UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CHARLES ROBERTO ROSS LOPES SEJA GAY... MAS NÃO SE ESQUEÇA DE SER DISCRETO Produção de masculinidades homossexuais na (Brasil, 1979-1983) Revista Rose (Brasil, 1979-1983) Porto Alegre – 2011 CHARLES ROBERTO ROSS LOPES SEJA GAY... MAS NÃO SE ESQUEÇA DE SER DISCRETO Produção de masculinidades homossexuais na (Brasil, 1979Revista Rose (Brasil, 1979-1983) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Orientador: Prof. Dr. Fernando Seffner. Porto Alegre, janeiro de 2011 CIP - Catalogação na Publicação Lopes, Charles Roberto Ross Seja gay... mas não se esqueça de ser discreto: Produção de masculinidades homossexuais na Revista Rose (Brasil, 1979-1983) / Charles Roberto Ross Lopes. -- 2011. 101 f. Orientador: Fernando Seffner. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, BR-RS, 2011. 1. masculinidade homossexual. 2. revista Rose. 3. gênero. 4. pós-estruturalismo. I. Seffner, Fernando, orient. II. Título. Elaborada pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da UFRGS com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). 3 Banca Examinadora __________________________________________ Prof. Dr. Fernando Seffner (orientador) Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu) __________________________________________ Profª. Drª. Guacira Lopes Louro Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu) __________________________________________ Profº. Dr. Nilton Mullet Pereira Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu) __________________________________________ Profª. Drª. Rosângela Soares Universidade Federal do Rio Grande do Sul 4 “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e refletir.” Michel Foucault - História da Sexualidade II 5 Agradecimentos Os lapsos de memória certamente farão com que me torne injusto nesse momento. Peço desculpas àqueles e aquelas que estiveram presentes ao longo desses dois anos do curso de mestrado, mas cujos nomes diluíram-se nas brumas de minhas lembranças. De qualquer maneira, muito obrigado à miríade de mãos e afetos que tornaram possível esse projeto. Agradeço aos meus pais, João e Fátima, pelo amor incondicional e pelos inúmeros esforços realizados para que seguisse sempre caminhando... Com a rigidez estóica de minha mãe aprendi a ser disciplinado e comprometido com meus afazeres... Com a calma e serenidade de meu pai aprendi a ser atento nas observações e ponderado nas colocações... Ao meu professor e orientador Fernando Seffner, agradeço por ter acreditado em minha capacidade de trabalho e aceitado me orientar. Obrigado pela confiança, acolhida e parceria intelectual... Com esse historiador aprendi que não havia necessidade de me despir das paixões no ato da pesquisa... Lição valiosa, afinal o que seria da pesquisa sem as paixões do pesquisador? Certamente vazias de vida... Não posso deixar de agradecer aos professores com os quais tive aulas durante o mestrado, não apenas pelas explicações, como também pelas indagações que me formularam... Certamente suas considerações impediram que ficasse inerte diante dos desafios da investigação... Devo um agradecimento especial àqueles que generosamente souberam ouvir as angústias do mestrando de muitas dúvidas... Espero não ter “atordoado” demais as professoras Guacira Lopes Louro, Rosângela Soares, Silvana Goellner, Rosa Maria Bueno Fischer, e o professor Nilton Mullet Pereira... Com vocês aprendi a nobreza do ofício de professor-pesquisador... A esses professores precederam outros que igualmente serviram de inspiração para novos desafios intelectuais. O gosto pelo ofício de historiador, a 6 inquietante necessidade em pesquisar, seguramente foram despertados, ainda na graduação, a partir do mérito profissional e do convívio afetivo com algumas historiadoras... Agradeço carinhosamente a Rejane Barreto Jardim (a amiga medievalista responsável pela minha iniciação no métier de pesquisador), a Katani Monteiro Ruffato, a Mara Cristina de Matos Rodrigues, a Natália Pietra Mendez, a Daysi Lange Albech, a Andréa Zortea... Com elas aprendi a seriedade e a responsabilidade do trabalho do historiador... Obrigado aos colegas de orientação pelas discussões, críticas, pelas trocas de experiências e bibliografias, pelo carinho, pelas risadas. Sentirei falta dos aprendizados compartilhados com vocês... E o que seria desse percurso sem a compreensão de amigos e amigas... Agradeço pelo colo aconchegante, pelos puxões de orelha, pelos beijos e abraços, pelas viagens, pelas experiências gastronômicas, pelos vinhos, cervejas entre amigos que tornaram essa experiência maravilhosa. Obrigado a Mi (Michele Vasconcelos), a irmã que veio de tão longe me fazer companhia, jamais me esquecerei de nossas prolongadas conversas... ao Dago (Dagoberto Machado) o “garoto de muitos predicados” cujo cuidado por mim foi sempre tão intenso... a Pati (Patrícia Balestrin) com sua doçura e generosidade inigualáveis, menina-mulher iluminada... ao Felipe Zago, sempre me dei bem com esse leãozinho... Os afetos trocados me ensinaram que de fato quem tem amigos não está só... Agradeço também a CAPES pela concessão de bolsa de estudos no segundo ano do curso de mestrado, e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pelo profissionalismo e reconhecida qualidade de ensino. Agradeço a compreensão de todos por minhas longas ausências, pelos silêncios, pela clausura junto aos livros... Enfim... os caminhos só não foram áridos porque pude contar com o apoio de vocês... Morro dos Conventos – verão de 2011 7 RESUMO Rose... assim era denominada a primeira revista gay editada no Brasil entre fins da década de 1970 e princípios de 1980. Em suas páginas eram publicadas informações do cenário artístico-cultural da época, contos eróticos, estórias em quadrinho, cartuns, anúncios de homens interessados em corresponder-se com outros homens, artigos que versavam sobre a homossexualidade masculina. Nessas páginas havia, também, uma profusão de corpos masculinos tendendo a nudez. Entretanto, nos limites dessa dissertação a revista Rose, não foi considerada apenas como veículo de comunicação e entretenimento, mas, antes disso, tomada como fonte histórica. Enquanto portadora de um conjunto de pedagogias do gênero e da sexualidade, a revista está implicada na produção de um modelo de masculinidade homossexual normalizada. A partir do referencial teórico dos Estudos de Gênero, desde uma perspectiva feminista e pós-estruturalista, analiso o enunciado que articula a masculinidade homossexual a comportamentos efeminados. E é a abjeção a tais comportamentos que servirá de base para a construção do homem gay discreto, marcadamente masculinizado. Portanto, a discrição – enquanto signo de masculinidade – parece assegurar a inteligibilidade social desses homens, “autorizando” sua própria existência. De qualquer maneira, a revista não deve ser reduzida a problemática aqui desenvolvida, uma vez que nela estão presentes outros enunciados. Palavras-chave: masculinidade homossexual, revista Rose, gênero, pósestruturalismo. 8 ABSTRACT Rose... so it was named the first gay magazine edited in Brazil between late 1970s and early 1980s. On its pages, information about the cultural-artistic scene of that time, erotic stories, stories in comics, cartoons, advertisements of men interested in corresponding with other men, and articles that dealt with male homosexuality were published. On those pages there was also a profusion of male bodies tending to nudity. However, within the bounds of this dissertation, Rose magazine has not been considered only as a vehicle of communication and entertainment, above all, it has been taken as a historical source. As a carrier of a set of pedagogies of gender and sexuality, the magazine is involved in producing a normalized model of homosexual masculinity. Based on the theoretical referential of Gender Studies from a feminist and post-structuralist perspective, it was analyzed the “enunciation” that articulates the homosexual masculinity to feminine behaviors. It is the degradation of such behaviors that will serve as the basis for the construction of a discrete gay man, with a distinct male-like behavior. Therefore, discretion – as a sign of masculinity – seems to ensure the social intelligence of those men, "authorizing" their own existence. However, the magazine should not be reduced to the problematic here developed, since there are other issues presented in it. Keywords: homosexual masculinity, Rose magazine, gender, post- structuralism. 9 SUMÁRIO Percursos .................................................................................................. Tempos de “desbunde” ............................................................................. O homem do princípio ao fim .................................................................... Imagens do homossexual discreto ............................................................ Novos (des)caminhos ................................................................................ Referências Bibliográficas ......................................................................... 10 18 35 51 92 97 10 Percursos “Je ne suis jamais... Je deviens...” – André Gide Hieronymus Bosch. O Jardim das Delícias (óleo sobre madeira, 220x389cm), 1504. Silêncio... o quadro ainda permanece fechado... Uma aura de tensão e curiosidade o envolve, afinal não se sabe ao certo o que em breve será visto... Nos versos dos volantes do trítico, contemplamos a pintura, em tons grises, da Terra no interior de uma esfera transparente. Nessa paisagem árida não há animais nem humanos, apenas formas bastante rudimentares de vegetais e minerais. Um mundo sem sol e sem lua, gélido, opaco e, ao que parece, sem ar... Entretanto, na medida em que é aberto, se sente um forte aroma de flores e frutos: uma intensa luminosidade prenuncia a aurora da primeira manhã... O tom dramático do exterior da pintura contrasta agora com a exuberância de formas e cores do seu interior. Transpostos à espécie de pórtico negro delimitado por filetes dourados em cujo centro há o mórbido 11 globo, confrontamo-nos com a sinfonia completamente dissonante da obra de Hieronymus Bosch. Se os três painéis que compõem o trítico nos remetem à infância do mundo – a Idade de Ouro descrita por Hesíodo – deles também saltam inúmeros seres dos bestiários mitológicos medievais. A tranquilidade e paz celestial que impera no paraíso representado no postigo da esquerda são perturbadas pelo alarido dos gritos e gemidos – ora de prazer, ora de dor – da tábua central do jardim das delícias terrenas e do painel direito que alude aos tormentos do inferno. No falso paraíso no qual a humanidade sucumbiu à lasciva da luxúria e se dirige à sua perdição, aparecem inúmeros nus cedendo aos desejos de todo o tipo de práticas sexuais. Cópulas de homens com mulheres, entre homens, entre mulheres ou destes com animais, ilustram o cenário fortemente erótico da tela. Muitos dos frutos mordiscados pelos amantes no jardim (morangos, cerejas, framboesas, uvas,...) parecem aludir aos prazeres carnais e sua fugacidade, pois em poucos dias passam da frescura à putrefação. Vê-se, ainda, lagos que figuram como focos de concupiscência, onde homens e mulheres banham-se juntos, lembrando os Banhos de Vênus, logo, o amor carnal. A concepção do mundo ao revés, presença recorrente na linguagem iconográfica e literária da época em que o quadro foi pintado (século XVI), é observada na inversão das proporções em que são representados os personagens da cena, na qual animais e plantas assumem dimensões que ultrapassam a estatura de homens e mulheres. Bestas exóticas em confronto, demônios, homens que depositam flores no ânus de seus amantes, pássaros gigantescos que alimentam humanos, o homem-árvore com os membros desconexos e ocos, o monstro de cabeça de pássaro que engole corpos e os defeca numa fossa transparente, os intrumentos musicais que torturam os amantes, a porca com touca de freira que procura persuadir o seu companheiro a beijá-la, o vômito visceral, as fezes de moedas de ouro – esses e tantos outros elementos compoem a cena da pintura. 12 A intenção aqui não é esgotar, em uma descrição, a obra O Jardim das Delícias,1 tampouco elaborar uma análise dessa pintura. Ao introduzir minha escrita com a obra de Bosch, indico não apenas meu interesse pelas imagens, mas também o potencial em utilizá-las como fontes históricas. E, enquanto registro histórico, as imagens não se restringem a narrativas visuais, elas também dizem respeito a textos escritos, a movimentos, a sensações, a resistências, a descontinuidades, a rupturas, a silêncios, a fugas, à criação... Elas remetem ao próprio “desejo pela imagem por todos os lados e, por todos os meios, prazer com a imagem” (FOUCAULT, 2001b, p. 349). Recordo que as primeiras pinturas com que tive contato em minha infância foram os traços fortes e carregados dos quadros de minha mãe... Neles, os tons coloridos mas, ao mesmo tempo, sóbrios, davam vida a figuras sempre bastante comportadas, sobretudo de inspiração bucólica ou, por vezes, retratavam personagens infantis. Em uma pasta, quase que escondida em um local reservado de seu aposento, estavam guardados seus esboços, ou “riscos” como ela os chamava. Adorava pegar aquela pasta preta, manusear aqueles desenhos em papel vegetal e me arriscar nos primeiros traçados. Entretanto, ao conhecer obras como Improvisação 31 e Composição VII de Wassily Kandinsky, Cervos na floresta e Torre de cavalos azuis de Franz Marc, e Les demoiselles d'Avignon de Pablo Picasso, logo percebi que me sentia atraído pelas formas incertas, pela fluidez dos contornos, pela disformidade daquelas imagens. E esse interesse foi acompanhado pelo exercício da pintura, praticado, sobretudo, nos dias em que visitava a chácara de meus padrinhos. Sempre procurei por um espaço isolado no casarão da propriedade para me aproximar das tintas e dos pincéis. Flores e cenas bucólicas eram recorrentes, até que minhas mãos ousaram traçar formas menos concretas como aquelas que outrora havia contemplado. De qualquer maneira, o gosto por Dalí, Miró, Van Gogh, Monet, Munch, Callas... não excluía meu apreço pela pintura renascentista de Botticelli, El 1 O Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch (óleo sobre madeira, 220x389cm, 1504), desde 1936, faz parte do acervo do Museu do Prado em Madri. 13 Greco, Ticiano, Michelangelo... pelo barroco de Caravaggio... pelas aquarelas de Debret... ou pelas telas de Tarsila, Portinari, Di Cavalcanti... Mas foi em minha graduação que desenvolvi um olhar mais apurado sobre as imagens e, a partir de então, passei a considerá-las como documentos iconográficos. No decorrer do curso de História foram realizadas duas escolhas de cunho teórico. Ao estudar as distintas correntes historiográficas, optei por trabalhar a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Nova História.2 E pautando minha prática como historiador nessa vertente histórica, passei a partilhar do referencial dos Estudos de Gênero. Portanto, a pesquisa aqui desenvolvida está articulada a tais posturas teóricas. De qualquer modo, minha preferência por tais referenciais não invalida outras perspectivas teóricas. A articulação entre os Estudos de Gênero e a Nova História principia ainda na graduação. A fim de explorar a construção, manutenção e transformações das masculinidades na sociedade ibero-castelhana dos séculos XII e XIII examinei, à luz da categoria de gênero, alguns dos mais de 420 poemas que compõem as Cantigas de Santa Maria, obra redigida em galegoportuguês e elaborada sob a direção do rei D. Afonso X – o Sábio. A investigação desse cancioneiro permitiu não só explorar as masculinidades Herdeira do movimento de renovação historiográfica iniciado em 1929 com a fundação da revista Annales d'Histoire Economique et Sociale, a Nova História visa “promover uma nova espécie de história” (BURKE, 1997, p. 11). Seus precursores, Lucien Febvre e Marc Bloch, recomendavam aos historiadores assumir uma atitude nova diante da história, libertando-se do seco espírito de sistema que a teoria dos positivistas decididamente dissimulava. Longe de encerrar-se em sua torre de marfim, o historiador deveria, portanto, abrir-se ao mundo exterior, participar ativamente da vida de seu tempo. Rejeitando qualquer determinismo estrito, os Annales privilegiaram o diálogo com as diversas ciências e promoveram uma significativa ampliação na noção de fontes históricas. Há, portanto, a inserção de documentos antes desacreditados, ou indignos ao métier do historiador, como registros iconográficos (pinturas, tapeçarias murais, fotos, charges,...), obras literárias, relatos de viagem, documentos pessoais, relatos orais, roupas, mobiliários, vestígios arquitetônicos... “Tudo é fonte para o historiador” (LE GOFF, 1976, p. 75). “Por outro lado, junto a essa revolução quantitativa, a revolução documental foi acompanhada por uma forte crítica ao conceito de documento. A partir da perspectiva dos novos historiadores (LE GOFF, 2005) e, sobretudo, em função da contribuição de Michel Foucault (1987), o documento se torna monumento, ou seja, ele é rastro deixado pelo passado, construído intencionalmente pelos homens e pelas circunstâncias históricas das gerações anteriores. O documento não é mais a encarnação da verdade, nem mesmo pode ser considerado simplesmente “verdadeiro” ou “falso”. O ofício do historiador deixa de ser o de cotejar o documento para verificar sua veracidade, e passa de ser o de marcar as condições políticas da sua produção. O documento/monumento é um engenho político, é um instrumento do poder e, ao mesmo tempo, uma manifestação dele” (SEFFNER & PEREIRA, 2008, p. 115-116). 2 14 nessa sociedade medieval, mas também refletir sobre a potência dos Estudos Gênero no campo da História, bem como as tensões produzidas nessa articulação. Nessa experiência como pesquisador, devo muito às orientações da grande amiga e professora Drª. Rejane Barreto Jardim, que muito contribuíram para meu amadurecimento intelectual. Já graduado, minha compreensão sobre as questões de gênero e sexualidade foi ampliada ao me aproximar das discussões da Linha de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A partir de então, em uma perspectiva pós-estruturalista de análise, percebi que tanto a escrita como a produção do conhecimento são efeitos de complexas disputas em torno das relações de saber-poder. Nessa perspectiva, é preciso estar disposto a desconfiar, a duvidar, a estranhar o que é tomado como natural, normal, a-histórico. Há a necessidade de colocar nossas certezas em xeque através de um constante processo de autocrítica. Decorre daí a produtividade em problematizar os processos de produção de saber e, com o filósofo francês questionar o que é produzido como verdade e como conhecimento, com que efeitos e para quem, quem pode o que, de que posição, em que momento e de que maneira participar no processo de significação (FOUCAULT, 2008b). Portanto, são sobre essas escolhas teóricas que a tessitura dessa pesquisa esteve pautada. E se, conforme Lucien Febvre e Marc Bloch, o historiador deve farejar “tal como o ogro da lenda, a carne humana – em qualquer lugar que pudesse ser encontrada, em quaisquer meios” (CARDOSO & MAUAD, 1997, p. 401), nesse estudo adoto como fonte histórica de análise a revista Rose publicada no Brasil em fins da década de 1970 e princípios de 1980.3 Ao se constituir da primeira publicação brasileira destinada ao público homossexual masculino, ela não será aqui explorada como mero veículo de informação ou entretenimento, mas sim como uma dentre outras possibilidades A coleção de revistas Rose analisada nessa pesquisa é composta pelas seguintes edições: 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 28, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 44, 45, 48, 50, 51, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 65, 66, 67, 68, 72, 73, 73-A (fotonovela), 74, 75, 76, 77, 78, 79, 81. Todo o acervo é propriedade de meu orientador. 3 15 de visibilização e construção da masculinidade homossexual em curso nesse contexto histórico-cultural. Todavia, meu interesse não consiste em relatar o modo de vida dos homens gays naquela época. Antes disso, me proponho analisar o enunciado segundo o qual a masculinidade homossexual está articulada a comportamentos efeminados. Devido a limitações temporais para explorar todo o conjunto de 56 edições da revista Rose de que disponho, a análise aqui realizada apresenta como foco de discussão apenas as edições de números 50, 51, 55, 59, 60, 61, 65, 68, 73, 74, e 77, nas quais o enunciado que articula a masculinidade homossexual a trejeitos efeminados está explicitamente presente em seções como Confidências, Encontro Gay, ou nos cartuns do concurso Dê o ar de sua guei-graça. Todavia, ainda que tenha privilegiado esses exemplares, não deixei de considerar, para fins investigativos, os demais números do acervo para questões pontuais. A partir dos dados cronológicos levantados no contato com a revista, elaborei um quadro indicativo das datas em que cada exemplar foi publicado. Muitas vezes não há indicação escrita sobre isso, mas o fato de a publicação de Rose ter sido mensal, depois quinzenal, e retornar a ser mensal, me possibilitaram chegar às datas expressas no quadro que reproduzo a seguir. Nele, os exemplares disponíveis para minha consulta estão destacados em negrito. 