Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Doutorado em Poéticas Visuais ZONAS DE CONTATO: ressonâncias da natureza no infraordinário Mariana Silva da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Doutorado em Poéticas Visuais ZONAS DE CONTATO: ressonâncias da natureza no infraordinário Mariana Silva da Silva Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2018 CIP - Catalogação na Publicação Da Silva, Mariana Silva Zonas de Contato: ressonâncias da natureza no infraordinario / Mariana Silva Da Silva. -- 2018. 293 f. Orientador: Hélio Custódio Fervenza. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Programa de PósGraduação em Artes Visuais, Porto Alegre, BR-RS, 2018. 1. Arte Contemporânea . 2. Zonas de Contato. 3. Infraordinário. 4. Natureza. 5. Cultura. I. Fervenza, Hélio Custódio, orient. II. Título. Elaborada pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da UFRGS com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Artes Visuais, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ZONAS DE CONTATO: ressonâncias da natureza no infraordinário Doutoranda: Mariana Silva da Silva Orientador: Prof. Dr. Hélio Custódio Fervenza (UFRGS) Mariana Silva da Silva ZONAS DE CONTATO: ressonâncias da natureza no infraordinário Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Artes Visuais, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Hélio Custódio Fervenza (UFRGS) Aprovado em _____ de _________ 2018. ___________________________________________________ Banca Examinadora: Prof. Dr. Eduardo Ferreira Veras (UFRGS) _______________________________________________________ Profa. Dra. Helene Gomes Sacco (UFPEL) _______________________________________________________ Profa. Dra. Maria Ivone dos Santos (UFRGS) _______________________________________________________ Profa. Dra. Fabiana Feronha Wielewicki (Doutora em Arte e Design Faculdade de Belas Artes - Universidade do Porto) AGRADECIMENTOS Uma tese não se faz sozinha, meus agradecimentos aos que me acompanharam neste percurso: A meu querido orientador, Hélio Fervenza, há vinte anos me orientando com inteligência, paciência e delicadeza necessárias (e às longas conversas regadas a café e livros também): muito obrigada. Aos professores da banca de defesa de tese, Eduardo Veras, Fabiana Wielewicki, Helene Sacco e Maria Ivone dos Santos, por sua gentileza e leitura atenta, pelas divagações e indicações que vão muito além da tese: muito obrigada. Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seus professores e funcionários dedicados e a meus colegas da turma de doutorado: muito obrigada. Às valiosas universidades públicas, Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), minha casa, que tão bem me acolhe e me apoiou com uma licença de um ano para este doutorado, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em que estudo desde a Escolinha de Artes, passando pela graduação, mestrado e, agora, doutorado: muito obrigada pela educação pública de qualidade. À CAPES - Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, pela bolsa concedida, pela possibilidade de realizar o estágio na França e pela oportunidade de aprofundar meus estudos: obrigada pelo apoio à pesquisa brasileira. À Université de Picardie Jules Verne, em Amiens, França, especialmente ao professor Éric Valette, por me receber para o estágio de Doutorado Sanduíche: muito obrigada. Aos meus colegas, parceiros, amigos, Carmen Capra, Igor Simões e Mariane Rotter, sempre comigo, dando força, dando tempo para escrever, dando tempo para estudar, pelas trocas, pelos trajetos pela BR, pelas risadas, pelas brigas, pelas alegrias, pela leveza, pelo carinho, nos momentos fáceis e nos difíceis: muito obrigada. Aos professores, alunos e funcionários da Uergs, especialmente da Unidade de Montenegro, por sua dedicação, perseverança e luta: muito obrigada. Aos meus queridos alunos de ontem, hoje e amanhã, por me ensinarem tanto e compartilharem tanto, não só na arte como na vida: muito obrigada. Às outrora alunas e parceiras de pesquisa, Andreia Salvadori e Tatiane dos Passos, pela cumplicidade no início da investigação pelo Caí: muito obrigada. A Nina Piccoli, pela participação no trabalho Um Lugar: Nina: muito obrigada. A Luísa Kiefer pela disponibilidade, por permitir que eu me aventurasse pelo Atelier das Pedras: muito obrigada. A Quiti Dias pela gentileza em produzir a ficha catalográfica de Como desenhar pedras: muito obrigada. A todos que vestiram e ainda vestem as camisetas azuis: muito obrigada. Aos artistas e autores aqui pesquisados, pelo encantamento da descoberta: muito obrigada. À família: A Bia Lopes, minha mãe, por seu apoio desmedido, pela leitura da tese, por viajar comigo na viagem da vida e da arte, da educação e da leitura, da culinária e do café, por seu amor e incentivo em todas as horas e em todo lugar: muito obrigada. Ao meu pai, Renato Pinto (in memoriam), pelo amor aos livros e aos filmes, às livrarias, às bibliotecas e ao cinema, por me ensinar a cultivar a leitura e a escrita: muito obrigada. Ao tio Jorge Lopes por tantos carretos e ajudas nas exposições: muito obrigada. Ao Vini e a Dani, pelo transporte das obras: muito obrigada. A Glaucis de Morais, encantadora de gatos e jardineira de sacada, artista, professora, e cozinheira, pelo design primoroso da tese e de todos os projetos, pelas leituras e escutas atenciosas. Pelo companheirismo, pela dedicação desmedida, pelas viagens, pelas invenções, pela arte, pela vida: muito obrigada. Para Glau e a natureza lá de casa, Bento, Ivy, Lola, Rocco e Zazie. RESUMO A presente pesquisa de Doutorado em Artes Visuais, ênfase em Poéticas Visuais, articula-se a questões geradas por minha prática artística recente. As cidades mostram-se um terreno fértil para a investigação artística, mais especificamente, o espaço do infraordinário, termo cunhado por Georges Perec que se torna central nesta investigação. No espaço das banalidades diárias, a ideia de natureza brota como uma inadvertida ocorrência, construindo espaços denominados zonas de contato: espaços do cotidiano em que ressoa a natureza, em que se pode experimentar acontecimentos momentâneos, tomando posições fluídas articuladas ao redor de dispositivos artísticos específicos, que atuam como veículos. O campo de atuação circunscreve-se a partir dos rios Guaíba e Caí, nas cidades de Porto Alegre e Montenegro, que disparam análises da imagem do rio como margem entre a natureza e a cultura, uma natureza dos interstícios, que atravessa a cidade: rios, terrenos baldios, mato que não é jardim. Paul-Armand Gette e Roni Horn são alguns dos artistas estudados que escapam ao conceito de intervenção na natureza para provocar os sentidos na e da natureza: observação, coleta e experiência da natureza na cidade dão origem a ações, fotografias, múltiplos e vídeos. No infraordinário ressoa uma natureza que não é romântica ou selvagem, que ainda está por ser definida. PALAVRAS-CHAVE: Zonas de contato. Infraordinário. Natureza. Cultura. ABSTRACT This doctorate research in Visual Arts with an emphasis in Visual Poetics articulates with questions brought about in my recent artistic practice. Cities have demonstrated to be fertile ground for artistic investigation, more specifically the space of the infraordinary, a term coined by Georges Perec that becomes central to this investigation. In the space of daily triviality, the idea of nature appears as an inadvertent occurrence, building spaces called contact zones: spaces of daily life in which nature resounds, in which one can experience momentary happenings, taking fluid positions articulated around specific artistic devices that act as vehicles. The action field is drawn from the rivers Guaíba and Caí, in the cities of Porto Alegre and Montenegro, which generate analyses of the image of the river as a margin between nature and culture, a nature of the interstice which crosses the city: rivers, empty lots, bushes that are not yards. Paul-Armand Gette and Roni Horn are some of the artists studied here who escape the concept of intervening with nature to provoke senses and meanings in and from nature: observation, gathering, and the experience of nature in the city give origin to actions, photographs, multiples, and videos. In the infraordinary there resounds a nature that is neither romantic nor wild, still to be defined. KEYWORDS: Contact zones. Infraordinary. Nature. Culture. SUMÁRIO 17 32 37 43 50 61 71 78 92 101 102 121 132 151 164 176 185 195 217 229 246 254 263 269 289 INTRODUÇÃO às zonas de contato APROXIMAÇÕES DO QUÊ? - Georges Perec 1. RESSONÂNCIA I: cidade e natureza no infraordinário 1.1 Do cotidiano ao infraordinário 1.2 As camisetas azuis delineiam percursos 1.3 Na beira do rio Caí 1.4 Entre zonas 1.5 Nina e a natureza na cidade EM MONTENEGRO, ANDAMOS NA BEIRA DO RIO 2. RESSONÂNCIA II: apresentações da natureza ELABORE ALGUMA COISA DE NATURAL - Hans Haacke 2.1 Fragmentos da natureza 2.2 Mais algumas pedras 2.3 Das pedras às cascas de árvore LE RÉCIT DES PIERRES ALGUMAS CASCAS DE ÁRVORE ENCONTRADAS NAS PROXIMIDADES DO CANAL DE FAUX-REMPART 3. ZONA DE CONTATO: o rio, o inframince e outras margens 3.1 Entre a terra e a água 3.2 Encontro das águas 3.3 Olhar o rio O BAIRRO ARQUIPÉLAGO CONSIDERAÇÕES FINAIS POST SCRIPTUM: O ATELIER DAS PEDRAS BIBLIOGRAFIA ANEXO: registros da defesa de tese INTRODUÇÃO às zonas de contato A presente pesquisa de Doutorado em Artes Visuais, ênfase em Poéticas Visuais, articula-se a questões geradas em minha produção artística posterior à investigação desenvolvida no âmbito do mestrado, em que uma série de noções e operações apontou para a necessidade de um maior aprofundamento. No terceiro capítulo de minha dissertação, Espaços dos gestos do contato, foram levantadas questões referentes à cidade como campo de atuação do artista, terreno de ações poéticas. Partiu-se de “um pensamento de estimular o contato entre indivíduos e entre indivíduos e ambiente, de perceber a cidade não como um território bem concluso, mas fluído, não somente um espaço do trânsito veloz, mas um espaço de vivência, a ser construído continuamente” (SILVA, 2005, p. 107). Novos projetos realizados ao longo dos últimos anos indicaram-me que, muito mais do que um interesse pela cidade enquanto paisagem, há um interesse por aquilo que denomino “zonas de contato”, espaços do cotidiano em que ressoa a natureza, em que se pode experimentar acontecimentos momentâneos e cotidianos, tomando posições fluídas articuladas ao redor de dis- .1..7................. positivos artísticos específicos que atuam como veículos. Passo a observar que essas zonas se delineiam em torno dos rios urbanos, em trajetos cotidianos. Manifestariam-se, nessa circunscrição, zonas do sensível? Seriam as zonas de contato um espaço do sensório, espécies de zonas de sensibilidade? No livro Os cinco sentidos: filosofia dos corpos misturados, Michel Serres reflete sobre as misturas, assinalando que precisaríamos destacar novas abordagens para perceber os sentidos: “os sentidos exigem um novo esforço de abstração para serem compreendidos, para comporem o que a análise separa” (SERRES, 2001, p.169). Cinco sentidos em um: e se um sentido que carrega todos for também uma espécie de ponto zero? Serres convida-nos a imaginar um “zero sensorial”, uma referência que estaria na figura do ar, do vento: Intangível, quase poderíamos dizer, intacto, incolor e transparente, transmissor das luzes, das cores e vetor dos perfumes, sem gosto, inaudível quando nenhum calor o impulsiona, ele penetra o corpo, as orelhas, a boca, o nariz, garganta e pulmões, envolve a pele, suporte de todo sinal que alcança os sentidos. Este neutro ou este zero não é determinado na sensação, mas ainda é uma das coisas a sentir, no limite do insensível. O ar, mistura vaga, leve, sutil, instável, favorece as alianças; vetor de tudo, a nada se opõe. Meio ambiente do sensório, excipiente geral das misturas (...). (SERRES, 2001, p. 171). O vento. Movimento leve, sutil, vaporoso, turbulento, em ritmos e quase-períodos, caótico, misturador e portador das misturas, confuso, suporte de todo o sinal referente aos sentidos, penetra o corpo, nariz, boca, orelhas, pulmões e garganta, e envolve a pele. Zero dos sentidos, portador de todos eles. (SERRES, 2001, p. 174). .1..8................. A inquietante imagem construída pelo autor faz-nos acreditar que estamos sempre abertos aos espaços, ao clima, à luz, às pessoas, aos sons, às imagens do mundo. Assim, como um rio, alguns contatos provocam a infiltração, outros permanecem nas fronteiras e evaporam. Em minha dissertação de mestrado, havia um enfoque em determinados fenômenos que rondam o corpo, como a eletricidade estática e uma espécie de energia emanada pelo contato. Essa passagem de fenômenos que poderíamos chamar de naturais levaram a um olhar mais atento e objetivo ao próprio conceito de natureza permeado pelo espaço do dia a dia. A imagem do rio e suas potencialidades artísticas talvez tenham surgido pela primeira vez em 2008 durante residência de artista realizada em Dublin, Irlanda.1 Um dos trabalhos produzidos naquela experiência foi Rio Branco (figs. 1, 2, e 3), um desenho executado nas paredes do atelier durante aquele período. O título remete ao bairro homônimo em que eu morava na cidade de Porto Alegre, em um imóvel da década de 40. No banheiro daquele apartamento, as paredes com pintura descascada sugeriam-me configurações geográficas, zonas terrestres e fluviais imaginárias. Antes de partir em viagem, transferi as manchas para papéis transparentes, desenhando-as com lápis, e as levei comigo na bagagem. A cidade de Dublin, banhada pelo rio Liffey, promoveu um encontro de paisagens: nas paredes do atelier, reproduzi, através dos moldes transportados entre continentes, rios, lagos e lagoas com lápis e tinta verde semelhante à cor revelada pelas escamações do antigo apartamento. Percebo que esse trabalho, nunca apresentado a um público, pode vir a ser um indício de questões latentes a esta pesquisa de doutorado. Rio Branco e rio Liffey desaguam nos rios Caí e 1 Residência promovida pelo Irish Museum of Modern Art (IMMA) e UNESCO ASCHBERG, com uma duração de aproximadamente três meses. .1..9................. .2..0................. Fig. 3 – Mariana Silva da Silva, registro que deu origem aos desenhos (2007). Fonte: acervo pessoal. Fig. 1 e fig. 2 – Mariana Silva da Silva, detalhe de Rio Branco (2008). Fonte: acervo pessoal. .2..1................. Guaíba, fundindo suas águas em trabalhos produzidos durante o Doutorado em Poéticas Visuais. Na proposta, ainda em curso, Na minha cidade tem um rio (figs. 4 e 5), ponto de partida desta investigação, camisetas azuis com a frase estampada em português na frente, e inglês no verso, são enviadas para participantes ao redor do mundo. Diferentes pessoas são convidadas a utilizar as camisetas, tramando trajetos pelos espaços cotidianos das cidades escolhidas. A partir de fotografias realizadas e enviadas pelos participantes, criou-se um blog2 — um tipo de sítio eletrônico caracterizado pela simplicidade e imediatez — em que são postadas as imagens, bem como sua autoria e localização geográfica. Outro procedimento empregado constitui na realização de percursos coletivos, em que várias pessoas saem juntas às ruas vestindo as camisetas. Na minha cidade tem um rio coloca-me muitas indagações quanto à cidade e a natureza, sendo o rio a primeira grande força impulsionadora da pesquisa de doutoramento. A frase instala-se em meu processo criativo como uma afirmação imposta por constatações ordinárias repetidas como um pequeno exercício poético de criação: na minha cidade tem rio, mesmo que digam que ele é um lago, na minha cidade tem um rio, mesmo que exista um muro no horizonte. É pertinente ao meu trabalho que pensemos separadamente em cultura e natureza, rio e cidade? A cidade de Porto Alegre tem sua formação histórica associada ao rio Guaíba.3 Para seus moradores, um rio, para técnicos 2 Disponível em: < naminhacidadetemumrio.blogspot.com >. Acesso em: setembro de 2018. 3 Há muita discordância no meio científico e também no que tange às políticas urbanas e ambientais sobre a nomenclatura do Guaíba, sua definição como rio ou lago não é absoluta. Segundo Caio Lustosa: “No caso do Guaíba, historicamente, a tentativa de classifica-lo como ‘lago’ surgiu com a edição de dois decretos, expedidos pelos ex-governadores Amaral de Souza e Antônio Britto e adotada .2..2................. Fig. 4 e fig. 5 – Mariana Silva da Silva, Na minha cidade tem um rio, Tânia, Caxias do sul (2011-2018). Fonte: acervo pessoal. .2..3................. e alguns geógrafos, um grande lago. Essa dubiedade na própria natureza constituinte do Guaíba também reflete sua relação dúbia com os moradores da cidade. Se na parte sul da cidade, o rio pode ser experimentado, no restante ele permanece apartado por um grande muro, o Muro da Mauá. Nesta pesquisa, dou preferência ao termo “rio Guaíba”, no lugar de “lago Guaíba”, tanto pelas imagens geradas pela palavra rio em meu trabalho quanto pela relação com os discursos cotidianos que o termo tece com os moradores da cidade de Porto Alegre e arredores: cotidianamente, referimo-nos ao rio Guaíba, e não ao lago Guaíba. No trajeto percorrido até agora, constato que minha pesquisa artística gera trabalhos que lidam com a cidade há aproximadamente uma década. Os espaços compartilhados têm sido uma constante na realização de ações, fotografias, múltiplos e vídeos. Percebo que esse interesse está ligado à ideia de que a cidade é o espaço do cotidiano por excelência. A natureza que ressoa é aquela inserida nesse espaço rotineiro, a que parece infiltrar-se sem ser convidada no terreno das obrigações repetitivas e banais. Interessa-me propor um convite à experiência artística exatamente no tempo da rotina, no espaço do infraordinário, tomando a noção no ‘Atlas Ambiental de Porto Alegre’ pelo geólogo Rualdo Menegat, nos anos 90 e, desde então, adotada acriticamente por certos comunicadores da mídia. Todavia, semelhante classificação tem merecido forte contestação do meio científico, a exemplo de exaustivo parecer intitulado Rio Guaíba, datado de maio de 2009 com atualização em dezembro de 2012, dos professores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, Elírio Ernestino Toldo Jr. e Luiz Emílio Sá Brito de Almeida, que integram também o Centro de Estudos de Geologia Costeira, aliado à rejeição de vários setores da sociedade (...). Ainda no plano hidrológico, cabe atentar para o parecer expedido pelo IBGE, que é conclusivo, depois de alinhar os fundamentos técnicos pertinentes, em manter as denominações de Rio Guaíba, Lagoa dos Patos e Lagoa Mirim. De outra parte, cabe analisar o efeito que essa classificação como ‘lago’ tem exercido sobre o Executivo, a Câmara Municipal, os técnicos das Secretarias de Obras e Planejamento, bem como favorecido os intentos da Construção Civil de ocupar a orla do Guaíba com mega-edifícios” (LUSTOSA, 2016). .2..4................. cunhada pelo escritor Georges Perec4, conceito-chave da investigação agora empreendida: Interrogar o habitual. Mas, justamente, estamos acostumados com ele. Nós não o interrogamos, ele não nos interroga, não parece ser um problema, nós vivemos sem pensar, como se ele não transmitisse nem pergunta, nem resposta, como se ele não carregasse nenhuma informação. Não se trata nem mesmo de condicionamento, é a anestesia. Dormimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas onde está a nossa vida? Onde está nosso corpo? Onde está o nosso espaço? (PEREC, 1989, p. 10, tradução minha).5 “Infraordinário” é um termo que nasce de um método de observação do cotidiano empregado por Perec em sua escrita. Trata-se de descrever o cotidiano minuciosamente, prestando atenção exatamente naquilo que não chama a atenção, ou que não tem um interesse excepcional. O dia a dia para o autor é uma constante de fatos corriqueiros, de repetições de hábitos: a percepção ou a anotação daquilo que “acontece quando nada acontece”6. 4 Georges Perec (1932-1986) foi um escritor francês, membro do grupo de escrita Oulipo. Seu texto é marcado pela experimentação e imposição de regras que jogam com a literatura e, muitas vezes, com a matemática. O termo mencionado refere-se ao livro L’infra-ordinaire (1989). Uma parte desse livro foi traduzida por mim e se encontra nesta pesquisa. 5 “Interroger l’habituel. Mais justement, nous y sommes habitués. Nous ne l’interrogeons pas, il ne nous interroge pas, il semble ne pas faire problème, nous le vivons sans y penser, comme s’il ne véhiculait ni question ni réponse, comme s’il n’était porteur d’aucune information. Ce n’est même plus du conditionnement, c’est de l’anesthésie. Nous dormons notre vie d’un sommeil sans rêves. Mais où est-elle, notre vie? Où est notre corps? Où est notre espace?” 6 “What happens when nothing happens?” é uma frase de Georges Perec citada em uma entrevista com Paul Virilio em The Everyday (JOHNSTONE, 2008, p. 19). .2..5................. Com Georges Perec e suas “espécies de espaços”, sua tentativa de esgotar um lugar parisiense e o infraordinário7, passo a tentar escutar o “barulho de fundo”, iniciando um método de trabalho baseado na observação. A paisagem urbana ligada a rios — especialmente o rio Guaíba, em Porto Alegre, cidade em que resido, e o rio Caí, em Montenegro, cidade em que atuo como professora na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul — passou a ser o espaço para saídas de campo, em que muitas vezes fotografo e faço anotações variadas. Poderíamos pensar que o contato cotidiano com essas paisagens, os encontros do dia a dia, as viagens semanais, os infinitos trajetos de ônibus entre Porto Alegre e Montenegro construíram um atelier de artista sem sede, quase sem materiais e que, essencialmente, usa aquilo que está próximo. Em consonância com aquilo que coloca Barbara Formis a respeito do encontro da arte no ordinário: A estética da vida cotidiana não se mede em termos de sua capacidade de mudar a vida, mas muito mais por sua capacidade de utilizar a experiência comum, deixando-a igual a ela mesma. As qualidades da vida não são transformadas, embelezadas ou julgadas, mas são vividas a fim de mostrar o poder estético que já está operando na rotina e em todas essas atitudes e posturas que parecem naturais. (FORMIS, 2010, p. 240, tradução minha).8 7 Muitos são os livros de Georges Perec citados nesta investigação, aqui destacam-se Espèces d’espaces (1974/2000), L’infra-ordinaire (1989) e Tentative d’épuisement d’un lieu parisien (1975/2008). 8 “L’esthétique de la vie ordinaire ne se mesure pas à l’aune de sa capacite à changer la vie, mais plutôt selon sa capacité à utiliser l’expérience ordinaire tout en la laissant égale à elle-même. Les qualités de la vie ne sont pas transformées, embellies ou jugées, mais eles sont vécues de manière à montrer la puissance esthétique qui est déjà á l’oeuvre dans la routine et dans toutes ces atitudes et postures qui semblent naturelles.” .2..6................. O conceito de ordinário torna-se, então, um importante foco de interesse a ser investigado especialmente no primeiro capítulo da tese, “RESSONÂNCIA I: cidade e natureza no infraordinário”. Como aponta Michael Sheringham em Traversées du quotidien: des surréalistes aux postmodernes (2013), para Georges Perec, Henri Lefebvre, Maurice Blanchot, Michel de Certeau, assim como também para os surrealistas e situacionistas, a rua é o próprio espaço do cotidiano. O movimento e o vivido são intrínsecos ao cotidiano e por isso, segundo Sheringham, ele é um conceito ambíguo e paradoxal: “longe de ser dominado pela lógica do mesmo, o cotidiano é um campo eternamente aberto à diferença” (SHERINGHAM, 2013, p. 30, tradução minha).9 Pensando proximamente a Lefebvre, entendemos o cotidiano — ou, mais especificamente, o ordinário, como veremos mais adiante — enquanto uma esfera de movimentos paradoxais que vão e vêm, entre a repetição e a possibilidade de invenção. A utilização frequente de referências ao espaço para representar a cotidianidade por Lefebvre e Certeau nos conduzem, por sua vez, à ideia de “zonas de demarcação e junção entre a opressão e a liberdade, como uma região de apropriação não da natureza exterior, mas de sua própria natureza” (LEFEBVRE apud SHERINGHAM: 2013, p. 147, tradução minha)10. Dessa forma, segundo Lefebvre, o cotidiano se torna difícil de definir, pois não diz respeito a atividades ou objetos específicos, sendo então uma mistura, “um misto entre natureza e cultura, um misto entre o histórico e o vivido, o individual e o social, o real e o irreal, um lugar de transição e de reencontro, de interferências e de conflitos, 9 “Loin d’être dominé par la logique du même, le quotidien est un champ éternellement ouvert à la différence.” 10 “Zones de démarcation et de jonction entre contrainte et liberté, comme une région d’appropriation non de la nature extérieure mais de sa propre nature.” .2..7................. enfim, um nível da realidade” (LEFEBVRE apud SHERINGHAM, 2013, p. 148, tradução minha).11 No infraordinário ressoa assim uma natureza que não é romântica, nem selvagem, que está ainda por definir. Uma natureza dos interstícios, que foge à própria cidade: os terrenos baldios, a beira dos rios, o mato que não é jardim. De acordo com Donadieu e Périgaud, a natureza na cidade se difere dos espaços chamados “verdes”, são aqueles espaços “indecisos, desprovidos de funções econômicas” (DONADIEU; PÉRIGAUD, 2012, p. 39, tradução minha).12 Qual natureza se manifestaria em uma zona de contato entre rio, cidade e cotidiano? E o que seria essa natureza que ressoa nas margens da vida no dia a dia? O capítulo seguinte, “RESSONÂNCIA II: apresentações da natureza”, discute as apresentações que a natureza assume em minha pesquisa artística. Investigo determinadas formas de natureza, fragmentos de uma mistura. Como reelaborar essas ressonâncias em uma prática artística investigativa? E de que formas revelar-se-iam em minha produção artística especificamente? Tomando como referência em especial o livro Como desenhar pedras, procuro mapear os usos de elementos e imagens da natureza intrínsecos aos trabalhos produzidos, sejam eles fotografias, vídeos ou objetos. A observação da natureza também faz vir à tona a reformulação de acontecimentos infraordinários sob forma de leituras e de escritas que são também trabalhos artísticos, que constroem uma teia entre teoria e prática em minha pesquisa em arte. Dessa forma, os capítulos desta tese são entremeados 11 “(…) un mixte de nature et de culture, d’historique et de vécu, d’individuel et de social, de reel et d’irréel, un lieu de transition et de rencontre, d’interférences et de conflits, bref un niveau de réalité.” 12 “(...) ces espaces indécis dépourvus de fonctions économiques.” .2..8................. por relatos de encontros e experiências nas bordas dos espaços naturais de algumas cidades que percorri nesses quatro anos de doutorado, bem como de pontuações textuais de outros autores, escritores, filósofos e artistas que comigo travam trajetos entre vida, natureza e cidade. Cada projeto, cada ideia, suscita diferentes abordagens possíveis que, muitas vezes, assumem formas híbridas dentro de meu processo artístico. Mesmo que a fotografia tenha presença recorrente em minha trajetória, não há intenção de que ela seja uma forma independente por si mesma. Fervenza coloca: Por outro lado, ao longo do século 20, e especialmente em parte significativa da produção artística das últimas décadas, a separação entre o que seja a obra e outros elementos relacionados – como a documentação ou o seu registro – não é necessariamente ou nitidamente delimitada. Assim, podemos observar uma série de produções artísticas que em sua realização irão incorporar, problematizar, questionar e misturar categorias a um certo momento consideradas estanques, no campo da produção, exibição e apresentação das obras de arte, no de seu registro e documentação. (FERVENZA, 2008, p. 1736). Processos de trabalho, nesta investigação, podem tomar formas diversas. Nesse sentido, não é proposto acrescentar algo à natureza, mas partir dela. Paul-Armand Gette e Roni Horn são alguns dos artistas estudados em consonância à esta investigação que se afastam da concepção de intervenção na natureza para acionar sentidos na e da natureza: observação, coleta e experimento in natura. Tomando emprestada a reflexão do artista Roman Signer (1938) para pensarmos na abordagem deste estudo: “Eu entro na natureza como em um atelier de arte. Eu gosto .2..9................. de fazer alguma coisa lá, talvez às vezes explodir algumas coisas ao redor, ou talvez fazer um pouco de fumaça, mas eu não deixo traços. Eu respeito a natureza” (SIGNER, 2013, p.97, tradução minha).13 Por fim, em “ZONA DE CONTATO: o rio, o inframince e outras margens” parte-se da noção de zona de misturas para analisar trabalhos que se relacionam com a diáfana noção criada por Marcel Duchamp, inframince, e as imagens construídas ao redor do rio. Passando pelo escritor Guimarães Rosa e pela artista Roni Horn, a imagem do rio está conectada à fluidez desconcertante de sua matéria, ora opaca, ora transparente, ora vívida, ora degradada. Os rios não seriam aqui as margens entre natureza e cidade? O contato se faz presente e é importante para entendermos a ideia de encontro sinestésico que carrega o inframince duchampiano. Do Guaíba ao Caí: carregadas de imagens, sensações e histórias, as zonas de água são, muitas vezes, também zonas de conflitos, geram concorrências nos usos coletivos do espaço urbano. É pertinente ressaltar que a prática artística não é uma prioridade sobre a pesquisa teórica, pois aqui andam juntas, essa é a especificidade da pesquisa em arte, sendo ela uma forma particular de conhecimento da arte. O caminho entre a teoria e a prática não é linear, não existem regras fixas, nenhuma medida de distância pré-definida e nenhuma razão de equivalência. Estudamos em livros, textos, imagens e obras, mas, sobretudo naquilo que é produzido. Sendo assim, embora na pesquisa em arte não haja certezas, iniciamos este texto com expectativas de 13 “I enter in nature like an art studio. I like doing something there, maybe bang some things around sometimes, or maybe there’s a bit of smoke, but I don’t leave traces. I respect nature.” .3..0................. mediar natureza e gerir espaços infraordinários, sem saber ao certo onde, como e se serão concretizadas. Este é um convite a olhar o rio, a juntar uma pedra, a tomar um vento. .3..1................. APROXIMAÇÕES DO QUÊ? Georges Perec14 Do que estamos falando, me parece, é sempre do evento, do inusitado, do extraordinário: cinco colunas na frente, grandes manchetes. Os trens somente começam a existir quando algum descarrilha, e quanto mais viajantes mortos, mais trens existem; aviões só adquirem existência quando são sequestrados; os carros têm como único destino gerarem reclamações: cinquenta e dois finais de semana por ano, cinquenta e duas estatísticas: tantas mortes e tão melhor para a informação se os números não param de aumentar! Deve haver por trás do evento, um escândalo, uma fissura, um perigo, como se a vida somente se revelasse através do espetacular, como se o interessante, o significa- 14 PEREC, Georges. L’infra-ordinaire. Paris: Le Seuil, 1989, pp. 9-13, tradução minha. A primeira versão dessa tradução foi publicada em forma de notas, no texto “23 notas para um museu infraordinário”, que relacionava o infraordinário ao trabalho Lugar nenhum da artista Helene Sacco (1975), apresentado no MARGS em 2012. Ver: SILVA, Mariana Silva da. 23 notas para um museu infraordinário. In: CAPRA, Carmen; ROTTER, Mariane (Orgs.). Fazer museu: arte e mediação no Núcleo Educativo Uergs/Margs. Porto Alegre: Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), 2012, pp. 38-41. .3..2................. tivo sempre fosse anormal: cataclismos naturais ou reviravoltas históricas, conflitos sociais, escândalos políticos... Em nossa precipitação para medir o histórico, o significativo, o revelador, não deixemos de lado o essencial: o verdadeiramente intolerável, verdadeiramente inadmissível: o escândalo não é o grisu15, é o trabalho nas minas. Os “males sociais” não são “preocupantes” em períodos de greve, eles são intoleráveis vinte e quatro horas em vinte e quatro, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Os maremotos, erupções vulcânicas, torres em ruínas, incêndios florestais, túneis em colapso, a Publicis16 que queima e Aranda17 que fala! Horrível! Péssimo! Monstruoso! Escandaloso! Mas onde está o escândalo? O verdadeiro escândalo? O jornal diz: tenham certeza, vejam que a vida existe, com seus altos e baixos, você pode ver que coisas estão acontecendo. Os jornais falam sobre tudo, exceto do dia a dia. Jornais me entediam, eles não me ensinam nada, o que eles dizem não me concerne, não me questiona nada, e sobretudo não responde às minhas perguntas ou aquelas que eu gostaria de perguntar. O que realmente acontece, o que nós vivemos, o resto, todo o resto, onde está ele? Aquilo que acontece todos os dias e volta a acontecer a cada dia, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual, como dar conta dele, como interrogá-lo, como descrevê-lo? 15 Nota de Tradução: mistura explosiva de gás natural, metano, com oxigênio que ocorre naturalmente nas minas de carvão, sendo muito perigosa para a mineração. 16 NT: Publicis Groupe é uma grande empresa francesa, multinacional, de publicidade. Em 1972, a sede na Avenida Champs Elysées em Paris sofreu um grande incêndio. 17 NT: Gabriel Aranda foi um conselheiro ministerial francês que deu origem a um caso famoso (Escândalo Aranda) em 1972 e foi denunciado por corrupção. .3..3................. Interrogar o habitual. Mas, justamente, estamos acostumados com ele. Nós não o interrogamos, ele não nos interroga, não parece ser um problema, nós vivemos sem pensar, como se ele não transmitisse nem pergunta, nem resposta, como se ele não carregasse nenhuma informação. Não se trata nem mesmo de condicionamento, é a anestesia. Dormimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas onde está a nossa vida? Onde está nosso corpo? Onde está o nosso espaço? Como falar dessas “coisas comuns”, como controlá-las melhor, como segui-las, arrancá-las da escória em que permanecem atoladas, como dar-lhes um sentido, uma linguagem: que falem, finalmente, do que são, do que somos. Talvez se trate de fundar nossa própria antropologia: aquela que falará de nós, que irá procurar em nós o que há tanto tempo pilhamos dos outros. Não o exótico, mas o endótico.18 Interrogar o que parece tão evidente que esquecemos sua origem. Reencontrar algo do encantamento que poderia provar Jules Verne ou seus leitores diante de um aparelho capaz de reproduzir e transportar os sons. Pois esse encantamento existiu, e milhares de outros, e são eles que nos moldaram. O que se trata de interrogar são os tijolos, o vidro, o concreto, nossas maneiras à mesa, nossos utensílios, nossas ferramentas, nossos usos do tempo, nossos ritmos. Interrogar o que parece nunca deixar de nos surpreender. Nós vivemos, é claro, respiramos, é claro, nós caminhamos, nós abrimos portas, descemos escadas, sentamos em uma mesa para comer, deitamos em uma cama para dormir. Como? Onde? Quando? Por que? Descreva sua rua. Descreva para um outro. Compare. Faça um inventário de seus bolsos, sua bolsa. Pergunte-se sobre a procedência, o uso e o destino de cada objeto que você carrega. 18 NT: “endotismo” é utilizado na tradução como contrário de “exotismo”. .3..4................. Questione suas colheres de chá.
