da UTIP, dos formulários apropriados para a alta. 11º Inclusão do paciente no Programa de visitação domiciliar a pacientes egressos da UTIP do HCPA dependentes de tecnologia. 4. PROCEDIMENTOS 4.1. Identificação dos pacientes dependentes de tecnologia em condições de alta hospitalar Essa etapa será realizada pelas equipes médica e de enfermagem da UTIP. São condições exigidas para que o paciente seja considerado em condições de alta hospitalar: 131 I. Estar clinicamente estável, a saber: sem necessidade de mudanças freqüentes ou emergenciais de prescrição; sem necessidade de acesso venoso, exceto cateteres implantados de longa permanência; sem necessidade de exames complementares de urgência; sem disfunção aguda de órgãos ou sistemas; II. No caso de ventilação mecânica invasiva: com acesso seguro e fixo à via aérea, i.e., através de traqueostomia; sem necessidade de mudanças freqüentes na FiO2, exceto para procedimentos, e com FiO2 abaixo de 0,4; níveis estáveis de PaCO2 e que possam ser mantidos com segurança pelo equipamento domiciliar. Em casos especiais, a critério do médico, e devidamente documentado, a FiO2 > 0,4 não será impeditiva da alta; III. Com ingesta nutricional adequada às necessidades do paciente para crescimento e desenvolvimento, e com acesso seguro à via digestiva ou via venosa, quando for o caso. 4.2. Identificação do desejo da família na alta hospitalar Essa etapa será desenvolvida pelas equipes médica e de enfermagem (chefia ou representante) e pela assistente social da UTIP, através dos seguintes procedimentos: I. Entrevistas com os pais ou responsáveis legais, com a exposição da situação atual da criança e possibilidade de alta hospitalar; II. Manutenção de entrevistas semanais com os pais, se houver o desejo inicial da alta, com a finalidade de esclarecer dúvidas e inquietudes. 4.3. Realização de avaliação psicossocial da família Essa etapa será desenvolvida pelas equipes médica e de enfermagem (chefia ou representante) e pela assistente social da UTIP. Quando necessário, outras equipes ou serviços do HCPA serão envolvidos, como, por exemplo, o Programa de Proteção à Criança, o Serviço de Psicologia, o Serviço de Psiquiatria, a Comissão de Bioética, a Assessoria Jurídica e outros. Serão realizados os seguintes procedimentos: I. Entrevistas semanais com os pais ou responsáveis legais, com a exposição das prováveis necessidades da criança e envolvimento da família a domicílio, e avaliação das disponibilidades; 132 II. As entrevistas serão estendidas a outros membros da família que forem participar dos cuidados com a criança, conforme a indicação da família; III. Serão avaliados os seguintes aspectos: pessoal-familiar: a realidade do sistema familiar (constituição familiar, dinâmica familiar, identificação de possíveis conflitos familiares, identificação da compreensão da realidade de doença da criança, motivação, interesse e disponibilidade em levar a criança para o domicílio, identificação de outros membros da família que auxiliarão no atendimento a criança etc.); as habilidades cognitivas, emocionais e motoras dos cuidadores familiares; socioeconômico: a realidade social, econômica e habitacional da família; comunitário-popular: identificação de recursos na comunidade para apoio e suporte à criança e à família após alta hospitalar; interdisciplinar: colaboração com as demais áreas que intervém com o paciente, integralizando a assistência em saúde. Os instrumentos técnicos utilizados neste processo serão os seguintes: entrevistas individuais com os pais e/ou cuidadores; entrevistas com membros da família ampliada; entrevistas com a família e equipe médica e de enfermagem e assistente social; visita domiciliar; discussão do caso em equipe interdisciplinar; contatos e visitas a recursos da comunidade; registros dos procedimentos no prontuário do paciente e elaboração de documentação específica (estudo social) para outros recursos. 