1979 Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro 1980 11 e 12 13 e 14 15 e 16 17 e 18 19 e 20 21 e 22 23 e 24 25 e 26 27 e 28 29 e 30 31 e 32 33 e 34 1981 35 e 36 37 e 38 39 e 40 41 e 42 43 e 44 45 e 46 47 e 48 49 e 50 51 e 52 53 e 54 55 e 56 57 e 58 1982 59 e 60 61 e 62 63 e 64 65 e 66 67 e 68 69 e 70 71 e 72 73 e 74 75 e 76 77 78 79 1983 80 81 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 16 Todavia, enquanto historiador, meu interesse pela análise de registros imagéticos principiou aqui apenas algumas experimentações. Por certo que o foco investigativo dessa pesquisa não foi a análise das imagens que integram o conteúdo de Rose, mesmo tendo a revista se mostrado bastante frutífera para tal intento investigativo, uma vez que ela não é econômica na exibição de corpos masculinos tendendo à nudez. De qualquer modo, trabalho apenas com algumas destas fotografias de nus masculinos editadas nos pôsteres de Rose e no concurso fotográfico O homem do princípio ao fim. Além dessas imagens, também abordo os cartuns presentes em Dê o ar de sua guei-graça. Alguns acontecimentos ocorridos entre os anos de 1970-1980 e que, dentre outros, foram responsáveis pelo processo de visibilização da homossexualidade, são apresentados no capítulo Tempos de desbunde. Nele registro como a temática homossexual passa a constituir objeto de peças teatrais, produções cinematográficas, exposições de artes plásticas, de campanhas publicitárias, de programas televisivos e do enredo de obras literárias. É também nesse momento que ocorre o aparecimento dos primeiros jornais produzidos por e destinado para homens gays que, gradualmente, organizam-se em movimentos de ação política. A partir do desenvolvimento desse olhar sincrônico foi possível compreender sob que condições históricas Rose iniciou suas atividades. Em O homem do princípio ao fim o leitor encontrará informações sobre as diversas seções, concursos, e registros imagéticos que compunham a publicação. A descrição de tais conteúdos fornece elementos que caraterizam o gradual processo de transformação de Rose na primeira revista gay a circular no território nacional. Em Imagens do homossexual discreto discorro sobre a principal questão que move essa pesquisa, ou seja, analiso como se dão nas páginas da revista a produção e circulação do enunciado, segundo o qual a masculinidade homossexual está estreitamente vinculada à manifestação de comportamentos 17 efeminados. A revista, ao relegar tais comportamentos ao nível da abjeção,4 opera uma série de investimentos, de pedagogias do gênero e da sexualidade, com o intuito de produzir um modelo de homossexual discreto e masculinizado. Finalizo essa dissertação, indicando outras possibilidades investigativas que podem ser exploradas tomando como objeto de análise a revista Rose. Em relação à noção de abjeção, Judith Butler (2007) esclarece que a “matriz excludente pela qual os sujeitos são formados [a autora se refere a heterossexualidade compulsória] exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são ‘sujeitos’, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o qual – e em virtude do qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reivindicação de direito à autonomia e à vida. Nesse sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, ‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio” (BUTLER, 2007, p. 155-156). 4 18 desbunde” Tempos de “desbunde” O período compreendido entre as décadas de 1970 e 1980 é marcado pelo signo da ditadura. Ao silêncio das primeiras semanas após os acontecimentos de 1964 seguiu-se um período de recrudescimento político cujo ápice é pontuado pela promulgação do Ato Institucional nº 5. Perseguições, torturas e assassinatos praticados pelos órgãos da repressão política a serviço dos generais, sinalizam a supressão do exercício de um pleno estado de direito. Paradoxalmente, esse é também um tempo de grande efervescência artística e de contestação cultural no Brasil. Tempos de vanguardas artísticas... tempos estes que ainda experimentam o frescor das contestações feministas e que testemunham a emergência de um movimento homossexual no país. É sobre alguns aspectos desse conjunto de forças artístico-culturais que discorro a seguir. Longe da pretensão de elaborar uma contextualização histórica do período, resgato elementos bastante específicos que dão visibilidade à homossexualidade nesse período e espaço, ou seja, na sociedade brasileira dos anos 70 e 80. Diante desse clima político avesso à prática democrática, a necessidade premente de uma modernização talvez tenha favorecido, entre os jovens, a emergência de movimentos de liberalização nem sempre alinhados com orientações ideológicas precisas. A especificidade dessa configuração justifica a razão pela qual uma das palavras de ordem do período tenha sido desbunde ou desbum. Sob uma aparente irresponsabilidade, desbundar implicava imergir numa liberação individual, baseada na solidariedade não partidária, mantendose, portanto, alheio aos compromissos da direita e da esquerda militarizadas da época. Nesse contexto, seguindo o espírito de vanguarda da antropofagia que Oswald de Andrade havia proposto ainda em princípios do século XX, surge o 19 Tropicalismo. Dessa maneira, o movimento Tropicália, que tinha entre seus mentores Gilberto Gil e Caetano Veloso, proclamava a necessidade de devorar as influências provenientes do cenário artístico-cultural internacional, a fim de produzir expressões artísticas genuinamente brasileiras. Seguindo essa proposta, o artista plástico Hélio Oiticica desenvolve a concepção de uma artefeia, menos visual e mais voltada para a sensibilidade do corpo como um todo. Essa estética deixava de ser restritamente arte – experimentação transcendental e erudita – para transformar-se em invenção. A criação não apenas marginal, mas para marginais, de Oiticica, contrapunha-se ao conformismo em que a denominada “Arte” se comprazia. Seus parangolés (objetos-roupas) de fato atendiam ao “desregramento sistemático de todos os sentidos” em voga na obra do poeta Jean Rimbaud, que parece ter exercido influência sobre o pensamento do artista. Dentro do mesmo espírito antropofágico e paródico de devorar para tornar seu, em princípios da década de 1970 surge os Dzi Croquetes.5 A criatividade cênica desse grupo teatral, ímpar para a época, propunha em suas apresentações embaralhar os padrões do gênero masculino e feminino. Rose Marie Lobert na sua dissertação A palavra mágica Dzi: uma resposta difícil de se perguntar – defendida ainda em 1979 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – relata que: Numa explosão de música, gritos, luzes que piscam, corridas de cima para baixo, o palco é invadido por ‘odaliscas, vedetes, viúvas, pierrôs, prostitutas, clowns e rumbeiras’: a família Dzi Croquettes se apresenta. Maquiagem, roupas, e gestos os distinguiam uns dos outros. Mas a indiferenciação de protótipos masculinos e femininos é comum a todos. Grandes cílios, bocas exageradas e a purpurina cintilante e colorida, formando desenhos psicodélicos, mancham seus rostos e corpos que exibem barbas, bigodes e pelos viris. Os vestuários delirantes englobam vestidos de lamê, maios de franjas e lantejoulas, malhas de balé desfiadas, combinações desajeitadas, 5 De acordo com João Silvério Trevisan (2000), “esse grupo se inspirou no The Cockettes de São Francisco, Califórnia, grupo também formado por anárquicos homens-mulheres, cujo nome derivava da denominação popular para o membro masculino, em inglês – algo como As caralhetes, em português. Fazendo irônica referência à sua identidade paródica, o cáustico cockette abrasileirou-se no debochado croquete, em homenagem àquele popularíssimo bolinho que aproveita tudo quanto é resto de carne – sem esquecer que no gueto guei brasileiro “croquete” é um dos inúmeros termos para designar o pênis” (TREVISAN, 2000, p. 288). 20 chapéus extravagantes, perucas... meias de futebol presas a ligas de mulher e pés calçados com sapatos de salto ou botas pesadas e polainas. (Lobert apud GREEN, 2000, p. 410) A ambiguidade dessas figuras andróginas, ao colocar em xeque as representações sociais da feminilidade e masculinidade, constituiu um forte potencial questionador acerca da moral sexual em voga na época. Além disso, conforme menciona Trevisan (2000, p. 288), “foram eles que trouxeram para o Brasil o que de mais contemporâneo e questionador havia no movimento homossexual internacional, sobretudo americano”. Não menos ambígua era a figura do cantor Ney Matogrosso. Notabilizado por sua voz de contralto e rebolado frenético, apresentava-se em seus shows, ora com chifres enormes, face densamente maquiada, e minúsculo tapa-sexo, ora repleto de penas, longas saias e exibindo a nudez de seu peito peludo. À frente do grupo Secos & Molhados, lançou o LP de mesmo nome, que logo tomou a feição de um verdadeiro manifesto homossexual. Nele, o universo gay era celebrado em várias canções, fosse de forma explícita ou nas “entrelinhas” das composições. Exemplo disso era o refrão “Vira, vira, vira homem/ Vira, vira lobisomem”, em que a palavra lobisomem aludia aos “anônimos habitantes da grande cidade, que após a meia-noite deixavam seu cansativo papel de abóboras para se transformar em atrevidas cinderelas” (TREVISAN, 2000, p. 289). O dúbio e escandaloso convite dessa e de outras músicas do disco tornaram-no grande sucesso de público, sobretudo entre os homossexuais, alcançando a marca de 800 mil exemplares vendidos. Mesmo em carreira solo, consagrando-se como um dos maiores intérpretes da canção popular brasileira, Ney permaneceu exibindo sua estética andrógina, e como que “borrando” as fronteiras dos gêneros: “Eu sou uma pessoa que tem emoção e sensibilidade e me orgulho de não ter que escondê-la. Eu manifesto. Agora, se dentro dos padrões isso é feminino, caguei” (GREEN, 2000, p. 413). Eram anos de grande frenesi... de chocar o conservadorismo da sociedade brasileira com novas experimentações estéticas e poéticas... tempos de escandalizar a moral burguesa... e a exposição do pintor Darcy Penteado, 21 em 1973, não fez outra coisa ao exibir, no cenário das artes brasileiras, corpos masculinos inteiramente nus. Um inegável homoerotismo emanava desses nus masculinos, que constituíam não apenas o tema básico das telas, como também impregnavam o estilo dos traços. No entanto, nada escandalizou mais, nesses primórdios da década de 1970, do que a montagem da peça Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá. Apoiada em recursos cênicos melancólicos e na linguagem “típica de bicha” cuidadosamente recolhida do cotidiano, a peça retrata com um fino humor a história de um homossexual decadente que vive numa grande cidade e recebe em sua residência um rapaz humilde recém-chegado do interior. Dentre suas peculiaridades cênicas, registra-se que durante as relações sexuais o protagonista pedia ao seu hóspede que o chamasse de Greta Garbo. Devido a essa exposição da intimidade da vida de homens gays, a peça foi algumas vezes vítima da censura federal, mas nem por isso deixou de ser um sucesso de público, sendo encenada até mesmo no exterior. Vinte anos após sua encenação inicial, que ficou em cartaz por três anos ininterruptos, ela é reencenada, em 1993, por Raul Cortez, que já havia interpretado o protagonista homossexual. “Talvez por essas características, pode-se dizer que Greta Garbo inaugurou e tipificou um certo estilo de ‘teatro guei’ no Brasil” (TREVISAN, 2000, p. 294). Era quase unânime entre as produções teatrais desse período que versavam sobre a temática homossexual, a transposição para os palcos das próprias experiências pessoais dos autores homossexuais que escreviam tais encenações. O público é, desde então, familiarizado com uma multiplicidade de personagens homossexuais. Todavia, mesmo antes da produção de Greta Garbo no ano de 1974, outras peças com temática homossexual já haviam sido encenadas no Brasil. Ainda em meados da década de 1960, Walmir Ayala escreve Nosso filho vai ser mãe, história que narra os preconceitos sociais de que é vítima um jovem ao revelar seu desejo de engravidar. A conclusão da trama ocorre quando a mãe desse rapaz interna-o em um hospício. Um ano após essa peça, em 1966, era a vez de O beijo no asfalto de Nelson Rodrigues. O protagonista depois de ser visto 22 beijando um homem, minutos antes de sua morte em decorrência de um acidente automobilístico, é abalado por sucessivas perdas (do emprego, da esposa), até a derrocada final com sua própria morte. A produção cinematográfica brasileira também tomou personagens homossexuais como objeto de seus enredos. Já na década de 1960, a temática homoerótica esteve presente na produção cinematográfica do mentor do Cinema Novo. Embora Glauber Rocha tenha tecido várias considerações desfavoráveis à homossexualidade ele fez referências explícitas a ela em um curta-metragem de 1961, denominado A cruz na praça. No clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), a temática está subtendida na história de um homem que oscila entre a força de dois líderes dominadores, um beato e um cangaceiro. No entanto, foram raras as sequências que se propuseram “verter a erótica homossexual em imagens poéticas”; como aquela que mostra a “figura do travesti Eloísa, requintadamente interpretada, no filme República dos assassinos”, ou “as bundas lisas dos dois irmãos incestuosos, em A intrusa” (TREVISAN, 2000, p. 299). Houve, antes disso, o predomínio de filmes que retratavam caricaturalmente a figura homossexual, a fim de induzir ao riso plateias predominantemente machistas. Em A personagem homossexual no cinema brasileiro (2002), Antônio Moreno expôs como o homossexual foi ridicularizado na produção nacional desse último tipo. Num levantamento de 125 filmes, esse estudioso constata que os personagens gays quase sempre aparecem como alienados. Prevalece, portanto, a imagem do homem com pouca instrução, de classe social baixa, subempregado ou marginal, que desmunheca em roupas espalhafatosas, voz de falsete, andando como manequim em passarela, apresentando um comportamento falso e traiçoeiro. Desde a comédia Augusto Anibal quer casar (1923), de Luiz de Barros, até as pornochanchadas da Atlântida dos anos 40 e 50, o travesti é apenas uma caracterização grotesca, assexuada. Nos anos 60, Walter Hugo Khouri usa, em filmes como Noite vazia (1964), o lesbianismo para excitar o público masculino. O cinema underground apresenta imagens 23 mais complexas da homossexualidade, como em A família do barulho (1970) e Matou a família e foi ao cinema (1967), de Júlio Bressane, ou em Orgia, ou O homem que deu cria (1970), de João Silvério Trevisan; mas o cinema comercial continua a mostrar gays efeminados ou delinquentes, como em Rainha diaba (1974), de Antonio Carlos Fontoura. Entre os anos 1980/90, a discussão da homossexualidade masculina nas películas oscila entre representações menos pejorativas do homossexual – como em Pixote, a lei do mais fraco (1981) e O beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco; Vera (1987), de Sérgio Toledo; A menina do lado (1987), de Alberto Salvá; e Jenipapo (1995), de Monique Gardenberg –, e aquelas que os desmoralizam, exemplo de Matou a família e foi ao cinema (1991), de Neville de Almeida. De qualquer sorte o estigma não deixou de impregnar o homossexual mesmo quando as produções pressupunham promover a quebra de tabus. Ele é representado como um travesti efeminado e afetado; um assassino ou vítima de assassinato; um neurótico envolto em traumas de infância; um autodestrutivo que mergulha em uma espiral de degradação; um masoquista; um reprimido que, incapaz de realizar seu desejo, apresenta um comportamento violento... A difusão da visibilidade homossexual prossegue nos programas televisivos. Houve a aparição de uma ampla gama de tipos homossexuais desde o espalhafatoso gay efeminado, passando por pai de santo e mordomos, até a presença, ainda insípida nos anos 70 e 80, de homens viris de classe média. No entanto, o “amor que não ousa dizer seu nome”, para utilizar a expressão de Oscar Wilde, permanece sufocado pelo recato nas telenovelas. Esse amor está aí restrito a insinuações bastante sutis dos protagonistas envolvidos nas tramas; ou é atrelado a promoção de uma imagem negativa dos homossexuais, pautada, sobretudo, no padrão de efeminamento masculino. E quem não se recorda dos refrões “Maria Sapatão, de dia é Maria e de noite é João”, e “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é... Bicha, bicha!”, entoados no programa de calouros a Discoteca do Chacrinha? O apresentador Chacrinha – que aparecia ora vestido de noiva, ora de Nero – enquanto atirava, para seu público, objetos como bananas ou bacalhau, seguia com suas debochadas referências à homossexualidade indagando: “Quem gosta mais de 24 chupar pirulito: o homem ou a mulher?” – não sejamos tolos quanto à inocência desse pirulito... Mas nada se compara ao atrevimento do Capitão Gay. Interpretado por Jô Soares em princípios da década de 1980 no programa Viva o Gordo, o personagem aparecia trajando plumas cor-de-rosa que parodiavam o uniforme do Super-Homem. Na mesma linha da paródia, ele fazia referência à dupla Batman e Robin, modelos de virilidade da cultura de massas. Sempre acompanhado por seu assistente Carlos Suely – autodefinido como 20% Carlos e 80% Suely – um mulato alto que usava peruca afro cor azul, o Capitão Gay surgia, manuseando maliciosamente sua varinha mágica, quando algum homem ou mulher estava em apuros e precisava solucionar determinado problema. Nessa época, até mesmo um anúncio publicitário destinado à televisão explorou o filão homossexual. Tratava-se da propaganda de um creme de leite, cuja excelência estava vinculada ao seu frescor. A dubiedade linguística do termo “fresco” servia de mote ao longo do breve comercial. Enquanto um afetadíssimo mordomo aristocrático agitava uma garrafa do tal creme de leite, ouvia-se ao fundo um coro feminino gritando “fresco, fresco”; ao invés de se ofender com a gritaria, o mordomo se empertigava, cheio de mudo orgulho; até descobrir que o coro fazia, na verdade, o elogio do creme de leite e não uma referência a ele, francamente decepcionado, o mordomo saía de cena, cheio de indignação. (TREVISAN, 2000, p. 295) Inúmeras obras literárias desse momento também passam a versar sobre a vida de homossexuais. O acesso a obras como Bom Crioulo e Internato, há muito fora de circulação, é possível a partir da antologia intitulada Histórias do amor maldito editada no ano de 1967 por Gasparino Damata. Quase dez anos mais tarde, em 1976, o mesmo autor iria publicar Os solteirões. Nesses contos de sua própria autoria, ele relatava histórias de michês, tias, bichas, e apresentava um homem fortemente masculinizado que preferia ir para a cama apenas com jovens garotos. Nesse mesmo ano, Darcy Penteado lança A meta. A capa provocativa do livro – que exibia a musculatura 25 trabalhada de um homem vestindo apenas uma calça jeans entreaberta – remetia ao conteúdo não menos audacioso dessa coletânea de contos que mostrava muitos aspectos da vida da subcultura homossexual. A descrição de um homossexual em busca de parceiros sexuais num cinema carioca pode ser encontrada no romance Primeira carta aos andróginos, escrito em 1975 por Aguinaldo Silva. Não podemos deixar de mencionar a criação de uma imprensa homossexual, cognominada de imprensa cor-de-rosa. Ela pode ser inserida no quadro do que se denominava na época de imprensa alternativa. Essa expressão havia sido cunhada por Alberto Dines e designava “algo que não está ligado a políticas dominantes; [e o] desejo das gerações dos anos 60 e 70 de protagonizar as transformações sociais que pregavam” (KUCINSKI, 1991, p. XIII). Muitas vezes essas publicações que circulavam na periferia do sistema editorial tinham uma vida bastante efêmera. Durante os primeiros quinze anos de ditadura houve a criação e o desaparecimento de aproximadamente 150 periódicos. Antes da aparição de publicações propriamente elaboradas por e para homens gays, as informações sobre a homossexualidade eram vinculadas em breves colunas editadas nos jornais. Exemplo disso era Gay Power escrita por Sylvio Lamenha em 1971 no jornal Já. Sediado no Rio de Janeiro, o periódico de existência curta e produzido por um grupo dissidente de O Pasquim, reunia nesse espaço informações sobre bares, saunas e discotecas gays no Rio e, em São Paulo, indicava livros e peças que enfocavam a homossexualidade, assim como trazia notícias sobre a estruturação do movimento homossexual nos Estados Unidos e na Europa. Mantendo essa mesma linha editorial, outras colunas surgiram como Guei, assinada por Glorinha Pereira no Correio de Copacabana, e Tudo entendido que aparecia no diário carioca Gazeta de Notícias sob a responsabilidade de Antônio Moreno, ambas publicadas em 1977. Um ano antes disso, o jornalista Celso Cury lança no jornal Última Hora, de São Paulo, a Coluna do Meio. O principal diferencial dela em relação às demais era a seção de classificados pessoais, denominada Correio Elegante. Nela homossexuais de todo o país podiam trocar correspondências entre si, 26 algo bastante semelhante ao que a revista Rose editaria posteriormente nos anúncios de sua seção Encontro Gay. Entretanto, esse seria o estopim para a denúncia formalizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, sustentada na Lei de Imprensa,6 que acusava Cury de promover, através de seu Correio Elegante, encontro entre pessoas “anormais”. Essa afronta à moral e aos bons costumes levaria à sua demissão da redação do jornal. Muito antes disso, em 1914, a revista Rio Nu editou o que talvez possa ser considerada a primeira história pornográfica homoerótica brasileira: O menino de Gouveia. Essa denominação ao brincar com o termo “gouveia” – gíria empregada na época para designar um homem mais velho que deseja jovens garotos – já revela a situação sobre a qual o enredo desse breve conto erótico se desenvolve. Nele, Capadócio Maluco (novo joguete com a linguagem, uma vez que, tal nome sugere uma devassidão incontrolável) relata a aventura sexual que acabara de ter com um jovem de traços acentuadamente efeminados. A interpretação positiva das preferências homossexuais proposta pela história distancia-se, portanto, de um tom moralista que condenaria tais práticas. Reproduzo aqui a primeira parte desse conto dividido em quatro capítulos distribuídos ao longo de 15 páginas, e acompanhado pela ilustração de dois homens praticando o intercurso anal. No que se referia à “as publicações periódicas, ilustradas ou não, que contenham matéria que exteriorize manifestação de temas eróticos, [...] ou de humorismo picante, destinadas a se comunicar com um público adulto”, a Lei de Imprensa determinava que “só poderão ser distribuídas aos postos de venda, ou encaminhadas aos seus assinantes, embaladas em material opaco, resistente e hermeticamente fechado”. Para que tais publicações pudessem circular, era necessário, ainda, que seus responsáveis obtivessem o registro de títulos junto a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento de Polícia Federal, e apresentassem a inscrição “Proibida a venda a menores de 18 anos de idade”. Para saber mais consultar: AQUINO (1999); COSTA (2010a, 2010b); COSTELLA (1970); FICO (2003); KUSHNIR (2004). 