O que existe sob o seu papel de parede?
Quantos gestos são necessários para compor um número de telefone? Por que? Por que não se pode comprar cigarros em mercearias?19 Por que não? Importa-me pouco que essas questões sejam aqui fragmentárias, apenas indicativas de um método, mais de um projeto. É muito importante para mim que pareçam triviais e fúteis: é precisamente o que as torna tão, se não mais, essenciais do que tantas outras por meio das quais, em vão, tentamos capturar a nossa verdade. 19 NT: na França, cigarros são vendidos unicamente em tabacarias. .3..5................. 1. RESSONÂNCIA I: cidade e natureza no infraordinário O cotidiano: o que há de mais difícil a descobrir. Maurice Blanchot .3..8................. Nós não podemos nunca explicar ou justificar a cidade. A cidade está ali. Ela é nosso espaço e nós não temos outro. Nós nascemos nas cidades. Nós crescemos nas cidades. É nas cidades que respiramos. Quando tomamos o trem, é para ir de uma cidade à outra cidade. Não há nada de desumano em uma cidade, senão nossa própria humanidade. Georges Perec .3..9................. 1. RESSONÂNCIA I: cidade e natureza no infraordinário Na minha cidade tem um rio. Olhando para a horizontalidade maciça do Muro da Mauá, em Porto Alegre, essas palavras passam a ser repetidas mentalmente, dando início a inquietações que agora me conduzem a esta pesquisa. Em Montenegro andamos na beira do rio e Um lugar, Nina, por sua vez, introduzem uma nova paisagem em meu processo de investigação, estando entrelaçados à cidade de Montenegro (RS), onde leciono na Uergs desde de 2011. A relação estreita entre cidade, natureza e cotidiano é, portanto, uma das questões mais persistentes em minhas investigações poéticas. O que me move a essa volta ao ordinário urbano? A cidade é o espaço da vida, é onde tudo (ou nada) acontece. Como coloca o filósofo do cotidiano Bruce Bégout: “Antes de interpretar o mundo e de transformá-lo, é preciso viver, aprender a conhecê-lo, a suportá-lo” (BÉGOUT, 2010, p. 37, tradução minha).20 Para tentar entender o mundo é preciso antes tentar 20 “Avant d’interpréter le monde et de le transformer, il faut le vivre, apprendre à le connaître, à le supporter.” .4..0................. compreender o espaço que habitamos, que compartilhamos com o outro. Esse espaço é construído por rotinas diárias e relações tecidas coletivamente dentro da cidade. O cotidiano vivido na cidade — pelo menos na cidade em que habitamos, e não naquela em que somos turistas — é muitas vezes associado ao tédio, à repetição e a uma espécie de determinismo utilitário, em que hábitos são desencadeados por obrigações e reincidências. A invenção do cotidiano (1980/2001) do filósofo Michel de Certeau, entretanto, investe exatamente no oposto dessa visão negativa do cotidiano que frequentemente desponta no senso comum, ou mesmo na sociologia. Os lugares habitados, as cidades, os bairros não vivem mergulhados na inércia, mas são atingidos por “movimentos infinitesimais” e “atividades multiformes” (CERTEAU, 2001, p.310). Para Certeau, a vida cotidiana é heterogênea e dentro dela o sujeito seria capaz de diluir sistemas de homogeneização social. Os pequenos movimentos assinalados por Michel de Certeau que fazem do cotidiano uma repetição de diferenças, longe da lógica do sempre igual, ressoam nas palavras de Georges Perec quando nos fala sobre observar o cotidiano no momento mesmo de sua “emergência” em Penser/Classer (2003).21 Assim, mesmo que aparentemente habituais, as práticas do dia a dia são para Certeau e Perec o que coloca em tensão a própria forma do cotidiano, resistência e inventividade. Como pensar essas invenções? Como prestar atenção nos “movimentos infinitesimais” da vida ordinária? Michael Sheringham elabora quatro parâmetros que tentam esclarecer-nos o cotidiano: 21 “(...) un effort pour saisir quelque chose qui appartient à mon expérience, non plus au niveau de ses réflexions lointaines, mais au coeur de son émergence” (PEREC, 2003, p. 23, tradução minha), podendo traduzir-se por: “(...) um esforço para apreender alguma coisa que pertença a minha experiência, não mais no nível de suas reflexões longínquas, mas no coração de sua emergência.” .4..1................. Primeiro: mesmo que se conecte muitas coisas cotidianas (objetos, bugigangas, algumas ações como comer, telefonar, fazer compras), a cotidianidade não é uma propriedade que seria inerente a essas coisas e não compõe muito menos sua soma; encontra-se, muito mais, na forma como participam da experiência vivida. Em segundo lugar, o todo em que estamos imersos inclui outros seres além de nós: a cotidianidade envolve a comunidade. Terceiro: se o cotidiano não é o lugar do evento (que sempre revela o excepcional), no sentido em que está em tensão com a história, ele possui sua própria historicidade, que é incorporada, compartilhada e está perpetuamente em movimento (repetição não é necessariamente estéril). Quarta: a cotidianidade se dissolve todos os dias (nas estatísticas, nas propriedades, nos dados) desde que fizemos do cotidiano um objeto de observação. Ela reside em práticas que ligam diferentes esferas de atividade, e apenas essas práticas tornam-lhe visível. (SHERINGHAM, 2013, p. 377, tradução minha).22 22 “Premièrement: alors même qu’on rattache nombre de choses au quotidien (les objets, les babioles, certaines actions comme manger, téléphoner, faire des courses), la quotidienneté n’est pas une propriété qui serait inhérente à ces choses, et ne compose pas non plus de leur somme; elle reside plutôt dans la manière dont eles participent de l’expérience vécue. Deuxièment, la totalité au sein de laquelle nous sommes immergés inclut d’autres êtres que nous: la quotidienneté implique la communauté. Troisièmement: si le quotidien n’est pas le lieu de l’événement (qui releve toujours de l’exceptionnel), de sorte qu’il est en tension avec l’histoire, il possède sa propre historicité, qui est incarnée, partagée et perpétuellement mouvante (la répétition n’est pas forcement stérile). Quatrièmement: la quotidienneté se dissout (dans les statistiques, les proprietés, les donnés) dès lors qu’on fait du quotidien un objet d’observation. Elle reside dans des pratiques qui relient entre elles différentes sphères d’activité, et seules ces pratiques la rendent visible.” .4..2................. Tendo esses pontos como indicadores para uma investigação do cotidiano, constato que o cotidiano se define em sua própria indefinição, que ele é um conceito paradoxal: está entre as esferas públicas e privadas, entre a repetição e a diferença, entre a monotonia e o movimento, entre o banal e a possiblidade de invenção, insignificante e fundamentalmente humano. 1.1 Do cotidiano ao infraordinário Existem descobertas para um artista que acabam por permanecer por um longo período de tempo em sua produção. Existem igualmente formas de agir que se instituem em uma produção artística sem sabermos muito bem por quê. Algumas vezes, são contingências, outras vezes são condições inseparáveis de sua maneira de operar. Ter um espaço de trabalho ou não ter um espaço de trabalho. Fazer projetos ou não fazer projetos. Desenhar, anotar, fotografar, empenhar-se em “saídas de campo”. Esses métodos vão sendo construídos, moldados de acordo com o processo de trabalho. Em algum momento, algo pode colidir com nossa trajetória, uma colisão inesperada, porém reveladora. Por volta do ano 2000, durante o Mestrado em Artes Visuais, realizado na UFRGS, entrei em contato pela primeira vez com os textos de Georges Perec (1936-1982), que foram apresentados a mim pela professora e artista Maria Ivone dos Santos. O primeiro livro que li do escritor, poeta e ensaísta francês foi Espèces d’espaces, em uma edição de 1974. Os escritos incisivos sobre os usos do espaço e sobre a experiência cotidiana reverberam desde então, bem como seu método de inventariar, da anotação descritiva à invenção minuciosa de formas de escrever. O encontro com Perec levou-me, assim como muitos outros artistas e colegas, a descobrir outros livros do autor e também de escritores do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle, cuja tradução literal se- .4..3................. ria Oficina de Literatura Potencial) entre eles, Italo Calvino (19231985) e Raymond Queneau (1903-1976). Nesse caminho, deparei-me com o livro L’Infra-ordinaire (1989/2011). O conceito de “infraordinário” aparece pela primeira vez para Georges Perec em “Approches de quoi?” (1973), texto publicado na revista Cause Commune, fundada por Georges Perec, Paul Virilio (1932) e Jean Duvignaud (1921-2007). É nesse texto (traduzido por mim no presente trabalho e anexado a esta pesquisa), semelhante a um manifesto em que o autor descreve os princípios do infraordinário, a observação cuidadosa e a classificação “do que acontece todos os dias e volta todos os dias” (PEREC, 2011, p.11, tradução minha). Perec havia publicado, entre 1966 e 1967, textos dispersos que já apontavam para um pensamento da vida cotidiana e a atenção ao corriqueiro. Ao mesmo tempo, sabe-se que Perec conheceu o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre (1901-1991) em 1958, passando a fazer parte do grupo de estudos sobre o cotidiano coordenado por ele, e assistiu diversos seminários com o também filósofo e sociólogo Roland Barthes (1915-1980) entre 1963-1964.23 Esses encontros foram de grande influência na agenda perecquiana sobre o cotidiano. Segundo Derek Schilling em sua obra Mémoires du quotidien: les lieux de Perec (2006), a questão do cotidiano passa a estar cada vez mais presente no meio acadêmico e intelectual após a segunda guerra, devido a transformações nas abordagens das ciências sociais: Entre 1945 e 1980, anos em que as ciências humanas efetuam uma transição chave do regime histórico (o fato singular inserido em um sentido causal) ao regime so- 23 Ver Michael Sheringham (2013, p. 258). .4..4................. cial (o fato recorrente suscetível de explicação estrutural), historiadores, sociólogos, filósofos e antropólogos passam a fazer uso de noções como “cotidiano” “cotidianidade” e “vida cotidiana” para identificar um nível de análise relacionada à realidade social que o desenvolvimento interno de suas disciplinas impedia de reconhecer. (SCHILLING, 2006, p. 19, tradução minha).24 Georges Perec olha para o cotidiano intencionando questionar nosso olhar sobre ele, procura revelar o desapercebido através do método da observação cuidadosa e de sua descrição. Está nesse ponto a escolha do termo infraordinário: o ordinário coloca-se como um contraponto ao extraordinário, sem sair do próprio terreno do banal. Assim, o cotidiano não é exatamente a mesma coisa que o ordinário. Constatamos que as nuances do termo infraordinário carregam essa importante observação. O ordinário, com frequência, é definido como algo de menos importância ou valor, pode igualmente adquirir o sentido de neutralidade, impessoalidade e a possiblidade de vir a ser. Algumas ações são ordinárias em nossas vidas - comprar pão, levar o lixo para a rua e molhar as plantas na sacada — entretanto, não são necessariamente executadas cotidianamente, todos os dias. Para Formis (2010), o cotidiano pertence ao presente enquanto o ordinário ao condicional. O cotidiano estaria na esfera do individual (o que cada um faz de maneira singular corriqueiramente), enquanto o ordinário pertenceria mais ao campo do coletivo (todos podem ter os mesmos hábitos ordinários, mas cada hábito é 24 “Entre 1945 et 1980, années où les sciences humaines effectuent une transition clef du régime historique (le fait singulier inséré dans une logique causale) au régime social (le fait récurrent susceptible d’explication structurale), historiens, sociologues, philosophes et anthropologues ont fait appel aux notions de “quotidien”, “quotidienneté” et “vie quotidienne” pour identifier un niveau d’analyse lié à la réalité sociale que le développement interne de leurs disciplines empêchait de reconnaître.” .4..5................. operado de maneiras singulares por cada sujeito no seu cotidiano). Dessa forma, “o ordinário revela sua potencialidade e sua abertura ao espaço comunitário (FORMIS, 2010, p. 51, tradução minha).25 Nesse sentido, entendemos o motivo da escolha de Perec pelo uso do termo ordinário para compor o seu infraordinário, tendo em vista que ele confere uma abertura ao caráter coletivo. A escrita do infraordinário parte de uma busca pessoal do autor, vinculada à autobiografia, à memória pessoal, para alcançar a vida coletiva e a experiência social. É isso que faz com que o autor olhe com tamanha atenção para suas meias de molho em uma bacia cor de rosa em Espèces d’espaces ou para os números dos ônibus que atravessam as ruas ao redor da Place Saint-Sulpice em Tentative d’épuisement d’un lieu parisien. É nesse caminho que a cidade aparece na obra de Georges Perec, como objeto de escrutinação e como o próprio lugar de sua escrita, ao sentar-se nos café e tabacarias de Paris para escrever, o autor exerce seu método preferido, que é escrever in loco. Pode-se dizer que repertoria o real através da enumeração de microacontecimentos ou infra-acontecimentos.26 A importância do conceito de infraordinário no pensamento e na escrita perecquianos ultrapassa o campo da literatura e pode ser nele evidenciado um valor existencial, na medida em que a apreensão do cotidiano não elabora somente uma forma de escrever, mas também de viver e entender o seu próprio cotidiano. O infraordinário é uma forma de escrever a sua realidade e nele se encontra relevância para retomar as aproximações entre arte e cidade na produção de muitos artistas contemporâneos e, especialmente, nesta pesquisa. 25 l’ordinaire dévoile sa potentialité et son ouverture à l’espace communautaire. 26 Esse fato remete igualmente às notas do inframince de Marcel Duchamp, que serão abordadas posteriormente. .4..6................. As relações da arte com a cidade podem ser evidenciadas em trabalhos marcantes do século XX, como na poética de Kurt Schwitters (1887-1948) e na Merzbau (Casa Merz), obra complexa construída em sua própria residência a partir de resíduos encontrados na cidade, dos surrealistas e sua vontade de transformar a vida cotidiana, da Internacional Situacionista, que, através de ferramentas como a deriva na década de 50 do século XX, reivindicava uma cidade mais participativas, em que os indivíduos pudessem agir de maneira ativa e criativa. No Brasil, também alguns artistas se direcionaram rumo ao espaço urbano, Hélio Oiticica (1931-1980) e Artur Barrio (1945), conduziram importantes pesquisas que envolviam o corpo e a cidade.27 Na segunda metade do século XX, o grupo Fluxus iria desenvolver a concepção de evento como uma forma artística conectada à vida. Seus eventos foram influenciados pela música de vanguarda e pelos primeiros festivais promovidos e, inclusive, muitas vezes, referiam-se às propostas como “concertos”. Os primeiros membros do Fluxus frequentaram os cursos de John Cage (1912-1992) na New School for Social Research, em Nova York. Assim, vários desses eventos originaram-se nas “notações para evento” (event scores) de Cage28. George Maciunas (1931-1978) estreou a ideia de evento em um “show” em Wiesbaden, Alemanha, intitulado Après John Cage. Stephen Johnstone observa que: 27 No capítulo 3 de minha dissertação de mestrado (2005) esses artistas foram amplamente estudados como referência para trabalhos realizados naquele momento. Penso que, neste momento, torna-se mais relevante destacar a investigação de outros artistas abordados no decorrer desta tese. 28 Cage rejeitava o determinismo, propondo obras — ou “peças”, como ele preferia chamar — fluídas, abertas, indeterminadas, características da arte pós Segunda Guerra Mundial. Invocando o indeterminado, promovendo o diálogo entre disciplinas artísticas, integrando audiência nos eventos produzidos e recorrendo a procedimentos performativos, em que engajava a arte em um caminho para .4..7................. (...) um compromisso com o cotidiano tem um teor profundamente político: acessado através do uso na arte de materiais comuns encontrados, o cotidiano pode ser o terreno comum da experiência que permite que os visitantes do museu compreendam os efeitos da história sobre a vida privada daqueles que foram geralmente negligenciados. O compromisso com o diário também pode indicar o desejo de dar voz aos silenciados por discursos dominantes e ideologias — um compromisso juntamente com a responsabilidade de se envolver com o potencial transformador do quotidiano; esse diálogo que coloca a palavra do outro em primeiro lugar é o primeiro passo para mudar irrevogavelmente a vida cotidiana. (JOHNSTONE, 2008, p. 13, tradução minha).29 A volta ao cotidiano e à arte inserida na experiência da vida ordinária demonstra os interesses no desenvolvimento de eventos, peças, ações, derivas e happenings em que pode haver a busca por uma naturalização da arte, do acaso inserido na natureza, e da natureza como algo não separado da cultura. Nessa perspectiva, trata-se de uma prática artística que propõe ficções do real — utilizando termos de Jacques Rancière (2014) —, uma ação que se desenrola em várias instâncias: espaço urbano, caminhadas, fotografia, exposições, múltiplos, citando apenas alguns elementos dentre outros. agir no real e misturar arte à vida. 29 “(...) a commitment to the quotidian has a profoundly political tenor: acessed trough the use in art of ordinary found materials, the everyday might be the common ground of experience that allows museum visitors to ‘understand the effects of history on the private lives of those who were usually overlooked. Commitment to the everyday can also indicate the desire to give voice to those silenced by dominant discourses and ideologies – a commitment coupled with the responsability to engage with the everyday’s transformative potential; for in this dialogue to notice the taken-for-granted conversation of others is the first step in irrevocably changing everyday life.” .4..8................. Rancière nos apresenta de uma maneira bastante original a ideia de uma arte que ocorre no mundo real, sendo esse também o mundo da arte: Não há mundo real que seja o exterior da arte. Há pregas e dobras do tecido sensível comum nas quais se jungem e desjungem a política da estética e a estética da política. Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como o objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. (RANCIÈRE, 2014, p. 74). Essa concepção de uma arte inserida nas dobras do real, que se mostra como uma quebra, que ativa formas de ver e sentir que não estavam ali, que não eram as mais usuais, que produzem “rupturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos” (RANCIÈRE, 2014, p. 64), aproxima-nos da concepção de uma arte que produz dissensos, o que para o autor seria o trabalho da ficção: Ficção não é a criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É o trabalho que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas entre aparência e realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação. (RANCIÈRE, 2014, p. 64). Seguindo o raciocínio de Rancière poderíamos pensar que, ao assinalar o infraordinário, talvez se esteja elaborando uma ferramenta de produzir dissensos no cotidiano. As maneiras de agir na ficção, as formas tomadas pela experiência estética, no .4..9................. sentido de Rancière, podem produzir a partir de um mundo individual, um modo coletivamente político. Seria, nesse ponto de vista, o infraordinário um espaço de resistência?30 A política, da forma como é comumente entendida, estaria ao lado do grande evento, do extraordinário. A política31 proposta, entretanto, por alguns tipos de formas estéticas assinaladas por Rancière e aproximada ao infraordinário de Perec, estaria também implicada no cotidiano, na dimensão da duração, da estabilidade através do qual também algo de um mundo político pode se desdobrar, uma dimensão, portanto, também do comum e do infraordinário. 1.2. As camisetas azuis delineiam percursos No início do verão de 2011, final do ano, iniciei a confecção da edição de camisetas azuis que carregam a frase Na minha cidade tem um rio (figs. 6, 7, e 8). A escolha das camisetas se deu por sua visibilidade como veículo de mensagens e posturas identitárias muitas vezes assumidas por seus usuários, como é o caso das camisetas que ilustram ideologias, gostos e opiniões políticas. Intencionava desde o princípio do trabalho uma abertura ao outro, que poderia vestir, usar, inventar com as camisetas suas próprias relações com o entorno e, ao ser convidado a fotografar esses usos, também participaria como produtor das imagens que alimentariam um blog. 30 Essa inquietação foi a mim sugerida pela professora Helene Sacco durante a banca de qualificação do Doutorado, ocorrida em 2016. Desde então, ela passa a ressoar nesta tese como um disparador de diferentes questionamentos sobre o papel do infraordinário em minha investigação artística. 31 Penso aqui na seguinte colocação: “A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho” (RANCIÈRE, 1996, p. 42). .5..0................. Fig. 6 , fig. 7 e fig. 8 Mariana Silva da Silva, Na minha cidade tem um rio: Glaucis, Paris; Daniele, Amsterdã; Heloisa, Porto Alegre (2011-2018). Fonte: acervo pessoal. A camiseta como um difusor de mensagens diretamente conectado ao dia a dia é explorado por vários artistas contemporâneos, entre eles, por exemplo, Félix González-Torres (1957-1996), com a camiseta Untitled (Nobody owns me)32 (fig. 11) comissionada pela marca de roupas francesa e também galeria de arte, Agnès B., em 1994; Jenny Holzer (1950) e sua célebre camiseta com a inscrição Abuse of power comes as no surprise (Truisms T-shirts Serie)33 (fig. 9), editada a partir de 1980; e, mais recentemente, Rirkrit Tiravanija (1961) e a camiseta Untitled (No t-shirt) (fig. 10) — a única que pessoalmente pude experimentar vestir —, produzida durante a mostra internacional Triennale de Paris de 2012. O artista construiu uma oficina de serigrafia nas dependências do espaço cultural Palais de Tokyo, onde os visitantes podiam escolher uma camiseta, vendida a preço de custo, impressa ali mesmo, cujas frases em sua maioria demonstravam ideias políticas ou mensagens bem-humoradas que brincavam com assuntos amplos, como questões raciais, trabalho em época de globalização e diversidade sexual. Com base em questões como alteridade, nomadismo e deslocamento de signos e contextos, o trabalho de Tiravanija nasce dos pontos de encontro e da troca. As três propostas citadas são confeccionadas em grande quantidade, em serigrafia, utilizando uma tipologia bastante sim- 32 O crítico de arte Tony Godfrey apresenta a proposta de Félix González-Torres em seu livro Conceptual Art (2004, p. 346), no capítulo dedicado a artistas que usam a palavra a partir de 1980. Sobre a camiseta, que carrega o dizer “ninguém me possui”, Godfrey acredita que, por ser um objeto vestível, estaria afirmando que, em época de epidemia da AIDS, controle e vigilância absolutos, o corpo que veste é livre, pertence somente ao sujeito e a ninguém mais. 33 Jenny Holzer ficou bastante conhecida no meio da arte por utilizar estratégias de cooptação comumente usadas por empresas de publicidade. A frase estampada na camiseta poderia ser traduzida como “o abuso de poder não é nenhuma surpresa” e se contextualiza exatamente no escopo temático da artista. Temas como violência, poder e consumo revelam a preocupação de Holzer com questões vinculadas aos modos capitalistas de viver da sociedade estadunidense. .5..2................. Fig. 9 – Jenny Holzer, Abuse of power comes as no surprise (from the series Truism t-shirts), camiseta de algodão, edição ilimitada impressa em Nova York, Artisan Silkscreen, nos anos 80. Fonte: . Acesso em: setembro de 2018. Fig. 10 – Rirkrit Tiravanija, No T-Shirt, edição ilimitada de camisetas de algodão impressas em serigrafia, no espaço da Triennale de Paris, Palais de Tokyo (2012). Fonte: acervo pessoal. Fig. 11 – Felix Gonzalez-Torres, sem título (Nobody owns me), camiseta de algodão, edição de 100 exemplares por Agnès B Paris (1994). Fonte: GODFREY, 1998, p. 346. .5..3................. ples, sobre tecido branco. Com exceção daquela de Gonzáles-Torres que estava associada a uma marca de moda, as outras têm seu contexto vinculado a espaços expositivos. No meu caso, as camisetas começaram a ser produzidas independentemente de um projeto específico de exposição, ou mesmo com um fim bem delimitado. Inicialmente, comecei a distribuí-las a alunos, familiares, amigos e conhecidos interessados. Não sabia ao certo qual seria o desdobramento dessa experiência e se, de fato, haveria um. Há dois procedimentos empregados em meu projeto, dar uma camiseta como presente (entregue pessoalmente ou enviada pelo correio) e convidar o presenteado a produzir uma fotografia a ser posteriormente publicada no blog ou a vestir a camiseta juntamente a outras pessoas e realizar determinado percurso (figs. 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20). No primeiro, o usuário permanece no território do individual e de algumas escolhas pessoais, como se portar ao usar a vestimenta, onde fotografar, entre outras variantes. No segundo, há marcadamente a reelaboração de formas de agir na cidade compartilhando esse território com outros usuários da camiseta. A vontade em ambos os procedimentos é espalhar um pensamento sobre a cidade e o rio, que também é um convite para que a camiseta seja vinculada à vida de quem a veste: ir ao supermercado “vestindo azul”, fazer ginástica, passear no parque, sentar em um bar e tomar algo, contemplar o pôr do sol. Muitas são as ações cotidianas que carregaram e carregam a frase “na minha cidade tem um rio”. Dessa maneira, em 2011, alunos do curso de Artes Visuais participaram de um convite ao deslocamento, recebendo uma camiseta azul confeccionada especialmente para a experiência (figs. 21 e 22). As camisetas foram produzidas em uma pequena edição inicial, em uma fábrica de camisetas em Porto Alegre. Na época, não sabendo muito bem como proceder, obtive ajuda de um funcionário da loja Armazém das Camisetas, que me mostrou os te- .5..4................. Fig. 12 – Mariana Silva da Silva, Na minha cidade tem um rio: Leandro, Belo Horizonte (2011-2018); Fig. 13 – Helene e Hélio, Pelotas (2011-2018l; Fig. 14 – Lucas, Rolador (2011-2018)l; Fig. 15 – Carmen, Praia do Rosa (2011-2018). Fonte: acervo pessoal; .5..5................. Fig. 16 – Mariana Silva da Silva, Na minha cidade tem um rio: Tatiane e Andreia, Cel. Pilar; Fig. 17 – Janete, São Paulo); Fig. 18 – Sinara, rio Caí; Fig. 19 – Leo, Brasília; Fig. 20 – Silvana, Nsa. Sra. de Caravagio (2011-2018). Fonte: acervo pessoal. .5..6................. cidos e modelagens disponíveis, bem como o tom de azul. Decidi por uma modelagem tradicional, totalmente em algodão, que pudesse atender a três tamanhos básicos (pequeno, médio e grande) no padrão de camisetas nacional. Ao longo dos anos, mais e mais vezes, entrei em contato com a fábrica encomendando edições variadas, em média de dez a cinquenta camisetas de cada vez. Passei a distribuir os exemplares de acordo com os tamanhos desejados pelos participantes. Naquela ocasião, os estudantes, já devidamente vestidos, realizaram um percurso pela cidade em um trajeto que se iniciava na sede da Uergs na Rua Capitão Porfírio, centro, e terminava no Cais do Porto, na beira do rio Caí. Nessa prática, algumas pessoas relataram sua surpresa em deparar-se de uma maneira não usual com a paisagem cotidiana e, especialmente, em irem até o rio em um dia de trabalho e estudo, não de lazer. Acredito que a ideia de percurso seja aqui uma analogia aos cursos assumidos pelos rios em nossa vida cotidiana. Pessoas vestindo as camisetas azuis acabaram por instaurar um curso de água metafórico no território urbano. Essa primeira experiência coletiva foi uma das mais afetivas e impressionantes para mim enquanto artista e professora. Foi um momento de descobertas, de conversas e devaneios pela cidade que ainda me era um pouco estranha. Dando continuidade ao projeto, também em 2011 participei do projeto Diálogos Abertos - Perdidos no Espaço no Campus Central da UFRGS em Porto Alegre, proposta coordenada pela professora Maria Ivone dos Santos (figs. 23 e 24). Os participantes foram convidados a sair do Salão Nobre do Instituto de Ciências Básicas da Saúde e percorrer diversos espaços do Campus Central vestindo as camisetas disponibilizadas durante o evento. Findados os percursos, ao longo dos anos, muitos ainda portam as camisetas em suas rotinas cotidianas, realmente incorporando-as ao dia a dia de seus corpos. Pude constatar a partir .5..7................. Fig. 21 e fig. 22 – Mariana Silva da Silva, Na minha cidade tem um rio, Montenegro (2011-2018). Fonte: acervo pessoal. .5..8................. desses dois acontecimentos, em Montenegro e no Campus Central da UFRGS, que o percurso coletivo em que se utiliza as camisetas coloca em tensão, talvez, mais enfaticamente as relações entre cidade, natureza e cotidiano. Quando se veste coletivamente igual a outras pessoas, cada uma passa a fazer parte de um grupo, quase diríamos de uma ideologia. Para definir esses agenciamentos ideológicos se utiliza muito corriqueiramente a expressão “vestir a camiseta”, ou seja, assumir determinada posição. Qual posição estariam assumindo os portadores da camiseta azul? Michael Sheringham observa que: A caminhada desempenha um papel vital nas pesquisas sobre o cotidiano, não só porque ela permite explorá-lo em todas as direções, mas principalmente porque apresenta muitas características que combinam com ela: é um atividade localizada ao nível do solo, prevista para as capacidades do corpo, uma prática ligada ao ritmo, à repetição, à não-acumulação; ela é concreta, sem duração pré-definida, tanto individual, quanto social, limitada ao aqui e agora, mas suscetível de se estender a horizontes longínquos (SHERINGHAM, p. 71, tradução minha).34 Caminhar juntos possibilita-nos conhecer juntos, ou conhecer diferente. O ato de locomover-se produz formas de espaços, e nossos sentidos percebem a atmosfera urbana conectando-nos ao mundo. O corpo em contato e em movimento espacializa-se, relativiza seu entorno, “o espaço é um cruzamento de móveis”, de acordo com Certeau (1994, p. 204). A cidade propõe a experiência de habitá-la em complexas condições — o anonimato das 34 “La marche joue un rôle essentiel dans les enquêtes sur le quotidien, non seulement parce qu’elle permet de l’explorer en tous sens, mais surtout parce qu’elle presente de nombreuses caractéristiques qui s’accordent bien avec lui: .5..9................. Fig. 23 e fig. 24 – Mariana Silva da Silva, Na minha cidade tem um rio, Diálogos AbertosPerdidos no Espaço no Campus Central da UFRGS (2011-2018). Fonte: acervo pessoal. .6..0................. relações, as grandes construções verticais que substituem áreas verdes ou pequenas casas, a velocidade de transportar-se para extremos urbanos, a dificuldade em apreender a cidade em sua totalidade, a violência urbana — todas elas parecem sobrepor-se aos sentidos do corpo, como uma poeira impregnada na pele que nos impossibilita sentir a superfície das coisas. A cidade dos surrealistas foi encarada como lugar do imprevisível e das possibilidades do acaso. Para os situacionistas, através da deriva objetivava-se a descoberta dos espaços da cidade, incluindo os intersticiais, os espaços anestesiados pela rotina, pelo próprio abafamento dos sentidos em uma vida cada vez mais veloz e banalizada. A fim de realizar a deriva, o indivíduo deveria perder-se propositalmente na cidade, andar sem rumo definido previamente. Para Certeau, em A invenção do cotidiano (1994), é através do movimento dos corpos que nos apropriamos da cidade e há uma analogia entre o discurso e o percurso. O ato de se movimentar paralelo à enunciação é criativo e operatório. Percorrer é ler o espaço. 