4.4 Preparação do paciente e da família para a alta Nesta fase do atendimento e acompanhamento da família para preparação da alta, são necessárias intervenções da equipe da UTIP e do Serviço Social, tais como: I. Orientação: auxiliar o encontro de alternativas que amenizem as dificuldades enfrentadas pela família; II. Esclarecimento: levar os familiares da criança a adquirirem uma compreensão exata da situação vivenciada, capacitando-os a agirem de modo satisfatório e realista; 133 III. Discussão reflexiva e interpretação: liberar os familiares de tensões, permitindo discernir a realidade e agir objetivamente; IV. Apoio: baseado na compreensão da realidade, encorajar os familiares reforçando suas possibilidades e potencialidades; V. Auxílio material: alcançar e/ou encaminhar a recursos para adquirirem materiais concretos. 4.4.1. Orientações médicas Os cuidadores receberão as seguintes orientações, verbalmente e por escrito: I. II. III. IV. Diagnósticos do paciente; Evolução clínica ocorrida no hospital; Prognóstico esperado para a doença de base; Atendimento das principais intercorrências esperadas, inclusive ressuscitação cardiorrespiratória básica; V. VI. Sinais de alerta no paciente; Princípios gerais do funcionamento dos equipamentos; VII. Parâmetros do equipamento usados pelo paciente e quais poderão ser ajustados pelos próprios cuidadores; VIII. Medicamentos em uso; IX. Procura ao Sistema de Saúde. 4.4.2. Orientações de Enfermagem Os familiares receberão as seguintes orientações de enfermagem: I. II. III. IV. Observação e medição dos sinais vitais; Cuidados de higiene geral; Troca de curativos (traqueostomia, gastrostomia, outros); Troca de cânula de traqueostomia de urgência, no caso de retirada acidental ou obstrução completa da mesma; 134 V. VI. Rotina de troca sistemática de cânula de traqueostomia; Colocação de tubo intratraqueal no ostoma da traqueostomia, em casos de emergência; VII. Aspiração de cânula de traqueostomia; VIII. Ventilação com ressuscitador manual; IX. X. XI. Cuidados na alimentação por sonda nasoentérica ou gastrostomia; Prevenção de úlceras de decúbito; Cuidados na mobilização do paciente; XII. Montagem, desmontagem, limpeza e desinfecção dos equipamentos. 4.4.3. Outras orientações Os cuidadores também serão orientados na preparação da alimentação do paciente, pela nutricionista do Serviço de Nutrição do Hospital, e nos cuidados de desinfecção dos equipamentos, pela enfermeira da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar. Referências FIELDS, A. I.; ROSENBLATT, A.; POLLACK, M. M.; KAUFMAN, J. Home care costeffectiveness for respiratory technology-dependent children. A.J.D.C., v. 145, p. 729-733, 1991. FRASER, J.; HENRICHSEN, T.; MOK, Q.; TASKER, R. C. Prolonged mechanical ventilation as a consequence of acute illness. Arch. Dis. Child., v. 78, p. 253 -256, 1998. FRASER, J.; MOK, Q.; TASKER, R. Survey of occupancy of pediatric intensive care units by children who are dependent on ventilators. B.M.J., v. 315, p. 315: 347-348, 1997. HCPA. Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Manual do Serviço Social. 2000. JARDINE, E.; WALLIS, C. Core guidelines for the discharging home of the child on long term assisted ventilation in the United Kingdom. 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ANEXO C – Protocolo de Visita Domiciliar a Famílias de Crianças em Processo de Alta para o Domicílio em Uso de Ventilação Mecânica* 1 –DADOS DE IDENTIFICAÇÃO: Nome do Paciente: ____________________________________________ Prontuário: ___________________________________________________ Endereço: ____________________________________________________ Data da Visita: _______________________________________________ 2 – SITUAÇÃO HABITACIONAL: ( ) casa ( ) outro ( ) própria ( ) cedida ( ) alvenaria ( ) madeira ( ) mista ( ) apartamento ( ) alugada Número de peças: _________________ Número de residentes: ___________adultos _________ crianças Se apartamento: _______ andar elevador ( ) sim ( ) não 3 – SITUAÇÃO HABITACIONAL/LOCALIZAÇÃO: ( ) zona urbana ( ) zona rural ( ) centro ( ) periferia ( ) com segurança ( ) sem segurança 4 – SITUAÇÃO HABITACIONAL/INFRA-ESTRUTURA EXTERNA: ( ) asfalto ( ) calçamento ( ) terra/areia 5 - ABASTECIMENTO DE ÁGUA: ( ) torneira coletiva ( ) poço ( ) água encanada individual ( ) água de poço encanada 6 – LUZ ELÉTRICA: ( ) possui ( ) não possui Substituto: ______________________ ( ) rede estável ( ) com falhas de fornecimento de até __________ horas * Este roteiro foi adaptado para este fim a partir do Roteiro de Visita Domiciliar do Serviço Social do HCPA. 136 7 – INFRA-ESTRUTURA SANITÁRIA/HIDRÁULICA: Sistema de Esgoto ( ) vaso sanitário ( ) pia sanitária ( ) chuveiro elétrico/outro: _____________________ ( ) banheiro dentro de casa ( ) banheiro fora de casa Como lavam as roupas ? ( ) tanque ( ) máquina de lavar roupas ( ) outros ______________________ Alterações necessárias: _______________________________________________________ __________________________________________________________________________ 8 – BENS DURÁVEIS/ELETRODOMÉSTICOS: ( ) geladeira ( ) microondas ( ) ferro de passar roupas ( ) fogão ( ) telefone ( ) máquina de lavar roupas ( ) forno elétrico ( ) possui ( ) não possui ( ) outros _____________________________ 9 – ESTRUTURA INTERNA DA CASA: COZINHA: Com piso, teto e revestimento das paredes em estado ( ) ótimo ( ) bom ( ) regular ( ) ruim Alterações necessárias: _______________________________________________________ __________________________________________________________________________ SALA: Com piso, teto e revestimento das paredes em estado ( ) ótimo ( ) bom ( ) regular ( ) ruim Alterações necessárias: _______________________________________________________ __________________________________________________________________________ DORMITÓRIOS: ( ) um ( ) mais de um - Quantos? _______________ 137 Dormitório do paciente com piso, teto e revestimento das paredes em estado ( ) ótimo ( ) bom ( ) regular ( ) ruim ( ) sim ( ) não Com espaço para acomodação dos equipamentos Luz direta ( ) sim ( ) não ( ) sim ( ) sim ( ) sim ( ) não ( ) não ( ) não Localização do cômodo da criança na casa:_______________________________ Ventilação adequada Iluminação adequada Fácil higienização Alterações necessárias: _______________________________________________________ __________________________________________________________________________ BANHEIRO: ( ) um ( ) mais de um ( ) revestimento parcial ) Quais? ___________ ( ) com revestimento nas paredes, teto e piso com vestígio de microorganismos impróprios à saúde do paciente ( Alterações necessárias: _______________________________________________________ __________________________________________________________________________ PÁTIO/JARDIM ( ) possui ( ) não possui ( ) revestido ( ) não revestido ( ) revestimento parcial Oferece situação de risco? (enchentes, desmoronamento da casa etc. ) ( ) sim ( ) não ( ) sim ( ) não Possui área externa para acomodar sistema de oxigênio Alterações necessárias: _______________________________________________________ __________________________________________________________________________ GERAL: Animais: Cortinas: ( ) sim ( ) sim ( ) não ( ) sim ( ) não ( ) sim ( ) não ( ) não ( ) não possuem ( ) fora de casa ( ) sim ( ) não Carpetes/tapetes: Excesso de adereços: Plantas : Superlotação de pessoas: ( ) dentro de casa 138 10– REDE DE SUPORTE SOCIAL DA COMUNIDADE: ( ) prefeitura ( ) posto de saúde ( ) conselho tutelar ( ) hospital ( ) polícia civil / militar ( ) centro comunitário ( ) outros ______________________________________________ 11–- REDE DE SUPORTE FAMILIAR: Que membros da família ampliada vão auxiliar nos cuidados com o paciente? ( ) avós ( ) tios ( ) primos ( ) outros _______________________________________________________ Local de moradia da família ampliada: ( ) mesmo local do paciente ( ) próximo ao domicílio ( ) distante do domicílio 12 – FORMA DE DESLOCAMENTO AO RECURSO DA REDE SOCIAL E/OU AO HCPA: ( ) carro particular ( ) carro da prefeitura ( ) táxi ( ) caminhando ( ) outro ________________________________________________________ 13 – FORMA DE COMUNICAÇÃO DA FAMÍLIA COM RECURSOS DA SAÚDE: ( ) telefone próprio ( ) vizinho ( ) familiares ( ) outro ____________________________________________________________ 14 – TEMPO DE DESLOCAMENTO DO DOMICÍLIO AO: HCPA: _____________________________________________________________ Rede de suporte na comunidade: _________________________________________ PARECER: ________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 139 OBSERVAÇÕES: ___________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ SERÁ REALIZADA NOVA VISITA? ( ) sim ( ) não Motivo:_____________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ Data da nova visita: ______________________________________ VISITADORES: ____________________________________________________________