6 27 O menino de Gouveia Estendido junto a mim na cama suspirativa do chateau, depois de ter sido enrabado duas vezes, tendo na mão macia e profissional a minha respeitável porra, em que fazia umas carícias aperitivas, o menino do Gouveia, isto é, o Bembem, contou-me pitorescamente a sua história com todos os não-me-bulas de sua voz suave de puto matriculado. – Eu lhe conto. Eu tomo dentro por vocação; nasci para isso como outros nascem para músico, militares, poetas ou até políticos. Parece que quando me estavam fazendo, minha mãe, no momento da estocada final, peidou-se, de modo que teve todos os gostos no cu e eu herdei também o fato de sentir todos os meus prazeres na bunda. Quando cheguei aos meus treze para quatorze anos, em que todos os rapazes têm uma curiosidade enorme em ver uma mulher nua, ou pelo menos um pedaço da coxa, um seio ou uma parte do corpo feminino, eu andava a espreitar a ocasião em que algum criado, ou mesmo meu tio, ia mijar, para deliciar-me com o espetáculo de um caralho de homem. Não sei porque era, eu sentia uma atração enorme para o instrumento dos meus prazeres futuros. Havia então, entre os empregados, um que possuía um paratilevas que era mesmo um primor de grossura e comprimento, fora a cabeçorra formidável. Uma destas picas que nos consolam até a alma. Entretanto, o que mais aguçava a minha curiosidade e me dava um desejo insofrível, era poder ver a porra de meu tio. Este, porém, era muito cauteloso, e jamais ia satisfazer suas necessidades sem trancar a porta da privada, ficando eu desse modo com o único recurso de calcular e julgar, pelo volume que lhe via na perna esquerda, as dimensões do seu mangalho que parecia ser colossal. Um dia em que ele e a titia foram à cidade muni-me de uma verruma e fiz na porta do quarto dos mesmos uma série de buracos dispostos de maneira que eu pudesse observar todos os movimentos noturnos. – Confesso, Capadócio Maluco – acrescentou o Bembem, aumentando o movimento punhetal que vinha fazendo na minha pica –, que nem uma só vez me passou pela cabeça de que ia ver a titia nua ou quase nua. O meu único pensamento era poder apreciar ereto o membro viril do titio. Nessa noite, mal nos recolhemos aos dormitórios, eu fui postarme, metido na comprida camisola de dormir, na porta e com os olhos pregados nos furos previamente feitos. Parece, porém, que o casal não tinha pressa nenhuma de se foder ou então ambos estavam fartos, pois meu tio, em camisa de meia, sem tirar as calças, sentou a ler um livrinho que depois eu soube ser da Coleção Amorosa do Rio Nu, enquanto minha tia, em mangas de camisa, principiou uma temível caçada a algumas pulgas teimosas. Se eu gostasse de mulher, teria me deliciado vendo, nos 28 movimentos bruscos da caçada, os seios da moça, que eram alvíssimos, de bicos vermelhos, redondos e rijos como se ela ainda fosse cabaçuda; porém todo o meu prazer, toda a minha curiosidade, estavam entre as pernas do tio, no seu caralho, cuja lembrança me punha comichões na bunda. Afinal, ela parece que cansou da perseguição dos pequenos animais, pois deixou cair a saia e rapidamente substituiu a camisola por uma pequena camiseta de meia de seda que lhe chegava até o meio das nádegas. Mesmo sem querer, tive que admirar-lhe as pernas bem feitas, as coxas grossas, torneadas e muito claras, a basta pentelhada castanhoescura e – com quanta raiva o confesso! – o seu traseiro, amplo, macio, gelatinoso. Ah! se eu tivesse um cu daqueles, era feliz! Era impossível que meu tio, tendo ao seu dispor um cagueiro daqueles, pudesse vir a gostar da minha modesta bunda! Quantos ciúmes eu tive da tia naquela noite! Parece que a leitura do tal livrinho produziu alguma coisa em titio. Ele principiou a olhar de vez em quando para a mulher, estendida de papo para o ar sobre o leito; depois passou várias vezes a mão pela altura da pica. Finalmente levantou-se, num movimento tirou toda a roupa e caminhou para a cama. Oh! Céus! Eu então pude ver, com toda a dureza que uma tesão completa lhe dava, os vinte e cinco centímetros de nervo com que a Natureza o brindara. Que porra. Grande, rija, grossa, com uma chapeleta semelhante a um párachoques da Central e fornida dum par de colhões que devia ter leite para uma família inteira. Ele chegou-se ao leito, começou a beijar a esposa nos olhos, na boca, no pescoço, nos seios e depois, quando a sentiu tão arreitada como ele estava, afastou-lhe as belas coxas, trepou para cima do leito e eu, do meu observatório, vi aquele primor de pica deslizar suavemente e sumir-se todo pelo cono papudo da titia, que auxiliava a entrada do monstro fazendo um amestrado exercício de quadris, a suspirar, a gemer, a vir-se, no mais completo dos gozos, na mais correta das fodas. Não quis ou não pude assistir ao resto da cena. Eu tinha uma sensação esquisita no cu, parecia que as pregas latejavam. Mais tarde vim a saber que isso era tesão na bunda. Corri para meu quarto, fechei-me por dentro, atirei para longe a camisola, que me incomodava e, tendo arrancado a vela do castiçal, tentei mete-la pelo cu acima a ver se me acalmava. Fui caipora; as arestas da bugia machucavam-se o ânus e não a deixavam entrar. Passei uma noite horrível. (GREEN & POLITO, 2006, p. 38 a 41) 29 Dentre as primeiras publicações destinadas para homossexuais masculinos no Brasil nenhuma experimentou uma existência tão longa quanto Snob. O jornal foi editado por Agildo Guimarães de julho de 1963 a junho de 1969, somando 99 números regulares e uma edição retrospectiva. Distribuído na Cinelândia e em Copacabana, gratuitamente ou mediante alguma contribuição, ele foi se sofisticando, sendo que suas últimas edições pouco lembravam as modestas páginas mimeografadas que o compunham inicialmente. A politização dessa publicação torna-se visível na medida em que gradualmente deixa de lado as fofocas e passa a discutir problemáticas relativas à homossexualidade masculina. A experiência desse jornal motivou, portanto, a publicação de outros títulos, não apenas no Rio de Janeiro como nas demais regiões do país. Esse é o caso de: Le Femme, Subúrbio à noite, Gente Gay, Eros, La Saison, O Centauro, O Vic, O Grupo, Darling, 20 de Abril, O Centro, O Galo, Os Felinos, Opinião, O Mito, Le Sophistique, Darling, Zéfiro, Baby, Entender... para mencionar apenas algumas dessas publicações. De qualquer modo, a produção que alcançou maior notoriedade e destaque em fins da década de 1970 foi o jornal Lampião da Esquina. Em abril de 1978, aparecia então o número 0 do jornal. Seu conselho editorial era composto por nomes de proeminente envergadura intelectual, como o antropólogo Peter Fry, o cineasta e crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, o escritor e pintor Darcy Penteado, João Silvério Trevisan, Gasparino Damata, João Antônio Mascarenhas... além de jornalistas profissionais que trouxeram sua importante experiência prática para o empreendimento. A proposta desse grupo de homens implicava uma ruptura, na medida em que abordavam temáticas que nesse momento eram consideradas secundárias, tais como sexualidade, discriminação racial, artes, machismo, ecologia. Assinado pelo Conselho Editorial, o editorial do número 0 intitulado Saindo do Gueto (transcrito a seguir) registrava de maneira detalhada as pretensões do grupo ao publicar o jornal. 30 Saindo do Gueto Brasil, março de 1978. Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa liberalização do quadro nacional: em ano eleitoral, a imprensa noticia promessas de um Executivo menos rígido, fala-se de criação de novos partidos, de anistia; uma investigação das alternativas propostas faz até que se fareje uma “abertura” do discurso brasileiro. Mas um jornal homossexual, para quê? A resposta mais fácil é aquela que nos mostrará empunhando uma bandeira exótica ou “compreensível”, cavando mais fundo as muralhas do gueto, endossando – ao “assumir” – a posição isolada que a Grande Consciência Homossexual reservou aos que não rezam pela sua cartilha, e que convém à sua perpetuação e ao seu funcionamento. Nossa resposta, no entanto, é esta: é preciso dizer não ao gueto e, em conseqüência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, segunda a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência homossexual como uma espécie de maldição, que é dado aos ademaneses e que sempre esbarra em qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser humano, neste fator capital: seu sexo não é aquele que ele desejaria ter. Para acabar com essa imagem-padrão, O Lampião não pretende soluçar a opressão nossa de cada dia, nem pressionar válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o estigma da não reprodutividade numa sociedade petrificada na mitologia hebraicocristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz. A essa minoria não interessam posições como a dos que, aderindo ao sistema – do qual se torna apenas “bobos da corte” –, declaram-se, por ledo engano, livres de toda discriminação e com acesso a amplas oportunidades; o que O Lampião reivindica em nome dessa minoria é não apenas assumir e ser aceito – o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhe negaram: o fato de que os homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização, enquanto tal. Para isso, estaremos mensalmente em todas as bancas do País, falando da atualidade e procurando esclarecer sobre a experiência homossexual em todos os campos da sociedade e da criatividade humana. Nós pretendemos, também, ir mais longe, dando voz a todos os grupos injustamente discriminados – dos negros, índios, mulheres, às minorias étnicas do Curdistão: abaixo os guetos e o sistema (disfarçado) de parias. Falando da discriminação, do medo, dos interditos ou do silêncio, vamos soltar a fala da sexualidade no que ela tem de positivo e criador, tentar apontá-la para questões que desembocam todas nesta realidade muito concreta: a vida de (possivelmente) milhões de pessoas. 31 Mostrando que o homossexual recusa para si e para as demais minorias a pecha de casta, acima ou abaixo das camadas sociais; que ele não que viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigmatizem; que ele não é um eleito nem um maldito; e que preferência sexual deve ser vista dentro do contexto psicossocial de uma humanidade como um dos muitos traços que um caráter pode ter, O Lampião deixa bem claro o que vai orientar a sua luta: nós nos empenharemos em desmoralizar esse conceito que alguns nos querem impor – que a nossa preferência sexual possa interferir negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que vivemos. (GREEN & POLITO, 2006, p. 182 a 184) Através de uma linguagem desmunhecada e desabusada típica entre homossexuais, o jornal editado em tamanho tablóide publicava ensaios, contos, informações sobre lugares de sociabilidade gay, assim como notícias do movimento internacional de gays e lésbicas. Em seu primeiro exemplar João Silvério Trevisan escreve um artigo sobre Celso Curi, o colunista gay pioneiro da Coluna do Meio. A defesa manifesta nesse texto ao jornalista que era considerado imoral ao promover os já mencionados “encontros entre anormais”, rendeu à Lampião a acusação de atentado à moral e aos bons costumes. Desde agosto de 1978, o Ministério da Justiça havia instaurado um inquérito policial levado a cabo tanto em São Paulo, como no Rio de Janeiro. Nele, seus editores eram mencionados como indivíduos que sofriam de graves problemas comportamentais, sendo solicitado que todos fossem processados judicialmente. Tendo em vista a insuficiência de elementos para a instauração de um processo judicial, em meados de 1979 ocorreu o arquivamento desse inquérito. A fragilidade financeira de Lampião, que dependia de recursos gerados pela publicação de anúncios publicitários, pelas vendas diretas de seus exemplares ou de expedientes incertos como doações de amigos, ficou evidente quando ele não teve meios para acompanhar as crescentes exigências jornalísticas do mercado editorial que se desenvolvia no Brasil. Nesse contexto, “sua proposta, inicialmente original e inovadora, tinha-se 32 diluído nas páginas dos grandes diários mais progressistas e profissionalmente mais aparelhados do país” (TREVISAN, 2000, p. 362). A confluência desses aspectos com as crescentes divergências entre os membros do seu Conselho Editorial levou ao fim as atividades do jornal, em julho de 1981. Como saldo desses de três anos de existência, restaram 37 números que eram publicados mensalmente e tinham distribuição em todo o território nacional. É no contexto dessa efervescência cultural que os primeiros movimentos de organização mais politizada entre os homossexuais começam a se estruturar no cenário nacional. Todavia, antes disso, em princípios do século XX, o ativismo homossexual havia se desenvolvido na Europa e nos Estados Unidos. Na Europa, já no final do século XIX e limiar do século XX, ocorrem lutas contra a criminalização da homossexualidade, como aquela que pretendia abolir o parágrafo 175 do Código Penal alemão, que punia o comportamento homossexual entre homens. Em vários países europeus, o movimento por reforma sexual atinge seu ápice entre as décadas de 1910 e 1920. Nesse período há, dentre outros acontecimentos, “a abolição das leis antihomossexuais na Rússia pelo novo governo bolchevique, em fins de 1917, a fundação do Instituto de Ciência Sexual em Berlim por [Magnus] Hirschfeld, em 1919, a realização de congressos internacionais e a formação de uma Liga Mundial para Reforma Sexual, em 1928” (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p. 40). No entanto, significativas alterações no panorama político da Europa tiveram reflexos desastrosos sobre esse emergente ativismo homossexual. A crescente violência nazista na Alemanha levou, em 1933, à destruição do instituto de Hirschfeld, com a eliminação de seus arquivos e biblioteca. O regime nazista se mostraria ainda mais cruel no recrudescimento das condenações por homossexualidade. Os homossexuais enviados para os campos de concentração eram distinguidos dos demais prisioneiros por um triângulo rosa costurado em seus uniformes e, além da sujeição a um severo regime de trabalho forçado, estavam passíveis de castração. Violentas campanhas cujo foco central era a condenação da homossexualidade, também são promovidas na Rússia soviética. O governo stalinista valeu-se de punições legais que justificavam as perseguições empreendidas contra homossexuais designados 33 como espiões e traidores que deveriam, portanto, ser sumariamente eliminados. No final da década de 1940, sobretudo nos Estados Unidos, ocorre o desenvolvimento de uma nova onda de lutas em defesa da homossexualidade. Sem perder de vista o combate à descriminalização das relações homossexuais, agora é reivindicada a elaboração de uma imagem pública mais respeitável para os homossexuais e sua plena integração à sociedade. Contudo, nos anos seguintes, em meio à crescente politização da liberdade sexual, o movimento homossexual norte-americano exibe uma feição mais radical articulada a uma atitude hedonista de ruptura com os valores puritanos da classe média. O enfrentamento entre homossexuais e policiais no bar Stonewall Inn, ocorrido na noite de 28 de junho de 1969, representaria, portanto, a emergência de um Gay Power. Posteriormente, a data ficou consagrada como o Dia do Orgulho Gay e Lésbico. Assim, Um deslocamento político importante teve lugar na sequência dos episódios do Stonewall Inn. O impulso radical que dele decorreu pretendia abalar a visão de que a homossexualidade fosse uma condição peculiar de uma minoria. Seus porta-vozes sinalizavam o fim da homossexualidade e das divisões estabelecidas entre sujeitos sexuais. Para estes, “ser gay” deveria ser completamente diferente de “ser homossexual”. Não dizia respeito a uma preferência ou orientação sexual determinada, mas equivalia, antes, a um modo de vida eroticamente subversivo. Organizações [...], preconizavam essa postura de ampla contestação cultural e política, que questionava a eficácia das mudanças legais para a solução dos problemas enfrentados por homossexuais. (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p. 45) No Brasil, a espinha dorsal do Movimento de Liberação Homossexual seria composta por grupos politicamente organizados em torno da discussão da homossexualidade. Esse é o caso do pioneiro grupo Somos criado em São Paulo nos primeiros meses de 1978, e que constituiria a matriz para os demais que surgiriam posteriormente. A proposta de autogestão e de ação direta do grupo expressava sua independência, autonomia e não alinhamento a programas partidários, pelo menos até o choque com os trotskistas ligados à 34 Quarta Internacional, que mais tarde iria tomar o grupo e impor suas posições partidárias. Além disso, havia a reflexão sobre estratégias que promovessem a ruptura do modelo heterossexista de relacionamento amoroso, assim como a quebra dos modelos estanques de papéis sexuais. A polivalência amorosa como proposta potencialmente transformadora também era enfatizada pelos membros do grupo que consideravam suas “trepadas como atos políticos” (TREVISAN, 2000, p. 340). Essa composição não apresenta muitas diferenciações em relação àquelas dos grupos de ativismo gay que são elaboradas na década de 1980 em outros estados brasileiros como o Grupo Gay da Bahia (GGB), talvez o primeiro grupo de direitos homossexuais a ser reconhecido como sociedade civil, ainda em 1983. A estruturação de novos grupos, assim como o crescimento daqueles já existentes, acabou ocasionando uma burocratização generalizada, seguida por um esvaziamento da contestação do poder como tal – principal questão levantada pelo movimento homossexual. Já era possível perceber esse clima em abril de 1980 no I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados que foi realizado nas dependências da USP. O encontro que se destinava à troca de experiências e solidariedades foi, no entanto, marcado pela competição e hostilidade nos debates proferidos. Em um curto espaço de tempo as especificidades do movimento homossexual, ainda em busca de um espaço próprio de atuação, foram sendo lentamente diluídas no interior de propostas político-partidárias. Portanto, quando a revista Rose passou a ser editada no início de 1979, a homossexualidade não era temática desconhecida no cenário nacional, há muito estava em cena... No próximo capítulo, exploro a história dessa publicação que também contribuiu com o processo de visibilização dos homossexuais. 35 O homem do princípio ao fim Publicada e distribuída mensalmente pela Grafipar (Gráfica Editora Ltda, com sede em Curitiba) Rose é lançada no mercado editorial brasileiro em março de 1979. Já em princípios de janeiro de 1980 (edição n. 11) a revista torna-se uma publicação quinzenal, assim permanecendo até outubro de 1982, quando retorna novamente a ter edições mensais. O último exemplar da revista de que disponho (edição n. 81) data de fevereiro de 1983. Devido à escassez de informações disponíveis sobre a revista, não é possível afirmar se foi, ou não, nessa data que ela deixou de circular. Provavelmente, como diversos periódicos que da mesma forma repentina como foram criados deixaram de ser publicados entre os anos de 1964 e 1980, Rose tenha desaparecido do mercado editorial brasileiro sem fornecer qualquer explicação aos seus leitores. Embora com pequenas dimensões (20,5cm de altura por 13,5cm de largura) e poucas páginas (variando de 30 a 43 laudas), a revista apresentava aos seus leitores uma diversidade de assuntos desde textos sobre comportamento, variedades culturais, astrologia, humor, contos eróticos; até discussões sobre o movimento feminista e homossexualidade masculina. Chama a atenção o número reduzido de anúncios publicados nas páginas de Rose. Tomando como exemplo a edição número 5 (julho de 1979), encontram-se apenas três anúncios ao longo de toda a publicação. O primeiro pode ser visualizado na contracapa da revista, onde é informado que a revista Personal passa a ser publicada quinzenalmente intercalada com a revista Peteca, ambas as publicações da Grafipar e destinadas ao “homem & cia”, como esclarece o anúncio. Já, no interior da revista (p. 31), há a propaganda de alguns livros de temática erótica que podem ser adquiridos mediante reembolso postal. O outro anúncio está localizado na última página e faz menção ao primeiro número da Passacor, também publicada pela Grafipar e 36 dirigida ao público infantil. Nas demais edições da revista, a quantidade reduzida de anúncios permanece, sendo que, quando ocorrem, frequentemente fazem referência a outras publicações da Grafipar, a livros eróticos ou a “técnicas revolucionárias” de aumento do tamanho do pênis. Como é possível perceber, Rose não era a única publicação editada pela Grafipar, indicativo de que essa gráfica apresentava uma expressiva atuação no mercado editorial da época. As capas da revista são ilustradas por imagens de homens brancos em sua maioria bastante jovens, magros e praticamente desprovidos de pelos corporais. Tais fotografias mostram, sobretudo, o peitoral despido desses homens. Poucas são as capas em cujas imagens seus corpos aparecem por inteiro, e quando isso ocorre há a preocupação em preservar a nudez explícita de seus órgãos genitais. Os homens que figuram em tais fotografias não são modelos profissionais, mas sim indivíduos desconhecidos do grande público. Além disso, sem dúvida alguma, Rose é pioneira em fotografar homens brasileiros em uma época em que as poucas imagens masculinas que circulavam no país eram cópias daquelas apresentadas por publicações estrangeiras especializadas em nus masculinos. Na extensão superior da capa aparece escrito, em letras maiúsculas, o nome da revista – ROSE. A cor da fonte em que é grafado varia ao longo das edições publicadas, entre tons fortes, chamativos, como vermelho, laranja, berinjela, roxo, lilás, rosa, mostarda, azul turquesa, verde petróleo, raramente utilizando o branco. No interior da letra “o” do nome ROSE sempre há uma inscrição, uma espécie de símbolo que também é empregado pela revista para pontuar o final de cada seção, assim como, junto ao nome (e/ou pseudônimo) dos modelos fotografados. Ao olharmos superficialmente, parecem ser dois pequenos cogumelos quase que sobrepostos um diante do outro. Em algumas edições são de cores distintas, já, em outras, da mesma coloração. Entretanto, se fixarmos nosso olhar para esse pequeno desenho (algo em torno de 2cm x 2cm) começamos a estabelecer algumas analogias com outras imagens. Tanto 37 podem ser lábios contraídos prestes a beijar, formando a figura de uma boca; quanto podem ser dois pênis eretos. Abaixo dessa inscrição, editado em fonte menor, há o nome da gráfica responsável pela edição das revistas, o número do exemplar (por vezes o ano) e o seu respectivo valor (ex.: Grafipar – Nº 5/79 – Cr$ 18,00). Em outras edições há apenas o número do exemplar e o valor (Nº 81 – Cr$ 620,00), ora disposto logo abaixo do nome ROSE, ora escrito verticalmente