1.3. Na beira do rio Caí Logo que cheguei a Montenegro, para assumir o posto de professora, recebi a informação de que a cidade era pequena, organizada, calma como as cidades do interior e ao mesmo tempo, próxima da capital, com uma distância favorável a pequenas viagens de curta estadia. Foi preciso alguns meses, entretanto, para descobrir que o rio que percorre a cidade não está distante da universidade e que suas margens podiam ser usadas para passeios c’est une activité située au niveau du sol, réglée sur les capacités du corps, une pratique liée au rythme, à la répétition, à la non-accumulation; ele est concrète, sans durée prédéfinie, individuelle autant que sociale, limitée à l’ici et maintenant mais susceptible de s’étendre à des horizons lointains.” .6..1................. de bicicleta e caminhadas. Advertiram-me igualmente que o rio Caí é conhecido por suas cheias e, em dias de chuva, com frequência, pode-se enfrentar dificuldades para se acessar determinadas regiões de sua orla. Como estrangeira àquela paisagem, não pude deixar de fazer comparações entre as cercanias do rio Caí e as do Guaíba. O rio Caí é um elemento central na vida da cidade de Montenegro. Parte da região hidrográfica do Guaíba, tem seu trecho mais baixo marcado por um relevo plano, em que ocorrem frequentemente inundações. Segundo Germano, Maduell, Pedrollo, Rodrigues e Sotério (p. 2, sem data): As inundações ocorrem quando as águas dos rios, riachos e galerias pluviais extravasam de seu leito menor de escoamento (seção onde a água escoa a maior parte do tempo) e escoam através do leito maior que foi ocupado pela população para moradia, transporte, recreação, comércio, indústria, entre outros. Devido à grande dificuldade de transporte no passado, as cidades se desenvolveram às margens dos rios ou litoral, com o fim de utilizar o rio como via de transporte. Com o crescimento desordenado e acelerado das cidades, principalmente na segunda metade do século XX, as áreas de risco considerável, como as várzeas inundáveis, foram ocupadas, trazendo como consequência prejuízos humanos e materiais relevantes devido às inundações subsequentes. Dentre as cidades localizadas nas margens do rio, Montenegro permanece sendo a mais afetada pelas grandes cheias. Pessoalmente, nunca presenciei uma enchente, mas seus relatos ecoam especialmente nas narrativas dos alunos da Uergs que residem no município. A força do rio como algo sempre presente e que não pode ser evitada, somente aceita, é uma condição para .6..2................. se viver em Montenegro. Sendo assim, diferentemente da relação que temos com o Guaíba, o rio Caí parece muito mais evidente para seus moradores. Suas cheias, a relação com as chuvas, as marcas das enchentes nas paredes e muros das construções à beira do rio, tudo indica um rio manifestado e em ação. Percorrer assim os espaços da cidade e as margens do rio suscitou a elaboração do trabalho Em Montenegro andamos na beira do rio, (figs. 25, 26, 27 e 28) um conjunto que toma uma forma híbrida, composto por seixos35, texto, fotografia e prateleiras de madeira feitas sob medida para a exposição de defesa de tese. Na beira do rio Caí, realizei as fotografias que registram o entorno da região fluvial, centro de Montenegro, e coletei vinte e seis seixos que fazem parte deste trabalho, inicialmente integrante de uma investigação36 desenvolvida na Uergs com duas alunas de graduação. Como parte da pesquisa de Iniciação Científica, passamos a realizar percursos pela cidade em que realizávamos diferentes atividades, textos, fotografias, proposições artísticas. Em um momento posterior, escrevi um pequeno texto que relata minha chegada de ônibus à cidade de Montenegro até 35 Utilizo, ao longo do texto, na maioria das vezes, as palavras “pedra”, “seixo”, “mineral” e “cascalho” como termos de significado semelhante na língua portuguesa. Não se trata de uma nomenclatura geológica especializada. De acordo com Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, “pedra” pode ser uma “matéria mineral sólida e resistente, da natureza das rochas, encontrada na superfície e no interior da Terra” ou “fragmento dessa matéria, de formas e tamanhos diferentes” e seixo pode significar “fragmento arredondado de rocha ou mineral, cujo diâmetro é maior do que quatro e menor do que 64 mm; cascalho” ou ainda “pedra pequena e arredondada, usada em jardinagem e paisagismo”. Fonte: e . Acesso em: 21 de maio de 2015. 36 Pesquisa de Iniciação Científica intitulada A arte contemporânea e o rio: experiências artísticas a partir dos rios Caí e Guaíba, produzida juntamente às .6..3................. Fig. 25, fig. 26, fig. 27 e fig. 28 – Mariana Silva da Silva, Em Montenegro andamos na beira do rio, exercício de montagens das peças que compõe o trabalho, 26 seixos, etiquetas, 8 fotografias 20×25 cm, molduras e prateleiras de madeira, dimensões variadas (2015). Fonte: acervo pessoal. .6..4................. minha volta à Porto Alegre, realizando um exercício de enunciação do espaço. O texto foi repartido em palavras sobre etiquetas autocolantes em relevo. Algumas frases completas podem ser lidas, como aquela que dá título ao trabalho, Em Montenegro andamos na beira do rio37 e Eram mexilhões de rio pequenas carcaças de conchas. A maioria das sentenças, entretanto, não forma necessariamente discursos completos, mas dá pistas sobre a natureza local e a paisagem fluvial. A aparência e a forma rígida das etiquetas, cujo material de confecção é comumente vendido em papelarias, cria um confronto com a “naturalidade” das pedras coletadas, seus relevos desorganizados e acentuados em comparação às superfícies lisas e de plástico dos adesivos. Esse contraste de naturezas, deslizamento de superfícies estrangeiras umas às outras, aponta-nos diretamente para uma dualidade explicitamente presente em minha pesquisa, a relação dúbia muitas vezes empreendida pelas noções de cultura e natureza. Poderia dizer que o processo de desenvolvimento desta investigação segue um procedimento de inventariar a natureza apresentado por Vilém Flusser em seu livro de ensaios Natural: Mente: Vários acessos aos significados de natureza (1979): “a) primeiro devem ser inventariadas as coisas que nos interessam, e b) devemos admitir que nossos interesses pelas coisas, embora imposto sobre nós por elas, as torna coisas” (FLUSSER, 1979, p. 144). Para Flusser, esse método nasce da “força do cotidiano” (FLUSSER, 1979, p. 137) e de um outro pensamento sobre a natureza e, por consequência, sobre as ciências da natureza. Em estudantes Andreia Salvadori e Tatiane dos Passos, entre 2013 e 2014. 37 Produziu-se sentenças sem vírgulas, pois a máquina etiquetadora utilizada não possui a opção de pontuação. A ideia do trabalho em questão é que ele se adapte a diferentes espaços expositivos. Sua montagem, sendo realizada para a exposição de defesa desta tese, será posteriormente registrada e anexada no exemplar final a ser entregue na biblioteca do Instituto de Artes da UFRGS. .6..5................. Natural: Mente, Vilém Flusser investiga a ligação dialética entre os conceitos de natureza e cultura através de uma análise que poderia resultar em uma “ciência do futuro” (FLUSSER, 1979, p. 144). Essa oposição entre natureza e cultura é, para Flusser, ilimitada, já que tudo pode ser visto como uma antítese da natureza. Cultura pode ser considerada natural e natureza, cultural? Se a cultura é o nosso terreno “natural”, então, não habitamos a natureza? Há uma redefinição contínua de ambos os termos e o propósito inicial de seus textos nasce de uma suspeita: (...) a suspeita de que tais experiências naturais não se distinguem em seu impacto existencial das culturais, e que, portanto, a distinção ontológica entre natureza e cultura não se sustenta existencialmente no presente contexto. De acordo com tal suspeita, a distinção ontológica a ser feita atualmente seria entre experiências determinantes e experiências libertadoras, duas categorias ontológicas que desprezam as tradicionais de “natureza/ cultura”, ou “dado/feito”. (FLUSSER, 1979, p. 138). 38 Gilles Tiberghien, por sua vez, em La nature dans l’art (2010) fala-nos que a paisagem que se impunha como um gênero pictórico ocidental a partir do Renascimento, torna-se no século XIX um modo de acesso estético à natureza. Posteriormente, as saídas dos ateliers em rumo à própria natureza, as práticas da arte a céu aberto colocariam os artistas dentro de seu próprio assunto. Décadas depois, nos anos sessenta do século XX, é tempo de a fotografia tomar o lugar da pintura em experiências com a paisagem. 38 Sobre essa dualidade é pertinente a colocação de Gabriela Reinaldo: “Por outro lado, se definirmos natureza como conjunto de dados e cultura como conjunto de feitos, teremos que dizer o que chamamos de História. Se História é a transformação do dado no feito, chegaremos à conclusão de que a cultura de uma geração é natureza para a geração seguinte” (REINALDO, 2012, p. 6). .6..6................. Muitos artistas demonstram interesse em repensar o conceito de natureza na arte recente. Cito poéticas já consideradas históricas como a Land Art, a Earth Art e outras propostas mais recentes, denominadas como intervenções na paisagem urbana, conceito compartilhado com a arquitetura. Nessas práticas, a fotografia está, na maioria das vezes, presente como documentação dessas ações efêmeras. O que vem a me interessar, entretanto, está próximo da obra do artista Paul-Armand Gette (1927). Sua poética está mais centrada na escala do artista-cientista e observador do que naquela dos land artistas. Gette olha especialmente para biologia e geologia e tem um apreço pelas coleções de elementos naturais, que passam por sua catalogação e organização minuciosa a partir de regras próprias. Desde 1970, desenvolve um corpo de trabalho bastante particular, articulando-se entre dois temas: a ideia de natureza e o corpo feminino e suas possíveis metamorfoses, manifestado na figura da ninfa. A primeira ideia é aquela que mais me instiga neste momento. Tomemos como referência um de seus livros de artista, De l’immobilié du voyage (2001) (figs. 29 e 30). Esse livro nasce de alguns desejos do artista, especialmente o de encontrar um riólito, espécie de rocha vulcânica. Nas primeiras páginas do livro, composto de textos e fotografias, como de costume em muitos livros de Gette, lemos: No início houve O Elogio do amarelo de Nápoles e o vulcanismo campaniano que Jean-François Taddeï havia proposto de mostrar em Saint-Philbert-de-Grand-Lieu. Esse nome fez chamar em minha memória um riólito que eu tinha visto, há vários anos, uma soberba espé- No decorrer deste capítulo será abordada também a reflexão do antropólogo Philippe Descola sobre essa dualidade. .6..7................. Fig. 29 e fig. 30 – Paul-Armand Gette, De l’immobilié du voyage, livro (2002). Nantes: Joca Seria, Nantes/Frac des Pays de la Loire, Carquefou/Association culturelle du Lac de Grand-Lieu, Saint-Philbert-de-Grand-Lieu (2002). Formato 20×15 cm, 61 p. Fonte: acervo pessoal. .6..8................. cime em uma vitrine do museu da École des Mines em Paris. A etiqueta que o acompanhava era um tanto lacônica e indicava como proveniência o Lac de Grand Lieu. Eu já me vi segurando em minhas mãos a minha rocha favorita. Essa é a razão pela qual eu um dia me joguei a Saint Philbert para encontrar o riólito, o riólito! Aqueles que me acolheram muito bem olharam-me com um olhar engraçado. Não era assunto deles uma rocha vulcânica. Eles me acharam um tanto louco, não podemos dizer que as coisas começaram bem. Eles me falaram sobre o lago, da oportunidade de vê-lo andando em um campanário. Eu não podia acreditar nos meus ouvidos, eu tive que subir não sei quantos passos para ver um lago com o qual eu não sabia o que fazer. Eu não o vi naquele dia. Nenhuma fantasia foi a fonte do meu desejo pelo riólito (eu poderia ter escrito delírio sem pestanejar!), foi pelo desejo que eu tinha de mostrar aos habitantes do lugar que a minha paixão não me distanciou tanto deles, foi esse desejo que me guiou. Eu queria essa presença nas imediações da cor napolitana, seria a prova da regularidade do meu gosto e a grande lógica que dirige toda a minha prática onde a desordem não tem lugar tanto quanto o melhor é a ordem em curto circuito com ela mesma. Mas naquele momento não havia riólito, ele não suscitava nenhum eco em meus interlocutores. (GETTE, 2001, pp.7-8, tradução minha).39 Percebemos que o texto do artista, bem como de outros autores que foram convidados a participar do livro, desenvolve-se assumindo diversos papéis: a descrição de um método, a observação de um processo, a literatura quase como fluxo de pensamento. Juntamente, estão dispostas as imagens que, em alguns momentos, se dirigem às palavras de forma explícita, enquanto em outros, parecem construir camadas heterogêneas. 39 “Au début il y eut L’Éloge du jaune de Naples et du volcanisme campanien .6..9................. Nesse sentido, a viagem empreendida por Gette acompanha meu pensamento sobre os usos possíveis de elementos distintos dentro de um mesmo trabalho artístico. Penso que no trabalho agora analisado, há um deslizamento entre zonas: zona natural, zona cultural, zona fotográfica, zona textual, zona material. A relação da natureza com a fotografia, o texto e as pedras em minha pesquisa não é, portanto, aquela de registro, muito menos uma construção restrita à noção de cultura. Tomo emprestadas as palavras de Flusser: A cultura pode vir a ser a natureza do homem. Já o é, com efeito, em determinadas situações (...). E a cultura, enquanto natureza do homem, é o campo da liberdade. Nela, os dedos podem realizar suas virtualidades. Eis o que revela a observação dos meus dedos enquanto ba- tem o presente texto. (FLUSSER, 1979, p. 69). que Jean-François Taddeï; proposait de montrer à Saint-Philbert-de-Grand-Lieu. Ce nom fit surgir de ma mémoire une rhyolithe dont j’avais, plusieurs années auparavant, vu un superbe échantillon dans une vitrine du Musée de l’École des Mines à Paris. L’étiquette qui l’accompagnait était un peu laconique et indiquait comme provenance : Lac de Grand Lieu. Je me voyais déjà tenant entre mes mains ma roche préférée. Voici la raison qui fit que je déboulais un jour à Saint Philbert en criant la rhyolithe, la rhyolithe! Ils m’ont regardé d’un drôle d’air ceux qui m’accueillaient gentiment. Ce n’était pas leur affaire la roche volcanique. Ils me trouvaient bien énergumène, on ne peut pas dire que les choses commençaient bien. Ils m’ont parlé du lac, de la possibilité qu’il y avait de le voir en montant dans un clocher. Je n’en croyais pas mes oreilles, il fallait que je grimpe je ne sais pas combien de marches pour voir un lac dont je ne savais que faire. Je ne le vis pas ce jour-là. / Nulle fantaisie n’était à l’origine de mon désir rhyolithique (j’aurais pu écrire délire sans qu’il y ait lapsus!), c’était l’envie que j’avais de montrer aux habitants du lieu que ma passion n’était pas aussi éloignée d’eux, c’était cette envie qui me guidait. Je tenais à cette présence dans le voisinage de la couleur napolitaine, elle serait la preuve de la constance de mes goûts et de la grande logique qui dirige l’ensemble de ma pratique où le désordre n’a pas sa place tant il est préférable de mettre l’ordre en court-circuit avec lui-même. Mais à cet instant de rhyolithe il n’y en avait pas, elle ne suscitait aucun écho chez mes interlocuteurs.” .7..0................. Mais uma vez nos deparamos com a ideia de espaços da cidade permeados pela natureza: seja em Na minha cidade tem um rio, seja em Montenegro andamos na beira do rio, os trajetos parecem conduzir-me ao rio como o elemento natural que atua como interstício no território urbano. 1.4. Entre zonas Poderíamos pensar a cidade sem o rio? O rio sem a cidade? O antropólogo Philippe Descola faz uma interessante pergunta que vem ao encontro dessa indagação: Onde termina a natureza e onde começa a cultura quando eu faço uma refeição, quando eu identifico um animal pelo nome ou quando eu busco o caminho das constelações no céu? Em suma, para usar uma imagem de Alfred Whitehead, “as bordas da natureza ainda estão em frangalhos”. (DESCOLA, 2002, p. 15, tradução minha).40 O homem ocidental moderno parece preso a uma visão dualista da natureza e da cultura. Mas de onde viria essa dualidade? Philippe Descola41 procura analisar como essa oposição se constituiu, conduzindo uma reflexão sobre a história, apontando que essa dualidade é recente. A ideia de natureza tomou sua forma definitiva no século XVII, quando não existia ainda o conceito de 40 “Où s’arrête la nature et où la culture commence-t-elle lorsque je prends un repas, lorsque j’identifie un animal par son nom ou lorsque je cherche le tracé des constellations dans la voûte céleste? Bref, pour reprendre une image d’Alfred Whitehead, « les bords de la nature sont toujours en lambeau.”(Acessado em 2205/2016).isuais, aressante pergunta 41 Ver especialmente entrevista de Marie-Laure Théodule com Philippe Descola: . Acesso em: 16 de julho de 2016. .7..1................. comunidade cultural: havia um homem individual, o indivíduo transformador da natureza. A noção de cultura como a conhecemos hoje, e que pensamos ser universal, foi na verdade concebida no século XIX na Alemanha. O conceito moderno de cultura, por sua vez, se construiu ao redor da ideia de povo. Essa noção de cultura passou a ser exportada da Europa para os Estados Unidos e a partir de então há uma concepção de que existe, de um lado, o mundo natural, e, de outro, uma grande variedade de culturas que se adaptam ao ambiente natural. Essa é a figura clássica por muito tempo aceita pela antropologia e que também se tornou o senso comum para compreender a diversidade do mundo. Segundo Philippe Descola, entretanto, não há razão para que a nossa maneira de entender mundo de maneira dual seja a única válida, nesse caminho, procura desenvolver uma teoria alternativa para a distinção entre natureza e sociedade: À primeira vista, poderíamos pensar que não há dificuldade em distinguir o que diz respeito à natureza do que diz respeito à cultura. É natural que tudo que se produz sem a ação humana, aquilo que existiu antes do homem e que existirá depois dele, como os oceanos, as montanhas, a atmosfera e as florestas; é cultural tudo que é produzido pela ação humana, sejam objetos, ideias ou ainda certas coisas que estão a meio caminho entre objetos, aquilo que chamamos de instituições: um idioma, a Constituição francesa ou o sistema escolar, por exemplo. Se saio para passear pelo campo e atravesso um bosque, estou em meio à natureza. Mas se ouço um avião que passa sobre mim ou um trator nas proximidades, então esses objetos fabricados e utilizados pelos homens, objetos, portanto, que pertencem à cultura. No entanto, essa distinção nem sempre é tão simples assim. (DESCOLA, 2016, p. 7). .7..2................. Para o autor, a maior parte das coisas que conosco convivem estão em um contexto intermediário, podem transitar entre natureza e cultura. Como exemplo, cita-nos a cerca viva, feita de plantas. É viva, natural, mas também é técnica, manipulada, utilitária. Supostamente, assim, todos pensamos saber o que é natureza, ela está atrelada à vida, à origem de todas as coisas; são as plantas, as águas, os animais, as montanhas, os desertos, os vulcões. Ela está lá fora. Associamos igualmente a natureza a uma oposição às cidades, ao cotidiano, ao que está atrelado à vida social, ao espaço construído, à história. Essa ideia de natureza apartada é reforçada, como menciona Descola, a partir da modernidade. O conceito de natureza transforma-se e mudou através dos tempos. Robert Lenoble, no seu conhecido estudo Histoire de l’idée de la Nature (1969/2015) aponta que a natureza em si mesma existe enquanto pensamento, a natureza em si é uma abstração. Encontramos percepções diferentes da natureza, que tomam sentidos diferentes segundo determinadas épocas. Sendo assim, “é por isso que dizemos que esse conceito de Natureza toma todo o seu sentido somente na história: ele expressa menos uma realidade passiva percebida do que uma atitude humana diante das coisas” (LENOBLE, 2015, p. 238, tradução minha)42. Lenoble lembra-nos ainda que: “A Natureza não é campo unicamente do cientista. Ela fala também ao poeta e ao artista” (LENOBLE, 2015, p. 29, tradução minha)43. Ao buscar inserir-se nas ciências humanas, a filosofia afastou-se da natureza. Poder-se-ia paralelamente traçar também 42 “C’est pourquoi nous disons que ce concept de Nature ne prend tout son sens que dans l’histoire: il exprime moins une realité passive perçue qu’une attitude de l’homme devant les choses.” 43 “Mais la Nature n’est pas le champ du seul savant. Elle parle aussi au poète et au artiste (...).” .7..3................. um distanciamento da vida cotidiana com a natureza, que passa a dizer respeito muito mais à ciência do que à filosofia, à antropologia e à arte. O filósofo Emanuele Coccia, mais recentemente, retoma o interesse da filosofia pela natureza, especialmente em La vie des plante: une métaphysique du mélange (2016), e fala-nos que a própria filosofia surge como uma inquietação a respeito da natureza, do cosmos, da vida, da física. Em um primeiro momento, a natureza é vida e movimento: Pois a natureza não significa o que precede à atividade da mente humana, nem o oposto da cultura, mas o que permite que todos nasçam e se tornem, o princípio e a força responsáveis pela gênese e transformação de qualquer objeto, coisa, entidade ou ideia que existe e existirá. Identificar a natureza e o cosmo significa, antes de tudo, fazer da natureza, não um princípio separado, mas o que é expresso em tudo o que é. (COCCIA: 2016, pp. 31-32, tradução minha).44 Para Coccia, a natureza, cada vez mais distanciada, passou a ser destratada pela filosofia. Servil às outras disciplinas do conhecimento, a filosofia passa a considerá-la filosoficamente irrelevante: Todavia, as consequências não interessaram somente à filosofia e ao seu estatuto epistemológico e não definiram somente o estranho poder reconhecido às ciências humanas e sociais. A estranha divisão de objetos e competências que define hoje o sistema das discipli- 44 “Car nature désignait non pas ce qui précède l’activité de l’esprit humain, ni l’opposé de de la culture, mais ce qui permet à tout de naître et de devenir, le principe et la force responsables de la genèse et de la transformation de n’importe quel objet, chose, entité ou idée qui existe et existera. Identifier nature et cosmos signifie tout d’abord faire de la nature, non pas un principe séparé mais ce qui s’exprime dans tout ce qui est.” .7..4................. nas acadêmicas produziu confusões e impasses também e, sobretudo, nas ciências naturais. A constante divisão de cultura e natureza, de espírito e matéria, nos currículos assim como nos saberes acadêmicos, apesar da aceitação quase geral das teses de Darwin da origem animal do homem, são índice de uma má consciência sobre a qual é necessário, talvez, insistir. (COCCIA, 2013, p. 199, tradução minha). É relativamente recente — século XVII, na Europa — o distanciamento entre natureza e homem, que com suas técnicas científicas passa a explorar massivamente os recursos naturais. Retomando Lenoble, o autor identifica momentos que cercam as distintas ideias de natureza: Em que Natureza o homem de uma certa época ou de uma certa civilização viveu? Se quisermos nos livrar do prestígio verbal da palavra inalterada e seguir as metamorfoses desse habitat que sucessivamente o homem considerou como seu, pode-se tomar como absolutamente certo que a representação da Natureza prevalecente em cada caso influenciará todas as mentes — de estudiosos ou de artistas (...). (LENOBLE, 2015, p. 84, tradução minha).45 Um momento inicial se estenderia até o Renascimento, trataria de uma natureza maternal da qual depende o ser humano, a natureza que dá a vida, surgindo dessa concepção a ideia de “Mãe Natureza”. Em um momento posterior, a natureza deixaria de ser 45 “Dans quelle Nature l’homme d’une certaine époque ou d’une certaine civilisation a-il-vécu? Si l’on veut bien se déprendre du prestige verbal du mot inchangé et suivre les métamorphoses de cet habitat que successivement l’homme a pris pour le sien, on peut tenir pour absolument certain que la représentation de la Nature qui prévaut dans chaque cas donné va influencer tous les esprits: savants et artistes (...).” .7..5................. compreendida como mãe e se distanciaria do ser humano, agora muito mais conectado ao divino. A natureza perde sua dimensão mágica, passa a ser mecânica, coisificada, ela pode ser explorada. Assim, transformações ocorridas no século XVI com o Renascimento e no século XVII com a Revolução Científica modificaram visões de mundo, de natureza e de sociedade. Sabemos também, através da antropologia, que a distinção clássica entre natureza e cultura não é compartilhada universal e homogeneamente. O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro tem discutido há bastante tempo as diferentes concepções desses conceitos nos povos ameríndios, ou nas “cosmologias não-ocidentais” e, para tanto, utiliza o termo “multinaturalismo”46: Em particular, como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa. Tal crítica, no caso presente, exige a dissociação e redistribuição dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob os rótulos de “Natureza” e “Cultura”: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade 46 Castro também discorre nesse texto sobre o conceito de “perspectivismo” da seguinte forma: “Portanto, se os salmões parecem aos salmões o que os humanos parecem aos humanos — e isto é o ‘animismo’ —, os salmões não parecem humanos aos humanos, nem os humanos aos salmões — e isto é o ‘perspectivismo’. O que as cosmologias indígenas afirmam, finalmente, não é tanto a ideia de que os animais são semelhantes aos humanos, mas sim a de que eles — e, portanto, nós — são diferentes de si mesmos: a diferença é interna ou intensiva, não externa ou extensiva. Se todos têm alma, ninguém é idêntico a si mesmo” (CASTRO, 2004, p. 238). Salientando que: “O perspectivismo não é um relativismo, mas um relacionalismo” (CASTRO, 2004, p. 239). .7..6................. e humanidade, e outros tantos. Esse reembaralhamento das cartas conceituais leva-me a sugerir o termo ‘multinaturalismo’ para assinalar um dos traços contrastivos do pensamento ameríndio em relação às cosmologias ‘multiculturalistas’ modernas. Enquanto estas se apoiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas — a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e do significado —, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a natureza ou o objeto a forma do particular. Essa inversão, talvez demasiado simétrica para ser mais que especulativa, deve-se desdobrar em uma interpretação das noções cosmológicas ameríndias, capaz de determinar as condições de constituição dos contextos que se poderiam chamar ‘natureza’ e ‘cultura’. Recombinar, portanto, para em seguida dessubstancializar, pois as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais; elas não assinalam regiões do ser, mas antes configurações relacionais, perspectivas móveis, em suma — pontos de vista. (CASTRO, 2004, pp. 225-226). Castro adverte que a distinção entre natureza e cultura pode ser criticada e relativizada, mas “não para concluir que tal coisa não existe (já há coisas demais que não existem)” (CASTRO, 2004, p. 226). Podem ser criadas noções não-binárias dessa dicotomia; entretanto, para o antropólogo, tais concepções ainda ficariam no terreno unicamente de uma nova palavra, e não de um novo conceito. Como aponta: “Prefiro, enquanto espero, perspectivar nossos contrastes, contrastando-os com as distinções efetivamente operantes nas cosmologias ameríndias” (CASTRO, .7..7................. 2004, p. 226). Logicamente, Castro circunscreve seu pensamento para analisar um grupo social específico. Assim mesmo, penso que podemos ampliar as noções de natureza e cultura em minha investigação a partir do aporte teórico da filosofia e da antropologia dos autores agora pesquisados. Os debates sobre arte, vida, cidade e natureza permeiam minha investigação artística, levando-me à tentativa de compreender melhor essas relações, que não são rígidas e não dizem respeito unicamente a uma pesquisa em Poéticas Visuais. Percebo que mesmo não desejando pensar e agir utilizando dualidades, as contraposições e justaposições ressurgem a cada momento quando se mergulha em tais noções. Com frequência, vida e arte, natureza e cidade são termos colocados como antagônicos tanto nas narrativas da história da arte quanto em nossos discursos cotidianos. Entretanto, como apontam antropólogos, filósofos, urbanistas — e, no caso dessa investigação específica, artistas —, busca-se gerar uma imbricação entre essas instâncias, embaralhando percepções dicotômicas e tateando uma outra zona possível de atuação. 1.5. Nina e a natureza na cidade Voltando-me novamente à ideia de Michel de Certeau de que praticando lugares estaríamos gerando espaços, que nossos passos seriam enunciações construtoras de discursos na cidade, observo a natureza que concebe espaços e que, através de sua presença, habita lugares. As cidades são o meio habitado por mais de cinquenta por cento47 da população mundial; dessa forma, po- 47 De acordo com informações levantadas pelo projeto Deutsche Umwelthilife: A new relationship between city and wilderness. A case for wilder urban nature (STÖCKER; SUNTKEN; WISSEL, 2014, p. 3). .7..8................. demos prever que a maioria das pessoas percebe a natureza a partir de um ponto de vista urbano. Esses espaços naturais dentro da cidade são, na maioria das vezes, cultivados de acordo com uma perspectiva paisagística e utilitária; canteiros, jardins, parques. Meu foco, entretanto, partindo dessa constatação, está em lugares que estejam um pouco distantes de tal concepção. Dessa forma, o trabalho Um lugar, Nina (2015-2016) (figs. 31, 32, 33 e 34) parte de um desejo antigo: realizar espécies de vídeo-retratos que jogassem com a imagem estática e em movimento, conectados a espaços da natureza inserida em territórios urbanos. As cidades têm se mostrado um terreno fértil para minhas investigações, mais especificamente, o espaço do dia a dia, da vida comum, em que uma ideia de natureza parece brotar como uma estranha ocorrência. Nessa proposta, então, parti de um convite a algumas pessoas para que escolhessem um lugar em sua cidade (Porto Alegre, onde resido, ou Montenegro, em que trabalho) e a ele me levassem para que lá eu registrasse um retrato videográfico e uma fotografia do local escolhido. Aos convidados, foi unicamente pedido que olhassem para câmera por cinco minutos. Não havia proposta de que se movimentassem ou falassem algo. Dentre todas as participações, somente uma, de fato, constituiu-se como parte do trabalho desenvolvido. Houve uma exclusão inicial de algumas das cenas cujo foco parecia-me inadequado ou com problemas de enquadramento. Analisando os resultados atentamente, percebo que, na realidade, minha escolha foi direcionada para a única participação em que a natureza urbana enfaticamente adquire presença. Dessa constatação, o trabalho tomou um desvio da ideia original e se instalou uma troca entre Nina Piccoli, convidada para participar da proposta, e eu: primeiramente, Nina levou-me a um lugar em Montenegro e, posteriormente, conduzi Nina a um local escolhido por mim, a Avenida Beira Rio, em Porto Alegre. .7..9................. Fig. 31 e fig. 32 – Mariana Silva da Silva, Um lugar, Nina, 2 vídeos de 2 minutos cada, duas fotografias 50×70 cm cada (2016). Fonte: acervo pessoal. .8..0................. Fig. 33 e fig. 34 – Mariana Silva da Silva, Um lugar, Nina, 2 vídeos de 2 minutos cada, duas fotografias 50×70 cm cada (2016). Fonte: acervo pessoal. .8..1................. O local determinado por Nina em Montenegro foi um terreno baldio na zona central da cidade. O dia bastante nublado e o surgimento de ventos ocasionais contribuíram para um conjunto de imagens em que o clima também se mostra um elemento importante. Escolhi para esse trabalho não usar som48, e nesse sentido, os movimentos produzidos pelo vento e pelas folhagens sugerem sensações sonoras, mesmo que inaudíveis. O rosto de Nina é atravessado por sensações produzidas pelo clima, pela natureza. Em Um lugar, Nina há uma evidência das sensações e atitudes despertadas pelo clima e pela natureza como algo que nos atravessa, mas permanece sempre invisível. Aproximo esse trabalho da obra da artista Roni Horn, You are the weather (1994-96) (figs. 35 e 36) e de seu pensamento da “face como lugar”49. Horn aborda o clima relacionado às sutilezas do rosto, a uma atmosfera que se modifica sem que se saiba muito bem o motivo (ora as fotografias parecem todas iguais, ora temos certeza de que são muito diferentes). Trata-se de um conjunto de imagens, coloridas e em preto e branco, de um rosto de uma mulher molhado, como se saído do mar ou de um rio. A sequência de fotografias proposta por Roni Horn introduz o movimento ao conjunto, movimentos praticamente inapreensíveis, pequenas variações de tempo que passam muitas vezes desapercebidas — como cotidianamente não percebemos o cresci- 48 A noção de “entre-imagens” exposta por Raymond Bellour é consoante, portanto, ao uso do vídeo nesta pesquisa. O vídeo como passagem “entre o móvel e o imóvel, entre a analogia fotográfica e o que transforma (...) Flutuando entre dois fotogramas, assim como entre duas telas, entre duas espessuras de matéria, assim como entre duas velocidades, ele é pouco localizável: é a variação e a dispersão” (BELLOUR: 1997, p. 15). Seguindo essa maneira de pensar sobre imagens-vídeo que também podem ser imagens-fotografia, decidi por apresentar o trabalho Um lugar, Nina como uma montagem que mescle as duas formas de construir imagens. 49 “It’s about the face as place” é uma frase da artista Roni Horn sobre seu .8..2................. Fig. 35 e fig. 36 – Roni Horn, detalhes de You are the weather (1994-1995). Trinta e seis fotografias em gelatina de prata e sessenta e quatro fotografias do tipo cromo. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .8..3................. mento dos fios de cabelo ou das unhas (ou o movimento dos olhos piscando). O nome do trabalho sugere uma relação com o clima (weather) que necessariamente conduz ao tempo. Você é o clima (you are the weather), e diríamos igualmente você é o tempo. Horn, a propósito desse trabalho, também elaborado sob a forma de um livro, diz que: “Há muita coisa lá fora no mundo que não é visível, quer pela sua natureza ou localização. Mas essas coisas não visíveis afetam você tão profundamente quanto as visíveis”.50 As sobrancelhas que enrugam, a pele que se contrai e uma gota que escorre sobre o rosto reverberam a concepção de infra-acontecimentos. Essa abordagem de uma espécie de atmosfera que desafia sua possiblidade de apreensão está também presente em Um lugar, na medida em que se tenta registrar as variações produzidas pela luz e pelo vento sobre a face e a expressão de Nina em zonas de natureza dentro da cidade. Em uma etapa posterior, portanto, registrei Nina novamente em um lugar diferente, a beira do rio Guaíba em Porto Alegre. Com alguns meses de espaçamento, observam-se algumas modificações em sua aparência e, no segundo vídeo, ela parece mais concentrada em olhar para câmera e não para fora de campo. Essas nuances, pequenas transformações entre a fisionomia de Nina e o entorno, mostraram-se muito importantes para o trabalho. Emanuele Coccia, em La vie des plante: une métaphysique du mélange, aponta-nos que o termo atmosfera é moderno, in- trabalho You are the weather. Entrevista com Roni Horn, realizada por Claudia Spinelli disponível no site: . Acesso em: 22 de agosto de 2003. 50 “There’s a lot out there in the world that’s not visible either by nature or location. But these non-visible things affect you as deeply as the visible ones” (SCHUG, Sarah. Roni Horn at Munich’s Sammlung Götz. The Word Magazine, abr. 2013, tradução minha. Disponível em: < http://thewordmagazine.com/art/roni-horn-atmunichs-sammlung-gotz/> Acesso em: 17 set. 2015). .8..4................. ventado no século XVII para denominar uma expressão de origem holandesa que significa “região vaporosa”(COCCIA, 2016, p. 69). Durante muito tempo, a atmosfera foi o espaço de circulação e ligação entre todas as coisas. Para Coccia, a atmosfera é, então, o espaço das misturas entre todos elementos, sem que cada um perca sua identidade, é mais uma zona de contato do que propriamente uma fusão. A ideia de atmosfera pode ser compreendida como coexistência entre humanos e não humanos. Para o filósofo: “Viver em sociedade significa participar da construção dessas atmosferas” (COCCIA, 2016, p. 85, tradução minha).51 A imagem de Nina está, assim, integrada ao entorno urbano, à atmosfera que se cria no trabalho, ao entorno natural que engloba a cidade e sua biodiversidade: em um primeiro momento, o vento e a fotografia do mato que cresce desordenadamente no terreno vago, em pleno centro de Montenegro; num segundo momento, o rio Guaíba praticamente na beira de uma grande avenida na zona sul de Porto Alegre, pode ser avistado na imagem fotográfica ao lado do segundo vídeo. Esses elementos assinalam como a dualidade da cidade e da natureza são mantidos em nosso cotidiano. As cidades foram construídas para proteger o homem das ameaças naturais: as intempéries, os animais selvagens, as temperaturas adversas. Para o historiador Keith Thomas, “a cidade fora sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das florestas e encerrá-los numa cidade era o mesmo que civilizá-los” (THOMAS, 2010, p. 345). Nosso ambiente urbano nasce a partir de uma espécie de cassa à natureza, ou pelo menos, de uma tentativa de dominá-la, como apontam Catherine e Raphaël Larrère (2015, p. 76). Falamos de uma biodiversidade urbana, “uma biodiversidade que não compreende somente 51 “Vivre en société signifie participer à la construction de ces atmosphères.” .8..5................. as espécies selvagens ou naturais (independentes do homem)” (LARRÈRE; LARRÈRE, 2015, p. 78, tradução minha).52 Existem formas de natureza que surgem nos meios urbanos independente da vontade humana. São vegetações e animais que se desenvolvem em sítios abandonados, algumas de origem estrangeira àquele ambiente, crescem em lugares ignorados; trilhos de trem em desuso, fábricas fechadas, construções negligenciadas, beiras de estradas. Essa natureza particular é nomeada pelo biólogo Ingo Kowarik como quarta natureza porque não se caracteriza como vestígio anterior à ocupação humana, tampouco está associada à agricultura e, por fim, não é desejada ou planejada pelas construções urbanas. Kowarik (2005) estuda esse tipo de natureza tomando como referência o Natur-Park Südgelände em Berlim, no distrito de Tempelhof-Schöneberg, outrora Berlim oriental. O sítio abrigava trilhos de trem, e foi construído entre 1880 e 1890. Tendo seus serviços ferroviários descontinuados a partir de 1952, ficou praticamente abandonado, servindo unicamente como local para conserto de vagões e depósito. A maior parte de Südgelände tornou-se, assim, um território rico para se desenvolver espontaneamente todo o tipo de espécies vegetais e mesmo animais. Para Kowarik, observando Südgelände, poderíamos então categorizar quatro tipos de natureza que podem ser encontrados nas cidades. O primeiro tipo, talvez o mais raro, seria a natureza selvagem ou primordial, antes da influência humana. A segunda natureza seria formada por resquícios de uma paisagem cultivada pela agricultura, muitas vezes ainda presentes nos espaços urbanos. O terceiro tipo, o mais frequente, a natureza que constitui os jardins, os loteamentos verdes, os par- 52 “(...) une biodiversité quei ne comprend pas seulement les espèces sauvages ou naturelles (indépendantes de l’homme.” .8..6................. ques e todos os espaços paisagísticos elaborados para uma vida urbana “saudável”. Nesse conjunto, então, encontramos a quarta natureza, a natureza urbano-industrial que está intimamente ligada ao desenvolvimento das cidades, que surge espontaneamente em áreas anteriormente utilizadas nesses contextos e depois negligenciadas: lotes vagos, trilhos de trem em desuso, fábricas fechadas, zonas com menor utilidade e valor econômico. Essa natureza reclama áreas que foram intensamente exploradas e transformadas pelo homem. Muitas vezes, os territórios da quarta natureza são desaconselhados para as práticas cotidianas, são lugares em que não se deve ir. O paradoxo então nasce exatamente nesse ponto: enquanto são lugares ricos para uma nova biodiversidade se desenvolver, na medida em que entramos em contato com ela novamente, essa natureza encontrar-se-á em perigo, já que estará exposta a interferências dos visitantes. Dessa forma, o Natur-Park Südgelände tenta sustentar sua biodiversidade novamente “selvagem” e as funções de um parque natural recreativo e de perfil educativo. Acredito que o conceito levantado por Kowarik é aqui valioso para pensarmos nas ressonâncias da natureza no infraordinário que o trabalho Um lugar, Nina assinala, bem como outros trabalhos desenvolvidos em minha pesquisa de doutoramento. Tanto o terreno baldio escolhido por Nina como o primeiro cenário quanto a movimentada avenida escolhida por mim alguns meses depois para o segundo cenário, desejam fazer ver uma natureza que está, frequentemente, fora de definição, fora de uso, fora das apresentações usuais da natureza. Ingo Kowarik acrescenta que o declínio da estrutura econômica anterior ao surgimento dessa nova forma de natureza é, portanto, flagrante. A percepção de uma natureza nova e pós-industrial é prejudicada pelo estigma das mudanças sociais que tornaram possível essa mesma natureza: .8..7................. O que molda o caráter dos novos bosques urbano-industriais é, brevemente, o contraste nítido entre uma camada cultural de escombros, ruínas e ferro oxidado e uma camada natural que cresce indomada e muitas vezes surpreendentemente rápida. No contexto da primeira, pode-se diagnosticar os novos bosques como completamente artificiais, no contexto da última, como tendo um caráter selvagem especial. Ambos, no entanto, claramente se pertencem e criam, a partir da natureza característica do arvoredo urbano-industrial, um produto igualmente natural e artificial. Essa bipolaridade, no entanto, não corresponde à imagem geral da natureza. Em vez disso, traz confusão e insegurança na classificação geral, bem como na classificação científica desses espaços. Consequentemente, existem diferentes classificações de bosques urbanos e industriais como artificiais ou naturais, como de forma tecnológica ou como região selvagem. É claro que, ligadas a classificações tão estritamente diferentes, existirão atribuições de valor significativamente divergentes que se tornarão pontos de partida para conceitos opostos para o desenvolvimento. As oportunidades que ofereçam as potenciais funções sociais e ecológicas dos novos bosques para o desenvolvimento da área urbana circundante podem ser então ignoradas. (KOWARIK, 2005, p. 3, tradução minha).53 53 “What shapes the character of the new urban-industrial woodlands is, briefly, the sharp contrast between a cultural layer of rubble, ruins and rusted iron and a natural layer that grows untamed and often surprisingly quickly. In the context of the former, one could diagnose the new woodlands as completely artificial, in the context of the latter as having a special wilderness character. Both, however, clearly belong together and create, from the characteristic double nature of urbanindustrial woodlands, a product that is equally natural and artificial. This bipolarity does not, however, correspond to the general image of nature. Rather it brings about confusion and insecurity in the general classification as well as in the scientific classification of these spaces. Consequently there are different classifications of urban-industrial woodlands as artificial or natural, as technologically shaped or as wilderness. It is clear that attached to such starkly different classifications will be significantly divergent assignments of value that will then become starting points for .8..8................. O autor aponta que a questão da “naturalidade” das novas zonas naturais urbanas leva, inegavelmente, a respostas cada vez mais variadas, diferenças nas percepções de naturalidade, que variam dramaticamente em diferentes áreas de referência geográfica e entre diferentes grupos. Com uma característica de natureza dupla, tanto produtos da natureza quanto da cultura, as formas de quarta natureza acabam gerando desafios ao serem classificadas, abrindo uma questão de difícil resposta porque as abordagens científicas tradicionais para a classificação dos tipos de ecossistema são geralmente orientadas pelos primeiros ecossistemas, puros e intocados. Ingo Kowarik salienta que seria necessário tornar esse novo tipo de natureza mais acessível e valorizado nas cidades. No desenvolvimento de áreas urbano-industriais, como é o caso de alguns parques históricos, existe um caminho a ser compartilhado entre disciplinas que muitas vezes trabalham separadamente umas das outras, como a história, a ecologia, a arte e a arquitetura. A conservação e o estudo dessa nova natureza pelas ciências em geral também passa por sua preservação histórica e pelo potencial artístico das paisagens pós-industriais. As ideias de Kowarik se aproximam da concepção de Terceira paisagem elaborada pelo paisagista Gilles Clément no livro Le Tiers paysage (2004). A Terceira Paisagem designa tipos de espaços abandonados, não trabalhados pelo homem, ignorados a seus próprios ciclos. Esses locais possuem uma rica biodiversidade, uma natureza que se nutre no cotidiano, ao longo do tempo, apartada de funções úteis, agrícolas ou mesmo decorativas. Dessa forma, como coloca Clément: “Pelo seu conteúdo, pelas partici- opposing concepts for development. Opportunities that would offer the potential social and ecological functions of the new woodlands for the development of the surrounding urban area may then be overlooked.” .8..9................. pações da diversidade, pela necessidade de preservá-la - ou para manter sua dinâmica — a Terceira Paisagem adquire uma dimensão política” (CLÉMENT, 2004, p. 9, tradução minha).54 Essa dimensão está presente na beira de estradas, nos terrenos baldios, como bem aponta Clément, já que se constituem em espaços indecisos, desprovido de função e de difícil nomeação: Esse conjunto não pertence ao território da sombra ou a da luz. Está nas margens. À beira da floresta, ao longo das estradas e dos rios, nos cantos esquecidos da cultura, onde as máquinas não passam. Abrange superfícies de tamanho modesto, espalhadas como os ângulos perdidos de um campo; unitários e vastos, como turfeiras, charnecas e alguns terrenos baldios de uma recessão recente. (CLÉMENT, 2004, p.4, tradução minha).55 O teor político estaria na contracorrente do funcionalismo e da utilidade. É importante descobrir, ao longo dessa pesquisa, que a escolha dos espaços que constituem as zonas de contato, suas reverberações em meus trabalhos artísticos e o papel assumido pela natureza urbana e infraordinária ecoam nas concepções elaboradas por Kowarik e Clément mesmo antes de com elas travar 54 “Par son contenu, par les enjeux que porte la diversité, par la nécessité de la préserver — ou d’en entretenir la dynamique — le Tiers paysage acquiert une dimension politique.” 55 A passagem completa é a seguinte: “Si l’on cesse de regarder le paysage comme l’objet d’une industrie on découvre subitement — est-ce un oubli du cartographe, une négligence du politique ? — une quantité d’espaces indécis, dépourvus de fonction sur lesquels il est difficile de porter un nom. Cet ensemble n’appartient ni au territoire de l’ombre ni à celui de la lumière. Il se situe aux marges. En lisière des bois, le long des routes et des rivières, dans les recoins oubliés de la culture, là où les machines ne passent pas. Il couvre des surfaces de dimensions modestes, dispersées comme les angles perdus d’un champ; unitaires et vastes comme les tourbières, les landes et certaines friches issues d’une déprise récente”. .9..0................. conexões. Ambos criam conceitos, a quarta natureza e a Terceira Paisagem respectivamente, de uma forma a delinear suas teorias que atravessadas pela biologia, ecologia e paisagismo podem encontrar também na arte um espaço fértil de reflexão e de experimentação sobre e na natureza. O convite de Nina para que entrássemos em contato com um lugar abandonado, uma natureza do terreno urbano sem uso, descartada, conduziu-me a pensar que ela também é natureza, ela também está impregnada pelos apelos naturais do entorno. O título indica, dessa forma, que a quarta natureza não é somente cenário para um retrato de Nina: ela é um conjunto formado com Nina. Elas estão em contiguidade. .9..1................. EM MONTENEGRO, ANDAMOS NA BEIRA DO RIO20 Cheguei a Montenegro pelas três horas da tarde. Assim que desci do ônibus, liguei para A. Ao me atender, achei sua voz relutante, talvez estivesse gripada ou dormindo. Perguntei se estava tudo bem e avisei da minha chegada. Disse-me que estava tudo bem, mas que achava que só chegaria pelas três e meia da tarde. Falei que iria ao café da rodoviária esperá-la. Nesse tempo curto de espera, pedi no balcão um café e um pão de queijo. Sentada em uma mesa, perto da janela (queria cuidar se A. estava chegando), comecei a morder o pãozinho e olhar coisas inúteis no celular. Logo chegaram as abelhas (nesse café da rodoviária de Montenegro sempre há abelhas). O senhor do caixa veio rapidamente abanar os insetos com seu pano de pratos meio molhado. Ele me contou que no terreno do lado deveriam ter muitas colmeias. Levantei, paguei minha conta e saí da cafeteria, pois não sou exatamente uma amante de abelhas. 20 Publicado em: SILVA, Mariana Silva da. “Em Montenegro, andamos na beira do rio”. In: SANTOS, Maria Ivone dos; MORADO, Marcela; DAMASCENO, Marcelo (Eds.). Formas de Pensar a Escultura. Perdidos no Espaço Público. Porto Alegre: UFRGS, n. 4, abr. 2016, pp. 22-23. .9..2................. A. chegou e fomos andando até a casa de T., nosso ponto de encontro antes do passeio na beira do rio. Conversamos e olhamos as casas antigas no caminho. Alguns prédios novos chamaram minha atenção, tamanha sua desconexão com o entorno. Paramos numa esquina para que eu colocasse uma blusa mais quente. Começava a esfriar em Montenegro. Avistei uma casa verde com bandeirinhas budistas em sua varanda, imaginei que havíamos encontrado a casa das meninas (T. mora com uma amiga). A. me confirmou de que se tratava mesmo da nova residência das amigas e se surpreendeu, pois não havia prestado atenção na decoração. Batemos palmas bem alto para que a anfitriã nos ouvisse. Quem ouviu primeiro foi a cachorrinha B., sem raça definida, baixinha, com pelagem caramelo e um charmoso dente canino que saía para fora de sua pequeníssima boca. Percebi uma hóspede felina escondida entre as grades do canteiro à direita. Provavelmente a gata do vizinho. T. nos ouviu e, muito sorridente, abriu o portão. Entramos no pátio da casa, um lugar amplo e cheio de árvores. Bergamoteira, limoeiro, muito vasos. Senti-me em uma casa de praia, já que eu, urbana e criada na cidade grande, sempre associo casa às praias que frequentava em minha infância, onde as portas podiam ficar abertas, e todos tinham jardins. Perambulamos um pouco pelo terreno, conhecemos a edícula dos fundos, que segundo consta, alaga durante as enchentes. Enfim, entramos e sentimos um cheirinho doce. T. nos esperava com um grande bolo de cenoura. A cobertura de leite condensado, ainda no fogão, havia queimado. Prontamente retirei uma barra de chocolate meio amargo da mochila e a derretemos em banho-maria com um pouco de leite. Uma nova cobertura estava pronta. A colega de casa chegou e a cumprimentamos comentando com curiosidade observações sobre seu novo corte de cabelo, colorido com mechas em tons de vinho. Após um breve diálogo sobre cabelos, casas, jardins e cachorros, todas sentamos na mesa da ampla cozinha para tomar café preto e comer bolo. .9..3................. A conversa durou quase duas horas e culminou com metade do bolo consumido. Decidimos que era hora de partir para nossa tarefa da sexta-feira, uma caminhada na beira do Rio Caí. Arrumamos as mochilas e as máquinas fotográficas e partimos para o rio. Caminhando em linha reta, parando para observar, por alguns segundos, o morro ao longe chegamos rapidamente no cais. Comentei que era muito perto. Dobramos à direita e andamos sem nenhum objetivo específico. Observamos as plantas e matos nascidos na encosta e alguns corajosos homens pescando. Corajosos porque imaginamos que a água fosse muito poluída para se comer qualquer coisa que viesse dela. Tirei muitas fotos descompromissadamente, até me ater a um enquadramento específico: metade vegetação, metade água. A. sugeriu que descêssemos pelas escadas do calçadão até a beira do rio. T. carregava sua câmera e avistou um barco enferrujado, aparentemente um barco de coleta de terra ou algo do gênero. A. su- .9..4................. geriu que entrássemos nele, ao mesmo tempo em que já ia entrando. T. seguiu-a e ambas ficaram refletindo sobre a função daquela grande massa de ferro encalhada. Fizeram algumas brincadeiras e deram muitas gargalhadas. Não me atrevi a acompanhá-las e fiquei fotografando-as de fora do barco. Na saída, percebemos uma espécie de cacho negro no chão. Eram mexilhões de rio, pequenas carcaças de conchas. T. e eu desconhecíamos a existência dessa espécie. A. sabia, por sua vez, que eles existiam. Agora me indago por que não os fotografei. Decidimos andar mais um pouco no sentido de uma grande ruína de um frigorífico que funcionava na região, cujo nome não me recordo. O antigo prédio ainda deixava ver sua imponência de outrora. Uma rampa de concreto muito bem estruturada ligava o térreo ao último andar da construção. Fotografei essa estrutura e depois deletei a foto quando A. me explicou o funcionamento de tal rampa. Os animais subiam lentamente por ela, até a chegada ao topo, em que eram abati- .9..5................. dos. Imaginei a lentidão dos bichos subindo e pensei que não gostaria de guardar aquela imagem comigo. Resolvi que precisava coletar algumas pedras do rio. Andamos mais um pouco por um caminho terroso e escondido. Achei algumas pedras que pareciam vindas da água e não se assemelhavam às britas que cobriam toda a estrada. Estavam embarradas, e perguntei se alguém tinha um saco para guardá-las. Ninguém. A. então parou em frente à empresa de uma pessoa conhecida, que retira areia do rio, pensando em conversar com os donos e pedir uma sacola. Foi recebida por um gentil cachorro preto, que mais tarde soubemos se tratar de uma fêmea abandonada no pátio que se juntou aos outros dois cães já existentes no espaço. Perguntou sobre a amiga e o senhor que a recebeu, marido da mulher, informou que ela não estava, mas tinha uma sacola. Muito conversadores, os dois acabaram combinando de andar alguns metros até os barcos da empresa, sugadores de .9..6................. areia. Convidaram-nos para ir juntos. Vendo minha dúvida, o senhor nos disse que não andaríamos de barco, somente subiríamos na improvisada passarela para observarmos mais de perto. Adentramos um mato espesso, e lá estava uma estreita passagem de metal telado, com duas barras protetoras. O espaço para andar era tão estreito e alto que me deu vertigem. Mandaram-me não olhar para baixo, não olhar para o rio que deslizava abaixo de nós. Havia uma família pescando, e tudo parecia tão sujo. O que iriam pescar ali? Voltamos nossa atenção para os barcos. Andamos em linha, o senhor, eu, A. e T. atrás de mim. O senhor nos explicou todo o processo de retirada da areia de dentro das águas do Caí. Os barcos tinham canos e peças que não compreendi, além de caixas de água e botijões de gás em seu topo. Ao que parece, verdadeiras casas flutuantes que, além de morada temporária, funcionam como coletadoras. Enquanto as funções de cada coisa nos eram contadas, pensei em fotografar os .9..7................. dois barcos. Senti um quase pânico em ter que acionar a máquina e me segurar nos cabos da pas-sarela ao mesmo tempo. Consegui algumas fotos e fiquei satisfeita com minha coragem. Demos meia volta em fila e voltamos para terra firme. Caminhamos até a empresa novamente e passamos a olhar de perto um contêiner que guardava o lixo coletado junto com a areia do rio. Havia um par de botas de borracha preta, lonas de saco de frutas e todo um conjunto de coisas que jamais pensara em encontrar num rio. O senhor nos contou a história do lugar, nos apontou para uma guarita de madeira, sustentada por pilotis, quase um mini chalé, ao lado do portão principal. Ali começou a empresa: durante a construção do imóvel em que nos achávamos, usavam a pequena casa como escritório. Tudo foi pensado em função das enchentes. As casas nessa região devem ser altas, devem ter a garagem abaixo delas, para que seja fácil de .9..8................. evacuar quando as águas sobem. Mesmo a escavadeira fica em cima de um cume de terra, para que não seja inundada durante as chuvas. Os cachorros de pelo amarelo dormiam abraçados e encolhidos atrás do prédio. O senhor nos contou que abandonam animais em seu terreno e que, para ele, os cães são bons para a guarda. Começava a escurecer e achamos melhor encerrar nosso passeio daquela tarde. Agradecemos muito a conversa e nos despedimos. Senti-me grata pelo encontro. A luz estava propícia para mais algumas fotografias. T. entristeceu-se, pois acabara sua bateria. Capturei algumas imagens para ela e retornamos pelo sentido do centro. Mais algumas quadras e nos despedimos, combinando que tínhamos o dever de contar uma história do nosso dia. Teríamos, assim, três histórias em uma. E muitas imagens. E três pedras. .9..9................. 2. RESSONÂNCIA II: apresentações da natureza ELABORE ALGUMA COISA DE NATURAL. Hans Haacke59 Faça alguma coisa de receptivo (with experiences), de reativo ao ambiente, de mutável, de instável. Faça alguma coisa de indeterminado, com uma aparência sempre diferente, cuja forma não possa ser predita com exatidão. Faça alguma coisa que não pode “performar” (perform) sem a assistência de seu ambiente. Faça alguma coisa de reativo à luz e às mudanças de temperatura, sujeito às correntes de ar, e dependente, em seu próprio funcionamento, de forças da gravidade. Faça alguma coisa que o espectador possa manipular, com o qual ele jogue e anime. Faça alguma coisa que viva no tempo e que permita ao “espectador” fazer a experiência do tempo. Elabore alguma coisa de natural. 59 Hans Haacke, Statement, Colônia, primavera de 1965, texto escrito em alemão e publicado em maio de 1965 pela galeria Schmela em Dusseldorf; traduzido para o francês por Franck Lemonde e publicado em: HAACKE, Hans. Élabore quelque chose de Naturel. In: LAVIGNE, Emma; MEISEL, Hélène; QUINZ, Emanuele (Eds.). Jardin infini: Une anthologie. Metz: Centre Pompidou-Metz, 2017, p. 204. Tradução minha. .1..0..2............... Antes de 227, um desconhecido escreveu um Tratado dos Rios que foi atribuído a Plutarco. Enumera os rios da Europa e da Ásia. A propósito de cada um deles, evoca assustadoras e fabulosas lembranças. Assinala igualmente as plantas e as pedras que se encontram em suas margens. Roger Caillois .1..0..3............... Só de botar o dedo na água, sente-se bem que não é assim tão natural que ele esteja normalmente no ar. Nathalie Quintane .1..0..4............... 2. RESSONÂNCIA II: apresentações da natureza A arte contemporânea tem se voltado à natureza com bastante ênfase, passando por sua observação, representação, até a ação direta sobre e a partir de fenômenos naturais. Problemas ambientais e enfoque ecológico se entrelaçam a experiências tecnológicas que ampliam o campo da arte para o ativismo.60 Com- 60 Refiro-me aqui, especialmente, a exposições como, por exemplo, Quiet Earth (2013) ocorrida em Nova York, no Rauschenberg Project Space, sobre crise ambiental e aquecimento global; Animer Le Paysage : sur la piste des vivants (2017) no Musée de la Chasse et de la Nature, em Paris, sobre as relações entre territórios naturais, ecologia e globalização da agricultura, somente para citar algumas, e livros como aquele do historiador de arte TJ Demos, Decolonizing Nature: Contemporary Art and the Politcs of Ecology (2016). Segundo o autor, a ecologia teria recebido pouca atenção na história da arte recente, mas sua visibilidade estaria aumentando devido a ameaças climáticas e destruição ambiental. Cercando práticas heterogêneas que unem arte e ativismo, a arte dentro do desígnio ecológico, escolhido por TJ Demos, atravessa discursos cujos assuntos vão desde a agricultura neoliberal, passando pela biotecnologia e pela genética. Nesse sentido, a emergência da questão ambiental, frequentemente, como apontam Matias e Matias (2008), centrar-se-ia em três questões principais: superpopulação mundial, esgotamento de recursos naturais e geração excessiva .1..0..5............... preendo que as formas de apresentação da natureza assumidas pelos trabalhos produzidos nesta pesquisa são parcelas da natureza reorganizadas e reelaboradas dentro de um escopo da arte, dentre tantos outros possíveis para se atuar com a natureza de forma artística, mas não se adequam em uma concepção ativista e ecológica. Os trabalhos artísticos desenvolvidos ao longo do doutorado, e mesmo antes dele, são motivados por ressonâncias da natureza no infraordinário, mas não necessariamente acrescentam algo a esse conjunto que é vivo, cambiante e potente. Utilizam-se de ferramentas advindas do campo da arte, como fotografar, escrever e desenhar. É nesse viés que acredito estar inserido o livro Como desenhar pedras61, (figs. 37, 38 e 39) um projeto iniciado durante o segundo semestre de 2014. O livro mede dezoito por vinte e quatro centímetros e três milímetros (18×24,3 cm) e reúne unicamente imagens em suas quarenta e quatro páginas. Essas imagens, desenhos e fotografias de resíduos não recicláveis. Essas temáticas, parecem-me enfocar uma dualidade homem x natureza como uma batalha sem vencedores, em que o homem é o destruidor de uma natureza flagelada e desequilibrada por suas ações. Destaco, nesse ponto, a fala desses autores: “Em última análise, resolver a questão ambiental significa transcender a oposição seres humanos/natureza que é, no atual sistema econômico, determinada pelo antagonismo entre capital e trabalho. Dessa forma, mantém-se viva a necessidade de uma revolução social e política, não como uma aspiração utópica, antes, como um projeto historicamente viável” (MATIAS; MATIAS, 2008, p. 225). Ver ainda a matéria “Green is the new black”, de Benedicte Ramade, na revista de arte contemporânea Zero Deux para quem a questão ambiental de algumas exposições de arte contemporânea sobre o assunto é utilitarista, da sobrevivência do humano, muito mais do que aquela da proteção da natureza por si mesma. Disponível em: . Acesso em: 16 de julho de 2018. 