antes da letra “R”. Há, ainda, aquelas capas que trazem um pequeno símbolo da editora Grafipar, acompanhado dos demais elementos, logo após o nome da revista no canto direito superior da capa. Um elemento dessa inscrição merece atenção. Refiro-me ao valor da revista que desde a edição número 5 até a 81 (primeira e última edições de que disponho) apresentou um acréscimo considerável. Se antes o exemplar da revista era comercializado por 18 cruzeiros, suas edições finais atingem a cifra de 620 cruzeiros. Talvez essa elevação possa ser explicada, em parte, pelo gradual acréscimo no número de fotografias (coloridas ou não) publicadas por ela, assim como pelos elevados índices de inflação do período. Escrito verticalmente ao longo de toda a extensão esquerda da capa, lemos, em letras minúsculas, a seguinte advertência: “VENDA PROIBIDA A MENORES DE 18 ANOS. Preço p/ Manaus, Santarém, Altamira, Macapá, Porto Velho, Rio Branco e Jiparaná por via aérea: Cr$ 23,00”. Esse valor é sempre superior ao pago nas demais regiões do país, e acompanha o gradual aumento no preço dos exemplares. Por vezes, as inscrições “Venda proibida para menores de 18 anos” ou “Imprópria para menores de 18 anos” recebem um destaque maior nas capas. Cercando os corpos dos modelos dispostos no centro das capas, lê-se as manchetes dos artigos das principais seções da revista. Nas primeiras edições é recorrente a menção a três seções em especial, quais sejam: Informação sexual, Confidências e Fora da Cama. Pouca referência é feita aos pôsteres centrais da revista que agraciavam os/as leitores/leitoras com fotos coloridas de homens nus. Entretanto, lentamente essas chamadas passam a 38 privilegiar os “nus masculinos brasileiríssimos!” – conforme impresso em várias capas – que figuram em seções como Rose e Eles, Vitrine de Rose, e O homem do princípio ao fim. Capa de Rose n. 5/1979 Capa de Rose n. 14/1980 Capa de Rose n. 40/1981 Capa de Rose n. 76/1982 39 Entretanto, qual o conteúdo dessa revista? Que artigos são redigidos em suas páginas? Que temáticas são discutidas em suas seções? Que imagens são produzidas sobre a masculinidade homossexual? Enfim, o que encontramos ao transpor a capa de Rose? É certo que Rose surge como uma publicação direcionada ao público feminino. Sua proposta editorial afirma que a intenção da revista não era oferecer ilusões, mas sim prestar um serviço às mulheres no que tange a luta por “direitos e oportunidade iguais de desenvolvimento pessoal e profissional” (Rose, n. 5/1979, p. 3). “E essa tem sido a preocupação constante de nossos artigos, com informações honestas e claras sobre assuntos que variam de leis trabalhistas a orgasmo, de educação de crianças aos métodos anticoncepcionais” (Rose, n. 16/1980, p. 3). Logo de início percebemos, portanto, que estamos diante de uma publicação cuja variedade temática é uma constante. Seções como Retalhos e Rose por dentro,7 apresentavam pequenas notas informativas das novidades do cenário artístico-cultural da época, tanto no Brasil, quanto no exterior. Sem perder de vista o compromisso de informar suas leitoras, a revista também abordava nesses espaços alguns acontecimentos vinculados aos avanços ou retrocessos da condição feminina. Nos seguintes excertos retirados da edição n. 5 (julho de 1979), podemos observar alguns desses retrocessos, sobretudo no que se refere à violência física contra mulheres, e a adoção de práticas sexistas por uma escola de Brasília. Onde a mulher mais apanha De todas as mulheres do mundo ocidental, a mais sofisticada e famosa por sua feminilidade, a francesa, é também a que mais apanha. Tanto que em 1976 foi fundado o “Lar Flora Tristan”, em Paris, para receber mulheres espancadas que desejassem abandonar o marido ou amante 7 Após os primeiros meses de circulação da revista a seção Rose por dentro é extinta. 40 espancador. O Lar é composto por psicólogas, médicas, advogadas e sociólogas que atendem às mulheres em tudo que é necessário, desde o cuidado com seus filhos até o encaminhamento profissional para as que tentam construir nova vida. Entre todas que recorreram ao Flora Tristan, apenas 6% preferiram voltar pra casa. Essa entidade foi criada pela liga de Defesa dos Direitos da Mulher, presidida por Simone de Beauvoir, autora de “Segundo Sexo”, livro que deveria ser lido por todas as mulheres e, principalmente, por todos os homens. Simone achou que o Lar não era bastante e criou agora outro meio de defesa para as espancadas. Um serviço telefônico de solidariedade: SOS – Mulheres Espancadas. Basta discar o número da SOS e pedir socorro. Imediatamente uma equipe treinada envia para lá a ambulância e a viatura de polícia. (Rose, n. 5/1979, p. 4) Virgens e não virgens Em Brasília o Centro Educacional n. 2, descobriu uma nova forma de separar as turmas de alunas do curso noturno. Exigindo atestado de virgindade e dividindo as classes entre virgens e não virgens. Para evitar atestados falsos exigiu que fossem todos emitidos pelo Instituto Médico Legal. Em 1978. Nossa era. Não é pré-história. (Rose, n. 5/1979, p. 6) Os textos de Retalhos prosseguem articulados a questões de interesse feminino até ocorrer uma mudança no seu enfoque temático. A partir do exemplar de número 50 (agosto de 1981) seu foco de atenção é deslocado para informações do universo homossexual da época. Entrevistas com personalidades gays, fofocas, informações sobre o movimento homossexual, indicações de casas noturnas, saunas, cinemas destinado a encontros fortuitos entre homens, publicação de livros versando sobre a temática homossexual... são noticiados nesse espaço. Desde então a seção recebe um novo nome, passando a se chamar De cabo a rabo. Segundo encontramos na edição 61 (fevereiro de 1982), esse título havia sido copiado da coluna assim intitulada que era escrita pelo jornalista Celso Curi na revista Peteca, também publicada pela Grafipar. Portanto, foi esse colaborador de diversas publicações da editora que cunhou a sugestiva denominação. 41 Na edição 50 já havia informações sobre o funcionamento da primeira sauna gay de Curitiba, a For Boys. “Com serviços de bar, pedicure, manicure, cabelereiro e até mesmo orientação especializada para tratamento de pele ou estética em geral, o destaque mesmo, [...], fica com a massagem e o massagista – este considerado um dos melhores profissionais da praça” (Rose, n. 45/1981, p. 4). Essa mesma matéria também menciona a existência de outros ambientes gays da cidade, como as boates “‘La Belle Époque’ [...] até a já famosa e/ou tradicional ‘Passport’ [...], sem deixar de registrar o ‘Barroco’, aconchegante bar para guei nenhum botar defeito” (Idem). Já, na França, centenas de homossexuais saem às ruas de Paris em uma marcha que havia contado com o apoio de políticos e intelectuais franceses. Realizada em um clima pacífico, a manifestação foi celebrada “com muitos gueis vestidos extravagantemente, enquanto outros aproveitavam a oportunidade para afirmar publicamente sua opção sexual, marchando devidamente abraçados com seus amantes” (Rose, n. 45/1981, p. 4). Em janeiro de 1982, essa seção informa sobre o sucesso de público do programa radiofônico Mundo Cintilante. O programa produzido na Rádio Imprensa de São Paulo para homossexuais, e levado ao ar pela primeira vez ainda em setembro do ano anterior, era composto de uma programação musical voltada para a música popular brasileira. Também apresentava “entrevistas, crônicas, informativos, horóscopo e principalmente fofocas, porque sem elas perde-se o molho & a graça numa produção desse nível” (Rose, n. 59/1982, p. 4). Outro sucesso mencionado pela revista na edição 77 (outubro de 1982) era o humor cômico do Capitão Gay, personagem que abordei anteriormente. Ainda nesse mesmo ano, De cabo a rabo transcreve trecho de um manifesto assinado pelo Somos, no qual o grupo levanta a discussão sobre o caráter patológico com que muitos terapeutas permanecem tratando a homossexualidade. Segundo o manifesto, “Com o advento do pensamento psicanalítico [...], a prática da homossexualidade foi deturpada. E a importância que se passou a atribuir a noção de que o comportamento estaria fundamentalmente condicionado a fatores biológicos, contribuiu para ligar a 42 homossexualidade a fatores patológicos e/ou psicopatológicos” (Rose, n. 60/1982, p. 4). Não muito diferente de tantas outras revistas publicadas no período, havia em Rose um espaço destinado ao horóscopo: Rose astral. Nele eram respondidas as cartas enviadas à redação pelos/as leitores/as esclarecendo sobre a influência dos astros em suas vidas. Do mesmo modo que a seção descrita anteriormente, Rose astral é remodelada a partir de novembro do ano de 1981 – edição 55. No novo formato do agora Homoróscopo, um especialista em astrologia – professor Onam – é responsável pelas orientações astrológicas e dicas eróticas fornecidas não mais às mulheres, mas exclusivamente aos leitores homossexuais da revista. O estilo despojado dessa escrita pode ser observado em uma dessas recomendações: “agarre o seu bofe antes que outros/outras o façam. Ele é seu e o boi não lambe. Basta querer, pois a conjunção astral é extremamente propícia para os arianos, esta quinzena. À luta!” (Rose, n. 55/1981, p. 18). As vivências femininas – seja no espaço doméstico, ou no âmbito público – compunham os textos da seção Fora da cama. Nela, temáticas diversificadas eram contempladas, desde os cuidados com a organização doméstica e com e educação da prole, até os avanços nos direitos civis conquistado pelas mulheres no cenário nacional e internacional. Todavia, esse espaço parece não ter obtido a simpatia dos/as leitores/as, visto que, após a edição de alguns breves artigos deixou de integrar as páginas da publicação. Provavelmente, isso se explique pelo próprio movimento de transformação da revista em uma publicação gay, acompanhado pela criação de seções compatíveis aos interesses gays, e a consequente extinção daquelas vinculadas a temáticas femininas. É importante mencionar que a principal característica apresentada por Rose era a interação que estabelecia com os/as leitores/as através das cartas que estes/as enviavam às suas seções – sobretudo, Informação Sexual e Confidências – ou aos anúncios eróticos que eram impressos nas páginas finais da revista. Além disso, outro meio de comunicação com seu público era 43 estabelecido por intermédio da promoção de concursos que premiava seus ganhadores com quantias em dinheiro. O concurso permanente de Contos eróticos, lançado a partir de julho de 1979 na quinta edição da revista, se consistia em uma dessas promoções. Seus enredos versavam sobre conquistas amorosas pontuadas pela consumação do desejo sexual de seus protagonistas, fossem eles um homem e uma mulher, ou – como passa a ser frequente a partir do exemplar 50 – dois homens. Raramente lemos nesses contos a presença de travestis. As estórias eram acompanhadas por ilustrações em preto e branco, ou seja, desenhos bastante amadores produzidos pelos próprios colaboradores internos da revista. De acordo com o regulamento do concurso, os textos deveriam ser enviados ao corpo editorial datilografados em espaço dois, com no máximo três laudas de extensão. Os participantes que tivessem seu trabalho publicado receberiam um prêmio de Cr$ 2.000,00. O forte apelo sexual também estava presente nas estórias em quadrinho que surgem no número 16, em março de 1980. Intituladas de Quadrinhos Gueis suas narrativas eram compostas de temáticas exclusivamente homoeróticas. Além de contos e quadrinhos, aparecem na edição 55 (novembro de 1981) os cartuns do concurso Dê o ar de sua guei-graça, que serão discutidos no próximo capítulo. Conforme o próprio nome indicava, em Informação sexual os/as leitores/as eram colocados em contato com matérias que discorriam sobre a vida sexual feminina. A dificuldade das mulheres em atingir o orgasmo, bem como a nítida distinção entre a educação sexual de meninos e meninas é debatida em um dos artigos. A matéria intitulada A Arte de Conseguir afirma que “a educação sexual que as meninas recebem é uma deseducação. [...] Normalmente, o que se leva para a cama é uma enorme ignorância sexual. [...] Enquanto isso, [...] os meninos tinham toda a liberdade para conhecer e praticar o sexo” (Rose, n. 5/1979, p.12-13). Mais adiante é possível ler sobre algumas técnicas de autoestimulação que podem ser praticadas pelas mulheres antes das relações sexuais, as quais “podem [...] ajudar a vencer a tensão, a atingir o relaxamento e os primeiros degraus do estímulo que são necessários para fazer amor” (Rose, n. 16/1980, p. 15). Não resta dúvida que a 44 existência efêmera dessa seção também está articulada às experimentações empreendidas pela revista em seu perfil editorial a fim de se tornar uma publicação destinada ao público gay. A homossexualidade masculina recebia uma atenção especial nos artigos de Confidências.8 Neles, a personagem criada pela revista, a sexóloga Nina Foch, respondia às “angústias afetivo-sexuais” dos homens que escreviam à seção. Havia cartas em que os leitores perguntavam sobre a possibilidade de engravidarem de seus parceiros. Em outras, eram relatados os conflitos gerados pela vivência (ou não) da homossexualidade. Não raras vezes são redigidos extensos relatos segundo os quais a solidão, o desprezo e o sofrimento compunham uma tríade dolorosa na vida do homossexual. As paixões, o amor por outro homem nem sempre correspondido ou aceito por aquele que nutre tais sentimentos; as traições; a decisão e os supostos custos morais em assumir um relacionamento; a impotência sexual... eram algumas das temáticas observadas nesses textos. As pesquisas do americano Alfred Kinsey sobre a sexualidade humana serviam de sustentação científica para algumas das explicações tecidas pela revista a respeito da homossexualidade. Esse pesquisador publicou em 1948 o Relatório Kinsey, que desmistificou alguns dos conceitos sobre normalidade e anormalidade vigentes na época. De acordo com suas constatações empíricas, não existiria apenas a preferência heterossexual ou homossexual, mas sim sete valores, com sete diferenciados graus de preferência sexual. O excerto a seguir condensa os diferentes graus de preferência sexual “revelados” pelo pesquisador. Até a publicação do “Relatório Kinsey”, em 1948 – resultado de 20 anos de pesquisas do americano Alfred C. Kinsey – a preferência sexual era definida como heterossexual (atração pelo sexo oposto) ou homossexual (atração pelo mesmo sexo). A pesquisa de Kinsey demonstrou que há 7 graus diferentes nessa escala de preferência 8 A análise dessa seção será retomada no capítulo seguinte. 45 sexual: 0 – Heterossexual exclusivo; 1 – Heterossexual - acidentalmente homossexual; 2 – Heterossexual - mais do que acidentalmente homossexual; 3 – Igualmente Heterossexual e Homossexual (comumente chamado de Bissexual); 4 – Homossexual - mais que acidentalmente heterossexual; 5 – Homossexual - acidentalmente heterossexual; 6 – Homossexual exclusivo. (Rose, n. 78/1982, p. 32-33) Já, algumas cartas publicadas nessa seção relatam casos em que homens recorriam à prostituição masculina para satisfazerem seus desejos sexuais e carências afetivas. Não são poucos os leitores que afirmam manter relações passageiras com michês, e que se sentiam explorados por esses meninos que os serviam sexualmente. Esse é o caso da carta da qual alguns trechos, agora, reproduzo. Lá se vão longe minhas noites e dias de muita ilusão, muita fantasia. Desde os 10 anos me encontrei como homossexual, e meus sonhos e fantasias eram todos com pessoas do mesmo sexo. [...] em todos esses sonhos, é lógico, eu me imaginava amado, endeusado, numa boa, numa igual. Hoje, aos 25 anos, começo a me sentir objeto de exploração. Não há nada daquele amor tão sonhado, não há amizade, nem ao menos uma camaradagem. É sexo pelo dinheiro, de uma forma aviltante. É uma troca onde a gente só sai perdendo: tem que se cuidar, senão eles carregam a casa toda. [...] está uma barra difícil de aguentar, essa de ter que separar metade do salário para a ‘caça’, para o ‘michê’ da garotada. (Rose, n. 76/1982, p. 32) A ânsia dos/as leitores/as por imagens de corpos masculinos é registrada nas inúmeras cartas enviadas a redação de Rose que solicitavam a 46 publicação de fotos cada vez mais ousadas, sobretudo, de nu frontal. Wilma, gaúcha de Porto Alegre, ao elogiar a revista diz: “Gosto muito das informações de Rose e também do concurso de contos, mas os nus não estão com nada. Queremos ver homens escancaradamente nus!”. Entretanto, tais solicitações somente foram atendidas em fins de setembro de 1980, no vigésimo oitavo exemplar de Rose, portanto, após a censura prévia ter sido extinta no ano anterior. As fotografias coloridas dos pôsteres de Rose, assim como aquelas editadas pelo concurso O homem do princípio ao fim, constituirão objeto de abordagem do próximo capítulo. Nesse momento, procedo à apresentação dos demais segmentos da revista compostos por imagens fotográficas de homens desconhecidos do grande público. O concurso fotográfico Rose e Eles foi lançado em março de 1980. De acordo com seu regulamento, os homens maiores de 18 anos interessados em participar deveriam providenciar seis fotografias preto e branco (12cmx18cm) nas poses que achassem conveniente, usando criatividade e imaginação. O material fotográfico era encaminhado para “Concurso Rose e Eles, caixa postal 1716, Curitiba, PR”, contendo os dados completos do modelo e do fotógrafo, isto é, nome, CPF, pseudônimo (se quisesse), idade, profissão, tipos de lazer, etc, incluindo endereço para correspondência. A Grafipar se reservava ao direito de não devolver o material, mesmo quando ele não fosse publicado. Também, “não estão excluídos homens casados nem maiores de 30, e também não se exige fotógrafo profissional” (Rose, n. 16/1980, p. 38). Além disso, modelos e fotógrafos deveriam enviar uma autorização para publicação do material anexo às cópias autenticadas da identidade e CPF. O valor do prêmio inicial era de Cr$ 2.500,00 para o modelo e Cr$ 1.500,00 para o fotógrafo, sendo que o material passava automaticamente a ser de propriedade da Grafipar, podendo ser reutilizado. Esses valores sofrem sucessivas elevações na medida em que novos números da revista foram publicados, alcançando a marca de Cr$ 10.000,00 para cada modelo premiado e a mesma quantia para o fotógrafo. 47 Regulamento do concurso Rose e Eles – Rose n. 16/1980, p. 33 Alguns elementos caracterizam as fotografias que aí aparecem. As imagens em preto e branco possuem como cenário a natureza, ou ambientes domésticos, como quartos e salas de estar. Os homens de aparência bastante jovem e com a pele clara, exibem seus corpos magros e praticamente desprovidos de pelos, vestindo apenas roupas íntimas (cuecas, sungas), quando não estão inteiramente nus. Em raríssimas exceções, cujo nu frontal aparece, jamais vemos os modelos com seu pênis ereto. Essa breve descrição em nada se distancia das fotos visualizadas na seção Vitrine de Rose criada pela revista em sua trigésima edição. Rose & Eles, n. 55/1981, p. 35 Vitrine de Rose, n. 75/1982, p. 11 48 Os homens interessados em se corresponder com esses modelos poderiam enviar suas cartas para o Correio modelos de Rose. Bastava escrever para “caixa postal 1716, Curitiba/PR, CEP 80000”, referindo o nome do modelo e o número da edição na qual figurou e aguardar pela resposta. Não há qualquer indício na revista de que essas cartas fossem respondidas. No entanto, antes mesmo de surgir esse espaço (edição 74), já havia, na seção Encontro Gay, vários recados com esse formato. Os anúncios dessa última seção estavam publicados nas páginas finais da revista. Neles, homens de todas as regiões do país redigiam breves informações a seu respeito, como características físicas, idade, nível de escolaridade, profissão, situação financeira, traços de personalidade, interesses culturais e preferências sexuais. O objetivo era, portanto, se comunicar com outros homens para troca de postais, de fotos de nu masculino, amizade, ou “algo mais”, o que talvez possa sugerir uma eventual relação sexual. Contendo o nome (ou pseudônimo) e o endereço completo do remetente, esses anúncios deveriam ser encaminhados para o mesmo endereço do Correio modelos de Rose. Somente quando houvesse o interesse em publicá-los com algum destaque, era necessário enviar, junto com os referidos dados, um cheque no valor de Cr$ 500,00. Anúncios de Encontro Gay – Rose n. 68/1982, p. 41 49 Portanto, ainda que destinada oficialmente ao público feminino, “a revista que informa as mulheres e tira a roupa dos homens”,9 lentamente passou a explorar o nicho de publicações gays que, ao que parece, era inexistente no Brasil até princípios da década de 1980. Tal carência de revistas destinadas ao público homossexual masculino é atestada por um dos leitores de Rose que escreve: “consumo-a com regularidade porque a pobreza no mercado editorial brasileiro no campo de publicações dirigidas ao público guei é absoluta” (Rose, n. 30/1980, p. 38). A transformação da revista na primeira publicação gay a circular no país pode ser constatada, como descrito acima, através das mudanças ocorridas em seu perfil editorial. Gradualmente, os artigos redigidos direcionavam seu enfoque temático para questões vinculadas à homossexualidade masculina, como era o caso exemplar de Confidências. Além disso, houve a criação de novos espaços onde eram exibidas fotografias que exploravam cada vez mais a nudez masculina, tornando a revista pioneira na publicação de “nus masculinos brasileiríssimos!”. É possível perceber que essas alterações tornam-se latentes a partir de agosto de 1981, ou seja, com a edição de número 50, que comemora dois anos de circulação quinzenal e ininterrupta de Rose. Os textos que passam a discorrer sobre a masculinidade homossexual são entremeados por uma espécie de inflação imagética de modelos, cujo falo é exibido sem maiores recatos. Aliás, essas imagens em nada lembravam as primeiras fotografias editadas pela revista, nas quais a exibição de nus frontais era incipiente e bastante recatada. O sucesso obtido pela revista desde que ela assume esse novo formato é expresso pelo aumento crescente de sua tiragem. Embora essa elevação não seja referida em números pela revista, ela é registrada pelas várias ocasiões em que os leitores enviam cartas à redação solicitando informações de como adquirir as edições esgotadas. Tanto o editorial de algumas edições, quanto cartas de leitores revelam esse sucesso. 9 Slogan publicado pela revista em suas edições. 