61 Livro de edição independente, impresso em offset na gráfica Calábria em Porto Alegre, no ano de 2018; primeira edição de cem exemplares. Projeto gráfico de Glaucis de Morais e ficha catalográfica de Cristiane Dias. ISBN: 978-85-455197-0-6. .1..0..6............... Fig. 37 – Mariana Silva da Silva, Como desenhar pedras, detalhe de capa, edição da autora, 44 p., 18×24,3 cm (2018). Fonte: acervo pessoal. Página seguinte: Fig. 38 e fig. 39 – Mariana Silva da Silva, Como desenhar pedras, detalhe de livro, imagens internas, edição da autora, 44 p., 18×24,3 cm (2018). Fonte: acervo pessoal. .1..0..7............... .1..0..8............... foram inicialmente recolhidas na internet, utilizando como ferramenta o sistema de buscas Google Imagens. Para tanto, a frase “Como desenhar pedras” foi utilizada em português, francês e inglês com o objetivo de nortear a pesquisa iconográfica. A partir da coleta de um grande número de figuras, inicialmente foram selecionadas aquelas de maior resolução para a confecção do livro. Após esse primeiro estágio, outras combinações de frases passaram a ser incorporadas às ferramentas de busca: “como desenhar minerais”, “desenhar minerais”, “desenhar rochas”, “desenhar pedras”, “desenhar seixos”, todas igualmente variando o idioma. Passei a selecionar as imagens mais por sua atratividade imagética, formas, cores, curiosidade, isto é, os critérios tornaram-se mais subjetivos do que na inicial busca mecânica do Google Imagens. A maior parte de imagens de pedra que o livro agrega são parcelas de rochas fotografadas e desenhadas para fins científicos, artísticos e históricos. Há também a recorrência de imagens de trabalhos de alguns artistas que apareceram mescladas por outras tantas interpretações possíveis da frase.62 Assim como as próprias pedras, retiradas de um contexto a princípio “natural”, essas imagens encontradas também foram destacadas de seu ambiente original, tendo seu sentido modificado através da edição do livro. Conforme mencionado, o processo de elaboração desse trabalho também está atrelado a investigações realizadas anteriormente, no contexto de ações artísticas e fotografias ao redor do rio Caí, em Montenegro, e do Guaíba, em Porto Alegre. A figura do rio como infiltração e zona de contato tem sido um terreno de motivação constante, promovendo saídas de campo em que utilizo a fotografia e coleto diferentes tipos de materiais. 62 Há imagens por exemplo de autoria dos artistas Claude Cahun (1894-1954), René Magritte (1898-1967) e Jimmie Durham (1940). .1..0..9............... Em uma dessas caminhadas, iniciei uma coleta de cascalhos da beira do rio Caí. Os cascalhos foram guardados como uma espécie de suvenir daquela paisagem e daquelas experiências momentâneas. São fragmentos do qual emerge uma paisagem não panorâmica, concentrada e sedimentada. Essa forma de tempo e natureza calcada na matéria sugere-me uma visão também fragmentada da paisagem fluvial. Observando os pequenos seixos, indaguei-me se para um outro observador que não eu seria possível saber de onde eles seriam, se teriam características específicas de seu local de origem e se possuiriam traços de tempo de sua existência. Provavelmente para um geólogo ou para um outro estudioso das ciências naturais, sim; contudo, não sou propriamente uma cientista. Essa coleção se insere dentro de ações presumivelmente artísticas. O que faz tradicionalmente um artista com a natureza? Ele cria representações, paisagens, pinta, desenha, fotografa, esculpe. Os minerais são frequentemente atrativos para muitas pessoas. Essa atração pelas pedras pode ser compartilhada tanto por amadores, em coletas de final de semana, quanto por cientistas profissionais e, logicamente, artistas. Também suscitam o interesse místico em algumas práticas esotéricas e espirituais. Segundo Malek Abbou, e Rébecca François: Usados desde os tempos pré-históricos na fabricação da pintura, os minerais são gradualmente reunidos, preservados, organizados e listados em coleções particulares, gabinetes de curiosidades ou galerias de mineralogia, são até representados e se tornam um sujeito aparentemente pictórico, como as suntuosas pinturas de vitrines e espécimes mineralógicos de Leroy de Barde no século XIX. Com as evocações poéticas dos surrealistas e as experiências e instalações de Arte Povera, Land Art ou Supports-Surfaces em parti- .1..1..0............... cular, essas obras-primas involuntárias do universo se tornam em contato com artistas, obras de arte. Hoje, os artistas usam pedras cruas como ressensibilização de ready-mades, colecionam-nas, apresentam-nas ou representam-nas, enquanto outras as submetem a experiências, transformam-nas e produzem simulacros. (ABBOU; FRANÇOIS, 2016, pp. 19-21, tradução minha).63 A coleta desses minerais pode organizar-se enquanto um grupo de amostras ou fragmentos de um espaço natural a ser estudado pelo artista. A frase “Como desenhar pedras” é, nesse sentido, uma indicação de um aprendizado tipicamente artístico: desenhar, especialmente a partir da análise de amostras. Faz parte da educação do artista aprender a desenhar, e esse ensino muitas vezes ocorre através do desenho de observação da natureza. O livro Como desenhar pedras não é, entretanto, um manual convencional de desenho, ele é mais uma coleção de modelos, de concepções do que seriam representações de pedras. Ele apresenta uma visão fragmentada, de falsa neutralidade científica (catalogação das pedras) e prática (manual de desenhos). Na arte contemporânea, tem sido recorrente uma aproximação com a linguagem científica de representação do mundo. 63 “Utilisés depuis la préhistoire dans la confection même de la peinture, les minéraux sont, peu à peu, réunis, conservés, arrangés et répertoriés au sein de collections privées, de cabinets de curiosités ou de galeries minéralogiques jusqu’à être representes et devenir un sujet pictural à part entere à l’instar des somptueux tableaux de vitrines et spécimens minéralogiques de Leroy de Barde au XIXe siècle. Avec les évocations poétiques des surréalistes puis les expérimentations et installations de l’Arte Povera, du Land art ou de SupportsSurfaces notamment, ces involontaires chefs-d’oeuvres de l’univers deviennent au contact des artistes, oeuvres d’art. Aujourd’hui, les artistes utilisent les pierres brutes tels de ready-mades re-sensibili’ses, les collectent, les mettent en scène ou les représentent, quand d’autres les soumettent à des expérimentations, les transforment et produisent des simulacres.” .1..1..1............... A propósito de livros de artista que jogam com essa operação de coleção e catalogação, Amir Cadôr coloca que: A aproximação com a ciência também pode ser uma crítica ao modelo de objetividade. Uma forma de recusa à lógica e às tentativas de classificação da experiência artística é a incorporação de padrões aleatórios como critério para ordenar os elementos ou uma sequência de eventos. (CADÔR, 2012, p. 70). E ainda: “A ideia de enciclopédia como coleção é ainda mais verdadeira quando se trata de uma enciclopédia visual baseada em imagens existentes, produzidas por diversas pessoas, algumas anônimas, e recolhidas de um grande número de fontes” (CADÔR: 2012, p. 83). Sendo assim, o que se pretende na reunião dessas imagens de pedras é exatamente assinalar uma neutralidade recorrente de seu anonimato autoral. A sequencialidade das representações cria uma edição em aberto, em que cada leitor do livro produzirá seu próprio sentido de leitura. Esse aspecto pode igualmente ser evidenciado no livro Mother Nature (2014) (figs. 40, 41 e 42) de Erik Kessels (1966), em que propõe um livro a partir de sua própria coleção de fotografias. Mother Nature (“Mãe Natureza”) reúne imagens de mulheres posando em frente à natureza: parques, canteiros de flores, jardins públicos e privados, campos em área rural. Partindo de um tema universal, a própria “Mãe Natureza”, o artista joga com a repetição e a diferença, com o presente e o passado, em fotografias de vários lugares e épocas que têm em comum os dois personagens explicitamente colocados no título: uma mulher e uma natureza. O livro nos leva a lugares, gerações e culturas em que histórias particulares e banais compõem um todo no qual nossas próprias práticas e hábitos em relação à imagem fotográfica e à natureza .1..1..2............... Fig. 40, fig. 41 e fig. 42 – Erik Kessels, Mother Nature, livro, detalhe de capa e imagens internas (2014). Paris, RVB Books (2014). Formato: 13,5×21,5 cm, capa dura, 140 p. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..1..3............... também são repetidos: fazer fotografias e posar com e na natureza, ser turista em espaços verdes, fotografar o que pensamos ser naturalmente belo. Conforme mencionado brevemente no capítulo anterior, sabemos que a Mãe Natureza64 é uma das alegorias mais antigas para se pensar a natureza, associando a fertilidade feminina ao poder criador da natureza. De acordo com Lenoble: A Naturphilosophie alemã do século XIX é em grande parte uma modernização desse tema essencial da Mãe Natureza, cuja importância vamos ver ao longo da história. Mas esta mãe, também podemos imaginá-la como madrasta. Como a humanidade mantém o desejo de 64 De acordo com Márcia Gonçalves, em Filosofia da Natureza, a concepção de uma natureza auto-organizada voltará a aparecer na segunda metade do século XX, e “é muitas vezes acompanhada pela imagem da natureza como grande mãe” (GONÇALVES, 2006, p. 17). Nessa via, podemos reconhecer essa preocupação em muitas instâncias da ecologia contemporânea, que retoma mesmo mitos longínquos. Esse é o caso da Pachamama, no Equador, também chamada de Mãe Terra, mito ameríndio da América Latina que está cada vez mais presente em discursos ambientais, políticos e intelectuais, que visam ir contra o uso que o capitalismo faz da natureza, conforme descreve Maëlle Mariette (“Em busca da Pachamama”, Le Monde Diplomatique, 2 de março de 2018). Outra consideração sobre esse assunto pode ser evidenciada na fala de Descola: “Muitas organizações ecológicas, aliás, encontram uma fonte de inspiração nas visões de mundo dos índios da Amazônia ou da América do Norte, convertidos pela mídia em símbolos da convivência harmoniosa com uma natureza cada vez mais ameaçada. A ‘mãe-terra’ ou a ‘floresta sagrada’ tornam-se conceitos genéricos da sabedoria étnica, mas seria bem difícil encontrar seu equivalente exato na maior parte dos povos a quem se atribui esse tipo de noção, pois tais transposições em mão dupla não estão livres de quiproquó: frequentemente, a retórica ecológica de alguns líderes indígenas exprime menos as concepções cosmológicas tradicionais — complexas e diversificadas, logo difíceis de formular no código simplificador de nossa economia política da natureza — do que um desejo de obter o apoio de organizações internacionais influentes, graças a um discurso facilmente reconhecível, e com a finalidade de conduzir lutas de reivindicação territorial (...)”(DESCOLA, 1998, p. 24). .1..1..4............... subsistir, é porque nela encontra otimismo suficiente para se defender dessa visão. No entanto, a fertilidade da Natureza, fonte de emoção religiosa para alguns, é dada pelos pessimistas, um Malthus, um Schopenhauer, pelo mal essencial e pela suprema ilusão. Estes dois aspectos da Mãe Natureza, admiráveis ou terríveis, entrelaçam-se curiosamente no materialismo dialético, no qual o fervor mecanicista foi o efeito de uma crise da juventude e nas filosofias da história de nosso tempo que são apocalipses. (LENOBLE, 2015, p. 29, tradução minha).65 É assim então, que, com graça e também com afetividade, o livro Mother Nature resgata a ideia primordial da mãe-terra (da deusa fértil, da grande mãe, que às vezes é bondosa, generosa, outras vezes, destruidora, catastrófica) e a recoloca nas singelas poses, nas paisagens floridas e banais dos passeios de final de semana. Não se trata, portanto, de mulheres, fotografias e naturezas extraordinárias, mas muito mais de pessoas comuns, como nós, em fotografias simples e em lugares banais. A economia formal na apresentação das imagens, o caráter claro e sintético é tomado aqui sem nenhuma utilidade em 65 “La Naturphilosophie allemande du XIXe siècle n’est en grande partie qu’une modernisation de ce thème essentiel de la Mère Nature, dont nous verrons tout au long de l’histoire l’énorme importance. Mais cette Mère, on peut aussi se la représenter comme une marâtre. Puisque l’humanité garde le désir de subsister, c’est qu’elle trouve en elle assez d’optimisme pour se défendre de cette vision. Pourtant la fécondité de la Nature, source d’émotion religieuse pour les uns, est donnée par les pessimistes, un Malthus, un Schopenhauer, pour le mal essentiel et la suprême illusion. Ces deux aspects de la Mère Nature, admirable ou terrible, s’entrecroisent curieusement dans le matérialisme dialectique, chez qui la ferveur mécaniste fit l’effet d’une crise de jeunesse, et dans les philosophies de l’histoire de notre époque qui sont des apocalypses.” .1..1..5............... particular, nem conclusão possível. Esse lugar hesitante entre descrição, coleção, natureza e arte é igualmente recorrente na obra do artista Paul-Armand Gette que, como vimos, realiza incursões e trajetos por espaços naturais, que não se assemelham às caminhadas de outros movimentos artísticos visando a paisagem. Sua poética está mais centrada na escala do artista-observador. Demonstra interesse especial pela botânica, pelo clima e pelas coleções de elementos naturais, que passam por catalogação e organização minuciosa a partir de princípios totalmente pessoais. Segundo Colette Garraud (1994) em ensaio sobre o artista, em um primeiro momento poderíamos dizer que Gette consagra grande parte de sua obra à natureza. Se analisarmos, entretanto, mais profundamente, percebemos que, na realidade, o artista desconfia da natureza como uma noção romântica idealizada, desconfia do belo natural: para ele o belo natural não existe, ele está sempre em relação ao não-natural. O que o motiva é o conhecimento científico da natureza, a natureza apreendida em uma dimensão cultural. De acordo com palavras do próprio artista: “(...) a grande elegância da ciência em relação à arte é inventar métodos, sistemas e de colocá-los imediatamente disponíveis para todos, mesmo que sejam somente hipóteses de trabalho ou teorias que se provam mais ao uso poético do que científico” (GETTE apud OBRIST, 2012, p. 85, tradução minha)66. O artista, no entanto, não pretende encontrar uma nova verdade científica, ele emprega uma reclassificação de elementos a partir de escolhas subjetivas que nos levam a reavaliar nosso entendimento usual do ambiente natural e cultural. 66 “(...) la grande élégance de la science par rapport à l’art est d’inventer des méthodes, des systèmes et de les mettre tout de suite à la disposition de chacun, même si ce ne sont que des hypothèses de travail ou des théories qui s’avèrent à l’usage plus poétiques que scientifiques.” .1..1..6............... Secondary Successions / Successions secondaires (figs. 43 e 44) faz parte desse interesse pela botânica, e seu título refere-se a um termo científico para uma nova população de plantas espontâneas surgidas em um ecossistema que já teve vida, mas sucumbiu a alguma perturbação anterior. Dezoito painéis apresentam os resultados relacionados a coletas de vegetais pela cidade: gráficos, mapas, listas de plantas, fotografias e plantas secas. As observações foram realizadas em Paris, na margem direita do rio Sena (em 1972) e em Londres (em 1973) ao longo do Tâmisa, resultando em duas exposições. A pesquisa empreendida ultrapassa a contemplação da natureza, fazendo uma reflexão também sobre a linguagem — a utilização dos nomes latinos das plantas mais ordinárias que vivem à margem dos rios urbanos lhes fornece um apreço digno dos mais exóticos espécimes de regiões longínquas. Gette é, de certa forma, um cientista-artista do banal natural. Os fragmentos de natureza que nascem nas margens da cidade já são natureza, não o são? De fato, a natureza não está lá fora, longe, afastada. A relação com a natureza expressa-se através da linguagem, de signos construídos pelo homem e a partir de então, ela deixa de ser natureza e torna-se outra coisa. É nesse sentido que o livro Como desenhar pedras pretende também estar nesse lugar da margem entre natureza e cultura, em que a própria pedra é um fragmento de natureza, um fragmento de catalogações, de listas, um fragmento de arte. Michael Jakob em Le paysage (2009) fala-nos que é “somente a partir da cidade que a consciência e o desejo da natureza tomam partida e conduzem à constituição da paisagem” (JAKOB, 2009, p. 44, tradução minha)67. Tentar recuperar a natureza e as 67 “Ce n’est qu’à partir de la ville, du lieu ayant perdu le contact symbiotique avec son environnement, que la conscience et le désir de nature prennent leur départ et mènent à la constituition du paysage”. .1..1..7............... Fig. 43 – Paul-Armand Gette, Secondary Successions (1972-1973), série de 18 painéis, mapas, listas, gráficos e plantas secas. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..1..8............... Fig. 44 – Paul-Armand Gette, Secondary Successions (1972-1973), série de 18 painéis, mapas, listas, gráficos e plantas secas. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..1..9............... relações estabelecidas com ela, para o autor, é dar-se conta de que não pertencemos mais a ela, não dominamos mais os valores da terra, não possuímos mais conhecimentos práticos sobre ela e seus usos. Essa busca pela volta à natureza é, então, intelectual, e a reapropriação da relação com a natureza seria da ordem da estética: é a experiência estética que seria capaz de estabelecer esse reencontro, ainda que simbólico, e o acontecimento com o natural. Citando Jakob: Estar na natureza, perscrutar seus detalhes mais ínfimos, reforça ainda mais a convicção do não-pertencimento e a diferença fundamental que separa o homem da natureza. Só através e na imagem que a relação se estabelece, relação que toma em um primeiro momento a forma de imagem-paisagem. Isso, entretanto, não funciona de maneira nenhuma como uma fusão entre sujeito e natureza; pelo contrário, ela se limita a gerar uma ideia da natureza com a qual o sujeito pode, na ocasião, fundir-se esteticamente. (JAKOB, 2009, p. 51, tradução minha).68 Como desenhar pedras constitui-se de imagens-fragmentos-de-natureza, em que totalidade, função e autoria dos cenários dos quais provém as imagens restam desconhecidos. A natureza total, ad infinitum, permanece fora do quadro. O advérbio “como”, por sua vez, indica um regramento que objetiva dominar essa natureza, aqui presentificada pelo elemento mineral; entretanto ne- 68 “Se trouver dans la nature, la scruter jusque dans ses détails les plus infimes, renforce encore la conviction de la non-appartenance et la différence fondamentale séparant l’homme de la nature. Ce n’est que par et dans l’image que la relation se fait, relation qui prend dans un premier temps la forme de l’image-paysage. Celleci ne foncionne toutefois pas du tout comme fusion entre sujet et nature; elle se limite plutôt à livrer une idée de la nature avec laquelle le sujet pourra, à l’occasion, fuisonner esthétiquement”. .1..2..0............... nhuma regra eficaz é seguida, e as imagens se sucedem aleatoriamente. Se o título é categórico, o conteúdo é impreciso. 2.1 Fragmentos da natureza Entende-se aqui a ideia de fragmento literalmente, como a parte de um todo, amostras de algo percorrido e vivenciado. Com frequência essas partes são por mim coletadas, descritas, fotografadas, conforme demonstrado anteriormente, em trabalhos como o livro Como desenhar pedras. Nessa coleta, realizada nos percursos pelas cidades e pelos rios, posso eventualmente recolher cascas de árvores, sementes, plantas cujo nome desconheço, e, mais comumente, pedras. É um hábito corriqueiro, compartilhado por muitas pessoas. Esses fragmentos podem ser guardados por um certo tempo, algumas vezes, esquecidos e descartados e, em outras circunstâncias, podem originar alguma forma de pensamento, articulando textos e imagens. É nessa última condição que se iniciou a coleta de pedras na beira de rios, com mais assiduidade na beira do Caí. Podemos pensar mais atentamente nas pedras com Roger Caillois69, teórico e ensaísta, cujo encantamento pelo mundo mineral, revela-nos uma visão minuciosa sobre os minerais (os quais colecionava com muito empenho), em que as ciências naturais e a poesia desenham imagens novas do universo: Com frequência, procuramos não somente as pedras preciosas, mas também as pedras curiosas, aquelas que chamam a atenção por alguma ano- 69 A obra de Caillois será também abordada a seguir, no relato Le récit des pierres (“O relato das pedras”), escrito durante o período de Doutorado-Sanduíche na França. A visita ao Museu de Mineralogia em Paris e, especialmente, a coleção de minerais de Callois, foram os disparadores do texto apresentado a seguir. .1..2..1............... malia de sua forma ou por alguma bizarrice significativa de desenho ou de cor. Quase sempre, trata-se de uma semelhança inesperada, improvável e, no entanto, natural, que provoca fascinação. De toda forma, as pedras possuem algo de grave, de fixo e de extremo, de indestrutível ou de já sucumbido. (CAILLOIS, 2015, p. 243, tradução minha).70 Ao entrar em contato com a obra de Caillois, penso ser proveitoso apontar alguns antecedentes dos trabalhos realizados agora, tendo em vista que, acessando propostas mais antigas, podemos adentrar em uma espécie de genealogia da investigação de qualquer artista. Dessa forma, retomando projetos distantes, poderia assinalar Constelar (figs. 45, 46 e 47), realizado em 2001, como um primeiro interesse pelos minerais e suas possibilidades de se pensar a natureza em minha pesquisa. A intervenção no espaço foi realizada em atelier, como uma experiência quase sem público e, posteriormente, foi desmanchada. Tratava-se da inserção de pequenas amostras de piritas dentro de orifícios abertos sobre uma parede, criando uma linha desenhada por pedras. O título do trabalho, em forma de verbo, “constelar”, apontava para a ideia de se criar uma constelação, mais uma vez, em escala “doméstica”, distante do longíquo espaço sideral e próxima do espaço íntimo. As piritas possuem um brilho peculiar, acionando uma atração semelhante a outras pedras que brilham; diferentemente das amostras de pedras encontradas nos rios, elas foram 70 “De tout temps, on a recherché non seleument les pierres précieuses, mais aussi des pierres curieuses, celles qui attirent l’attention par quelque anomalie de leur forme ou par quelque bizarrerie significative de dessin ou de couleur. Presque toujours, il s’agit d’une ressemblance inattendue, improbable et pourtant naturelle, qui provoque la fascination. De toute façon, les pierres possèdent on ne sait quoi de grave, de fixe et d’extrême, d’impérissable ou de déjà péri”. .1..2..2............... Fig. 45, fig. 46 e fig. 47 – Constelar (2001), intervenção em atelier. Fonte: fotografias de Helder Martinovsky. .1..2..3............... adquiridas em uma loja de minerais no centro de Porto Alegre. Foi um encontro de “pedras curiosas” — mais do que preciosas no sentido estrito — que chamaram minha atenção, parafraseando Caillois. Naquele momento, tratava-se de um interesse pela possibilidade de fazer um desenho de estrelas (pedras) a partir de uma ligação de ponto a ponto. As piritas reunidas indicavam a ideia de uma localização para além delas mesmas, reconfigurando um outro espaço de atuação entre natureza e arte, igualmente observado em um trabalho mais recente, a série de duas fotografias que compõem Montenegro (figs. 48 e 49). Essa série, por sua vez, conecta-se ao trabalho, já mencionado, Em Montenegro andamos na beira do rio, no qual associo pedras encontradas na beira do rio Caí com um texto que relata esse encontro, apresentado sob a forma de etiquetas coladas sobre os seixos dispostos em prateleiras de madeira. Duas das pedras coletadas, utilizadas naquela montagem, foram fotografadas em um espaço fechado, com um fundo colorido semelhante a suas colorações, de maneira que o foco das imagens se concentrasse unicamente nas formas e texturas das pedras. Pretendo ampliar a escala das pedras de forma que ganhem visibilidade, que carreguem em si o espaço em que foram coletadas, a cidade de Montenegro banhada pelo rio Caí. Como desenhar pedras, Em Montenegro andamos na beira do rio e a série Montenegro nascem de um mesmo percurso pela experiência da natureza com a cidade. É a partir de um percurso pelo rio que passei a coletar diversos tipos de seixos. Fotografar esses espécimes em um espaço planejado, o espaço do estúdio fotográfico, entretanto, desloca a referência espacial natural do seu local de origem, que é evidenciado pelo título da série. Sendo assim, as imagens produzidas desejam exatamente colocar em contato o campo produzido da fotografia — ou poderíamos pensar também, .1..2..4............... Fig. 48 e fig. 49 – Série Montenegro (2016), duas fotografias de 40x60 cada. Fonte: acervo pessoal. .1..2..5............... da arte e da cultura — com o campo da natureza do qual selecionou-se as pedras em primeiro lugar. Trabalhar com mais de uma fotografia permite-me gerar interstícios que estabelecem conexões e articulam os fragmentos da série, as duas imagens de pedras, destacando “o assunto”, a zona de contato entre a cidade de Montenegro e o rio Caí. Olhar para as duas fotografias, percorrê-las com esse olhar e com o corpo, pretende ligar-se à ideia de um percurso pela cidade. A série, a quase repetição de registros de espécimes muito parecidos, contudo, diferentes, pontua o itinerário de quem percorreu, de quem estava em um percurso pelo espaço urbano/natural. Para mim, não teria sentido fotografar somente uma pedra e tampouco várias: pensei que, dessa forma, duas já seriam uma reelaboração da duração do percurso pela cidade e pela beira do rio. O fato de percorrer uma série compreende também um deslocamento pelo conjunto formado pelas imagens e por seu entorno, por outros elementos que estejam juntamente apresentados, por exemplo, na exposição de defesa de tese. Percebo que há um diálogo proposto entre todos os trabalhos produzidos nessa investigação. Sejam quais meios assumam, todos estão interligados como se formassem uma grande série, em que cada peça convida outra a conversar. Em se tratando das peças fotográficas, concordo com Joan Fontcuberta, que diz: Hoje tirar uma foto já não implica tanto um registro de um acontecimento quanto uma parte substancial do acontecimento em si. Acontecimento e registro fotográfico se fundem. (...) Definitivamente, as fotos já não servem tanto para armazenar lembranças, nem são feitas para ser guardadas. Servem como exclamações de vitalidade, como extensões de certas vivências, que se transmitem, compartilham e desaparece, mental e/ou fisicamente. (FONTCUBERTA, 2012, pp. 30-32). .1..2..6............... Como “extensões de certas vivências”, tomando as palavras de Fontcuberta, as fotografias em série apresentam uma repetição, uma monotonia talvez inerente ao cotidiano. Essa forma visual pretende dar a ver o infraordinário em seu ritmo repetitivo. A fotografia está integrada aqui dentro de uma prática artística mais ampla, ela não seria o único produto desta investigação. Como esclarece Philippe Dubois: A atenção não recai mais sobre as categorias isoladas, mas pelo contrário, naquilo que é comum a várias categorias. Então, não existe mais o interesse pela fotografia como modo autônomo. (..) Não é mais uma questão de especificidade, mas uma questão de integração das artes, integração das imagens. (DUBOIS apud FATORELLI, 2013, p. 46). Meu processo de trabalho parece indicar-me que produzo fotografias, que, por sua vez, estão em relação a dadas circunstâncias e a elementos que compõem minha investigação. O processo de observar, de percorrer a beira do rio, de encontrar e recolher os fragmentos de natureza está intrinsecamente ligado à realização dessas imagens. A fotografia nesse ponto não existe per se, mas com. Ao analisar os discursos de artistas dos anos 60 e 70 que trabalhavam com a fotografia, a pesquisadora Juliana Gisi (2015, p. 116)71 conclui que o papel da fotografia pode mudar com bastante fluidez, inclusive na prática de um mesmo artista, o que acredito acontecer em minha própria. Gisi destaca três tipos de usos da fotografia nesse período, que podem ocorrer ainda nas poéticas contemporâneas: a fotografia como registro, a fotografia integrada 71 Juliana Gisi, artista, pesquisadora e professora realizou a tese de doutorado intitutalada Fotografia e Práticas Artísticas: os discursos dos artistas nos anos 1960 e 1970, em 2013, no PPGAV-UFRGS e posteriormente publicou-a em 2015 com o título de 60/70: As fotografias, os artistas e seus discursos. .1..2..7............... a uma prática artística e a fotografia como um resultado final. Esses grupos podem transitar uns pelos outros, de maneira dinâmica e não rígida. Assim, o primeiro grupo se caracterizaria por artistas que fotografam seus trabalhos transitórios ou produzidos em lugares distantes, mesmo inacessíveis a um grande público. Podem se tratar de obras efêmeras ou com uma considerável permanência; associo esse agrupamento aos artistas da Land Art, por exemplo. Uma outra vertente, seria aquela de práticas artísticas em que a fotografia está integrada no próprio processo de feitura do trabalho, o artista pode manipular a câmera e a imagem resultante é um dos produtos da ação; identificam-se aqui as propostas de fotografias performativas. Por fim, um outro grupo seria aquele em que a fotografia é encarada como produto final, em que o artista constrói uma situação a ser fotografada; esse seria o caso de uma fotografia que submete todos os dispositivos de seu processo a uma imagem. Percebo com esse estudo de Gisi que meus trabalhos se encontram na fronteira entre uma fotografia integrada à prática e uma fotografia que resulta em um trabalho de arte ou objeto. Talvez falar da fotografia aqui seja como falar da natureza e do cotidiano, são noções que escapam e se modificam em decorrência de múltiplos fatores. Gisi, de maneira muito pontual, esclarece-nos: A fotografia não aparece exatamente como um novo objeto para a disciplina das artes visuais: desde sua invenção ela tangencia esse campo e intermitentemente emerge quando a conjunção de fatores contextuais se mostra propícia; é reinventada para cada momento, como um objeto diferente. Falar de fotografia como um meio (entre outros e em relação a eles) para a produção artística é, portanto, resultado de um contexto que a percebe como significativa .1..2..8............... para questionamentos mais amplos do saber artístico. A aparição da fotografia como objeto do discurso artístico não responde por sua ontologia, sua suposta ‘verdade’, mas pelo modo de apropriação dela por este campo, por esta disciplina, neste momento. Isso significa que o contexto não produz o objeto em si — a coisa de que se fala —, ele nos informa sobre as condições que permitem a tal objeto aparecer nos discursos da arte e que estabelecem seus limites em relação à disciplina que o forma enquanto tal. (GISI, 2015, pp. 234-235). Interessa-me pensar que a fotografia está integrada ao cotidiano do percurso pela cidade, e que, por vezes, ela se sobressai a outros meios possíveis de se fazer arte nesse contexto. Coletar fragmentos da natureza e reapresentá-los através da fotografia é também uma operação de Natureza Morta (2012-2015) (fig. 50) da dupla de artistas Louise Ganz (1964) e Ines Linke (1971), que compõem o coletivo Thislandyourland. Essa proposta é interessante para pensarmos nos enquadramentos que a natureza assume na vida cotidiana e partiu de um protocolo que consistia em coletar matos, capins e ervas-daninhas em diferentes espaços urbanos, nos estados brasileiros Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Após uma coleta inicial, essas amostragens foram entregues a floristas, acostumados a executarem arranjos para decoração de mesas de festas e buffets. Cada profissional montou um arranjo de acordo com sua livre escolha, gosto pessoal e identidade. Os arranjos foram então fotografados. Os capins e matos de beira de estrada são completamente opostos às flores ornamentais que compõem os tradicionais buquês de festas. São plantas sem valor econômico, que nascem ao acaso e não são cultivadas pela mão humana, estão entregues a .1..2..9............... Fig. 50 – Thislandyourland (Louise Ganz e Ines Link). Natureza Morta - série 1 - Minas Gerais e Bahia (2012), apresentado na exposição Outros Lugares, no MAP, Belo Horizonte. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..3..0............... sua própria sorte. As artistas, ao intitularem de “natureza morta” o trabalho, conduzem-nos diretamente à história da pintura, em que a natureza morta é um gênero pictórico tradicional. Louise Ganz, ao abordar esse trabalho em seu livro Imaginários da Terra (2015), acredita, assim, apontar para um duplo caminho de artificialização e confronto da natureza. A produção da primeira composição formal, o buquê, e a composição da segunda composição formal, a fotografia, seriam um filtro cultural dessa parcela de natureza “bruta”, confrontando uma imagem decorativa da natureza a uma selvagem. Ganz compara Natureza Morta às coletas dos viajantes naturalistas dos séculos XVIII e XIX, que faziam expedições nas Américas, catalogando espécies da fauna e da flora. A apreensão de uma natureza “bruta” por Thislandyourland, que é posteriormente transformada em uma outra imagem de natureza, no procedimento coletar capins, organizar um buquê em um cenário e fotografá-lo, assinala o procedimento de coletar pedras, organizá-las em estúdio para então fotografá-las, operação empreendida por mim em Montenegro. Essa operação me faz pensar na reflexão de Viveiros de Castro sobre a ideia de eventos ou objetos considerados naturais ou não para diferentes grupos de humanos e não humanos: A tradução da ‘cultura’ para os mundos das subjetividades extra-humanas tem como corolário a redefinição de vários eventos e objetos ‘naturais’ como sendo índices a partir dos quais a agência social pode ser abduzida. O caso mais comum é a transformação de algo que, para os humanos, é um mero fato bruto, em um artefato ou comportamento altamente civilizados, do ponto de vista de outra espécie: o que chamamos ‘sangue’ é a ‘cerveja’ do jaguar, o que temos por um barreiro lamacento, antas têm por uma grande casa cerimonial, e assim por diante. Os artefatos possuem esta .1..3..1............... ontologia interessantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para um sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não material. E assim, o que uns chamam de ‘natureza’ pode bem ser a ‘cultura’ dos outros. (CASTRO, 2004, p. 233). Tendo essa citação em mente, podemos pensar que determinados objetos artísticos podem ser “ações congeladas”, que encarnam uma intencionalidade, colocando em tensão as definições dicotômicas aqui estudadas, natureza e arte, cidade e rio. Esse é o caso de uma obra em específico de Giuseppe Penone (1947). 2.2 Mais algumas pedras Desde meus estudos de mestrado, interessa-me a poética do artista Giuseppe Penone que, em sua obra, cruza diversos meios, assinalando um pensamento sobre a interação do corpo com o mundo ao seu redor. Aborda sistematicamente a relação entre corpo e natureza em trabalho. Mas o que é a natureza nesse contexto? Poder-se-ia aproximar o artista àquela resposta fornecida por Alfred Whitehead, a natureza aqui seria “aquilo que observamos pela percepção obtida através dos sentidos” (WHITEHEAD, 2006, p. 39, tradução minha).72 Em diferentes etapas de sua investigação, o artista depara-se com a fronteira da pele como instância fundamental do contato entre indivíduo e as coisas do mundo, entre o espaço natural que com ele interage. Penone explora a espacialidade dos sentidos, e, especialmente, do tocar em contato com elementos naturais. Ao envolver a si mesmo 72 Alfred Whitehead em Le concept de nature aponta: “La nature est ce que nous observons dans la perception par le sens”. .1..3..2............... em suas esculturas, articula natureza vegetal e natureza humana, engendrando igualmente uma metamorfose de uma na outra. Para o artista, sua escultura deve ser percebida como se observa um rio que encontra a terra, um conjunto de pedras, uma montanha. O contato entre as fronteiras da água e da areia provoca uma reação que de alguma maneira será absorvida pelos dois, mesmo que venham, após cada encontro, a se separar. Sedimentação, evaporação, infiltração. É nesse sentido que a obra de Penone está́ repleta de reflexões acerca do contato; sua dimensão física, presenciada e acionada por gestos. Ação e reação de um contínuo movimento do mundo em que seus elementos se encontram e, por vezes, misturam-se. Seguindo essa perspectiva de pensamento, gostaria de me aproximar do trabalho de Penone Essere fiume (“Ser rio”) (fig. 51), que consiste em duas pedras, uma retirada diretamente do rio, a outra, semelhante àquela encontrada no rio, foi esculpida pelo artista. Penone, assim, confunde-nos, embaralha materialidades; não se sabe ao certo qual seria a pedra “natural” e qual a produzida pelas mãos do escultor. Nesse ponto, poderíamos substituir a instrução “como desenhar pedras” por outra, “ como esculpir pedras”, já que o artista procura criar formas não somente a partir da, mas como na natureza. Para Georges Didi-Huberman (2009), Penone em suas próprias palavras, assume o papel do escultor-rio: O choque mútuo dos rochedos durante as enchentes, a fricção contínua da areia suspensa, o movimento contínuo das águas sobre o fundo, provocam o deslocamento muito lento das pedras maiores, o deslocamento lento das pedras médias, a corrida mais rápida do cascalho, o escoamento acelerado da areia fina, verdadeiro rio no rio. O rio carrega a montanha. O rio é veículo da montanha. Os golpes, os choques, as mutilações violentas que o rio inflige às rochas maiores, nelas batendo com as pedras .1..3..3............... Fig. 51 – Giuseppe Penone, Essere fiume (1981), pedra natural e pedra talhada, 40×40×50 cm aproximadamente. Fonte: GIANELLI; PENONE, 2007, p. 109. .1..3..4............... menores, a infiltração das águas nos leitos miúdos, nas falhas, destacam pedaços de blocos. Tudo serve para esboçar a forma — fruto de um trabalho contínuo feito de grandes e pequenos choques, de vagarosas passagens de areia, de estilhaços cortantes, da lenta fricção de grandes pressões, de choques surdos. A forma desenha-se e se torna sempre mais aparente. Será que o rio não tem como projeto nos revelar a essência, a qualidade mais pura, a mais secreta, a densidade extrema de cada elemento da pedra? (...) Impossível imaginar, impossível trabalhar a pedra segundo um modo diferente desse que o rio usa. O prego, o gradim, a tesoura, o abrasivo, a lixa, estas são ferramentas do rio. Extrair uma pedra que o rio esculpiu, recuar na história do rio, descobrir o lugar certo da montanha de onde vem a pedra, extrair da montanha um bloco novo, reproduzir exatamente a pedra extraída do rio no novo bloco de pedra, é ser rio. (...) Para esculpir a pedra na verdade, tem-se que ser rio. (PENONE apud DIDI-HUBERMAN 2009, p. 49).73 Tem-se que ser rio: tem-se que estar entre o sólido e o fluído, entre o permanente e o mutável para se esculpir pedras. As palavras do artista circunscrevem Essere fiume na zona de contato entre natureza e cultura, mais uma vez, cambiante, permeável. Para Penone, a pedra outrora esculpida pelo rio, tornar-se-á novamente poeira, “é somente uma questão de tempo”74. As pedras, para o artista, têm a capacidade de condensar tempo e espaço em sua materialidade e nos remetem à ideia original de Leonardo da Vinci (1452-1519) de que a força natural mais poderosa seria o 73 O texto original de Penone, nas versões em italiano e inglês, pode ser encontrado no catálogo organizado por Ida Gianelli e Giuseppe Penone (GIANELLI, Ida; PENONE, Giuseppe. Giuseppe Penone: sculture di linfa. 52 Esposizione Internazionale d’arte/ La Biennale di Venezia/ Padiglione Italiano, p. 108 e p. 228). 74 Em entrevista com Françoise Jaunin: “Ce n’est qu’une question de temps”(JAUNIN, 2012, p. 70, tradução minha). .1..3..5............... movimento da água nos rios, é a água que esculpe as formas rochosas, desenhando o espaço da natureza, um processo que leva muito tempo75. Leonardo da Vinci, em seus escritos, demonstrou seu interesse nas formações rochosas e nos fósseis. Concluiu que foram processos lentos da natureza que transformaram a superfície terrestre, e não atos puramente divinos. Encontrando restos de conchas e de peixes em zonas montanhosas, percebeu que onde havia terra, antes, poderia muito bem ter havido mar. Seus desenhos sobre formações rochosas (fig. 52), em bico de pena, foram conservados e nos revelam uma forma de compreender fenômenos naturais; o desenho descreve e igualmente perscruta os mecanismos da natureza. Para explicar a formação das pedras, talvez a mais antiga e primitiva explicação. segundo Lenoble, seja aquela de que “as pedras são geradas” (LENOBLE, 2015, p. 295, tradução minha)76, ou seja, elas nascem. Lenoble pontua, que, para Aristóteles, as pedras eram geradas na terra a partir dos quatro elementos com a ajuda do sol. No Renascimento, surgem as teorias de “sementes das pedras”: as pedras seriam geradas por suas próprias sementes (e teriam mesmo um sexo) e, até o século XVII, os fósseis eram também considerados pedras, a transformação de plantas e animais em pedras/fósseis viria de um “succus lapidificus” (suco lapidificante).77 75 Aqui me refiro aos estudos da geologia empreendidos por da Vinci. Ver: JONES, Jonathan. Leonardo da Vinci’s earth-shattering insights about geology. The Guardian, 23 de novembro de 2011. Disponível em: . Acesso em: 23 de julho de 2018. 76 “Les pierres sont engendrées.” 77 A expressão é citada por Lenoble e também por Hiro Hira (apud GOHAU) em Le concept de semence dans les théories de la matière à la Renaissance de Marsile .1..3..6............... Fig. 52 – Leonardo da Vinci, Estudo de formações rochosas, década de 1510, desenho em bico de pena, 18,5×26,8 cm. Fonte: LANEYRIE-DAGEN, 2010, p. 114. .1..3..7............... O mundo mineral suscitava mistério e simbolismos, mas Hubert (1366-1426) e Jan Van Eyck (1390-1441), por exemplo, fizeram escola pintando rochas e espécimes de minerais, perseguindo a realidade. A partir da escolha de algumas peças, colecionadas e inventariadas, criaram uma forma de pintar que virou, posteriormente, uma nova maneira de representar o solo na Europa do Norte, sendo levada adiante por seus seguidores. De acordo com Nadeije Laneyrie-Dagen, sua pintura seria uma das primeiras a fazer sentir a diversidade de fenômenos da natureza (LANERYRIE-DAGEN, 2010, p. 99). A Estigmatização de São Francisco (fig. 53), de Jan Van Eyck ou de um assistente, representa um episódio famoso na vida de São Francisco de Assis. Na frente do santo, seu discípulo Leo adormece sentado diante de uma fonte. Atrás dos dois homens, aparecem formações rochosas, pintadas com minúcia, e uma paisagem panorâmica onde se ergue, ao fundo, uma cidade banhada por um rio. Verdadeiras pedras serviram de modelo para essa pintura, conferindo uma visão bastante original dos minerais na arte de então. De acordo com Laneyrie-Dagen, indo na contramão dos pintores bizantinos e de seus italianos contemporâneos, aos Van Eyck interessava observar os rochedos como objetos da natureza, mais do que o simbolismo mágico da época. Um contraponto à forma de representar a natureza, e especialmente os minerais, é encontrado em Oração do Jardim das Oliveiras (fig. 54), de Andrea Mantegna (c.1431-1506), em que Cristo é consolado pelo anjo que lhe traz o cálice da Paixão. O conjunto rochoso em que Cristo se ajoelha oferece-nos nuances de cores diferentes, do cinza ao rosa pálido, até um marrom esverdeado. É intrigante que Mantegna não pareça estar interessado em diferen- Ficin à Pierre Gassendi, 2005. Disponível em: . Acesso em: 22 de julho de 2018. .1..3..8............... Fig. 53 – Jan Van Eyck, A Estigmatização de São Francisco (1438-1440). Óleo sobre painel, 12,7×14,6 cm, Philadelphia Museum of Art. Fonte: LANEYRIE-DAGEN, 2010, p. 98. Fig. 54 – Andrea Mantegna A Oração no jardim das Oliveiras (1457-1459) (do tríptico de San Zeno de Verona). Têmpera sobre madeira, 71,1×93,7 cm. Fonte: LANEYRIE-DAGEN, 2010, p. 106. .1..3..9............... ciar a pedra natural daquela esculpida. Segundo Laneyrie-Dagen, é essa sobreposição entre formas naturais e artificiais que separa com muita distinção a pintura do italiano daquela dos flamengos: A Oração no Jardim das Oliveiras, de Tours, contém ambiguidades semelhantes: é impossível aqui dizer se a margem do rio é de alvenaria ou se o empilhamento de pedras, debaixo da ponte a distância e onde a costa desenha uma sinuosidade, é uma curiosidade geológica: é igualmente impossível decidir se o banco de pedra, na frente das árvores na parte inferior, é uma parede ou um montículo natural. (LANEYRIE-DAGEN, 2010, p. 106, tradução minha).78 As pedras para Mantegna estariam a serviço do homem, mesmo que naturalmente talhadas pela própria natureza, de ordem divina: elas somente assim o foram, para servir ao humano. Seu interesse na mineralogia centrar-se-ia em seu interesse pela antiguidade, arquitetura e escultura, habilidades criadoras humanas. Pensar a pedra como elemento histórico, que sustenta a cultura ocidental humana, faz olharmos para outra face dos significados de uma natureza escultora reivindicada por Penone, por exemplo, e nessa perspectiva, também nos aproxima do trabalho do artista George Brecht (1926-2008), Vide (fig. 55). Uma pedra colocada no chão carrega gravada, sobre sua superfície, a palavra vide (“vazio” ou “vazia” em francês) em uma 78 “La Prière au jardin des Oliviers de Tours’ comporte des ambiguïtés analogues. Il est ici impossible de dire si la berge du ruisseau est maçonnée ou si le feuilletage de pierres, sous le pont au loin et là où la rive dessine une sinuosité, est une curiosité géologique. Il est de même impossible de décider si le talus de pierres, devant les arbres du fond, est un mur ou un tertre naturel”. .1..4..0............... Fig. 55 – George Brecht, Vide (1986), versão para Bienal de Lyon de 2017/2018, escultura, pedra gravada, 72×90 cm. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..4..1............... fonte semelhante a inscrições romanas. A pedra foi recolhida das imediações do rio Ródano, importante rio europeu que desagua no Mediterrâneo, rota de comércio desde a época greco-romana, conduzindo não somente mercadorias, como também dissipando a cultura romana para povos do ocidente, como os celtas, por exemplo. Dessa forma, a tipologia escolhida pelo artista retoma um passado cultural do rio. Sobre a peça, a partir do mineral e da palavra, ressoam ainda outras dualidades como o peso e a leveza, a densidade e a inconsistência e, consequentemente, a natureza e a cultura. Com a rocha que seria naturalmente pesada, é evocada a leveza da palavra “vazio”, insinuando talvez que a pedra seja oca ou mesmo artificial. A ideia de um “pesado” passado histórico presente na inscrição gravada não deixa de jogar com o humor e, talvez, com o esvaziamento dessa própria história. A pedra torna-se arte não pela ação ou escultura do artista, mas pelo verbo. São operações bastante distintas, aquelas empregadas por Penone e essa por Brecht, contudo, não posso deixar de pensar na sobreposição de natureza e cultura elaborada pelos dois artistas. Nesse caminho, poderíamos igualmente cercar as investigações do artista, escritor e ativista dos direitos cherokees, Jimmie Durham (1940). Durham produz uma arte ironicamente política, fazendo uso de materiais tão variados como crânios de animais, objetos do cotidiano e pedras, elementos que, em seu trabalho, carregam poesia e humor. Pedras são recorrentes nas investigações artísticas de Durham por seu potencial linguístico e poético; pedras comuns e banais, mas igualmente aquelas trabalhadas, paralelepípedos e até meio-fio de calçadas. As pedras apontam para um interesse pela arquitetura, sua monumentalidade e presumível permanência construída peça a peça. Dentro da pesquisa do artista, a pedra pode ter dupla função, aquela de ferramenta, fazendo uso da força para transformar algum objeto cotidiano, como .1..4..2............... carros, cadeiras e mesmo uma geladeira, e aquela de “uma pedra como pedra”79, ou seja, uma pedra coletada e exibida em diferentes contextos e significados elaborados pelo artista. A pedra é assim artefato, utensílio, mas também elemento natural apropriado e ressignificado. Home Becomes Further Away (“O lar passa a estar ainda mais longe”) (fig. 56) insere-se nesse escopo das pedras como pedras em sua pesquisa. São quatro pedras, de diferentes dimensões, talhadas em forma retangular, sobre quatro prateleiras de madeira. As pedras apresentadas por Durham muitas vezes instauram um discurso escrito (uma frase ou palavra), não necessariamente explicativo ou ilustrativo, sobre a maneira como nossas cidades são construídas e sua relação com a natureza. No trabalho em questão, os quatro espécimes são dispostos lado a lado, de forma que parecem estar diminuindo, como algo em pespectiva, visto de longe. Assim, o título sugestivo passa a indicar que “o lar está ficando ainda mais longe”, está cada vez mais distante, em um outro lugar. Durham em uma entrevista coloca: Tentamos negar a natureza, queremos desesperadamente viver em uma cidade longe da natureza, mas ainda assim pegamos resfriados; a natureza está sempre 79 Durante a exposição ocorrida no M HKA (Museum  of Contemporary Art Antwerp) A Matter of Life and Death and Singing (2012), sobre seu trabalho, Durham diz: “A maior parte da natureza é pedra; pedra está em toda parte. No entanto, apresentar pedras como arte é outra coisa. Bem, você tem que ajudar pedras, elas não funcionam sozinhas. É, portanto, o papel do artista apresentar essas pedras de várias maneiras, modificá-las, vesti-las, rotulá-las, para que elas possam se tornar obras de arte (ainda não negligenciando sua identidade primordial como pedras).” (“Most of nature is stone; stone is everywhere. However, presenting stones as art is something else. Well, you have to help stones, they don’t work on their own. It is therefore the role of the artist to present these stones in various ways, modify them, dress them up, label them, so that they can become works of art (still not neglecting their primal identity as stones)”. Tradução minha. .1..4..3............... Fig. 56 – Jimmie Durham, Home Becomes Further Away (2006). Paralelepípedos, madeira, pedra. Dimensões variáveis. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..4..4............... presente. É interessante considerar como as pessoas fazem as coisas agora — no que é, suponho, a era do computador — em comparação com as gerações anteriores. Eu posso fazer muitas coisas manualmente, tenho um monte de habilidades: posso esculpir, posso martelar, posso soldar. Mas não posso nem fazer um décimo do que meu pai poderia fazer: ele poderia fazer tudo. E os jovens artistas que são meus alunos não podem fazer nada com material físico bruto: eles não entendem suas propriedades e não sabem como trabalhar com isso. Isso não é necessariamente uma coisa negativa em si, mas o que é negativo é o que o acompanha: que você não conhece o mundo em que vive, não tem consciência disso, então, como ele está sendo manipulado, você está sendo manipulado contra a natureza, contra si mesmo, por interesses comerciais. (...) Eu não moraria em lugar algum além de uma cidade e gosto de grandes cidades. Eu gosto da combinação de anonimato e a oportunidade de interação social ao mesmo tempo. Em uma aldeia, a interação social é sempre muito próxima, muito íntima, intrusiva demais. Vizinhos espionando vizinhos. Mas você pode olhar para o planeta a distância e ver que nosso modo instintivo de ser humano é fazer cidades: fazemos isso em todos os lugares. É completamente na- tural. (BELL; DURHAM, 2012, s/p., tradução minha).80 80 “We try to deny nature, we desperately want to live in a city away from nature, yet we still catch colds; nature is ever-present. It’s interesting to consider how people do things now – in what is, I suppose, the computer age – compared to earlier generations. I can do many things manually, I have a lot of skills: I can carve, I can hammer, I can weld. But I cannot even do a tenth of what my father could: he could do everything. And the young artists who are my students can do nothing with raw physical material: they don’t understand its properties, and they don’t know how to work with it. This is not necessarily a negative is what goes along with it: that you don’t know the world you live in, you’re not conscious of it, so as it is being manipulated, you are being manipulated against nature, against yourself, by commercial interests. (...) I wouldn’t live anywhere but a city, and I like big cities. I like the combination of anonymity and the opportunity for social interaction at the same time. In a village, social interaction is always too close, too intimate, .1..4..5............... Essa reflexão de Durham é tocante para mim enquanto artista que igualmente percorre os encontros entre cidade e natureza e, tendo em vista os trabalhos Como desenhar pedras, Em Montenegro andamos na beira do rio e a série Montenegro, penso que a natureza está em toda a parte, ao alcance das mãos e do corpo que percorre a beira de um rio, ou um terreno baldio. A natureza infraordinária, por sua vez, acontece na cidade, quando observamos uma planta que não sabemos o nome ou quando recolhemos cascas e pedras do chão, como nos lembra Durham, as mesmas pedras que construíram as cidades também estão presentes “quando escrevemos com um lápis, nós usamos a pedra chamada grafite, desenhando pelo papel branco” (DURHAM, 2012, p. 143, tradução minha).81 Outra proposta de Durham que ecoa em minha pesquisa é o diário Nature in the City, escrito entre maio de 2000 e setembro de 2001, publicado durante uma exposição organizada pela associação Büro Friedrich, em Berlim. Durham pensou o diário como uma forma de registrar evidências da natureza no espaço urbano de Berlim, exatamente aquela que eu chamaria de infraordinária: 17 de maio de 2000 Onde a natureza termina e o que é “não-natureza” começa? Nossa primeira experiência com a natureza nas cidades é a experiência de nossos próprios corpos. Esta manhã acordei com dor nas costas. Para o café da ma- too intrusive. Neighbours spying on neighbours. But you can look at the planet from a distance and see that our instinctive way of being human is to make cities: we do it everywhere. It’s completely natural”. Entrevista com Jimmie Durham por Kirsty Bell (BELL, Kirsty; DURHAM, Jimmie. Various Elements. Revista Frieze, 1 de outubro de 2012. Disponível em: . Acesso em: 21 de julho de 2018. 81 “(...) when we write with a pencil we use the stone called graphite, drawn across white paper.” .1..4..6............... nhã eu tinha iogurte natural, para obter um bom equilíbrio de bactérias no meu sistema. Então saí para comprar algumas cadeiras de segunda mão. Parte do meu problema nas costas é que eu tenho uma perna curta, o que me deixa torto. Compensei cortando um pedaço de madeira de pinheiro e colando-o no calcanhar da minha sandália, mas isso faz com que a sandália esfregue uma bolha. (...) Também enquanto estava descansando, notei como muitas colônias de formigas brotam entre os paralelepípedos da calçada, a calçada e as ruas. Depois de trazer a mesa para casa, fui dar uma volta para encontrar uma erva chamada erigeron, porque meu novo estúdio está infestado de pulgas. Uma semana antes eu usara um veneno químico comercial que é caro e perigoso (o rótulo avisa para usar máscara e óculos de proteção, e para não colocar o produto em contato com qualquer coisa que você queira que viva). Erigeron é uma das ervas daninhas mais comuns em Berlim, mas eu não encontrei nenhuma. Talvez ainda seja cedo demais. (...) Nosso bairro tem muitas árvores floridas agora, incluindo o ancião, a macieira, o espinheiro, a tília, a castanheira, o álamo e a sebe que tem flores brancas cheirosas. Nesse tempo quente e seco, as pétalas caídas dessas árvores, juntamente com as pétalas de várias ervas daninhas foram se acumulando em pequenas dunas em cada meio-fio e esquina. (...) 17 de março de 2001 Os humanos são “naturais” ou “não naturais”? E cidades? Se vemos uma outra espécie que age consistentemente de certa maneira, lobos uivando, por exemplo, dizemos que é característica da espécie. “Natural” para os animais envolve aquelas coisas que são instintivas - o comportamento característico que é o menos “aprendido”, ou na maioria dos primatas, o menos “cultural”. Quando olhamos para o globo da terra, fica claro que os humanos constroem cidades. Porque temos um forte .1..4..7............... impulso cultural, sentimos que as cidades são um fenômeno cultural. Mas, em vez disso, também deve ficar claro para nós que os humanos constroem cidades instintivamente — “naturalmente”. As cidades podem ser “naturais” para os seres humanos e “não naturais” (porque sua função “natural” é manter a natureza intrusiva ausente) na natureza. Então, eu me pergunto sobre os seres humanos nas cidades (em oposição aos seres humanos na natureza: o que é “natural” ou instintivo para os seres humanos e o que é cultural? Deixando de lado a questão maior da cultura como sendo uma série de padrões instintivos). Essa noite eu me sento em casa sozinho, pensando e escrevendo. Isso me parece mais “cultural” do que natural. (...) 19 de maio de 2000 (...) Há algumas semanas, Maria Thereza e eu estávamos caminhando nas margens do rio Spree, perto do nosso apartamento, e me perguntei por que a cidade não plantava flores ao longo das margens. Em Potsdam, pelo menos em um lugar que vi hoje, as margens do rio são plantadas com todas as flores que podem naturalmente crescer lá: flor-de-lis amarela brilhante, lírios brancos, íris roxa e outras. Logo depois da ponte que atravessei, há um desses lugares da cidade que não é parque, nem jardim, nem campo, nem playground, nem terreno baldio — “extensão”, podemos chamá-lo. Estava coberto de grama já marrom por causa do calor seco, com, aqui e ali, mil-folhas, dentes-de-leão e trevo, criando uma atraente ilha de verde. Havia uma estrutura parecida com um caminho coberta com pequenas pedras (aproximadamente do tamanho dos ovos das aves até o tamanho [eu estava prestes a escrever “ovos de ganso”]). Entre essas pedras não cuidadas crescia apenas a planta chamada cavalinha, que parece ter sobrado dos tempos dos dinossauros. Fez uma pequena paisagem alienígena no meio do (não) espaço. (...) Porque grande parte da área .1..4..8............... em torno de Potsdam é de floresta de pinheiros, o que cresceu entre as trilhas eram pequenos pinheiros, de alguns centímetros de altura a dois metros de altura. Eles eram semelhantes a uma planta rabo-de-cavalo, que vi na cidade. Quando havia um terreno mais variado do que apenas rochas, muitas ervas daninhas também cresciam, principalmente erigeron (embora ainda não florescessem) e aquela grama que tem sementes longas e caídas que se parecem com lagartas. Algumas mil-folhas, papoulas e âmios-maiores. Como o trem, os pequenos pinheiros desapareceram e foram substituídos pelo pequeno vidoeiro e pelo choupo. Eu olhei para cima e para uma floresta de bétula no outro lado dos trilhos. Logo, essas árvores também foram substituídas pelo sicômoro e pela acácia, e, quando olhei para cima, estávamos nos subúrbios de Berlim. No momento em que nos aproximamos de Savignyplatz, o crescimento entre as trilhas era apenas de pequenas árvores de acácias. (DURHAM, 2001, s/p., tradução minha).82 82 “May 17/00: Where does nature stop and whatever is “not-nature” begin? Our first experience with nature in cities is the experience of our own bodies. This morning I awoke with a backache. For breakfast I had “natural” yoghurt, to get a good balance of bacteria in my system. Then I went out to buy some second-hand chairs. Part of my back problem is that I have a short leg, which makes me crooked. I have compensated by cutting a piece of pine wood and gluing it into the heel of my sandal, but that causes the sandal to rub a blister. (...) Our neighbourhood has many flowering trees just now, including elder, crab apple, hawthorn, linden, horse chestnut, poplar, and that hedge which has sweetsmelling white flowers. In this hot dry weather the fallen petals of these trees, along with the petals of various weeds have been amassing in small dunes at every curb and corner. (...) March 17/01: Are humans “natural” or “un-natural?” And cities? If we see another species which consistently acts in a certain way, wolves howling, for example, we say that it is characteristic of the species. “Natural” for animals involves those things that are instinct — the characteristic behavior which is the least “learned”, or in most primates, the least “cultural.” When we look at the globe of earth it is clear to see that humans build cities. Because we have a strong cultural drive, we feel that cities are a cultural phenomenon. But instead it should also be clear to us that humans build cities instinctively — “naturally”. Cities can be “natural” to humans and “un-natural” (because their “natural” function is to .1..4..9............... A escrita de Durham toca claramente em trabalhos desen- volvidos em minha investigação, especialmente nos textos que compõem agora esta tese, bem como Em Montenegro andamos na beira do rio, cujo texto de mesmo título é sobreposto, em frag- mentos, através de etiquetas sobre pedras. As inquietações de Durham sobre cidade, natureza e cotidiano são elaboradas como singelos textos, que mesclam observações tão corriqueiras quan- to uma dor nas costas, quanto às perguntas difíceis de responder, como aquela se os humanos seriam “naturais” ou “não-naturais”. keep intrusive nature away) in nature. So then I wonder about humans in cities (as opposed to humans in nature: What is “natural” or instinctive to humans and what is cultural? Leaving aside the larger question of culture as itself being a series of instinctive patterns.) This evening I sit at home alone, thinking and writing. This seems to me to be more “cultural” than natural. (...) May 19/00: (...) A few weeks ago Maria Thereza and I were walking along the banks of the Spree close to our apartment, and I wondered why the city did not plant flowers along the banks. In Potsdam, at least in the one place I saw today, the banks of the river are planted with all the flowers that might naturally grow there: bright yellow fleur de lys, white lilies, purple iris, and others. Just beyond the bridge I crossed there is one of those city places that is not park, not garden, not field, not playground, not vacant lot —“expanse,” we might call it. It was covered with already-brown grass because of the dry heat, with, here and there, yarrow, dandelions and clover making eyecatching island of green. There was path-like structure covered with small stones (about the size of birds’ eggs up to the size [I was about to write “goose eggs”]) Among these un-cared for stones grew only the plant called horsetail, which looks left over from dinosaur times. It made a small, alien landscape in the middle of the (non-)space. (...) Because much of the area around Potsdam is pine forest, what grew between the tracks were small pine trees, from a few inches tall to two feet tall. They looked similar to the horsetail plants I’d seen in town. When there was a more varied ground than only rocks many weeds also grew, mostly fleabane (though not in bloom yet) and that find of grass that has long, drooping seeds sheaths that look like caterpillars. Some yarrow, poppies, and Queen Anne’s lace. As the train went soon the little pine trees disappeared and were replaced small birch and poplar. I looked up and out into a birch forest on the other side of the tracks. Soon these tree-lings were also replaced, by sycamore and acacia, and when I looked up we were in the suburbs of Berlin. By the time we approached Savignyplatz the growth between the tracks was only small acacia trees”. Trechos do diário podem ser lidos em: DURHAM, Jimmie. Nature in the City: a diary. Berlin: BüroFriedrich, 2001. .1..5..0............... Considero que Nature in the City reelabora imagens da natureza urbana, sendo o texto uma forma de apresentação da natureza. Ao longo desta pesquisa, juntamente a práticas artísticas mais comumente empregadas em meu trabalho, desenvolvi também textos que para mim são, assim como no caso do artista citado, configurações, formas de fazer ver ocorrências da natureza no infraordinário. Esses relatos — Em Montenegro, andamos na beira do rio; Le récit des pierres; Algumas cascas de árvore encontradas nas proximidades do Canal de Faux-Rempart; O bairro Arquipélago e o Post Scriptum: Atelier das pedras — são também a prática e a teoria da tese, configuram esta pesquisa em Poéticas Visuais, que é em si uma zona de contato entre arte e teoria da arte. As formas de pensar, elaborar e escrever arte acontecem em paralelo, concomitantemente, enquanto se faz uma investigação artística. Somam-se, por vezes enquanto palavras, por vezes, enquanto imagens. 2.3 Das pedras às cascas de árvore A partir de coletas de pedras, durante o período do estágio de Doutorado Sanduíche, ocorrido na França83, coletei algumas cascas de grandes árvores na beira de canais fluviais, em uma temporada na cidade de Estrasburgo. Os troncos descascados formavam desenhos na pele desnudada dos caules, que muito me interessaram. As cascas chamaram-me a atenção por suas formas rasgadas e pelos tons dourados, além de serem leves e fáceis de carregar, improvisadamente, em uma sacola de plástico. Outra característica interessante é que, além de leves (diferentemente 83 Estágio de Doutorado Sanduíche na Université de Picardie Jules Verne (Amiens, França), com bolsa concedida pela CAPES, entre abril e agosto de 2017, sob orientação do professor Dr. Éric Valette. .1..5..1............... das pedras), as cascas não mudam sua forma e aparência ao longo de uma viagem (característica compartilhada com as pedras). Assim sendo, poderia guardá-las para um eventual uso. As cascas foram transportadas, então, na bagagem e, posteriormente, de volta a Porto Alegre, realizei uma série de fotografias dos elementos coletados sobre um fundo acinzentado. Logo de início, percebi que fotografá-las era bem mais difícil do que os minerais colecionados anteriormente, pois sua textura acaba por dificultar o foco. A dificuldade em trabalhar com essa materialidade indecisa, cambiante com a mínima luz, aponta-me para o fato de que a casca é um resquício de algo maior e vivo, a árvore. Ela é como uma pele sem vida, literalmente, uma natureza morta. Esse fato, remete-me novamente a minha pesquisa de mestrado, em que a partir da ideia de contato tátil, aproximei-me da obra de Giuseppe Penone. Naquele momento, lembro-me de, ao ler sobre o artista, deparar-me com a seguinte passagem de Georges Didi-Huberman: A pele é um paradigma: parede, casca, folha, pálpebra, unha ou muda da serpente, e é em direção a um conhecimento do contato, que parece se orientar uma grande parte da fenomenologia escultural colocada em obra por Penone. Pele-limite ou pele-bolsa, pele-divisão ou pele-imersão, pele cega ou pele decifradora de formas — todos esses motivos percorrem incansavelmente o trabalho do artista. (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 70). Naquela investigação, interessavam-me os processos de contato e impressão, que me levaram a diversos procedimentos que envolviam a fotografia analógica e o tocar da pele. Nesse sentido, conduziram-me a pensar sobre práticas de frotagens e moldes utilizados por Penone e outros artistas. No momento atual, entretanto, olhei para as cascas de árvore de uma forma diferente, .1..5..2............... interessada nelas como fragmentos da árvore, como o elo de ligação, uma forma de contato também, entre a árvore e o espaço da cidade. Mais uma vez, pensando aqui igualmente na proposta de Thisyourland, Natureza Morta, levei as cascas para um espaço neutro, que a destacasse unicamente como um espécime coletado sem contexto, sem mais informações, a não ser o título da série de fotografias, o mesmo do relato apresentado nesta pesquisa, Algumas cascas de árvore encontradas nas proximidades do Canal de Faux-Rempart (figs. 57 e 58). O título, portanto, indica o que está sendo fotografado, cascas de árvores (de árvores genéricas, porque não há referência à espécie) e o local em que foram encontradas, o canal de Faux-Rempart, em Estrasburgo. Esse título descritivo pretende concatenar representações científicas tradicionais, que catalogam a natureza, como ilustrações e mesmo fotografias. Ao que parece, entretanto, no caso das cascas de árvores, não há nenhum rigor cientificamente relevante para se estudar a natureza urbana. Se as plantas são a origem do mundo, conforme pensa Emanuele Coccia, elas são também um adorno prosaico para as cidades em que vivemos: As metrópoles contemporâneas consideram-nas bibelôs supérfluos da cidade, são hospedeiras — ervas daninhas — ou objetos de produção em massa. As plantas são a ferida sempre aberta do esnobismo metafísico que define nossa cultura. (COCCIA, 2016, p. 16, tradução minha).84 84 “Les métropoles contemporaines les considèrent comme les bibelots superflus de la ville, ce sont des hôtes — des mauvaises herbes — ou des objets de production de masse. Les plantes sont la blessure toujours ouverte du snobisme métaphysique qui définit notre culture.” .1..5..3............... Fig. 57 e fig. 58 – Algumas cascas de árvore encontradas nas proximidades do Canal de Faux-Rempart, 2 fotografias, 40×60 cm cada (2018). Fonte: acervo pessoal. .1..5..4............... Em La vie de plantes: une métaphysique du mélange, já citado anteriormente, Coccia desenvolve a teoria de que as plantas devem ser consideradas como objetos privilegiados de pensamento, aptas a operar uma filosofia do mundo concebido como mistura, em um corpo que privilegia a superfície, as plantas se conectam a tudo, participando do mundo em sua totalidade. Um mundo muito mais vegetal do que animal (COCCIA, 2016, p. 21). O livro pretende falar do mundo através de um desvio pelo vegetal. O mundo pode ser concebido como uma questão: A ciência e a filosofia têm procurado classificar e definir a essência das coisas e dos vivos, suas formas e suas atividades, mas permanecem cegas quanto a sua mundanidade, isto é, sua natureza, que consiste em sua capacidade de entrar em tudo o mais e de ser atravessada por ele. (COCCIA, 2016, p.91, tradução minha).85 A mundanidade, no sentido mais elementar, é aquilo que se refere ao mundo, ao que está por toda parte, isso porque só existe mundo a partir dos próprios elementos que o constituem. Segundo Coccia, o princípio que engendra o mundo não está antes nem fora dele. Por isso, uma reflexão sobre os elementos mundanos, as plantas, as pedras ou os animais, é uma reflexão cosmológica. O mundo, e poderíamos pensar a natureza, não é apenas o recipiente dos seres humanos e não humanos, mas também é moldado pelos próprios seres. Isso nos leva a compreender que ele não é somente um produto do tempo passado, que já ocorreu e veio a ser isso que habitamos hoje, o mundo (e 85 “La science et la philosophie se sont attachées à classer et définir l’essence des choses et du vivant, leurs formes et leur activité, mais elles restent aveugles quant à leur mondanité, c’est-à-dire leur nature, qui consiste en leur capacité d’entrer en toute autre chose et d’être traversée par elle.” .1..5..5............... novamente pensamos na natureza), igualmente, é aquilo que nos acompanha no cotidiano. Cada elemento reivindicado aqui são partes, fragmentos dessa mistura; ela é o princípio que ordena tanto o mundo quanto o indivíduo. Poderia estar referindo-me às cascas de Faux-Rempart, às pedras da série Montenegro, ao vento e ao capim junto a Nina em Um lugar, Nina ou à natureza observada no diário Nature in the City de Jimmie Durham, por exemplo: A esfera humana — cultura, história, a vida do espírito — não é autônoma, tem fundamento no não-humano; elementos aparentemente não espirituais — ar, água, luz, ventos — não engendram o espírito, mas podem influenciar o homem, seu comportamento, suas atitudes e suas ideias. (...) O não humano é a causa da multiplicidade de formas de vida, não só no espaço, mas também no tempo e na história. (COCCIA, 2016, p. 84, tradução minha).86 Humano e não humano também vem a se encontrar nas reflexões de Herman de Vries (1931)87, artista holandês, cujo trabalho se concentra em processos e fenômenos naturais, direcionando nossa atenção para a diversidade ao nosso redor. Para a edição de 2015 da Bienal de Veneza, o artista, com a colaboração 86 “La sphère humaine — la culture, l’histoire, la vie de l’esprit — n’est pas autonome, elle a un fondement dans le non-humain; les éléments apparemment non spirituels - l’air, l’eau, la lumière, les vents - n’engendrent pas de l’esprit, mais peuvent influencer l’homme, ses comportements, ses attidudes et ses idées. (...) Le non-humain est la cause de la multiplicité des formes de vie, non seulement dans l’espace mais aussi dans le temps et l’histoire.” 87 Herman de Vries prefere autodenominar-se “herman de vries” em letras minúsculas (bem como escrever seus textos, títulos de trabalhos e demais declarações nessa configuração) para evitar hierarquias. Mesmo o catálogo publicado sobre sua participação na mostra de Veneza e seu site são escritos .1..5..6............... de Susanne de Vries, documentou sua estadia na cidade em forma de um diário visual composto de agrupamentos de fragmentos — que foram emoldurados — encontrados em deslocamento a partir da lagoa de Veneza, intitulando o projeto de From the laguna of venice / a journal (figs. 59 e 60). Suas escolhas capturam não apenas cascas, pedras, sementes, folhas e plantas, mas também traços da interação humana, restos de metal de alguma ferramenta, plástico — expondo como as pessoas mudam seu ambiente. A proposta, dessa forma, associa-se ao diário de Jimmie Durham, em que a natureza coletada parte de um ponto de vista cultivado diariamente. Em uma entrevista com o curador e historiador da arte, Jean-Hubert Martin, de Vries fala sobre a proposta do diário, desenvolvida em Veneza: Em vez de escrever, tomo coisas da realidade. Às vezes eu tiro fotos — que têm sua própria realidade — mas também esfrego terra sobre papel, plantas e objetos de origem humana. Eles podem ser objetos que foram jogados fora, estão quebrados e sujos, artefatos jogados de volta para a natureza. Eu coletei materiais da lagoa de Veneza, que é desconhecida para a maioria dos visitantes da Bienal de Veneza. Eu visitei muitas ilhas na lagoa por dez dias com um barco para coletar materiais. (DE VRIES; MARTIIN; et.al, 2015, p. 77, tradução minha).88 dessa forma. Optou-se aqui, por questões acadêmicas, em manter o nome do artista no padrão dos demais. Mais adiante, quando citado o texto de sua autoria, é mantida a formatação original escolhida pelo artista, tendo em vista que ela se conecta ao pensamento de sua prática, em que as coisas todas têm a mesma importância, humanos e não-humanos, natureza e cultura. 88 “Instead of writing, I take things from reality. Sometimes I take photos - which have their own reality - but also earth rubbed on paper, plants, and objects of human origin. They may be objects that have been thrown away, are broken and dirty, artefacts taken back by nature. I collected materials from Venice lagoon that is unknown to most visitors to Venice Biennale. I visited a lot of islands in the lagoon for ten days with a boat to collect materials.” .1..5..7............... Fig. 59 – Herman de Vries e Susanne de Vries, From the laguna of venice / a journal (2014), plantas, terra, objetos, fotografias, molduras 123×35×25 cm. Fonte: DE VRIES; MARTIIN; et al., 2015, pp. 80-81. Fig. 60 – Herman de Vries e Susanne de Vries, From the laguna of venice / a journal (2014), 123×35×25 cm. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..5..8............... Analisando o conjunto, percebe-se que há a soma de diversos procedimentos, como citados pelo artista, e materialidades de origem humana e não humana, mas todos são expostos juntos, em uma mesma organização. Assim, esses fragmentos da natureza — todo o tipo de naturezas — são coletados e recebem o mesmo tratamento, afirmando seu papel no todo e na “mistura”, para citar novamente Coccia e se acercar de Durham e de outros artistas analisados nesta investigação. Conforme de Vries: A evolução é o processo de ser da natureza: a natureza como um processo, a natureza como uma personalidade. (...) Não podemos fugir da natureza, nem mesmo se moramos no topo de um prédio em Nova York. Somos sempre uma parte da natureza, somos seres naturais, e o homem é uma espécie que se especializou muito fortemente como ser social, mas ainda depende da natureza e faz parte da natureza. A natureza é o todo completo, e o homem com todas as suas aberrações e realizações culturais complexas não pode ser sem natureza. (DE VRIES; MARTIIN; et.al, 2015, pp. 42-43, tradução minha).89 Não escapamos da natureza, ela está em toda parte, assim como a arte também pode estar. Talvez, algumas vezes, vejamos a arte como natureza e, em outras, a natureza como arte; assim o fez Ernst Haeckel (1834-1919)90, exímio biólogo, naturalista, médi- 89 “Evolution is the process of being of nature: nature as a process, nature as a personality. (...) We can’t escape nature, not even if we live on top of a building in New York. We’re always a part of nature, we are natural beings and man is a species who has specialised very strongly as a social being but still depends on nature and is a part of nature. Nature is the complete whole, and man with all his aberrations and complex cultural achievements cannot be without nature.” 90 Um pouco da história da Haeckel pode ser conferida nos livrros A invenção da natureza, de Andrea Wulf (2016), e em L’Univers sans l’homme, de Thomas Schlesser (2016). .1..5..9............... co e artista alemão que descreveu e nomeou novas espécies, e, inclusive, cunhou muitos termos da biologia, incluindo “ecologia” em 1866, e ainda “antropogenia” e “filogenia”. Haeckel dedicou-se, entre 1899 e 1904, a colecionar e representar as Kunstformen der Natur (“Formas artísticas da natureza”) (figs. 61 e 62). Primeiramente publicado em forma de pranchas avulsas, posteriormente reunidas em dois volumes, em 190491, Kunstformen der Natur tornou-se um clássico da ilustração científica. As gravuras apresentam organismos variados, flores, protozoários, insetos, seres marinhos dos mais diversos, dentre muitos outros, detalhados com o afinco e a disciplina de um desenhista extremamente metódico; desenhos que, posteriormente, foram de grande influência para artistas e arquitetos da Art Nouveau e cientistas em geral. Haeckel desenhou organismos que, para a maioria das pessoas, eram totalmente inusitados e desconhecidos, considerando-se que não poderiam ser observados a olho nu. Ernst Haeckel era monista, seguidor de uma doutrina filosófica que acreditava em um universo composto de uma substância única e o indivíduo composto de matéria e espírito inseparáveis. Dessa forma, o ser humano não seria mais ou menos importante que todos os outros seres, mas parte de uma totalidade. Para o artista, a natureza e todos os seres eram providos de uma beleza inerentemente artística. Pensando nas imagens de Haeckel e muitas das representações da natureza que dominaram o imaginário de cientistas, artistas e público em geral entre os séculos XVIII e XIX, percebe-se que são em si mesmas excepcionais, mostram-nos criaturas e espécimes não humanos extraordinários, desconhecidos e maravilhosos em seu estranhamento. As pedras e as cascas de árvore recolhidas 91 A primeira edição do livro foi publicada na Alemanha pela editora Verlag der Bibliographischen Instituts, Leipzig und Vienna, utilizando impressão em litografia. .1..6..0............... Fig. 61 – Ernest Haeckel, Ascidiae - Kunstformen der Natur (1989-1904), litogravura, sem tamanho indicado. Fonte: SCHLESSER, 2016, p. 100. .1..6..1............... por mim, entretanto, não possuem extraordinariamente nenhum deslumbramento, em princípio são ordinariamente presentes nas cidades em que vivemos. Sua forma visual pretende, igualmente, objetividade, foca no elemento natural a ser observado, mas de uma maneira distinta. Talvez as diferentes formas digam: “olhem essa manicnae”, no caso de Haeckel, e “olhem essa pedra ou essa casca de árvore”, em meu caso, entretanto, as pedras e cascas em sua banalidade procuram mais destacar o infraordinário como sua condição primeira, mesmo que, ao fazer esse destaque, ao serem escolhidas, coletadas e fotografadas em estúdio, talvez percam sua infraordinariedade. Essa é uma tensão a ser destacada: quando olhamos para o infraordinário e assinalamos sua singularidade, estaríamos talvez nos distanciando de sua exata banalidade. .1..6..2............... Fig. 62 – Ernest Haeckel, “Discomedusae”- Kunstformen der Natur (1989-1904), litogravura, sem tamanho indicado. Fonte: SCHLESSER, 2016, p. 102. .1..6..3............... LE RÉCIT DES PIERRES92 Iniciamos nosso percurso na estação Pont Neuf, tomando a linha 7 do metrô, para descer em Censier – Daubenton. Nela chegando, tomamos a escada rolante em direção à superfície: avistamos as folhas das árvores ao alto sob forte luz do sol. Saindo do subterrâneo, levamos alguns minutos para nos situarmos e saber para qual direção andar. G. ficou responsável pelo mapa da cidade já que eu não tenho senso de direção. Após algumas quadras, adentramos um belo parque em busca do Musée de Minéralogie, cuja descrição nos estimulou o interesse: Le musée de minéralogie offre au visiteur un ensemble (architecture, mobilier, peintures) préservé datant du milieu du XIXe siècle. On peut découvrir plus de 4.000 échantillons de minéraux, de roches, de météorites mais aussi de pierres précieuses et fines, petite partie d’une collection de 100 000 pièces que les spécialistes classent comme l’une des premières mondiales. Héritière des cabinets de curiosités et de collections particulières du XVIIIe siècle, la collection s’est enrichie au cours du temps par des dons, des achats mais aussi par les fruits 92 O texto Récit des pierres (que poderíamos traduzir por Relato das pedras) foi escrito durante o estágio de doutorado sanduíche. Optei, dessa forma, por deixar os textos originalmente escritos em francês ao longo do relato, aproximando o leitor do que seria uma visita bilingue ao Museu de Mineralogia, em Paris. .1..6..4............... de campagnes de prospections et d’inventaires des ressources minérales sur le territoire français et dans le monde entier. Résultat de collectes étalées sur près de 250 ans, la collection du Musée de Minéralogie détient une valeur patrimoniale, historique et scientifique considérable.93 Dentro do primeiro espaço do museu, avistamos o balcão da bilheteria e uma pequena fila formada por aproximadamente vinte pessoas — não muito grande se comparada às imensas filas dos museus de arte europeus. Compramos a entrada inteira de seis euros e partimos para a exposição, tendo o funcionário destacado que, se quiséssemos, com aquele ingresso poderíamos comprar uma entrada para os outros museus do Jardin de Plantes com desconto (em um prazo de três meses, algo que não chegamos a fazer). Nossa visita ao museu então começou pela coleção de cristais gigantes de Ilia Deleff. A fotografia do colecionador de pedras búlgaro, que viveu entre 1921 e 2012, mostrava-o entre duas meios geodos de ametistas. Ficamos bastante tempo diante da imagem e do texto que descrevia as aventuras geológicas de Deleff, que começou a visitar a América do Sul no final de seus estudos. Nos anos 50, conheceu o Brasil e a Amazônia, onde descobriu seus primeiros diamantes. Ao longo de sua vida, interessou-se pela mineralogia, especialmente pelos minerais gigantes, minerais que eram fragmentados pelos mineiros a fim de fornecer pequenas parcelas das grandes pedras à indústria. Tornou-se então um negociante comprometido em preservar minerais que 93 “O Museu de Mineralogia oferece ao visitante um conjunto preservado (arquitetura, mobiliário, pinturas) que data de meados do século XIX. Mais de 4.000 amostras de minerais, rochas, meteoritos, mas também pedras preciosas e finas podem ser encontradas, uma pequena parte de uma coleção de 100.000 peças que os especialistas classificam como uma das principais do mundo. Herdeira dos gabinetes de curiosidades e coleções particulares do século XVIII, a coleção foi enriquecida ao longo do tempo por doações, compras, mas também pelos frutos de campanhas de prospecções e inventários de recursos minerais no território francês e no mundo inteiro. Resultado de coletas empreendidas por quase 250 anos, a coleção do Museu de Mineralogia detém um valor patrimonial, histórico e científico considerável”. Tradução minha. .1..6..5............... seriam destruídos. Passou sua vida colecionando imensos espécimes e, em 1982, aproximadamente oitenta dessas peças foram adquiridas pelo museu, reunidas nas salas do Trésor et des Cristaux Géants na Galerie de Minéralogie et de Géologie. Os quartzos datando de 200 milhões a um bilhão de anos e que podem pesar até quatro toneladas repousam agora nos espaços do museu ao lado de amostras geológicas de todo o mundo. Pensamos na longa viagem que fizeram as gemas brasileiras para chegar até o solo francês. Continuando nossa visita, passamos a observar as vitrines repletas de cores e formas para nós inusitadas, acompanhadas de termos científicos muitas vezes de difícil pronuncia e de pequenas descrições a propósito da origem e da aparência das gemas: Azurite et Malachite. Provenance: Arizona, États-Unis. Cette pièce présente de l’azurite et de la malachite. Les formes circulaires ont été mises en valeur grâce à un polissage. Il s’agit de couches concentriques de malachite verte et d’azurite bleu nuit, qui donnent une fois polies, un aspect florissant. La pièce mesure 10×6,7 cm.94 Béryl-Aigue-marine et Spessartite. Provenance: Vallée du Shigar, district de Skardu, Nord Pakistan. Dimensions: 17×1,4×1,1 cm. Cet échantillon d’aigue-marine est d’une grande pureté et biterminée: d’un côté, on observe une terminaison avec une douzaine de facettes “dépolies” mais la facette sommitale est transparente. De l’autre côté, on observe une tout autre terminaison, beaucoup plus plane, composée d’une infinité de très petites facettes, à peine visibles. La première terminaison est une cristallisation alors que la deuxième est le résultat d’un processus plus complexe de cristallisation et de dissolution. Sur ce cristal gemme flottant (sans support), la présence de deux cristaux gemmes de grenat spessartite traduit une association typique des 94 “Azurita e Malaquita. Proveniência: Arizona, Estados Unidos. Essa peça apresenta a azurita e a malaquita. As formas circulares foram aprimoradas pelo polimento. Tratase de camadas concêntricas de malaquita verde e azul azul celeste, que, quando polidas, dão uma aparência florescente. A peça mede 10×6,7 cm”. Tradução minha. .1..6..6............... .1..6..7............... paragenèses du Pakistan mais rarement exprimée de manière aussi parfaite. Ces deux petits cristaux de grenat spessartite, associés à un cristal bi-terminé d’aigue-marine, forment un ensemble exceptionnel.95 Béryl-Morganite Spodumène-Kunzite, Albite et Quartz, Elbaïte. Dimensions: 17×16 cm. Cette pièce montre une belle association de différents minéraux dont certains très colorés: béryl rose (variété morganite), mesurant environ 6 cm de diamètre, du spodumène violet transparent (variété kunzite) mesurant dans sa longueur maximale 8 cm, de l’elbaïte vert-bleuté, de l’albite bleu très pâle et du quartz gris clair. L’ensemble mesure 17×16 cm. L’échantillon a été découvert à Dara-i-Petch dans la province de Kunnar en Afghanistan.96 Cérusite. Ce cristal est une cérusite blanche, maclée. Une macle est une association de cristaux de même espèce, réunis selon des lois géométriques précises. Ces cristaux peuvent ainsi s’accoler ou s’interpénétrer. Il existe une grande variété de macles. Le cristal est dit “flottant” puisqu’il s’est formé sans point d’attache sur une gangue. Il s’agit de l’un des plus grands cristaux 95 “Berilo água-marinha e Espessartita. Proveniência: Vale Shigar, distrito de Skardu, norte do Paquistão. Dimensões: 17×1,4×1,1 cm. Essa amostra de água-marinha é de alta pureza e biterminada: por um lado, observamos uma terminação com uma dúzia de facetas ‘foscas’, mas a faceta superior é transparente. Por outro lado, observamos um final completamente diferente, muito mais plano, composto por uma infinidade de facetas muito pequenas, pouco visíveis. A primeira terminação é uma cristalização, enquanto a segunda é o resultado de um processo mais complexo de cristalização e dissolução. Nessa pedra preciosa flutuante (sem suporte), a presença de duas gemas de granada de tipo espessartita reflete uma associação típica das parageneses do Paquistão, mas raramente expressa com tanta perfeição. Esses dois pequenos cristais de granada espessartita, combinados com um cristal água-marinha biacabado, formam um conjunto excepcional”. Tradução minha. 96 “Berilo-Morganita Espodumênio-Kunzita, Albita e Quartzo, Elbaíte. Dimensões: 17×16 cm. Essa peça mostra uma bela combinação de diferentes minerais, alguns muito coloridos: rosa berilo (variedade morganita), medindo cerca de 6 cm de diâmetro, espodumênio violeta transparente (variedade kunzita) medindo no seu comprimento máximo 8 cm, albita verde, albita azul claro e quartzo cinza claro. O conjunto mede 17×16 cm. A amostra foi encontrada em Dara-i-Petch na província de Kunnar, Afeganistão”. Tradução minha. .1..6..8............... de cérusite découverte en France, il mesure 6,5×5,3×3,8 cm. Cet échantillon provient de la mine du Rossignol, près de Chaillac en Indre.97 Corindon-Saphir de Louis XIV dit “Le Grand Saphir”. Provenance: Sri Lanka (gemme acquise et taillée en rhomboïde en 1669), Ceylan. Dimensions: 39 x 29 mm. Ce saphir, dit “Le Grand Saphir” est un des plus beaux saphirs connus au XVIIe siècle. Louis XIV, qui appréciait les gemmes bleues, en fait l’une des pièces principales des Joyaux de la Couronne. Sa taille ne suit pas les formes du rhomboèdre. On aperçoit à la lumière, des onations. Il pèse 27,10 grammes (135,80 carats) et mesure 39 x 29 mm.98 Spinelle. Provenance: Mogok, Mandalay, Birmanie. Historique: Nom probable issu du latin “spinella” signifiant “épine”, en allusion aux arêtes très nettes des cristaux. Le cristal est octaédrique et de couleur rouge framboise brillante. Le spinelle sensu-stricto est magnésio-alumineux. Il se forme dans les roches ignées, dans les roches de métamorphismes de contact. Les cristaux se présentent sous forme d’octaèdres ou de dodécaèdres, généralement transparents et de teintes rouges à rouge-rose mais aussi noires, bleues, vertes. Les cristaux peuvent être de grandes dimensions. Le spinelle montre souvent des macles.99 97 “Cerussita. Esse cristal é branco, maclado. Uma macla é uma associação de cristais do mesmo tipo, unidos de acordo com leis geométricas precisas. Esses cristais podem, assim, unir-se ou se interpenetrar. Existe uma grande variedade de maclas. Dizem que o cristal é ‘flutuante’, uma vez que se formou sem um ponto de fixação em uma ganga. É um dos maiores cristais de cerussita descobertos na França, mede 6,5×5,3×3,8 cm. Essa amostra vem da mina de Rossignol, perto de Chaillac, região de Indre”. Tradução minha. 98 “Corindo-Safira de Luís XIV, chamada de ‘A Grande Safira’. Proveniência: Sri Lanka (gema adquirida e cortada em romboide em 1669), Ceilão. Dimensões: 39x29 mm. Essa safira, chamada “A Grande Safira”, é uma das mais belas de que se teve notícia no século XVII. Luís XIV, que gostava de pedras azuis, fez dela uma das principais peças das Jóias da Coroa. Seu tamanho não segue as formas do romboedro. Pode-se ver na luz, zonações. Pesa 27,10 gramas (135,80 quilates) e mede 39 x 29 mm”. Tradução minha. 99 “Espinélio. Proveniência: Mogok, Mandalay, Birmânia. Histórico: Nome provável derivado do latim ‘spinella’, que significa ‘espinho’, em referência às bordas muito .1..6..9............... Ao olhar para a Spinelle, pensei que ela parecia um pedaço de carne. A pedra, mesmo sendo dura e brilhante, possuía tons rosáceos, como aqueles da carne crua exposta à venda em uma vitrine refrigerada. Continuando pelo percurso expositivo. Avistamos primeiramente uma ampla seção didaticamente organizada por alguns temas referentes à aparência das pedras, como transparência, brilho e pigmentos. Passamos os olhos nas descrições e dentre elas descobrimos que o brilho de um mineral depende muito mais de seu índice de re- afiadas dos cristais. O cristal é octaédrico e de cor vermelha framboesa brilhante. O espinélio stricto sensu é magnésio-aluminoso. Foma-se em rochas ígneas, em rochas de metamorfismo de contato. Os cristais estão na forma de octaedros ou dodecaedros, geralmente transparentes e de tonalidade que vai do vermelho a vermelho-rosado, mas também pretos, azuis, verdes. Os cristais podem ser de grandes dimensões. O espinélio apresenta, freqüentemente, maclas”. Tradução minha. .1..7..0............... fração e de características de sua superfície do que propriamente de sua cor. Podem existir vários tipos de brilhos: o brilho sedoso, o brilho perolado, o brilho vítreo e o brilho metálico, por exemplo. Nesse percurso, muitos visitantes tiravam fotografias, especialmente das pedras mais coloridas e brilhantes. A luz cenográfica do lugar encorajaria o mais desinteressado dos fotógrafos. Posteriormente, penetramos no espaço de uma breve história dos minerais e das aquisições do museu. A coleção e seus primórdios datam do século XVII e inusitadamente teria se iniciado com os minerais preservados pelo farmacêutico de um dos reis franceses, que os utilizava para tratamentos medicinais. A coleção de mineralogia foi então oficialmente criada em 1793, reunindo os minerais iniciais, aos quais foram sendo agregados, em um primeiro momento, espécimes dos gabinetes de curiosidade reais e joias da coroa e, em um segundo momento, antigas e novas peças compradas ou doadas. Do recorte histórico, .1..7..1............... acrescentado de pequenas narrativas, passamos a explorar um acervo variado de objetos esculpidos, quadros, murais e joias adornadas por todo o tipo de minerais, ouro, safiras, diamantes. Peças com um minucioso entalhamento de pedras: brincos, colares e conjuntos de acessórios femininos outrora pertencente a rainhas e princesas, expostos em suportes que ressaltavam seu valor e história convivendo com bandejas e painéis decorativos. Um deles atraía os olhares detalhistas do público atento a uma habilidade aparentemente perdida, ou cada vez mais rara, da artesania das lâminas das gemas cortadas em finas camadas. A obra representava pássaros, frutas e plantas exuberantes, em que cada cor, forma e linha era composta de diferentes minerais milimetricamente encaixados. Ao mesmo tempo em que começava uma visita guiada na seção dos meteoritos, aproximávamo-nos de uma parte do acervo de pedras de Roger Caillois. Passamos a observar o notável conjunto de espécimes doados pela esposa do escritor em 1988 enquanto o guia especialista em geologia explicava energicamente todo seu conhecimento acumulado sobre meteoros e meteoritos. Meus ouvidos ficaram atentos, entretanto, minha curiosidade sobre a famosa coleção de ágatas e outros minerais pertencentes outrora a Caillois prenderam mais minha atenção. Escritor e sociólogo, Roger Caillois foi fascinado por pedras, pierres curieuses, qui attirent l’attention par quelque anomalie de leur forme ou par quelque bizarrerie significative de dessin ou de couleur.100 Para ele, o mundo mineral seria um encontro das ciências naturais com a arte. Concluímos que ele era um aficionado tanto pelas palavras quanto pelas pedras. Lembrei-me de uma fotografia que vi certa vez em que Roger Caillois aparece no seu escritório, com páginas e páginas de um livro em construção espalhadas pelo chão. Pedi que G. me ajudasse a tirar muitas fotografias, pois os vidros das vitrines dificultavam nossa 100 “(...) pedras curiosas, que atraem a atenção por alguma anomalia de sua forma ou por alguma estranheza significativa de desenho ou de cor (...)”