50 Gratifica-nos que a nova fase de Rose venha merecendo a repercussão que esperávamos, como atestam telefonemas, extenso volume de cartas e até telegramas, além da verdadeira corrida que se vem fazendo para alcançar a publicação, antes que se esgote nas bancas. Não foi outra a intenção senão esta em aumentar o número de modelos coloridos, agora muito mais, já que com a sua sempre indispensável participação. Também não nos moveu outro motivo senão o de agradálo, oferecendo-lhe um máximo de prazer, dobrando a parada na Vitrine, agora espaçosa o bastante (4 páginas!) para caber um número ainda maior de bofes, bofinhos e bofaços. (Editorial, n. 76/1982, p. 5) Continua o sucesso da sua Rose pelo Brasil afora. Temos recebido cartas, inclusive de países europeus e dos Estados Unidos, elogiando a nossa pequena, doce e alegre Rose. (Editorial, n. 81/1983, p. 5) Pode até parecer exagero, mas Rose é mesmo uma revista que nos enche de orgulho. Algo fora de série, pois tenho amigos fora do Brasil e eles imploram que eu lhes mande nossa querida revista. Não que as estrangeiras não sejam boas, mas é o modelo brasileiro, o homem e o jovem brasileiro que realmente têm aquele ‘veneno’ especial... (S.G.C. Recife/Pernambuco). (Rose, n. 81/1983, p. 44) Dessa maneira Rose pode ser considerada como a primeira revista direcionada ao público homossexual masculino a ser produzida em solo brasileiro. “Sem dúvida a pioneira, a primeiríssima do Brasil – e, PORTANTO, A PRIMEIRA E MAIS ANTIGA REVISTA GUEI DO BRASIL” (Rose, n. 81/1983, p. 6, grifos da revista). 51 Imagens do homossexual discreto Conforme já mencionado anteriormente, a pesquisa aqui empreendida se propôs a analisar o enunciado que articula de diversos modos a masculinidade homossexual aos comportamentos efeminados. O reconhecimento da produtividade desse enunciado foi possível ao explorar detalhadamente os exemplares de Rose, assim como ao realizar a leitura de outras obras cujo foco analítico é a masculinidade homossexual. De qualquer maneira, a revista não deve ser reduzida à problemática aqui desenvolvida, uma vez que nela estão presentes outros enunciados, outras pedagogias do gênero e da sexualidade que, inclusive, estão vinculadas à sua própria transformação em uma publicação direcionada ao público homossexual. Retomo, também, que dentre o conjunto de revistas de que disponho – fundamental para o processo de compreensão e caracterização da publicação, sem o qual seria impossível principiar qualquer abordagem – analisei 11 edições nas quais a presença desse enunciado apresenta uma maior recorrência, quais sejam: 50 (agosto/1981), 51 (setembro/1981), 55 (novembro/1981), 59, 60 (ambas de janeiro/1982), 61 (fevereiro/1982), 65 (abril/1982), 68 (maio/1982), 73, 74 (ambas de agosto/1982) e 77 (outubro/1982). Todos os exemplares selecionados coincidem com o período em que Rose já apresenta um perfil editorial visivelmente destinado ao público homossexual masculino. Antes de prosseguir, duas considerações teóricas são necessárias: 1) a suspensão do objeto natural sujeito homossexual, a fim de compreender as relações, as práticas que tornaram possível tal objetivação, 2) a compreensão da noção de enunciado conforme proposto por Michel Foucault. O interesse de Foucault não está no pensamento enquanto atividade de uma razão pura, mas em um pensamento configurado pela própria 52 historicidade. Daí a necessidade de tomar as práticas como constituidoras dos próprios objetos. Tal compreensão promove a substituição do universo das coisas ocultas sob as palavras, pelo mundo dos objetos criados pela linguagem enquanto prática histórica. O que se pretende é “substituir o tesouro enigmático das ‘coisas’ anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam” (FOUCAULT, 2008a, p. 53). Objetos, esses, cuja definição está relacionada “ao conjunto das regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, as suas condições de aparecimento histórico” (FOUCAULT, 2008a, p. 53). Seguindo essa lógica, não há uma coisa denominada “homossexualidade” relativamente à qual os homossexuais se comportam, tampouco um “sujeito homossexual” enquanto um ser transcendental, ahistórico. O objeto homossexual pode ser tratado seguindo práticas tão diferentes, de acordo com as épocas, que os ditos “homossexuais” não têm senão o nome em comum. Objetivações diferentes que desmancham e fazem pulular mil acontecimentos lá onde estava a “marca da identidade”, da naturalidade desse objeto. Dito de outra maneira, o sujeito homossexual é objetivado segundo um conjunto heterogêneo de práticas. Como salienta Paul Veyne (2008, p. 257), “tudo gira em torno desse paradoxo, que é a tese central de Foucault, [...]: o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito”. Ainda sobre a negação da existência de objetos naturais, esse mesmo autor prossegue em sua argumentação mencionando que Toda dificuldade vem da ilusão mediante a qual “reificamos” as objetivações em um objeto natural [...] Em vez de enfrentar o problema em seu verdadeiro cerne, que é a prática, partimos da extremidade, que é o objeto, de tal modo que as práticas sucessivas parecem reações a um mesmo objeto, “material” ou “racional” que seria dado inicialmente. [Logo, em cada época] o conjunto das práticas engendra, sobre tal ponto material, um rosto histórico singular [...]. Tal é o sentido de negação dos objetos naturais: não há nada através do tempo, evolução ou modificação de um objeto que brotasse sempre no mesmo lugar. Caleidoscópio e não viveiro de plantas. (VEYNE, 2008, p. 257, 268-269) 53 Portanto, nos limites dessa pesquisa considero a homossexualidade como uma dentre outras maneiras possíveis de viver as masculinidades. De acordo com Robert Connell “a masculinidade é uma configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero”. Há, normalmente, “mais de uma configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade”. Assim, “diferentes masculinidades são produzidas no mesmo contexto social”, e “qualquer forma particular de masculinidade é, ela própria, internamente complexa e até mesmo contraditória” (CONNEL, 1995, p. 188-189). E devido a essa pluralidade de configurações, não deveríamos falar em masculinidade mas sim em masculinidades. Dessa maneira, a construção da masculinidade (seja ela hetero, homo, ou bissexual) deve ser pensada como um projeto – tanto coletivo quanto individual – na medida em que se configura como um processo em contínua transformação, atravessado por distintos marcadores sociais – geração, etnia, escolaridade, pertencimento religioso, classe social e econômica, nacionalidade, etc. Vale lembrar que a ideia de homossexualidade é produzida historicamente no contexto daquilo que Foucault chama de dispositivo de sexualidade, compreendido como práticas discursivas e não discursivas, saberes e poderes que visam normatizar, controlar e estabelecer “verdades” a respeito do corpo e seus prazeres. De acordo com a perspectiva esboçada por esse autor As sociedades ocidentais modernas inventaram e instalaram, sobretudo a partir do século XVIII, um novo dispositivo [...], o dispositivo de sexualidade. [Ele] funciona de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder, [engendrando uma] extensão permanente dos domínios e das formas de controle. [Assim, o que se torna pertinente] são as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões, por tênues e imperceptíveis que sejam. [...] O dispositivo de sexualidade se liga à economia através de articulações numerosas e sutis, sendo o corpo a principal – corpo que produz e consome. (FOUCAULT, 2007, p. 117118) 54 São, portanto, as relações de poder que instituem a (homo)sexualidade como um domínio a conhecer, e “se o poder pôde tomá-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos” (FOUCAULT, 2007, p. 109). Desse modo, “foi por volta de 1870 que os psiquiatras começaram a constituir a homossexualidade como objeto de análise médica: ponto de partida, certamente, de toda uma série de intervenções e de controles novos” (FOUCAULT, 2008b, p. 233). Dessa maneira, A homossexualidade tornou-se uma categoria científica e sociológica, classificando a perversidade sexual de um novo modo, e isso teve, inevitavelmente, desde então, seus efeitos na prática médica e legal, construindo a ideia de uma natureza distintiva e, talvez, de uma natureza exclusivamente homossexual. E, possivelmente de forma ainda mais importante, iniciou uma nova fase da autodefinição homossexual, em face do trabalho definidor das novas normas médicas e psicológicas. A partir do século XIX, um novo modelo de “homossexual” emergiu da literatura científica, [...] Esse modelo forneceu, num certo sentido, a norma ao redor da qual as pessoas assim definidas eram constrangidas, até bem recentemente, a viver suas vidas. (WEEKS, 2007, p. 68) A partir de então, “os processos de vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los” (FOUCAULT, 2007, p. 155). Não apenas a homossexualidade é uma construção datada historicamente, como também, a própria heterossexualidade. O discurso histórico responsável pela criação de ambas é uma invenção moderna. Segundo Jonathan Katz (1996), embora a palavra heterossexual possa ter sido inventada há pouco tempo, certamente os sentidos e atos não o foram. O mesmo pode ser dito sobre a homossexualidade. Entretanto, questionar a nossa crença em uma heterossexualidade universal vai totalmente contra nossas crenças culturais. 55 Ainda assim, eu falo sobre a invenção histórica da heterossexualidade para contestar diretamente nossa admissão comum da hipótese de que a heterossexualidade é eterna, para sugerir o status histórico relativo e instável de uma ideia e de uma sexualidade que geralmente supomos que foram há muito tempo esculpidas em pedra. (KATZ, 1996, p. 24-25) Portanto, a heterossexualidade não foi apenas imposta, ela foi inventada enquanto um arranjo histórico particular dos sexos e de seus prazeres. Houve, dessa maneira, a construção e estabelecimento de um ideal erótico dominante de sexos diferentes, isto é, uma ética heterossexual. Concomitante à perspectiva esboçada anteriormente, é recusado qualquer esforço de interpretação dos discursos dirigidos ao encontro do seu significado originário ou remetente ontológico. Antes disso, a ênfase investigativa é voltada para a linguagem na sua instância de aparecimento, ou seja, para os enunciados. É claro que “a descrição enunciativa não se ocupa do que se dá na linguagem, mas do fato de que existe a linguagem, que existem determinadas formulações efetivamente pronunciadas ou escritas e busca determinar as condições de possibilidade de existências dessas determinadas formulações” (CASTRO, 2009, p. 137). Em termos talvez simples em demasia face à complexidade da noção de enunciado, poderíamos considerar que não interessa tanto o que foi dito, mas antes compreender porque algo pôde ser dito em uma determinada época e numa determinada sociedade. Dito de outra maneira, o que se busca são as regras que, de acordo com a configuração do saber em um determinado contexto, permitem que se possa falar de certas coisas e não de outras. O domínio enunciativo está, inteiro, em sua própria superfície. Cada enunciado ocupa aí um lugar que só a ele pertence. A descrição não consiste, pois, a propósito de um enunciado, em reconhecer o nãodito cujo lugar ele ocupa; nem como podemos reduzi-lo a um texto silencioso e comum; mas, pelo contrário, que posição singular ocupa, que ramificações no sistema das formações permitem demarcar sua localização, como ele se isola na dispersão geral dos enunciados. (FOUCAULT, 2008a, p. 135-136) 56 O conceito de enunciado em Foucault não possui, portanto, uma descrição estática como se fosse uma atribuição, uma qualidade, algo que pudesse ser mostrado, que pudesse ser apontado, que pudesse ser isolado e apresentado: “isso é o enunciado”. O enunciado não se constitui como uma unidade, uma vez que se encontra na transversalidade de frases, proposições e atos de linguagem. Dessa forma, ele é um acontecimento que não pode ser esgotado inteiramente, nem pela língua nem pelo sentido. É constituído por palavras, por signos; entretanto, interessa sua condição mesma de enunciado e não seus aspectos puramente linguísticos. Por enunciado, [...], é necessário entender a modalidade de existência de um conjunto de signos, modalidade que lhe possibilita ser algo mais que um simples conjunto de marcas materiais: referir-se a objetos e a sujeitos, entrar em relação com outras formulações, e ser repetível. Essa possibilidade de referir-se a objetos, de implicar sujeitos, de relacionar-se com outras formulações e de ser repetível não se reduz nem às possibilidades da frase enquanto frase nem as possibilidades da proposição enquanto proposição. (CASTRO, 2009, p. 137) Diante disso, analisar um enunciado é reconhecer suas especificidades, é apreendê-lo como um acontecimento situado no tempo e no espaço e que pertence a uma dada formação discursiva. Para tanto, o enunciado não pode ser compreendido de maneira isolada, antes disso é necessário integrá-lo em um determinado contexto onde exerce uma função específica. É, portanto, a função enunciativa que torna possível que se possa dizer, e torna possível que se possa ver. Ela faz com que algo ou alguém se torne inteligível. E é aí que o conceito de enunciado em Foucault ganha força para as ciências sociais, porque só existimos como seres possíveis, inteligíveis, se houver um enunciado nos precedendo e nos autorizando. Refletindo sobre o caso das relações de gênero, são enunciados de gênero que nos fazem possíveis. Aqueles que resistem aos enunciados de gênero – homossexuais, travestis, drag queens, transexuais, intersexuais – não são inteligíveis para nossa cultura e, portanto, são colocados no lugar da abjeção. O impossível no 57 possível, porque todo corpo que existe materialmente é possível, mas o corpo que não acha lugar nos enunciados de gênero torna-se impossível. De acordo com Foucault, [a] raridade dos enunciados, a forma lacunar e retalhada do campo enunciativo, o fato de que poucas coisas, em suma, podem ser ditas, explicam que os enunciados não sejam, como o ar que respiramos, uma transparência infinita; mas sim coisas que se transmitem e se conservam, que têm um valor, e das quais procuramos nos apropriar; que repetimos, reproduzimos e transformamos; para as quais preparamos circuitos preestabelecidos e às quais damos uma posição dentro da instituição; coisas que são desdobradas não apenas pela cópia ou pela tradução, mas pela exegese, pelo comentário e pela proliferação interna do sentido. Por serem raros os enunciados, recolhemo-los em totalidades que os unificam e multiplicamos os sentidos que habitam cada um deles. (FOUCAULT, 2008a, p. 136) Assim, não há enunciado livre, neutro e independente. Ele não é puramente a utilização, por um sujeito falante, de um conjunto de elementos e de regras linguísticas. É a unidade elementar dos discursos e, para exercer sua função, deve respeitar as modalidades particulares e deve obedecer a estratégias enunciativas específicas para cada discurso. Resta uma consideração. Ainda que a pesquisa tenha abordado a revista como um todo constituído por textos e registros imagéticos, o enunciado segundo o qual a masculinidade homossexual está vinculada aos comportamentos efeminados circula de modo mais explícito em alguns artigos redigidos na seção Confidências, nos anúncios publicados em Encontro gay, assim como, nos cartuns do concurso Dê o ar de sua guei-graça. Sendo assim, as discussões que serão tecidas ao longo das próximas páginas estarão baseadas, especialmente, nas análises realizadas a partir dessas seções. Mesmo correndo o risco de tornar-me repetitivo, cabe ressaltar que a revista é portadora de outros enunciados que não foram analisados nessa pesquisa. 58 Além disso, a fim de melhor explorar determinadas imagens – fotografias e cartuns – exibidas pela revista, me detive em algumas contribuições foucaultianas.10 Embora Foucault não tenha se dedicado à elaboração sistemática de uma teoria da imagem, ele formulou questões pertinentes no que diz respeito ao exercício de análise das imagens. Para o autor, tais análises jamais podem ser empreendidas como um mero exercício de significação, e muito menos como uma tranquila descrição. Isso porque “a relação da linguagem com a pintura [isto é, com a imagem] é uma relação infinita. Não que a fala [a palavra] seja imperfeita e, diante do visível, se encontre em um déficit que ela em vão se esforçaria para superar”. É que “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não está jamais no que se diz” (FOUCAULT, 2001a, p. 201-202). Como as interpretações e as significações são inesgotáveis, as imagens tornam-se irredutíveis a elas. E isso “por resistência da própria imagem, que desdobra os ditos que se fazem sobre ela, [...] em novos ditos, que por sua vez não darão conta, por mais que se esforcem, em abarcá-la por completo” (MARCELLO, 2008, p. 143). Encontramo-nos diante da incompatibilidade entre imagem e linguagem, entre o visível e o dito, entre “as palavras e as coisas”... Há uma “ausência de lugar-comum que possa sustentá-las” (FOUCAULT, 2001c, p. 258). Mas é exatamente na “região incerta e brumosa” existente entre “os signos da escrita e as linhas da imagem” que “estranhas relações se estabelecem, intrusões se produzem, bruscas invasões destrutivas, avalanchas de imagens no meio das palavras, fulgores verbais que sulcam os desenhos e os fazem voar em estilhaços” (FOUCAULT, 2001c, p. 257). Inexiste, portanto, uma “imagem original/essencial” a ser desvelada, ou seja, não há imagens pré-discursivas. Ao contrário, elas se constituem juntamente com os discursos e são produzidas pelo ato de ver/escrever inerentes às nossas análises. Nessa explicação, a imagem não diz respeito ao que é da ordem da representação, pois ela não representa um determinado objeto, visto que ela é o próprio objeto. Talvez ao apostar no potencial da 10 É importante ressaltar, como já referido anteriormente, que a análise das imagens que integram o conteúdo de Rose não constituiu o foco investigativo dessa pesquisa. 59 imagem como um pensamento não representacional, seja possível explorar as não relações que as imagens estabelecem entre si, investindo nas disjunções de seu conjunto. Entretanto, “como reaprender não simplesmente a decifrar ou a alterar as imagens que nos são impostas, mas a fabricá-las de todas as maneiras?” (FOUCAULT, 2001b, p. 349). Como, então, explorar aquilo que Fabiana Marcello denomina em sua tese de lâminas de sentido que constituem as imagens? Parece que uma saída para essas indagações consista em trabalhar com a imagem enquanto um acontecimento. Acontecimento compreendido como “uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário [ou imagem] retomado e voltado contra seus utilizadores” (FOUCAULT, 2008b, p. 28). Dessa maneira, não existe “a” imagem tomada como soberana e passiva diante de um mundo de significações. Antes disso, devemos pensar a imagem, conforme nos sugere Foucault, como sempre sendo portadora de outras imagens. Como “funda de imagens”, como “foco para miríades de imagens em jorro”, como “lugar de nascimento das imagens...” (FOUCAULT, 2001b, p. 352-353). Logo, o que interessa é “o acontecimento que ocorreu, e que continua incessantemente a ocorrer sobre a imagem, pelo próprio fato da imagem” (FOUCAULT, 2001b, p. 351) e não o que ela supostamente representa, ou a busca de algo que se esconde atrás dela. Seguindo esse raciocínio, a função das imagens não é captar algo, fossilizar um momento, uma escrita, mas sim abrir passagem para outras imagens. “Ao contrário do absolutismo da imagem, nela se concentra a sua própria pluralidade, sua capacidade de fazer-se múltipla e, ao mesmo tempo indivisível” (MARCELLO, 2008, p. 147). Nessa perspectiva, a imagem deve “suscitar um acontecimento que transmita e magnifique outro, que se combine com ele e produza, para todos aqueles que vierem olhá-lo e para cada olhar singular pousado sobre ele, uma série ilimitada de novas passagens” (FOUCAULT, 2001b, p. 352). Enfim, “a função da pintura não é afirmar”... (FOUCAULT, 2001c, p. 263). 60 *** Conosco você não precisa tomar banho de gesso ou passar gumex nas suas plumas. [...] Ao entrar em nosso escritório já se sente no ambiente aquele ar alegre e descontraído do nosso mundo, que pode não ser cor de rosa, mas pega bem um lilás Saint Laurent. (Rose, n. 30/1980, p. 5) A pequena nota da primeira agência de turismo gay a oferecer seus serviços no Brasil, publicada na seção Retalhos da edição n. 30 da segunda quinzena de outubro de 1980, dá as cores da imagem criada por Rose, ao longo de seus exemplares, sobre o “mundo guei”. Nesse mundo, “que pode não ser cor de rosa, mas pega bem um lilás Saint Laurent”, a masculinidade homossexual é fortemente associada aos atributos que culturalmente definimos como próprios do gênero feminino, ou seja, a comportamentos, na maior parte das vezes, caricaturalmente efeminados. Ao lilás Yves Saint Laurent, são acrescidas plumas, paetês, roupas justas, corpos longilíneos, rostos maquiados, penteados elaborados, passividade sexual... elementos que corroboram a caracterização da figura do homossexual masculino. No texto premiado pelo concurso permanente de Contos eróticos em janeiro de 1982 (Rose, n. 60), que será transcrito na sequência, o personagem principal exibe vários traços femininos. 61 Luana, a bicha que me amou O Destino me privilegiou. Dos olhos verdes, herança germânica paterna, à pele cor de cuia de minha mãe, e a meu físico. O desempenho precoce na natação, futebol e halterofilismo, conferiu-me tórax forte, membros grossos e cintura fina. Com minha academia de cultura física e no desempenho como modelo de moda masculina, ganhava dinheiro, o que me livrava do assédio de mulheres ricas, de meia-idade, com presentes caros e promessas de subsistência, como se faz a um gigolô ou a um animal doméstico. Parceria sexual não me faltava. Descobri sensações em sexo grupal e em ménage à trois com duas mulheres, em desempenhos sadios, sem álcool, fumo, etc. É minha filosofia: o sexo pelo próprio sexo! E nessas variações, conheci uma meiga bichinha que alterou o contexto de minha biografia. Pele de veludo, corpo grácil, nádegas femininas. De alma, uma mistura de meiguice, compreensão, entusiasmo e contagiante energia na ânsia de viver. Passei a amá-la, compreendê-la, admirá-la em sua transcendente homossexualidade e em sua ternura sem passividade. Adorava-me, com o carinho de beijos e lambidas íntimas, que passei a depender de sua língua ágil, quente e penetrante. Pela sua cor negra e origem africana remota, inventei-lhe apelido que lembrasse antigas possessões de suas raízes. Misturando Luanda, Moçambique, Angola e Uganda, rebatizei-a de LUANA. Um dia, Luana emprega-se em distante cidade do norte do País. Tempos sem notícias, reminiscências saudosas e o calendário se adentrando em muitos meses. Numa noite inesperada, ao fim do expediente do ginásio, ao nível de fadiga, batem à porta. Abri-a: Luana, Luana, surgida das nuvens ou do fundo do mar! Diferente, felina, rápida, tão mais que eu estava exausto, levoume à lassidão e à inconsciência, com sua língua, quente, úmida e viscosa, que saía de dentro de minhas orelhas para a profundidade das nádegas. Abandonei-me em relax, em posição iogue de estrela do mar, com a boca aberta, babando o travesseiro. Compreendi tarde que a situação se invertera. Luana, sobre mim, me aprisionava; seu pênis, como um galho de jacarandá com um botão de rosa vermelha na ponta, duro e lubrificado, me penetrou. Uma dor distante, um alargamento como se um pássaro dentro de mim abrisse as asas, um preenchimento como se eu fosse uma gruta marinha e ele, o oceano. A penetração foi ao máximo; senti os seus pentelhos mal raspados fincando-me o ânus, e aconteceu: coriscos elétricos percorreram-me o corpo, dormência em torno da boca, luzes e clarões e um ruído sem descrição. Estendi os braços, elevei as nádegas como para que sugar toda Luana e, com a mais 62 violenta das ereções, ejaculei, gritando, gritando sem orientação e autodomínio, em sensação desorientada de tempo. Afrouxei-me da pele aos nervos, e o único ruído era o de meu coração sobre o colchão. Luana, ainda que pese sua fragilidade, ergueu-me pela cintura, levou-me para às duchas do ginásio, e a água fria trouxe-me à realidade. Em meio ao torpor dos músculos, ficou uma sensação de vazio no ânus adentro. Luana partiu. Este episódio ficou na memória. Sempre me coubera a iniciativa e o papel de ativo. E desta vez foi diferente, com uma sensação profunda e indelével. Não repeti o ato com mais ninguém, com o receio de destruir aquela recordação tão grata e presente. Tem me servido de estímulo. Quando faço amor com uma mulher e quero o melhor dos desempenhos, recordo do fato. Como um amuleto, uma pedra de toque, minha excitação aumenta, minha ereção é máxima e sob meu controle, estendendo-me pelo tempo que desejo. Superei o tabu do machismo e o preconceito do super-homem. E nas vezes frequentes que recordo o fato, envio para o astral uma mensagem e ela, a Luana, a bicha que me amou. (Rose, n. 60/1982, p. 28-29) A própria estrutura gramatical empregada pelo autor desse conto – Elso Salerno dos Santos, gaúcho de Rio Grande – para designar o protagonista da trama é pontuada sobre o gênero feminino,11 a começar pelo seu nome: Luana. Há, portanto, o emprego de verbos seguidos de pronomes femininos (amá-la, compreendê-la, admirá-la,...), assim como, de substantivos, adjetivos e artigos do mesmo gênero (uma meiga bichinha, felina, a bicha, ela...). No entanto, essa aproximação da personagem à feminilidade não se restringe a construção gramatical utilizada no decorrer do texto. A ilustração em preto e branco que acompanha o conto possibilita ao leitor observar alguns dos traços femininos de Luana. Nessa imagem, há um homem negro deitado de bruços, pairando sobre o ar, já que não se vê onde está deitado. Essa figura, também deixa transparecer a “pele de veludo, corpo grácil, [e] nádegas A fim de evitar qualquer equívoco, esclareço que estou aqui me referindo a um tipo específico de gênero gramatical (ou seja, ao gênero feminino), e não ao viés teórico dos Estudos de Gênero sobre o qual essa dissertação está pautada, e que será discutido com maior propriedade em outros momentos do texto. 11 63 femininas” que remetem à “meiguice, ternura, e fragilidade” desse homem que havia encantado o narrador da estória. Seu corpo contrasta com o desse último, que devido “o desempenho precoce na natação, futebol e halterofilismo, [possuía um] tórax forte, membros grossos e cintura fina” – perfil corporal nada diferente dos que vemos circular nos espaços sociais contemporâneos.12 Rose, n. 60/1982, p. 28-29 Essa narrativa também discorre sobre a relação sexual ocorrida entre os dois homens que compõem a trama. Após um período sem ver a “meiga bichinha”, pontuado por “reminiscências saudosas”, numa noite inesperada o homem masculinizado que agora compartilha com o leitor sua aventura amorosa é surpreendido por ela. “Luana, Luana, surgida das nuvens ou do fundo do mar! Diferente, felina, rápida, tão mais que eu estava exausto, levoume à lassidão e à inconsciência, com sua língua quente, úmida e viscosa, que saía de dentro de minhas orelhas para a profundidade das nádegas”. Não é próprio apenas dessa narrativa, sendo recorrente, também, em outros registros literários e/ou históricos, o fato de que a mulher – ou o sujeito identificado ao gênero feminino, nesse caso, o homem efeminado – ser Deixo claro que ao tecer essa comparação entre a constituição corporal desse personagem com os corpos masculinos contemporâneos, não pretendo estabelecer qualquer noção de origem que pudesse explicar o surgimento dessa estética corporal naquele momento histórico. Antes disso, é possível perceber a recorrência e inteligibilidade desse modelo corporal masculino que é constituído, dentre outros aspectos, pela força física. Todavia, essa discussão será esboçada de maneira mais detalhada ainda neste capítulo. 12 64 responsabilizada/culpabilizada pela indução a práticas sexuais lascivas. Já no período medieval, para ficar apenas num único exemplo, os fableaux, ou os manuais de confissão estão repletos de imagens de mulheres luxuriosas que ora são vistas como anjos, ora são tidas como demônios. Essa atribuição de significados específicos para a feminilidade remete ao fato “que os sujeitos se fazem homem e mulher num processo continuado, dinâmico [...] construído através de práticas sociais masculinizantes e feminilizantes” (LOURO, 1995, p. 103). Além disso, chama a atenção a consideração realizada pelo locutor da estória de que havia compreendido tarde que a “situação se invertera”. Essa inversão é uma clara alusão à posição sexual ocupada por ele e seu parceiro durante o ato sexual. Contrariando uma suposta lógica, segundo a qual a passividade sexual deveria ser desempenhada pelo homem mais efeminado da relação, uma vez que ela seria uma “característica inata”13 ao gênero feminino, é Luana quem exercita o papel de ativo. “Luana sobre mim, me aprisionava; seu pênis, como um galho de jacarandá com um botão de rosa vermelha na ponta, duro e lubrificado, me penetrou”. Episódio, esse, que segundo o narrador, havia ficado na lembrança e servia de estímulo quando mantinha relações sexuais com mulheres. Conforme o enredo dessa história um homem másculo não precisa deixar de ser viril para ser penetrado, e o fato de ter sido penetrado não fere sua virilidade, uma vez que ele permanece mantendo relações sexuais com mulheres. E nada impede que um homem efeminado atue como agente ativo na relação sexual. Delicadeza, traços meigos e carinhosos, pele suave, passividade sexual, frágil composição corporal, sensibilidade... esses e outros aspectos são empregados na cultura ocidental para definir o gênero feminino. Mas a que estamos nos referindo quando falamos em gênero? A que perspectiva de análise, a que compreensão teórica? 13 Ao recorrer a esse sinal gráfico (as aspas) nessa expressão, pretendo suspender tal noção, e indicar que se trata de uma construção histórica, pautada em relações de saber-poder. 65 De acordo com as abordagens feministas pós-estruturalistas, o conceito de gênero inclui as diferentes formas de construção social, cultural e linguística implicadas com os processos que diferem homens e mulheres, incluindo aqueles que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade. Assim, seu emprego “põe a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas ele não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade” (SCOTT, 1995, p. 76). O corpo, nessa vertente teórica, não é concebido como uma entidade biológica universal, apresentada como origem das diferenças entre homens e mulheres, ou como superfície sobre a qual a cultura opera para produzir desigualdades. Ele é teorizado como construto sociocultural e linguístico, produto e efeito de relações de poder. Daí a importância atribuída à linguagem enquanto locus de produção das relações que a cultura estabelece entre corpo, sujeito, conhecimento e poder. Mesmo que o gênero apresente um caráter histórico, linguístico e cultural, ele também se constrói a partir de corpos que são nomeados e reconhecidos, a partir de então, como corpos dotados de uma sexualidade. Não há uma rejeição da materialidade do corpo. Antes disso, ocorre um redirecionamento do enfoque analítico, que passa a contemplar os processos e relações segundo os quais sua biologia é tomada como causa e explicação de diferenciações e posicionamentos sociais. De acordo com Judith Butler (2007), o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado em um sexo previamente dado, mas ele deve designar também o aparato, mesmo, de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Essa autora assinala a impossibilidade da existência de um corpo ou um “sexo” passivo à espera de um construto cultural de gênero que vai dar significado às diferenças sexuais. “O ‘sexo’ é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o ‘alguém’ 66 simplesmente se torna ‘viável’, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural” (BUTLER, 2007, p. 155). O gênero é compreendido, portanto, como “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos”, e como “um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Ao distanciar-nos de abordagens que operam restritamente sobre a noção de papéis e funções de homens e mulheres, o conceito de gênero possibilita-nos considerar que as próprias instituições, as normas, os conhecimentos, os símbolos, as leis e políticas de uma sociedade são constituídos e atravessados por pressupostos do masculino e feminino, isto é, por relações generificadas. Dessa maneira, há em curso um processo de educação e socialização dos sujeitos que nos leva a compreender o gênero como “uma categoria imersa nas instituições sociais – o que implica admitir que a justiça, a escola, a igreja, etc. são ‘generificadas’, ou seja, expressam as relações sociais de gênero” (LOURO, 1995, p. 103). Além disso, a pluralidade dos processos pelos quais a cultura produz e diferencia corpos e sujeitos masculinos e femininos, faz com que a categoria de gênero esteja articulada a outros marcadores sociais como etnia, sexualidade, classe, geração, nacionalidade, religião, nível de escolaridade etc. Seguindo o mesmo viés argumentativo segundo o qual a masculinidade homossexual é marcada por comportamentos efeminados, a revista edita no número 65, de abril de 1982, um artigo que buscava esclarecer algumas das razões explicativas para a manifestação desses trejeitos efeminados. Partindo do pressuposto de que há uma série de fatores que determinam o modelo feminino assumido pelos homossexuais, o texto publicado na seção Confidências recorre à autoridade do discurso científico, sobretudo, psicanalítico, para afirmar que: 67 Na fase do complexo de Édipo, a criança normalmente rejeita a figura do pai, o modelo paternal, assumindo a figura da mãe. Um pai ausente ou agressivo pode constituir um forte agravante desse quadro. A mãe mal-amada e possessiva elimina essa figura do pai – fatores que passam para a criança, desde os primeiros anos de vida. A psicanálise tem como certo que este é um dos fatores predominantes. (Rose, n. 65/1982, p. 30) Além desse fator, de acordo com a revista, assumir o modelo feminino também significa para o homossexual uma espécie de resposta a um ambiente repressivo. Entenda-se aqui por ambiente repressivo não apenas a presença de uma figura paterna hostil, como, também, o forte sentimento de posse exercido pela mãe sobre seu filho. Seria, portanto, esse amor excessivo, revelador de uma grande demanda afetiva materna, o responsável pelo estabelecimento de um forte vínculo entre mãe e filho, criando “um cordão umbilical que é muito mais forte no homossexual que no hetero”. Esse aspecto culminaria com a anulação do modelo paternal e, consequentemente, do padrão masculino. Dessa maneira, haveria o estabelecimento de certa diferenciação entre o [...] homossexual que se aceita mais por completo, assumindo uma postura natural (muitas vezes um pouco contida [...]) –, passa por aquele que, mesmo efeminado, não se considera como tal, e vai ao que “assume” uma posição extrema, uma espécie de caricatura do chamado modelo feminino. Em todos, enfatize-se, é condição comum considerarse “tão efeminado quanto este ou aquele”. (Rose, n. 51/1981, p. 39) 68 As proposições da revista insistem no fato de que existiria um “homossexual natural”, ou seja, um homem gay que não apresentaria afetações, trejeitos efeminados. Logo, um indivíduo discreto e masculinizado. Nesse sentido, a presença em corpos masculinos de comportamentos socialmente considerados adequados para mulheres é visto como uma espécie “desvirtuamento moral”, quando não uma patologia passível de intervenção médica. Desde que esses homens efeminados compreendessem que tais manifestações refletem uma fixação na figura da mãe, e uma consequente negação da figura o pai, eles poderiam ser “curados” pela psicanálise. Ao que parece somente um movimento de aproximação da figura paterna esboçado por esses sujeitos os tornaria “naturalmente” viris e discretos, e viáveis enquanto homossexuais. O preconceito de que são vítimas os homossexuais efeminados é pontuado na edição 65 (abril de 1982). No mesmo artigo da seção Confidências comentado acima, é argumentado que tais homens estariam sujeitos não apenas às hostilidades dos heterossexuais, como também sofriam com a rejeição e o desprezo por parte dos próprios homossexuais. A abjeção a esses comportamentos é evidente nas seguintes falas dispostas no início do artigo: “Sou homossexual, tenho 24 anos, mas sou muito discreto; não ando rebolando pelas ruas e não tenho trejeitos femininos”; “Desde que assumi esta vida, foi com todo prazer, mas também com toda discrição. Eu não sou daqueles que, quando conversam com as pessoas, desmunhecam. Eu sei conversar com todo respeito, sem que possa constranger ou envergonhar as pessoas que me rodeiam” (Rose, n. 65/1982, p. 30). Como é possível notar, a forte censura aos aspectos femininos é acompanhada pela exaltação da discrição, aspecto que parece estar estreitamente vinculado à vivência de uma masculinidade homossexual legítima. O fato de que “uma grande maioria dos homossexuais não consegue conter, dominar ou mudar esse quadro de seu comportamento efeminado” (Rose, n. 65/1982, p. 31), não torna menos legítima, para a publicação, a luta contra o preconceito. “Exige-se complacência e compreensão, o que pode ser traduzido numa aceitação clara das pessoas como elas são” (Rose, n. 65/1982, 69 p. 31). De qualquer modo, a postura combativa adotada por Rose diante do preconceito não exclui seu posicionamento mais ponderado, segundo o qual as pessoas do convívio social desses homossexuais não deveriam ser agredidas por “um comportamento que foge à sua compreensão” (Rose, n. 65/1982, p. 31). Enfatizando, dessa maneira, a necessidade de haver um respeito mútuo entre aqueles que manifestam trejeitos efeminados e as pessoas que não os apresentam. Ainda sobre o preconceito contra os homossexuais efeminados, o leitor que escreve a seção Confidências em setembro de 1981, edição número 51, é enfático em sua rejeição às condutas manifestadas por esses homens. “Quando vejo um homossexual desses bem afeminados, eu fico com raiva dele, pois isso complica ainda mais a classe da gente. [...] Acho que não há necessidade de sair por aí todo pintado estilo mulher, para chamar a atenção; acho isso ridículo” (Rose, n. 51/1981, p. 38). Esse leitor, assim como outros que escrevem a revista, procura de todo modo se afastar dessa forma específica de masculinidade homossexual, na qual ser gay compreenderia necessariamente partilhar de códigos típicos do gênero feminino. “Não tenho muitos trejeitos, mas às vezes, sem ao menos esperar, esses trejeitos se manifestam e as pessoas que estão por perto me olham desconfiadas e com olhar de desprezo” (Rose, n. 51/1981, p. 38). O que a fala desse leitor revela, portanto, é, antes de tudo, o temor de ser identificado a um sujeito homossexual, ou melhor, a uma bicha efeminada. Como percebemos, é recorrente a presença do modelo heteronormativo, ou seja, de um ideal erótico construído sobre uma lógica heterossexista que estrutura a classificação dos sujeitos segundo a sexualidade com base em uma hierarquia de gênero. De acordo com esse sistema classificatório, são distinguidos homens socialmente masculinos e que desempenham o papel de ativos no ato sexual, isto é, aqueles que penetram mulheres; daqueles homens efeminados que se deixam penetrar, ou seja, que exercem o papel tipicamente feminino da passividade sexual. “Assim, na lógica desse modelo, a hierarquia de gênero, articulada a partir da oposição masculinidade/atividade sexual 70 versus feminilidade/passividade sexual, englobaria de forma sistemática todas as categorias e identidade sexuais” (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p. 54). A distinção hierárquica entre homens ativos (identificados ao gênero masculino) e homens passivos (vinculados ao gênero feminino) é acompanhada nas páginas de Rose por um processo de censura latente da passividade sexual. O temor manifestado por muitos leitores em serem identificados como homossexuais, é aguçado ainda mais pela probabilidade de serem identificados como aquele que é penetrado por outro homem. E de acordo com a revista “é justamente pelo temor dessa classificação que, na maioria dos casos, o parceiro deixa de praticar variações que também o satisfazem ou, no mínimo, satisfazem ao homo-amante” (Rose, n. 55/1981, p. 30). A teorização a respeito da homossexualidade formulada pelo médico carioca Pires de Almeida, cuja breve passagem encontra-se no texto de Peter Fry (1982), é elucidativa de como o discurso elaborado sob o signo da ciência articula as distinções entre os gêneros com a passividade/atividade sexual, reforçando, assim, a concepção de que homens ativos eram masculinizados, enquanto aqueles que exerciam o papel passivo na relação sexual apresentavam traços efeminados. O indivíduo que se entrega à pederastia deve, em geral, ser considerado um degenerado; [...] porque o instinto sexual não o impele, como nos casos normais, para o sexo oposto, mas para o a que ele pertence. [...] Há, porém, um modo de ser diverso, que distingue um do outro [pederasta ativo do passivo]; embora suas excitações sejam produzidas pelas mesmas cenas, contudo suas inclinações, suas aptidões sexuais são inteiramente diversas. O pederasta ativo, embora ele seja indiferente às exibições femininas, que por elas passam como os quadros mais insignificantes da natureza, o alvo é chegar a qualquer ato sexual por contato com outro homem. Não perdeu, pois, as características do seu sexo, apenas desviou-as para aplicações contrárias às leis da natureza. No pederasta passivo, porém, embora essas mesmas causas despertem em maior escala as apetências venéreas, ele como que perdeu as qualidades do seu sexo: seus gestos, suas tendências, seus ademanes são todos os do sexo feminino. (Pires de Almeida apud FRY, 1982, p. 97, grifos de Peter Fry) 71 De acordo com um leitor que escreve a seção Confidências relatando que não se satisfaz sexualmente sendo apenas passivo ou somente ativo, “a coisa mais difícil é encontrar um parceiro sem tabus, que faça de tudo, que encare a realidade de que se ele é atraído por outro homem, é porque ele também é um homossexual, e deveria aproveitar tudo que o parceiro pode oferecer, e não ser egoísta” (Rose, n. 55/1981, p. 30). A postura mais liberal expressa por esse leitor contrasta com a de outro homem que procura alguém discreto para amar. Ele diz que: “não sou guei e nunca seria um guei passivo, não tenho preconceitos, apesar de sentir nojo de algumas ‘bichas’. [...] Já tive duas experiências homossexuais no ativo e passivo, ao mesmo tempo, e confesso que da primeira vez gostei, mas na segunda, senti nojo de mim mesmo” (Rose, n. 50/1981, p. 38). Para a revista, “nessa preferência pela posição de ‘ativo’, o parceiro do homossexual geralmente revela a faceta do machismo, que é característica forte do comportamento brasileiro. Num relacionamento consciente e adulto (no sentido de maturidade), há muito tempo deixou de importar a posição ativo ou passivo. [...] Quando se vai com um homossexual para a cama, procura-se desfrutar de todo prazer oferecido por todas as variações” (Rose, n. 73/1982, p. 31). Sobre essa questão, o antropólogo Peter Fry (1982) argumentou que em nosso país o desejo e o comportamento homossexual estiveram orientados, entre as décadas de 1960/1980, a partir de dois modelos sexuais. O primeiro deles incorporaria, em certa medida, os princípios hierarquizantes do gênero, dividindo os homossexuais em ativos e passivos, sendo que apenas esses últimos eram considerados homossexuais de fato. Nesse modelo hierárquico, a categoria bicha é definida em relação à categoria homem (ou bofe), de acordo com a conduta social e sexual. Dessa maneira, o homem (bofe) penetra, e assume uma postura masculina, ao passo que, a bicha é penetrada e tende a reproduzir comportamentos do gênero feminino. De acordo com Júlio Simões e Regina Facchini, a recorrência do modelo hierárquico pode ser observada em outros períodos históricos. 72 Isso é sugerido, por exemplo, por pesquisas históricas como as do antropólogo Luiz Mott sobre as confissões e denúncias de sodomia feitas durante a visitação do Santo Ofício, na Bahia e em Pernambuco, no final do século XVI e começo do século XVII. Nesses processos, termos como “agente” e “paciente” designam o desempenho sexual de “penetrador” e “penetrado”, não apenas em referências às relações homossexuais. Distinções similares de “ativos” e “passivos” já constavam em cancioneiros medievais que manifestavam praticantes do coito anal. Recuando ainda mais no tempo, podemos encontrá-las nas grandes civilizações da Antiguidade, nas cidades gregas e em Roma, onde o cidadão adulto que mantivesse relações homossexuais na condição de passivo era vilipendiado porque demonstrava falta de virilidade, um grave defeito moral e político. (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p. 55- 57) Já, o modelo igualitário apoia-se no dualismo hetero/homo, havendo uma mobilidade no que diz respeito ao gênero e a atividade/passividade sexual. Assim, ao invés de bichas e bofes, elaboram-se novas categorias de identidade sexual, tais como entendido, homossexual, gay. O termo “entendido” já circulava [no Brasil] desde pelo menos a segunda metade dos anos 1940 para designar amplamente homossexuais e lugares frequentados por homossexuais de forma mais genérica e polida, sem a carga depreciativa de “veado” ou “bicha”. O termo parece se popularizar ao longo dos anos 1960. [...] No final da década, passa a circular também com acepção semelhante ao termo “gay”. Ele já figurava nas matérias da grande imprensa que tratavam da homossexualidade nesse período, com referência à sua ampla utilização nos Estados Unidos. (SIMÕES & FACCHINI, 2009, p. 71) Tais categorias são formuladas a partir do reconhecimento da importância da orientação do desejo – e não mais dos papéis sociais relativos a masculino/feminino, nem da atividade/passividade sexual – para nomear os parceiros de uma relação homossexual. De qualquer modo, como esclarece Fry (1982), em diversos contextos da sociedade brasileira contemporânea esses dois modelos convivem e competem entre si. Parece ficar claro que as categorias que criam as identidades sexuais não são universais, mas efeitos histórico-culturais produzidos pela linguagem 73 perpassada por relações de poder-saber. De qualquer forma, esses processos de categorização acabam culminando com a produção de rótulos, quando não de aprisionamentos identitários que reduzem todos os aspectos da vida do sujeito a um único elemento. A sexualidade, por exemplo, “constituiu-se na cultura ocidental uma das dimensões centrais da identidade social das pessoas”, e transformou-se no “lócus privilegiado da verdade do sujeito” (HEILBORN, 1996, p. 137-138). Nesse viés, de acordo com Jurandir Freire Costa (1992), resistir a terminologias como homossexualidade, homossexualismo, e homossexual, implica em resistir também à carga negativa com que a ciência e a cultura vêm sobrecarregando tais termos. Parece-me interessante explanar aqui as principais razões ético-teóricas que levaram esse autor a optar pelo termo homoerotismo. São elas: 1. Homoerotismo é uma noção mais flexível e que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same-sex oriented. [...] interpretar a ideia de ‘homossexualidade’ como uma essência, uma estrutura ou denominador sexual comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer num grande erro etnocêntrico. Penso que a noção de homoerotismo tem a vantagem de tentar afastar-se tanto quanto possível desse engano. Primeiro, porque exclui toda e qualquer alusão à doença, desvio, anormalidade, perversão etc., que acabaram por fazer parte do sentido da palavra ‘homossexual’. Segundo, porque nega a ideia de que exista algo como ‘uma substância homossexual’ orgânica ou psíquica comum a todos os homens com tendências homoeróticas. Terceiro, enfim, porque o termo não possui a forma substantiva que indica identidade, como no caso do ‘homossexualismo’ de onde derivou o substantivo ‘homossexual’. [...] 2. A palavra ‘homossexual’ está excessivamente comprometida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista de onde surgiu. O ‘homossexual’, como tento mostrar, foi uma personagem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista. Sempre que a palavra é usada, evoca-se, querendo ou não, o contexto da crença preconceituosa que até hoje faz parecer natural dividir os homens em ‘homossexuais’ e ‘heterossexuais’. [...] 3. Creio [...] que continuar empregando o termo ‘homossexual’ como sinônimo de denominador sexual comum a todas as possibilidades de atração homoerótica é um equívoco. Como também julgo equivocado afirmar a existência de uma tendência natural de uma minoria de homens a ser, sempre e em qualquer circunstância, exemplar de uma ‘mesma variação natural de homossexualismo’. Em meu entender continuar perpetuando tal crença significa manter o sistema de nominação criado para fazer do homoerotismo a contrapartida rebaixada e degradada da sexualidade heteroerótica. (COSTA, 1992, p. 21-22, 23-24, 35) 74 Todas essas considerações ajudam a explicar porque Rose, mesmo editada em um período recuado dos dias de hoje, já compartilhava alguns valores que circulam atualmente no mundo gay. O desconforto quanto ao emprego de rótulos para definir os homens gays, constitui a temática de uma missiva enviada a Confidências de Rose: Acho errado o indivíduo gostar de outro do mesmo sexo e por isso ser tachado de homossexual. Pior ainda quando chamam de “fresco”, “veado”, “bicha”, “pederasta”, etc. Existe, sim, o relacionamento homossexual. A espécie é macho (dois homens) ou fêmea (duas mulheres). Nada de indivíduo homossexual, porque quando ele prefere só o sexo oposto, ninguém o rotula de heterossexual, nem se explora esse termo, dizendo: “Lá vai o heterossexual”... [...] Francamente não entendo esta rotulagem de ATIVO! Na minha concepção, ambos [os parceiros] praticam atos ou relacionamentos homossexuais. (Rose, n. 73/1982, p. 30) Algumas questões podem ser problematizadas a partir da escrita desse homem. A constatação de que ninguém rotula a heterossexualidade – sequer “explora esse termo, dizendo: ‘Lá vai o heterossexual’” – demonstra a invisibilidade da norma que nomeia os corpos e distingue as identidades. “A norma não precisa dizer de si, ela é a identidade suposta, presumida; isso a torna, de algum modo, praticamente invisível” (LOURO, 2000, p. 68). E é precisamente essa invisibilidade, esse silenciamento, uma ausência de fala que parece assegurar sua força e existência. “Será, pois, a identidade que foge à norma, que se torna marcada. Como tal, ela é, via de regra, representada não apenas por comparação à identidade hegemônica, mas a partir do olhar hegemônico” (LOURO, 2000, p. 68). Por certo que qualquer empreendimento que aspira decifrar e delimitar os contornos específicos de uma identidade homossexual corre o risco de cair 75 nas armadilhas da norma. Até mesmo “o discurso político e teórico que produz a representação ‘positiva’ da homossexualidade também exerce, é claro, um efeito regulador e disciplinador” (LOURO, 2008a, p. 33). E “ao afirmar uma posição de sujeito, supõe, necessariamente, o estabelecimento de seus contornos, seus limites, suas possibilidades e restrições” (LOURO, 2008a, p. 33). Sendo assim, antes de identificar os traços psicológicos e as “máscaras” visíveis do homossexual, é preciso conceber a homossexualidade “enquanto força criativa” (FOUCAULT, 2009b), atentando para as relações que podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, e moduladas a partir dela. “Longe de se fechar na identidade de um sexo, a homossexualidade deve-se abrir a uma perda de identidade” (DELEUZE, 2006, p. 360). Nessa direção, não se trata mais absolutamente para o homossexual de se fazer reconhecer e de se colocar como sujeito provido de direitos [...]. Trata-se, para o novo homossexual, de exigir ser assim, para enfim dizer: ninguém o é, isto não existe. Vocês nos chamam de homossexuais, de acordo, mas nós já estamos alhures. Não há mais sujeito homossexual, mas produções homossexuais de desejo e de agenciamentos homossexuais produtores de enunciados que enxameiam por toda parte, [...] o desejo homossexual é específico, há enunciados homossexuais, mas a homossexualidade é nada, é tãosomente uma palavra, e, no entanto, levemos a palavra a sério, passemos necessariamente por ela para que restitua tudo o que ela contém de alteridade – e que não é o inconsciente da psicanálise, mas a progressão de um devir sexual por vir. (DELEUZE, 2006, 360362) A revista, por sua vez, parece mostrar-se sensível com essa problemática, isto é, a proposição de rótulos a respeito das práticas homossexuais. É o que sugere a seguinte argumentação tecida em um de seus artigos: 76 Estudiosos como psiquiatra Martin Hoffman [...] afirmam que não existe a homossexualidade. Existe, sim, o comportamento homossexual, a preferência (definitiva ou assumida, assim como transitória ou acidental) no relacionamento sexual com pessoas do mesmo sexo. A definição homossexual não tem sentido pejorativo. Talvez o nome não seja adequado – como nenhum tem sido até hoje – mas precisamos de um termo qualquer para designar essa forma de ‘relacionamento sexual não convencional’ – como preferem alguns escritores, como Délcio Monteiro, autor de “Comportamento Sexual Brasileiro”. Mas, convenhamos, qualquer título encontrado já se tornaria irremediavelmente um novo rótulo. Como, por exemplo, o inadequado “gay” – termo norte-americano, do inglês, que significa “alegre”. [...] Dada a escala Kinsey, o leitor poderá avaliar melhor a inutilidade dos rótulos. Mas, como tudo nesse mundo, a preferência homossexual não pode escapar à classificação. Deve-se entendê-la como meramente classificatória, para fins de designação, sem qualquer preconceito, restrição, limitação ou parcialidade. (Rose, n. 73/1982, p. 31) No entanto, essa preocupação com as categorizações, não impede que Rose proponha, no decorrer de suas páginas, um modelo homossexual viável pautado na rejeição imprescindível dos comportamentos efeminados partilhados por alguns homens. O sucesso, portanto, desse modelo que é produzido e legitimado pela revista, será assegurado pela exaltação da discrição investida a partir de então como símbolo de masculinidade. De acordo com essa lógica, a masculinidade homossexual digna de visibilidade e aceitação social está materializada na figura do homem discreto. A presença de traços característicos da feminilidade parece ser politicamente incorreta nesses homens e, como já percebemos, tais trejeitos são transformados em indicadores de uma suposta patologia. Como mostram os anúncios publicados em Encontro gay é necessário não apenas ser, mas também, desejar parceiros discretos. 77 “Se você está a fim de curtir uma amizade ou algo mais, c/ um gay passivo, assumido e discreto, escreva-me. Tenho 1,80m, 80kg, cab. e olhos cast., procura guei ativo.” (L. P. Lopes – R. Guarama, 427 – Rio de Janeiro/RJ/CEP 21510) (Rose, n. 51/1981, p. 41) “Carioca, mor.-claro, 20 anos, 1,65 m/58 kg, olhos e cab. cast., sincero, amoroso, com grande admiração por guei discreto. Sou romântico e solitário, sem destino; quero ser adotado por uma pessoa que me faça feliz. Foto na 1ª. Carta.” (Orlando Silva – Ladeira dos Tabajaras, 162 – 602 – Copacabana – Rio de Janeiro/RJ/CEP22031) (Rose, n. 60/1982, p. 40) “Jovem arquiteto, corpo e rosto bonito, 1,85, inteligente, sem afetação ou frescura homossexual. Procuro um cara ativo, sem limite de idade, de preferência com pelos por todo o corpo; não precisa ser bonito, basta que não tenha características femininas. Se possível, foto e fone na 1ª carta.” (Ricardo – Cx. Postal 071012 – Brasília/DF/CEP 70000) (Rose, n. 65/1982, p. 40) “Discreto, 34 anos, branco, 1,60m, form. Superior; deseja corresp. c/jovens de 18 a 28 anos, que sejam assumidos sem deixarem de ser viris.” (Roberto – Av. Duque de Caxias, 186 – apto. 209 – São Paulo/SP/CEP 01219) (Rose, n. 65/1982, p. 41) “Rapaz solitário, sensível e discreto, guei não declarado que mantém segredo, boa aparência, corpo gostoso, 1,76m/74kg, 33 anos, branco, nível sup., simples e sem vícios, desejo contatar com jovens homossexuais ativos e passivos, ambos os sexos, que tenham propensão íntima, e entendidos, mas que sejam discretos e não efeminados, p/troca de ideias, uma amizade verdadeira, encontros e, talvez, muito mais. Peço foto na 1ª carta, a qual será devolvida e respondida.” (Victor – Cx. Postal 442 – Centro – Juiz de Fora/MG/CEP 36100) (Rose, n. 73/1982, p. 41) “Univ., 22 anos, mor.-claro, olhos verdes, cab, cast.-encaracolados, 1,70m/59kg, deseja corresp. c/entendidos discretos e que não tenham pinta de guei, de até 25 anos, p/ amizade ou compromisso; troca de fotos na 1ª. carta.” (Carvalho Netto – QNN 24 – conj. “K” – casa 39 – Guariroba – Taguatinga/DF/CEP 72000) (Rose, n. 74/1982, p. 42) 78 Esses homens ao descreverem suas características e preferências, delimitam o perfil do parceiro ideal, seja para uma amizade estimulada muitas vezes pela troca de “nus masculinos”, como aparece em vários anúncios, ou para possíveis contatos íntimos sinalizados pela expressão “algo mais”. Os atributos físicos valorizados estão próximos da estética corporal proposta pela revista como modelo para os homossexuais e que será discutida na sequência. Portanto, a predileção é por homens brancos, magros e geralmente jovens; poucos manifestam seu interesse por homens “com pelos por todo o corpo” (Rose, n. 65/1982, p. 40). No entanto, a leitura detalhada dos inúmeros perfis publicados (que aqui me limito a reproduzir apenas alguns) indica que a beleza física está relegada a um segundo plano. A característica imprescindível e extremamente valorizada é a discrição, nesse caso compreendida, sobretudo, como a ausência de traços femininos. Assim, “não precisa ser bonito, basta que não tenha características femininas” (Rose, n. 65/1982, p. 40). Seja gay...mas não se esqueça de ser discreto, segundo a revista nos indica, essa é a condição fundamental para que os homens gays assegurem sua inteligibilidade social, para que seus corpos sejam viáveis não apenas na cultura, mas principalmente no espaço de trocas de parcerias afetivas e sexuais. Portanto, é compreensível que se busque por homens “entendidos discretos e que não tenham pinta de guei” (Rose, n. 74/1982, p. 42), isto é, que apresentem uma conduta corporal e um comportamento social masculinizado. O desejo de corresponder-se com “entendidos, mas que sejam discretos e não efeminados” (Rose, n. 73/1982, p. 41) revela o demérito dos trejeitos efeminados materializados nos corpos de alguns homossexuais. A “grande admiração por guei discreto” (Rose, n. 60/1982, p. 40), também sinaliza que a ideia de discrição convive muito bem com a ideia de segredo. Tal articulação fica evidente na fala do “[r]apaz solitário, sensível e discreto, guei não declarado que mantém segredo” e que quer contatar com “entendidos, mas que sejam discretos e não efeminados, p/troca de ideias, uma amizade verdadeira, encontros e, talvez, muito mais” (Rose, n. 73/1982, p. 41). De qualquer modo, parece não haver maiores problemas no fato de que o homem tenha assumido sua preferência em se relacionar com outros homens, 79 desde, é claro, que mantenha discrição. Homens “assumidos sem deixarem de ser viris” (Rose, n. 65/1982, p. 41) são desejados por aqueles que publicam seus anúncios em Encontro gay. E aqui a virilidade não está apenas vinculada à atividade sexual, mas, sobretudo, a uma conduta masculinizada. Nesses pequenos “classificados pessoais” não há o estabelecimento de uma hierarquia valorativa entre aqueles que são ativos ou passivos nas relações sexuais, como é possível observar em outros momentos na revista. A figura do “gay passivo, assumido e discreto” (Rose, n. 51/1981, p. 41) é legítima na medida em que ele seja discreto, portanto, masculinizado. De fato, o que torna viável a existência desses sujeitos é a ausência de “afetação ou frescura homossexual” (Rose, n. 65/1982, p. 40). A estigmatização dos homens efeminados prossegue nas caricaturas do concurso Dê o ar de sua guei-graça. Mesmo que essa pesquisa não tenha a pretensão de empreender uma investigação das imagens existentes em Rose – tais como: fotografias de homens nus, histórias em quadrinho, ilustrações de contos eróticos, e cartuns – debruçar-me-ei, ainda que brevemente, sobre alguns dos cartuns desse concurso a fim de explorar a recorrência do enunciado segundo o qual homens gays seriam necessariamente efeminados. Elaborados a nanquim, esses desenhos eram enviados de acordo com as orientações do concurso, para “Grafipar – Revista Rose, Concurso Permanente de Humor Guei, Caixa Postal nº. 1716, Curitiba, CEP 80000, Paraná”. O espaço era destinado à participação tanto de humoristas profissionais, quanto de amadores, e premiava com a quantia de Cr$ 1.000,00 o cartun selecionado para publicação. Entretanto, os critérios adotados para tal seleção não são referenciados pela revista. É recorrente, nessas imagens, a exibição de corpos masculinos caricaturalmente efeminados. A constituição andrógena desses corpos revela silhuetas magras, cabelos arrumados de forma bastante elaborada, faces carregadas por traços fortes de maquiagem, uso de pulseiras, brincos, cintos e sapatos de salto alto. Por vezes, na ambientação desses cartuns, as formas delgadas deixadas à mostra pelo uso de roupas justas, decotadas, ou pela 80 ausência de vestuários na parte superior do tronco, contrasta com a figura de homens corpulentos e fortes, cuja expressão facial em nada lembra a delicadeza dos primeiros. Algumas noções sobre a homossexualidade, bastante corriqueiras no senso comum, são retomadas por esses desenhos. A ideia segundo a qual os homens gays levariam uma vida dupla, reservando a manifestação de suas preferências afetivo-sexuais e trejeitos efeminados nas vivências noturnas, é materializada na imagem editada no exemplar número 74 (agosto de 1982). Nela, vemos uma sequência onde o homem recatado, vestido sobriamente e se portando de forma masculina durante o dia, transforma-se à noite em uma “bicha pintosa” – para usar uma expressão da época. A caracterização do homossexual masculino a partir de uma disforia de gênero, ou seja, uma alma feminina em um corpo masculino – no caso dos cartuns, nem tão masculino – aparece na edição número 61 (fevereiro de 1982), na qual um homossexual responde ao insulto “bicha nojenta”, com a seguinte afirmação: “Ó!!! Bicha não!... Sou uma ‘mulher com problemas’, viu?...”. Já as imagens das edições 60 (janeiro de 1982) e 65 (abril de 1982) insinuam que o sujeito homossexual é tomado como um objeto sexual. Em ambas as situações eles supostamente sugerem a outro homem a prática de relações sexuais. Rose, n. 74/1982, p. 40 Rose, n. 61/1982, p. 32 81 Rose, n. 65/1982, p. 32 Rose, n. 60/1982, p. 32 O quadro composto pelos traços efeminados desses homens é coroado pela suposição de sua passividade sexual. Sobre esse aspecto em particular, os registros elaborados pelas imagens do concurso são bastante elucidativos. É inegável a criatividade dos responsáveis pela criação dos cartuns. Em um deles vemos um homem vestindo blazer, camisa, gravata borboleta e cartola, sem qualquer roupa da cintura para baixo, correndo atrás de uma espécie de batuta, ou vara de mágico, e proferindo: “Vem cá varinha vamos fazer uma mágica” (Rose, n. 55/1981, p. 32). Em outros desenhos, há a associação, por parte dos homossexuais, de alguns objetos a falos eretos. Sem fugir ao perfil corporal descrito anteriormente, temos a presença na edição 59 (janeiro de 1982) de um homem que contemplativamente observa um hidrante e imagina ser um pênis. Nem mesmo a figura clássica do rei das selvas escapa ao humor dos quadrinhos. Enquanto Tarzan, com sua musculatura corporal definida, aparece voando entre cipós, pensa estar segurando num grande pênis que pende de uma árvore. O desejo pelo pênis ereto transforma-se literalmente em objeto de consumo na gravura do número 77 (outubro de 1982). Parados diante da vitrine de uma loja de artigos eróticos – fartamente composta por pênis artificiais de variados tamanhos, espessuras e cores – dois homens bastante efeminados comentam sobre os artigos expostos. Um deles diz: “Ai, ai! Olha só aquele vermelhinho ali! Me dá até um arrepioinho no (censurado)!”, ao que seu interlocutor responde: “E é quase tão grande quanto o do Ricardão” (Rose, n. 77/1982, p. 40). Essa edição marca o fim do concurso Dê o ar de sua 82 guei-graça, que, como outras seções e concursos da revista, é extinto sem qualquer explicação por parte dos editores. Rose, n. 55/1981, p. 32 Rose, n. 59/1982, p. 32 Rose, n. 73/1982, p. 32 Rose, n. 77/1982, p. 40 O deboche dessas caricaturas ao acentuar os trejeitos efeminados dos homens gays, elege-os como comportamentos que devem ser combatidos pelo projeto de produção de uma masculinidade homossexual legítima. Nesse sentido, a consolidação desse projeto será obtida a partir dos ensinamentos operacionalizados pela revista, cuja principal lição insiste que o homossexual dever ser o mais discreto possível. Ele deve se aproximar ao máximo do modelo de gênero masculino, o que implica partilhar de alguns códigos de masculinidade – virilidade, atividade sexual e, sobretudo, aparência física e conduta social discretas. Estaríamos, portanto, diante de pedagogias do gênero e da sexualidade que, ao colocar em ação tecnologias de governo, resultam na elaboração de 83 “tecnologias de autodisciplinamento e autogoverno que os sujeitos exercem sobre si mesmos” (LOURO, 2007, p. 25). Havendo, dessa maneira, “um investimento continuado e produtivo dos próprios sujeitos na determinação de suas formas de ser ou ‘jeitos de viver’ sua sexualidade e seu gênero” (LOURO, 2007, p. 25-26). É assim que no decorrer de nossas vidas, a partir de distintas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres em um processo que está longe de ser linear, progressivo ou harmônico e que jamais está finalizado ou completo. O que revela uma intrínseca articulação entre gênero e educação, uma vez que “educar engloba um complexo de forças e de processos [...] no interior dos quais indivíduos são transformados em – e aprendem a se reconhecer como – homens e mulheres” (MEYER, 2008, p. 17), no contexto cultural a que pertencem. No engendramento dessas práticas e estratégias pedagógico-culturais, o corpo torna-se objeto de preocupação, o foco privilegiado de relações de saber-poder. É sobre ele que uma série de investimentos irá incidir a fim de vigiá-lo, controlá-lo, modelá-lo, corrigi-lo... Processos que visam construir corpos ajustados, sobretudo, às normas de gênero e sexuais de uma determinada sociedade. Como salienta Louro (2003), marcam-se os corpos social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas, expressivas, sutis ou violentas, que podem ser infligidas pelo próprio sujeito ou pelo grupo social. Seja de quem for a iniciativa, é indispensável reconhecer que essa “marcação” tem efeitos. Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz referências que “fazem sentido” no interior da cultura e que definem (pelo menos momentaneamente) quem é o sujeito. Tal marcação é: cotidiana; supõe investimento, intervenção. Processos que se fazem ao longo da existência de cada sujeito, de forma continuada e permanente. Processos que estão articulados aos inúmeros discursos que circulam numa sociedade e que podem ser compreendidos como pedagogias voltadas à produção dos corpos. Essas pedagogias são, usualmente, reiterativas das normas regulatórias de uma cultura: suas normas de gênero e sexuais, em especial. Elas não são, contudo, sempre convergentes ou homogêneas. Os sujeitos são alvo de pedagogias distintas, discordantes, por vezes contraditórias. Tudo isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomar os corpos como estáveis e definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como naturais. (LOURO, 2003, versão on-line) 84 Nessa direção, a revista ao estar implicada com a produção de uma masculinidade homossexual discreta, propõe aos seus leitores uma estética corporal bastante específica, reveladora de uma conduta homossexual masculinizada. Na tentativa de caracterizar essa estética corporal apresentada pela revista, analiso algumas das fotografias de homens nus que estão editadas nos pôsteres de Rose e no concurso O homem do princípio ao fim. Inicialmente, os pôsteres de Rose ocupavam as quatro páginas centrais da revista, onde eram editadas três fotos, uma vez que o pôster central possuía o dobro da extensão das demais imagens. No entanto, a partir da edição 50 (agosto de 1981), essa seção de fotos coloridas passa a ocupar oito páginas da revista que, segundo lemos em alguns de seus editoriais, é pioneira no país na publicação de nus masculinos. Os leitores dispostos a ali figurar como modelos, deveriam enviar à redação da revista no mínimo dez slides nas poses que lhes aprouvessem e com excelente técnica fotográfica, os quais seriam avaliados pelos responsáveis pela edição das imagens. A revista esclarece, ainda, que “se modelos e qualidades dos slides [fossem] aproveitados, [seriam publicados], remunerando, inclusive, à altura, modelaços & fotógrafos. Importante: fotos coloridas, em papel, não permitem reprodução na revista e, portanto, não serão sequer examinadas” (Rose, n. 50/1981, p. 42). No exemplar número 5 de julho de 1979, observamos a fotografia de um homem confortavelmente sentado em uma long chaise. Carlos – nome que acompanha a imagem – é magro, branco, de aparência jovem, olhos pretos e cabelos alongados, e possui o corpo coberto por pelos. Escondendo seu pênis há um aparelho de telefone. Virando a página encontramos um pôster horizontal (p. 20-21) que apresenta dois modelos dispostos, um de costas para o outro. Um deles possui pele branca, olhos e cabelos castanhos claros, e ao que podemos ver, alguns pelos no peito, axilas, pernas e púbis. O outro modelo é um homem negro de cabelos e olhos escuros, com o corpo completamente liso, isto é, sem pelos. Ambos, embora estejam nus, foram fotografados sobre ângulos que preservam a exposição de seus órgãos genitais. 85 Rose, n. 5/1979, p. 19 Rose, n. 5/1979, p. 20-21 Uma retrospectiva das imagens dos melhores modelos publicadas no decorrer do primeiro ano de circulação de Rose foi realizada nas páginas centrais da edição 16 (março de 1980). No sentido horário da parte superior/esquerda para a inferior/direita da página visualizamos os seguintes modelos: Célio (Rose 2/1979) fotografado de corpo inteiro em uma praia deserta, cabelos pretos, sem pelos e, embora esteja nu, o ângulo em que a fotografia foi tirada não permite ver seu pênis, já que sua perna direita encontra-se levemente flexionada; Gil (Rose 3/1979) também é fotografado de corpo inteiro nu, diante dos primeiros degraus de uma escada, preservando assim a imagem da genitália deste moço aloirado de olhos claros e completamente sem pelos; Rogério (Rose 6/1979) encontra-se deitado com os braços flexionados e as mãos na cabeça, possui cabelos com corte mais despojado, longos e escuros, assim como seus olhos, pouquíssimos pelos e usa apenas uma cueca bastante transparente; Cláudio (Rose 6/1979) está à beira mar dentro de um bote inflável, o que permite ver apenas partes de suas penas, braços, colo e rosto desse modelo loiro; e por fim Leonardo (Rose 2/1979) também nu com um livro aberto na frente do pênis, esse homem moreno e com poucos pelos encontra-se deitado, ao que parece, em um sofá. 86 Rose, n. 16/1980, p. 20-21 Em outubro de 1980 Rose publica, em seu exemplar de número 30, as fotos de um jovem de 18 anos.14 O garoto sorridente é moreno claro, magro, e tem cabelos cacheados e olhos escuros. O corpo completamente sem pelos desse rapaz de tenra idade pode ser observado em uma das três imagens do ensaio, onde ele aparece todo ensaboado, com uma das mãos posicionadas atrás da cabeça, e outra segurando o pênis. Após a extinção da censura prévia em 1979, a exibição de nus frontais é fartamente explorada pela revista que não é econômica ao mostrar os órgãos genitais de seus modelos, mesmo assim, raramente eles aparecem eretos. O rapaz que aparece sentado junto ao chão na quadragésima quinta edição de Rose (junho de 1981) mostra toda a nudez de seu corpo. Essa imagem revela as feições bastante jovens de um homem branco, magro, cabelos alongados, e de corpo quase sem pelos, que fita com olhar sério os/as leitores/as que o apreciam. O ângulo dessa fotografia privilegia, portanto, apenas partes específicas do corpo do modelo, isto é, seus pênis, peitoral e rosto. A recorrência desse ângulo está presente em várias imagens que aparecem ao longo da revista, como é possível ver no ensaio de comemoração do segundo 14 A idade do rapaz está impressa em uma das fotos publicadas. 87 ano de sua circulação em agosto de 1981, edição 50. Nele vemos o corpo branco com poucos pelos de um jovem de cabelos cacheados e loiros. A fina silhueta desse modelo que fixa seu olhar para frente é fotografada diante de um tecido amarelo, estando ele sentado com os braços e pernas levemente afastados. Rose, n. 30/1980, p. 22 Rose, n. 45/1981, p. 22 Rose, n. 50/1981, p. 22-23 A partir da edição 50, ocorre uma melhoria no tratamento dispensado às imagens coloridas que são publicadas nos pôsteres de Rose. Desde então, os modelos são fotografados em um estúdio, em cujo cenário estavam dispostas peças de tecido, ora com cores vibrantes, ora com cores sóbrias. Há também uma preocupação com a luminosidade, foco e ângulo dos corpos masculinos, que se encontram inteiramente despidos. O cenário da fotografia exibida em janeiro de 1982 (edição 60) exemplifica essa mudança. Nele, o vermelho dos tecidos e das almofadas contrasta com o corpo ligeiramente bronzeado do menino de 19 anos15 que aparece deitado. Nessa imagem podemos ver seus cabelos e olhos negros, seu corpo delgado e quase sem pelos e, tatuadas em seu braço esquerdo, duas raquetes cruzadas. O contraste gerado pela ambientação do cenário e a alvura da pele do modelo, também é verificado nos pôsteres publicados no último exemplar da revista de que disponho (edição 81 15 No editorial dessa edição encontramos referência ao nome e idade desse rapaz: “Anderson, (doce) colírio [...], tem 19 anos” (Editorial de Rose, n. 60/1982, p. 3). 88 de fevereiro de 1983).16 O rapaz loiro de olhos verdes exibe a musculatura trabalhada de seu peitoral e braços. Em ambos os pôsteres, ele esta deitado, levemente inclinado para frente, com pernas a braços abertos. A contração de seu abdômen proporcionada por essa posição faz com que seus músculos fiquem ainda mais definidos. Rose, n. 60/1982, p. 24 Rose, n. 81/1983, p. 24-25 Chama atenção a imagem do jovem fotografado na edição 76 de setembro de 1982. Nela, o ânus do modelo aparece inteiramente exposto, região do corpo masculino que havia sido preservada nas fotos precedentes. Por mais que aparições das nádegas dos modelos tenham-se tornado recorrentes devido aos pedidos frequentes das/dos leitoras/leitores, apenas aqui o ânus masculino aparece frontalmente, uma vez que o rapaz esta sentado com as pernas abertas e ligeiramente inclinadas em direção de seu peito. Outra imagem que contrasta com as demais, é editada no exemplar 78 (novembro de 1982). Um homem de pele alva e sem pelos aparece vestindo apenas um calção branco arrematado com listras vermelhas do interior do qual salta seu pênis ereto. Mais uma vez podemos visualizar corpos masculinos magros, brancos, sem pelos e extremamente jovens. Como os três pôsteres em que aparece a imagem desse modelo são praticamente iguais, me limito a reproduzir apenas um deles. 16 89 Rose, n. 76/1982, p. 28 Rose, n. 78/1982, p. 21 As imagens exibidas no concurso O homem do princípio ao fim, não diferem muito dessas apresentadas nos pôsteres de Rose. Há uma constância nos ângulos fotográficos, assim como nas poses e perfis corporais dos modelos. As fotografias coloridas dos vencedores desse concurso – que integravam as duas páginas iniciais e as duas páginas finais da revista – são lançadas em agosto de 1982 na edição 74. Os leitores interessados em participar dele deveriam encaminhar para a redação da revista um lote contendo 12 slides coloridos com suas fotos, acompanhado de autorização (a exemplo do concurso Rose e Eles), e fotocópia de seus documentos (identidade e CPF) e do fotógrafo. Os participantes concorriam ao prêmio de 20 mil cruzeiros, sendo 10 mil para o fotógrafo e 10 mil para o modelo. Estreando essa nova seção, há um homem negro de corpo magro e sem pelos, cabelos curtos e pretos.17 Esse jovem, cuja face está inclinada para o lado, aparece sentado diante de um tecido mostarda, com o peitoral sutilmente contraído para frente. Outra vez, é possível observar um homem muito jovem, magro, pele branca, corpo liso. É Paolo, o modelo fotografado na edição 76 (setembro de 1982), que aparece sentado com as pernas afastadas e os braços estendidos para traz na altura da cintura, apoiando seu tronco. Aliás, De acordo com as edições que disponho, esse é o segundo homem negro cuja imagem é publica em Rose. O primeiro é o modelo que aparece no pôster central do quinto exemplar da revista. 17 90 esse corpo não difere muito daquele apresentado no exemplar 81 (fevereiro de 1983), no qual há um garoto bastante jovem e de silhueta longilínea, e cabelos alongados. Rose, n. 74/1982, p. 1 Rose, n. 76/1982, p. 1 Rose, n. 81/1983, p. 1 Portanto, a descrição dessas imagens permite inferir que há uma forte semelhança entre os corpos masculinos exibidos em Rose. Com raras exceções, são homens com tonalidade de pele clara, cuja aparência física é bastante jovem. A valorização de elementos que remetem à juventude está expressa na ausência de barba e bigode, no corte despojado dos cabelos alongados e na rigidez da musculatura corporal. Todos os modelos fotografados são magros, sendo que alguns possuem a musculatura levemente trabalhada. Ainda que não estejamos diante daquilo que, na cultura contemporânea, denominamos de homens sarados, a constituição física desses jovens distancia-se, e muito, de formas flácidas e arredondadas provocadas pela gordura. Também é possível perceber que gradualmente ocorre um desaparecimento dos pelos corporais. As fotografias de homens densamente peludos publicadas nas primeiras edições – preferência manifesta pelas diversas cartas de leitores/as encaminhadas à redação da revista solicitando a exibição de corpos masculinos peludos, ou pelo descontentamento daqueles homens que não possuíam pelos, compartilhado em seções como Confidências – cedem espaço à exibição de corpos quase 91 sem pelos, se não fosse a presença daqueles distribuídos na região pubiana e nas axilas. Há, também, uma repetição das poses em que esses homens são fotografados. Na maior parte das vezes, estão sentados com o peitoral contraído para frente, braços distendidos para traz apoiando o tronco, ou cruzados atrás da cabeça. Possuem um olhar sóbrio, sério, frequentemente direcionado para mira das lentes do fotógrafo, como se estivessem olhando diretamente para os/as leitores/as que contemplam seus corpos nus. Raramente algum deles esboça um sorriso. O ângulo dessas fotografias permanece centrado no pênis, abdômen, peitoral e rosto do modelo. De qualquer modo, não estamos diante de poses lascivas, mesmo nas pouquíssimas vezes em que os membros sexuais estão eretos. A exibição da parte dorsal desses corpos é preservada. As poucas imagens em que os modelos estão de bruços (seja deitados ou em pé), expondo suas nádegas, contrastam com uma verdadeira inflação imagética de falos. A exibição dessa estética corporal bastante específica está articulada, portanto, ao conjunto de atributos que definem o modelo legítimo de existência homossexual. Entretanto, esses corpos ao mesmo tempo que fornecem um padrão estético a ser seguido pelos homossexuais, possivelmente também constituem o objeto de desejo sexual desses homens. Nesse processo de adequação às normas do gênero masculino, que é acompanhado intrinsecamente pela abjeção dos corpos e comportamentos efeminados, há a intenção de produzir um homem gay essencialmente masculinizado e discreto. E é justamente a consolidação desse projeto que irá assegurar a inteligibilidade social desses sujeitos. 92 Novos (des)caminhos “De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?” Michel Foucault A noção de uma escrita em movimento sempre me pareceu promissora. Afinal nossos escritos jamais estarão finalizados, e se assim forem concebidos correm o sério risco de se tornarem massas exauridas de vida... A força criativa da escrita está em suscitar indagações, incertezas; em promover aberturas, fissuras, desassossegos; em nos levar a criticar os pressupostos tidos como irrefutáveis. E parece que essa mesma força criativa também atravessa o ato da pesquisa que ao invés de encerrar proposições, torna-se potente na medida em que mobiliza outras possibilidades acerca daquilo que é escrito. Foi a partir dessa força criativa da escrita, dessa potência do ato da pesquisa que busquei trilhar os caminhos que aqui foram apresentados. Portanto, o percurso de pesquisa desenvolvido apontou para uma dentre outras interpretações possíveis a cerca da produção das masculinidades homossexuais na revista Rose. De qualquer maneira, a revista aqui tomada como fonte histórica não pode ser reduzida às análises empreendidas nessa pesquisa, uma vez que ela é portadora de outros significados, de outras pedagogias do gênero e da sexualidade que não foram por mim problematizados. Além do enunciado investigado, outros enunciados circulam nas páginas de Rose, indicando a riqueza desse material de pesquisa que contribuiu com o movimento de visibilidade homossexual em curso no contexto histórico-cultural da sociedade brasileira entre os anos de 1970 e 1980. 93 A proposição inicial em analisar o enunciado segundo o qual a masculinidade homossexual é de diversas maneiras articulada aos comportamentos efeminados, revelou que a abjeção a tais comportamentos é elemento fundamental no processo de construção de um homem gay marcadamente masculinizado. Ao colocar em ação uma série de investimentos que visam ensinar aos homens condutas homossexuais adequadas, a revista Rose estabelece um modelo legítimo de vivência e experimentação da masculinidade homossexual. De acordo com esse modelo, tais sujeitos devem partilhar de alguns códigos específicos do gênero masculino, como a virilidade, atividade sexual e, sobretudo, aparência física e conduta social discretas. Portanto, a discrição – enquanto signo de masculinidade – parece assegurar a inteligibilidade social desses homens, “autorizando” sua própria existência. Desse modo, seus corpos tornam-se viáveis não apenas na cultura, mas, sobretudo, no espaço de trocas de parcerias afetivas e sexuais. Nesse sentido, o conjunto de pedagogias do gênero e da sexualidade operacionalizado pela revista tem continuidade na apresentação de uma estética corporal bastante específica, como foi possível observar nas fotografias editadas nos pôsteres de Rose e pelo concurso O homem do princípio ao fim. Uma espécie de estreitamento das imagens corporais é visível nas poses bem comportadas, portanto, nada lascivas, em que os modelos são fotografados. Os homens que ali figuravam eram, em sua grande maioria, bastante jovens, brancos, magros e com poucos pelos distribuídos ao longo de seus corpos. Raramente algum deles esboçava um sorriso. O pênis, o abdômen, o peitoral, e o rosto desses modelos eram privilegiados pelas lentes dos fotógrafos. E contrastando com uma inflação imagética de falos, a exibição da parte dorsal desses corpos é preservada. Arrisco a mencionar que esses corpos apresentam algumas semelhanças com aqueles exibidos contemporaneamente em revistas destinadas ao público gay. A musculatura levemente trabalhada dos modelos de Rose talvez já prenunciasse o modelo de homens sarados que circula não apenas nesses magazines, como também em distintos espaços sociais. O desaparecimento dos pelos representaria um gradual processo de higienização desses corpos que devem sempre aparentar 94 jovialidade. Homens negros ainda são pouco cotados para pousar nos ensaios fotográficos dessas revistas, e quando ali aparecem, reproduzem esse perfil do homem definido e liso. No entanto, tanto hoje como nas décadas de 1970 e 1980, esses corpos ao mesmo tempo em que fornecem um padrão estético a ser seguido pelos homossexuais, também constituem o objeto de desejo sexual da maioria desses homens. Duplo desejo: em parecer corporalmente com eles, e usufruir deles para seu prazer. Provavelmente esse processo de normalização do homem gay proposto pela revista Rose, esteja articulado à lógica das sociedades de controle. Segundo Deleuze (2008), estamos vivendo na sociedade de controle. Ela não investe mais nos confinamentos grupais de indivíduos, como sua predecessora, mas no controle insularizado, móvel e reincidente sobre os sujeitos; ela não trata mais de apenas esquadrinhar e docilizar os corpos, cerceando qualquer explosão de energia – corpórea ou subjetiva –, mas trabalha no sentido de intensificar, estimular e modular constantemente a utilidade da vida. A sociedade disciplinar disciplinava indivíduos (como diz a palavra, “aqueles que não podem ser divididos ou divisíveis”); a sociedade de controle controla os divíduos (“aqueles que são partidos em si mesmos”, mas que são sozinhos do resto como se fossem ilhas). Em suma, é uma sociedade que investe em relações de poder que majoram e capilarizam sua penetração nas vidas, nas subjetividades, nos eus dos (in)divíduos como forma de governo. O que se vê deslizando de uma sociedade para outra, o que se vê ganhando novas formas e novos conteúdos é exatamente a maneira com que as relações de poder são exercidas: não um poder que mais frequentemente interdita ou proíbe, não um poder que mais comumente diz ‘não’ e que impede. Nas sociedades de controle, mais do que em nenhuma outra, as relações de poder “possuem, lá onde atuam, um papel diretamente produtor” (FOUCAULT, 2007, p. 104). Ou seja, as relações de poder são agora de estímulo, incitação, positividade, produção, energia: majoração do poder é, no nosso caso, majoração do controle. No entanto, parece que a relação da revista com a noção de homossexual viril é um tanto quanto ambígua e está sujeita a tensões. Nela 95 também há espaços que nos falam de um gay efeminado, mais do que de um sujeito viril. É possível observar inúmeras brincadeiras com a linguagem típica do meio gay das “pintosas”, com o estereótipo magricela e frágil das “bichinhas efeminadas” de roupas coladas ao corpo, além das fofocas desse mundo “lilás Yves Saint Laurent”. Mesmo que reservado ao riso, ao deboche, à caricatura, o efeminado tem um lugar em suas páginas. E muitas vezes é ele que provoca o riso dos leitores. Há momentos em que a revista brinca com isso, se diverte, mostra pessoas assim, para logo definir como padrão aceitável a virilidade, a discrição, na esteira do que vemos hoje plenamente constituído. Tensões a parte, Rose estabelece uma conexão positiva entre visibilidade homossexual, e gays discretos e viris. Mas “afinal, apenas os homossexuais viris, discretos e bem comportados merecem o paraíso?” (CARRARA, 2010). Resta ainda uma última indagação... Que outros caminhos investigativos poderiam ter sido trilhados por essa pesquisa? Que outras questões poderiam ter sido por mim problematizadas? Na esteira das discussões que aqui não foram desenvolvidas encontram-se as motivações que ocasionaram o fim da publicação de Rose. Há uma grande escassez de informações sobre a revista. No início dessa pesquisa em março de 2009 realizei uma pesquisa em sites de busca da internet por seu nome ou variações que remetessem a ela, e como resultado apenas indicações de dois exemplares (que já compunham a coleção que dispunha) para venda num sebo do Rio de Janeiro. Em outubro desse mesmo ano a revista gay Lado A, em seu vigésimo oitavo exemplar publicou na Seção História, uma breve matéria de duas páginas intitulada “Rose – A Primeira Revista Gay do Brasil”. As poucas informações existentes no artigo não se equiparavam àquelas que eu já possuía a partir da leitura dos 56 exemplares que tinha em mãos. As pessoas a quem mencionava sobre meu objeto de estudo, eram tomadas pela surpresa da existência da revista que desconheciam completamente. Assim não foi possível definir a data que essa publicação deixa de circular no mercado editorial brasileiro. Seria interessante, também, mostrar em que medida Rose se diferencia e/ou se aproxima das chamadas revistas femininas publicadas na época. Em que detalhes de suas escolhas de seções, tipos de ilustração, diagramação, 96 dentre outros elementos, ela se afirma claramente como destinada àquele público específico, ou seja, homens gays. Seria igualmente relevante estabelecer uma relação dela com outras revistas prioritariamente destinadas ao público masculino heterossexual, como a Playboy que já existia nessa época.18 Enfim, analisar esse material considerando a força de determinadas formas de se produzir revistas de informação e entretenimento de que tratam de temas da sexualidade para diferentes públicos. E o que há no interior desse corpus discursivo de dissenso, de desviante, de diferente? Talvez aqui se encontre a potência para outras possibilidades investigativas por mim sequer imaginadas... 18 Agradeço a professora Rosa Maria Bueno Fischer que gentilmente formulou essas sugestões durante a qualificação de minha proposta de dissertação. 97 Referências bibliográficas AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (19681978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência. Bauru: EDUSC, 1999. BOSING, Walter. A obra de pintura – Hieronymus Bosch. Entre o Céu e o Inferno. 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