. Tradução minha. .1..7..2............... .1..7..3............... visão. Perdemos a noção de tempo observando cada espécime guardado delicadamente pelo escritor, todos com o devido mapeamento de origem e composição. Decidi ir e voltar mais uma vez pelo percurso expositivo completo. Nesse caminho, algumas pessoas se aglomeravam ao redor do guia dos meteoros, como o chamei. O espaço era apertado, certamente havia menos pessoas do que a aparência da soma de todas juntas. Todos os visitantes ficaram de pé em frente a uma parede que sustentava um expositor de fragmentos de meteoritos. O jovem falava muito e contava anedotas que faziam as crianças e alguns adultos rir e se arriscar a fazer perguntas. Seu francês era bastante rápido, ora coloquial ora com termos científicos que me escapavam velozmente. Concluiu suas explicações agradecendo a participação de todos. Alguns se dissiparam, outros se voltaram ao guia para continuar a conversa. .1..7..4............... Decidimos que era o bom momento para encerrar nossa visita, antes que a maioria dos visitantes fosse embora e antes que se fechassem as portas definitivamente. Saímos em direção à grande rocha defronte ao museu cogitando com Caillois que toute pierre est une montagne en puissance.101 101 Para o artista Giuseppe Penone “o rio carrega a montanha”, para Roger Caillois, “toda pedra é uma montanha em potencial”. .1..7..5............... ALGUMAS CASCAS DE ÁRVORE ENCONTRADAS NAS PROXIMIDADES DO CANAL DE FAUX-REMPART O dia iniciou nublado e chuvoso, mesmo assim resolvemos conhecer os arredores e vislumbrar o rio Ill, conectado ao rio Reno — ou le Rhin para os locais. À medida que caminhávamos, as nuvens iam se dissipando e o sol aparecendo. Não parecia que haveria mais chuva. Alegramo-nos de pensar que poderíamos, talvez, sentar em uma praça e tomar um pouco de sol porque estava fazendo mais frio do que o usual naquela época do ano. Não tínhamos nenhum roteiro prévio, nem mesmo um mapa em mãos. Consideramos que a cidade poderia ser conhecida pelas bordas do rio. Andamos por diferentes ruas até chegarmos às pontes. Anteriormente, tomei conhecimento, em um guia para turistas, de que existiam muitas e muitas pontes. Não recordava quantas exatamente, mas me lembrei de alguns de seus nomes: Pont Kuss, Pont du Théâtre, Pont de la Poste, Pont du Marché, Pont de Paris, Pont National. Atravessamos algumas e olhamos para baixo, onde avistamos as águas transparentes e inodoras, o que nos surpreendeu ao lembrarmos o cheiro fétido de muitas águas urbanas. Havia alguma coisa se mexendo dentro do canal, manchas verdes e volumosas que se movimentavam lentamente, .1..7..6............... como cabelos compridos dentro de uma piscina. Definitivamente, pensamos, tratava-se de algas, quais tipos não sabíamos dizer. Realizamos algumas fotografias focando o ziguezague sinuoso daquela cabeleira vegetal. Imaginamos que deveriam ser pegajosas e molhadas, densas e pesadas. Achei um pouco perturbador associá-las a um escalpo. Para ver mais de perto, G. desceu alguns degraus e chegou na borda direita do rio. Eu a companhei. A alguns metros da escada encontravam-se canteiros e uma área propícia ao descanso. Algumas pessoas estavam deitadas conversando, outras sentadas acompanhadas de seus cães, satisfeitos com a luz daquele dia e com espaço para correr. Tentamos interagir com um deles, que não mostrou nenhum interesse em nossos agrados. Uma parte da área de passeio se encontrava suja, com restos de papeis e latas de bebidas, uma exceção, entretanto, ao restante do caminho. Arrependi-me de não ter levado uma toalha para sentarmos no chão, fato que nos fez continuar nosso percurso por mais um pouco. Uma família de cisnes nadava tranquilamente. Avistamos suas patas submersas na água, locomovendo-se em um nado sincronizado. A cena se repetiu em diferentes momentos de nossa estadia. Descobrimos que cisnes não se sentem à vontade com outros animais quando um dos pássaros, do casal de adultos, levantou suas grandes asas em sinal de ataque a um cão que se aproximava. De seu bico bem aberto, emitia sons agudos assustadores. A maioria das pessoas achou engraçada a cena de quase luta entre um cisne e um cachorro na coleira. Eu, no entanto, achei aquilo bastante ameaçador e preferi me afastar o mais rápido possível de uma luta em potencial. Felizmente, o cachorro foi levado para longe das aves, que seguiram seu caminho pelo curso do rio. Logo a nossa frente, um aviso dizia Ne nourrissez pas les animaux sauvages,102 sem especificar quais animais exatamente habitariam 102 “Não alimente os animais selvagens.” .1..7..7............... as redondezas. Caminhamos mais um pouco e dobramos à esquerda na continuidade do canal. Havia uma espécie de capim bem crescido e mais terra úmida naquela parte do percurso. Seguimos em linha reta, onde a vegetação parecia indomesticada, nascida entre os pedaços de um tipo de ruína de alguma edificação. Do outro lado, em frente, deparamo-nos com um prédio antigo, alto, semelhante a uma antiga escola religiosa, ou quem sabe, um internato. Uma murada de tijolos levemente rosados cercava o terreno, enquanto a construção em si possuía um tom arenoso. Dois campanários despontavam com suas formas agudas em cobre esverdeado, intercalados entre telhados menores. As nuances aproximavam-se daquelas dos ciprestes e salgueiros-chorão, que adornavam a construção. Alguns adolescentes conversavam e sorriam sentados na murada à beira do canal. Voltamos um pedaço considerável do trajeto para adentrar em um solo com menos terra e mato. A parte principal do canal era bastan- .1..7..8............... te organizada, planejada, exata: dividida entre um número equilibrado de bancos de praça, de três em três, com espaços para flores e canteiros entre eles. As duas bordas do rio eram exatamente simétricas, entretanto, as casas e edificações a seu redor pareciam mais diversificadas, mesmo que não variassem tanto em altura, por exemplo, ou densidade e material de revestimento. Tendo em vista nossa experiência urbana anterior, ainda considerávamos o ambiente construído extremamente regular. Fotografei diferentes enquadramentos pelo caminho com um telefone portátil que, ao analisar imagem a imagem, indicou-me nossa localização, o Canal de Faux-Rempart. Abrindo o Google, li a seguinte descrição: À l’origine, il s’agit d’un bras de l’Ill. Des fortifications apparaissent sur sa berge intérieure et celle-ci sont doublées dans son lit au xiiie siècle. De là, lui vient aussi son nom: le rempart le plus important étant celui qui était sur sa berge intérieure103. Em um primeiro momento, ao lermos rempart, não compreendemos bem seu significado, portanto, recorremos mais uma vez a uma pequena busca. Rempart em português significa “baluarte”, que por sua vez designa um bastião, um local seguro ou uma fortaleza inexpugnável: fazia sentido. Outrora baluarte, hoje lugar dos piqueniques e banhos de sol. Seguindo nosso percurso sem rumo evidente, avistamos algumas árvores, nem grandes, nem pequenas, cujos caules poderiam ser associados a uma pele com manchas. Localizadas em canteiros, com seu entorno pavimentado, não funcionavam como empecilhos ao passeio, contrariamente, tornavam-se mais objetos decorativos em meio à cidade. Olhando para sua base, um pouco de terra brotava além das calçadas, muito timidamente. Avistei algumas cascas de árvores caídas, com pequenos fiapos sobressaindo na camada exterior. Recolhi 103 Originalmente, é um braço do Ill. Fortificações aparecem em sua margem interna e são dobradas em seu leito no século XIII. De lá, também vem seu nome: o baluarte mais importante é o que estava em sua margem interna. .1..7..9............... .1..8..0............... .1..8..1............... .1..8..2............... um fragmento e o analisei mais de perto: um lado era mais castanho e texturizado que o outro, frente e verso da pele eram levemente diferentes, seu interior era mais dourado e liso. Coletei vários espécimes e guardei-os em uma sacola plástica que se encontrava em minha bolsa. Pensei que seriam um suvenir do passeio, uma lembrança da cidade. Tão leves, nem pareciam fazer parte de algo tão densamente enraizado no solo. Guardei a sacola, dobrando-a com cuidado para não quebrar as cascas. Imaginei como seria transportá-las em uma mala até a volta para casa. Com muita fome, resolvemos, naquele ponto, encerrar nossa incursão pelo território estrangeiro e procurar algum lugar próximo ao Ill para descansar e comer, talvez um pouco mais longe dos animais selvagens. .1..8..3............... 3. ZONA DE CONTATO: o rio, o inframince e outras margens Harold Fisk, Ancient Courses Mississippi River Meander Belt, 1944. Imagem coletada por Helene Sacco em 2016, por ocasião de banca de qualificação de doutrado. .1..8..7............... Quando eu chego em uma nova cidade, saio geralmente à procura das águas. Roman Signer .1..8..8............... Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade. Guimarães Rosa .1..8..9............... 3. ZONA DE CONTATO: o rio, o inframince e outras margens O conceito de inframince concebido pelo artista Marcel Duchamp (1887-1968) reverbera em questões geradas pela imagem do rio em minha pesquisa. Percebo que o inframince, desde minha pesquisa de mestrado, aparece como noção motivadora para um pensamento dos encontros e aderências do contato. Georges Didi-Huberman sublinha que Duchamp expõe com o conceito a questão do contato, “mais especificamente a relação dialética entre contato e distância (relação em que repousa toda a noção do inframince)” (DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 131, tradução minha). 103 Em português, o termo poderia ser traduzido por “infra-fino”, ou ainda “infra-leve”, possuindo definições extremamente elásticas, vindo a ser uma distância que é ao mesmo tempo proximidade e um intervalo entre pequenas percepções. Possuindo o prefixo infra em sua constituição, o infra-leve ou infra-fino sugere um terreno abaixo de nossas sensações. O artista escreveu quarenta e seis notas sobre o inframince (fig. 63), reunidas e publicadas postuma- 103 “(...) il pose part en part la question du contact, c’est-à- dire du rapport dialectique entre contact et distance (rapport où gît toute la notion de l’inframince.” .1..9..0............... Fig. 63 – Marcel Duchamp, Note autographe pour “inframince” : loupe pour le toucher (inframince), tinta preta e grafite sobre papel rasgado, 12,2×20,9 cm, 1912. Inscrições: Transcrição: Lupa para o toque (infra fino) / μμμμ separando o infra fino / O infra fino é diáfano e às vezes transparente / 50 cent. cub. de ar de Paris.Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .1..9..1............... mente por Paul Matisse em 1980, no livro Marcel Duchamp: Notes. Nelas, Duchamp coloca-nos o inframince como uma espécie de separação e nos revela a permeabilidade das sensações, de relações que implicam aderência de superfícies. A construção do termo varia sua grafia, bem como seus sentidos, podendo, por vezes, operar como adjetivo ou substantivo. Segundo Patrícia Franca, no texto “INFRA-MINCE ou um murmúrio secreto”: Duchamp propõe três maneiras de escrever o Infra-mince: grafando-o com uma só palavra: Inframince; com duas palavras, o infra se seguindo de mince: infra mince; e com o uso do hífen: infra-mince. Observa-se que o uso de diferentes grafias da palavra já faz dela um exemplo daquilo que descreve. Duchamp, brincando com as formas linguísticas, indica através de uma forma experimental e escritural aquilo que queria explorar teoricamente. Ora, ela seria, então, uma só palavra e concentraria todo o sentido de um só golpe, de uma só visada. Ao se utilizar do espaço entre Infra-mince, poder-se-ia até mesmo pensar na plasticidade da palavra, sua espacialização, sua temporalização, sua distensão. A terceira versão, com o uso do hífen — como traço de união ou o simples traço horizontal, pressuporia algo partido ou igualmente composto. (FRANCA, 2015, p. 42). A complexidade do termo que transita mesmo por sua forma escrita em pequenos papeis rasgados e anotações riscadas encontra talvez o infraordinário de Georges Perec, pois ambos conceitos são possibilidades metodológicas de criação, são estruturantes de poéticas de observações de pequenos fenômenos ínfimos do cotidiano. As notas do inframince configuram um sistema de intervalos (écarts) que dão conta das espessuras superficiais do mundo, das sensações que nelas flutuam esboçando uma materialidade ínfima e delicada de micro ou infra-acontecimentos para .1..9..2............... pensar em uma aproximação com a noção perecquiana abordada anteriormente. Podemos perceber nas notas que, constituindo uma dimensão puramente sensível, ela se torna assim impossível de ser totalmente cercada visualmente: 1. O possível é um infra-mince. 4. O calor de um assento (que acaba de ser deixado) é infra-mince. 11.v. Quando se sente a fumaça do tabaco da boca que a exala, os 2 odores se casam por infra-mince (infra mince olfativo). 38. Contato e infra-mince. (DUCHAMP, 199, p. 21; p. 22, p. 38, tradução minha). 104 Para Thierry Davila, o inframince elabora uma operação experimental que, por sua vez, elaboraria também uma fenomenologia do imperceptível, sendo uma operação crítica que expõe a experiência, a sensação, as condições-limite que submetem o sensível, sua contribuição entre aquele que sente e o sentido” (DAVILA, 2010, p. 34, tradução minha).105 Davila no livro De l’inframince: brève histoire de l’imperceptible, de Marcel Duchamp à nos jours (2010) desenvolve uma reflexão sobre a presença do conceito cunhado por Duchamp desde o ready-made, passando pela arte conceitual, até alguns casos de artistas contemporâneos que fazem dessa espécie de estado intermediário uma condição para se alcançar o invisível e 104 “1. Le possible est un infra mince. / 4. La chaleur d’un siège (qui vient d’être quitté) est infra-mince.11.v. Quand la fumée de tabac sent aussi de la bouche qui l’exhale, les deux odeurs s’épousent par inframince (inframince olfactif) / 38. Contact et infra mince.” 105 “(...) qui expose l’éxperience, la sensation, à des conditions limites, qui soumet le sensible, ler apport entre le sentant et le senti (...).” .1..9..3............... o sutil. O inframince é quase imperceptível, mas é de fato percebido, coloca em relação o infinitamente pequeno e a nuance. Para o autor, Duchamp elaborou a noção a partir de duas leituras essenciais, Traité élémentaire de géométrie à 4 dimensions (1903), de Esprit Pascal Jouffret, e La Science et l’Hypothèse (1902), de Henri Poincaré, ambos matemáticos. Na primeira obra, o artista se interessaria particularmente pela transcrição científica do invisível — como a radioatividade e os raios X — desenvolvida por Jouffret e jamais conhecido anteriormente por nossos sentidos. Assim, o inframince seria também um procedimento experimental, invisível, que assinalaria as sensações em zonas limítrofes. Para Davila, esse procedimento acompanharia a justeza das operações duchampianas, uma economia plástica presente em todos seus gestos, uma busca pela exatidão e precisão, por vezes, de algo quase imaterial, como o inframince. Em La Science et l’Hypothèse, Marcel Duchamp prestaria notadamente atenção na concepção de Poincaré de continuo físico, “o impossível discernimento das nuances do real pela sensação humana — ao menos até certo ponto — aquela impossível diferenciação ínfima entre as coisas somente pela mão e pela avaliação sensorial de um assunto” (DAVILA, 2010, pp. 36-37, tradução minha).106 O contínuo físico configura, portanto, uma visão da continuidade do real que atravessa espessuras ínfimas, qualidades sensíveis que desenham as superfícies do mundo. Davila convoca ainda Gottfried Wilhelm Leibniz, lembrando que o filósofo elaborou a ideia de “pequenas percepções” (LEIBNIZ apud DAVILA, 2010, p.38). Para Leibniz, seriam percepções ínfimas, que não necessariamente chamariam nossa atenção: 106 “(...) de l’impossible discernement des nuances du reel par la sensation humaine — au moins jusqu’à un certain point — , celui de l’impossible saisie de la différence infime entre les choses par la seule main et par la seule évaluation sensorielle d’un sujet.” .1..9..4............... Cada barulho de onda que compõe o barulho do oceano é então “uma pequena percepção”, “uma percepção insensível” que, para aparecer à consciência, para ser objeto de apercepção e de reflexão, deve adquirir bastante distinção. (DAVILA, 2010, p. 39, tradução minha). 107 As pequenas percepções, o inframince — e aqui voltamos também ao infraordinário de Perec —, fazem parte do real e demandam um ponto de vista particular, uma espécie de exploração ao nível da lupa. Nela, descobre-se um “avizinhamento contínuo de singularidades”108, para usar os termos de Leibniz (LEIBNIZ apud DAVILA, 2010, p. 40), procurando confirmar a constituição infinitesimal do contínuo físico. 3.1 Entre a terra e a água A dimensão inframince, somada à natureza infraordinária reverbera no trabalho Litoral109 (figs. 64, 65 e 66), em que zonas limítrofes configuram imagens de margem. Em saída à beira do rio Caí, realizei as fotografias que posteriormente constituiriam a série de cartazes. Nessas imagens, determinei um protocolo inicial: fotografar o limite entre a vegetação e a água do rio. Essa regra partiu da própria definição da palavra litoral: uma faixa de terra junto à costa do mar. Essa ideia de fronteira e breve encontro de misturas 107 “Chaque bruit de vague qui compose le bruit de l’océan est donc ‘une petite perception’, “une perception insensible’ qui, pour apparaître à la conscience, pour être objet d’aperception et de réflexion doit acquérir assez de distinction.” 108 “(...) voisinage continu entre les singularités.”. Tradução minha. 109 Cartazes de edição independente, impressos em offset 90 g. na gráfica Calábria em Porto Alegre, no ano de 2018; primeira edição de cem exemplares cada cartaz, totalizando trezentos cartazes. Projeto gráfico de Glaucis de Morais. .1..9..5............... Fig. 64 – Mariana Silva da Silva, Litoral, três cartazes impressos em offset, 42×59,4 cm cada (2018). Fonte: acervo pessoal. .1..9..6............... mostra-se um interesse constante em minha pesquisa artística. Mesmo aqui não se tratando de mar, mas de um rio, a ideia de uma zona de contato está presente. Em um segundo momento, analisando as imagens realizadas, selecionei três fotografias que iriam constituir a série em questão. O uso da palavra sobreposta à fotografia é igualmente um ponto de interesse, já visualizado na criação das camisetas e também em outros múltiplos. Nesse trabalho, escolhi utilizar a palavra “litoral” e um elemento gráfico, uma linha pontilhada que percorre a imagem, reforçando sentidos de margem e fronteira como algo poroso e permeável, algo que nos aproxima da noção de infra-fino. Considero Litoral uma edição de cartazes, que podem ser facilmente distribuídos e reeditados. Em minha prática artística, algumas propostas assumem o caráter de obras reproduzíveis em uma edição determinada, que pode ser pequena ou mesmo ilimitada. Essa concepção tem sua origem no conceito de múltiplo, produção que ganha força a partir dos anos 60 com a proposta de disseminar a arte a um maior número de pessoas, não necessariamente o público específico das galerias e museus de arte. O múltiplo contextualiza-se nos questionamentos sociais da segunda metade do século XX, buscando uma maior democratização do objeto de arte. Uma postura crítica está presente na proposta do múltiplo, já que o mesmo questiona a ideia de objeto artístico como algo único, valioso e colecionável. Os múltiplos, especialmente aqueles impressos em papel, podem circular facilmente, podem ser compartilhados e carregam a ideia de um objeto de arte deslocalizado e de fácil transporte. A prática dos múltiplos se disseminou pela Europa e Estados Unidos, especialmente a partir das produções do grupo Fluxus, do artista Daniel Spoerri (1930), dentre outros, bifurcando-se em formas recorrentes naquele momento como a mail art, .1..9..7............... Fig. 65 e fig. 66 – Mariana Silva da Silva, Litoral, três cartazes impressos em offset, 42×59,4 cm cada (2018). Fonte: acervo pessoal. .1..9..8............... .1..9..9............... “arte postal”, por exemplo. No Brasil, as obras de Paulo Bruscky (1949) e do grupo Nervo Óptico (1976-1978) também passam a ser articuladores da ideia de múltiplo. Um grande incentivador dos usos e definições do conceito foi o artista alemão Joseph Beuys (1921-1986). Em entrevista, expôs a possibilidade de contato que o objeto artístico múltiplo possibilitava em sua produção: Para mim, cada edição tem o caráter de um núcleo de condensação em que muitas coisas podem se acumular. Você vê, todas essas pessoas que tiverem um objeto como esse continuarão se interessando em como o ponto de partida em que os veículos começaram estão se desenvolvendo. Estarão procurando saber o que a pessoa que produziu essas coisas está fazendo agora. É a forma em que eu mantenho o contato com as pessoas; assim como vocês vieram até mim devido ao que eu fiz e podemos conversar, eu posso conversar com qualquer um que tenha um objeto desses. Existe uma verdadeira afinidade entre pessoas que possuem este tipo de coisas, de veículos. (BEUYS; KLUSSER; SCHELLMANN, 1997, p. 9, tradução minha).110 Dessa forma, a elaboração de objetos artísticos que se assemelham a objetos cotidianos passará à fazer parte da história da arte. Podem ser cartazes, cartões-postais (mail art), livros, camisetas. Como enfatiza Beuys, são veículos utilizados pelo artista que 110 “For me, each edition has the character of a kernel of a condensation upon which many things may accumulate. You see, all those people who have such an object will continue to be interested in how the point of departure from which the vehicles started is developing. They’ill be watching to see what the person who produced these things is doing now. That way I stay in touch with people; just as you have come to me because of what I made and we can talk about it, I can talk to just about anybody who owns such an object. There’s a real affinity to people who own such things, such vehicles”. .2..0..0............... carregam ideias, mas que também potencializam a participação e a troca com o “espectador” do objeto artístico. Em minha pesquisa, a concepção de múltiplo/veículo está presente em diversos trabalhos desenvolvidos no doutorado, Na minha cidade tem um rio, Como desenhar pedras e Litoral. Interessa-me, em especial, sua capacidade de fácil distribuição e de acessibilidade; não é necessário fazer uma exposição para que o múltiplo percorra diversos locais e chegue em diferentes pessoas. As definições do conceito de múltiplo, sua origem exata, como em muitas práticas artísticas consolidadas no século XX, não são precisas e fixas. Océane Delleaux em Le Multiple d’artiste: Histoire d’une mutation artistique (2010) realiza um mapeamento bastante completo da genealogia do múltiplo na história recente da arte, destacando uma definição do historiador Stefan Germer: Um múltiplo, digamos, é aquilo que foi convocado a se tornar um múltiplo ao longo da história da arte. Essa tautologia histórica apresenta uma vantagem: ela permite distinguir a noção da coisa e, então, retomar ao início do múltiplo, quando não conhecíamos ainda a noção. À afirmação de que a coisa seria mais velha do que seu nome, acrescenta-se, então, geralmente, uma retrospectiva histórica. Rapidamente, comparações específicas foram operadas, os projetos utópicos de William Morris ou os programas dos construtivistas russos (...) e os membros da Bauhaus ou Marcel Duchamp apresentados como os ancestrais da ideia. Tais deduções são, entretanto, fundadas em vagas analogias, no fundo, são inexatas. Pois o múltiplo tem somente um ponto em comum com o trabalho dos artistas citados: ele levanta como estes últimos uma reflexão sobre a reprodutibili- .2..0..1............... dade da arte. (GERMER apud DELLEAUX, 2010, p. 23, tradução minha).111 Assim como outras práticas de arte contemporânea, o múltiplo, portanto, tem sua origem em diferentes manifestações prévias e está intrinsecamente relacionado ao fato de ser uma edição. Para Delleaux, resumidamente: “o múltiplo é semelhante a um objeto tridimensional cuja edição veicula a ideia do artista” (DELLEAUX, 2010, p. 28, tradução minha).112 O múltiplo pode ser encarado como uma prática artística, e não uma categoria, estando na fronteira entre muitas disciplinas diferentes. Para mim, objetos múltiplos e publicações sempre foram um interesse em fazer arte para além dos espaços expositivos. Meus projetos, assim, podem ser carregados, distribuídos, reimpressos e retomados. Eventualmente, ficam guardados e voltam a acontecer, como é o caso das camisetas de Na minha cidade tem um rio, que podem ser confeccionadas quando houver interesse de alguém em usá-las, por exemplo. Com o passar do tempo, estando há aproximadamente vinte anos produzindo arte, fazer exposições, organizar eventos, inscrever projetos em editais, foi se tornando um tanto penoso e, 111 “Un multiple, dit-on, est ce qui était appelé à devenir un multiple au cours de l’histoire de l’art. Cette tautologie historique présente un avantage: elle permet de distinguer la notion de la chose et donc de reporter les débuts du multiple au temps où l’on ne connaissait pas encore la notion. À l’affirmation que la chose serait plus âgée que son nom s’ajoutait généralement une rétrospective historique. Rapidement, des comparaisons spécifiques ont été opérées, les projets utopiques de William Morris ou les programmes des constructivistes russes (...) et les membres du Bauhaus ou Marcel Duchamp présentés comme les ancêtres de l’idée. De telles déductions sont cependant fondées sur de vagues analogies, dans le fond elles sont inexactes. Car le multiple n’a qu’un point commun avec le travail des personnes citées: il soulève comme ces dernières une réflexion sur la reproductibilité de l’art.” 112 “(...) le multiple s’apparente à un objet tridimensionnel dont l’édition véhicule l’idée de l’artiste.” .2..0..2............... por vezes, sem sentido. Tornou-se mobilizador produzir pequenas ações, propor situações e conversas, ser professora: fazer projetos com e para os alunos mostrou-se uma grande reelaboração de minha prática artística. Assim, realizei a proposta Lembrancinha (fig. 67), iniciada antes do curso de doutorado, entre 2013 e 2014, que consiste numa edição ilimitada de cartões e parece-me ser uma introdução à proposta posteriormente desenvolvida, a série de cartazes Litoral. Em Lembrancinha, pretendia realizar um gesto de oferta, presentear pessoas que frequentavam a Uergs, em Montenegro, antes das férias, alguns colegas, funcionários e alunos. Para tanto, selecionei uma imagem de água de rio (uma fotografia genérica, não específica a um local geográfico) que ocupa toda a superfície do cartão, e sobre ela, lê-se a palavra “lembrancinha”. A ideia surgiu de um hábito corriqueiro, o costume de “dar lembrancinhas”, ou seja, o fato de ofertar algo que não seria necessariamente um grande presente, ou uma coisa muito importante, algo não muito caro no sentido econômico, mas valioso pela “lembrança” ao presenteado. Dessa forma, o cartão, frequentemente, é doado enquanto digo: “Trouxe para ti uma lembrancinha” ou “Tenho uma lembrancinha para te dar”. Continuo editando os cartões ao longo dos anos, e distribuindo-os quando há um momento em que queira ofertar a alguém. Não é um múltiplo que possui data e local para iniciar ou encerrar, tendo já sido impresso em diferentes papeis, diferentes gráficas e em cidades variadas. Penso que ofertar um fragmento do rio, água, torna-se, assim, um disparador de inúmeros significados e sensações para aquele que o recebe. No trabalho Litoral, as imagens da margem entre a água do rio e a vegetação, sob a palavra que nomeia a série de cartazes, evocam lugares e contato com a natureza fluvial que vão além do Caí e do Guaíba. A palavra “lembrancinha”, por sua vez, refere-se tanto ao presente quanto à possiblidade de se .2..0..3............... Fig. 67 – Mariana Silva da Silva, Lembrancinha, edição de cartões impressos em laser, 8,5x5,5 cm (2013-2018). Fonte: acervo pessoal. .2..0..4............... rememorar algo, a relação de cada pessoa com a água é reivindicada. Essa associação também pode ser alcançada no trabalho de Felix Gonzalez-Torres, Untitled (“Sem título”) (figs. 68 e 69), uma edição de cartazes com uma imagem de água, distribuída ao público em 1991. O artista fez sua primeira edição de cartazes, empilhados, em 1988, e uma pilha constantemente reabastecida com cópias ilimitadas em 1989. Parte da intenção do trabalho era que o público pudesse levar folhas individuais e que a pilha se desfizesse e fosse refeita até o final de cada exposição. Para Gonzalez-Torres, a proposta dos cartazes era tanto um ato de partilha com as pessoas que visitassem sua exposição (todos poderiam ter uma parte da “obra”) quanto uma recusa à ideia de objeto artístico único, comercializado por uma galeria de arte ou outros negociadores. Em Untitled, Gonzalez-Torres repete, infinitamente, a imagem de águas desconhecidas, talvez de um rio ou oceano, que parecem sempre as mesmas, mas não são. Cada folha impressa faz parte de um todo em constante movimento, somam-se e subtraem-se de acordo com a presença do público, que as leva embora. Esse ir e vir, intrínseco à constituição dos fluxos de água e da natureza, impulsiona a fazer uma imersão também no tempo e em sua mutabilidade, inconstância e incerteza. Tal reflexão foi cara ao artista, conforme entrevista realizada por Robert Nickas: Robert Nickas: Elas são compostas de “cópias infinitas”. No que se refere ao assunto do tempo, o fato de as peças serem feitas de um material vulnerável e de poderem desaparecer facilmente, sendo infinitas, significa que também podem reaparecer. Por mais que queiramos estar no mundo, nossas vidas são interrompidas, mas a arte é algo que pode ser deixado para trás, como um marcador no espaço. Em seu trabalho, há um reconhecimento da natureza transitória das coisas, de nossas próprias vidas. .2..0..5............... Fig. 68 e fig. 69 – Felix Gonzalez-Torres. Untitled (Water,) impressão offset, altura ideal da pilha 20 cm, edição ilimitada (1991). Fonte: https://walkerart.org/collections/artworks/untitled-2219 (fig. 68) e https://burnaway.org/feature/are-photographs-original-works-of-art/felix-gonzalez-torres-untitled-1991/ (fig. 69). Acesso em: setembro de 2018. .2..0..6............... Felix Gonzalez-Torres: O tempo é algo que me assusta… ou costumava assustar. A peça que fiz com os dois relógios113 foi a coisa mais assustadora que já fiz. Eu queria encarar isso. Eu queria esses dois relógios bem na minha frente, correndo. A ideia de as peças serem infinitas aconteceu naquele momento porque eu estava perdendo alguém muito importante. Eu fiz as primeiras pilhas em 1989. (GONZALEZ-TORRES; NICKAS, 2006, s/p., tradução minha).114 Cada cartaz não deixa de ser um suvenir da experiência dos visitantes com a exposição do artista, uma parcela temporal e espacial, que se conecta a um conjunto. Por outro lado, a pilha formada pelos cartazes remete-nos tanto a um fragmento espacial quanto a um temporal, da natureza. O recorte fotográfico finito, retangular, de um infinito inapreensível — as águas — que continua para fora do campo fotografado, é repetido infinitamente. A ideia de continuidade e infinitute carregada pelos cartazes de Gonzalez-Torres e pelos trabalhos Lembrancinha e Litoral convida a se 113 Aqui o artista refere-se ao trabalho Untitled (Perfect Lovers), realizado entre 1987 e 1990. 114 “RN: They’re comprised of ‘endless copies.’ In terms of the subject of time, the pieces being made of a vulnerable material, and the fact that they can easily disappear, being endless means it can also reappear. As much as we want to be in the world, our lives are cut short, but art is something that can be left behind, as a marker in space. In your work there’s a recognition of the transitory nature of things, of our own lives. / FGT: Time is something that scares me… or used to. The piece I made with the two clocks was the scariest thing I have ever done. I wanted to face it. I wanted those two clocks right in front of me, ticking. The idea of pieces being endless happened at that point because I was losing someone very important. I made the first stacks in 1989” (GONZALEZ-TORRES, Felix; NICKAS, Robert. Felix Gonzalez-Torres. All the time in the world. Flash Art Online, 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 de julho de 2018, tradução minha). .2..0..7............... pensar na relação que temos com a imagem das águas, sejam mares, sejam rios. Quando olhamos para um rio, não vemos todos seus limites. É uma margem que está presente. Desse modo, outra proposição que se associa aos trabalhos analisados é Still Water (The River Thames, for Exemple)115 (figs. 70, 71 e 72) (1997-1999) de Roni Horn, artista já referenciada anteriormente, que nos convoca a pensar no vínculo complexo que se instala entre fotografia e texto. A artista trabalha constantemente com as relações do tempo, do clima e da natureza. Instalações, esculturas, desenhos, livros, fotografias e texto são práticas usuais na pesquisa da artista, que não privilegia um meio artístico em particular. Horn tem demostrado com frequência sua conexão com o texto, deslizando muitas vezes entre as fronteiras tênues que separam palavra e imagem. Still Water trata-se primeiramente de uma série de quinze grandes fotolitogravuras impressas em offset, e, posteriormente, também um livro. Cada uma das imagens concentra-se numa pequena área da superfície do rio Tâmisa, que banha a cidade de Londres, cuja cor e textura variam muito: passa-se do preto ao azul e do verde escuro ao amarelo ocre, e em cada imagem, a textura da água é influenciada pelo movimento do vento e pela incidência de luz. Não vemos as belas cenas de cartões postais londrinos não há barcos ou pessoas, há somente e por toda parte, água. Observando atentamente cada fotogravura, percebemos pequenos números que parecem flutuar por entre as movimentações do 115 Essa série é parte de um projeto de arte pública, encomendado pelo Public Arts Development Trust em Londres, Minetta Brook em Nova York e a Editora Thames e Hudson, de produção de obras relacionadas à água. Para seus três projetos desenvolvidos, Horn foca apenas no trecho do rio que atravessa o coração de Londres, devido a sua centralidade na vida diária da cidade. Another Water (2000) é um livro de artista que explora a superfície do rio com fotografias tiradas durante o período de um ano. Tal como acontece com Still Water, cada fotografia possui notas de rodapé. .2..0..8............... Fig.70 – Roni Horn, Still Water (The River Thames, for Exemple), 15 fotolitogravuras, 77,5×105,5 cm cada (1999). Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .2..0..9............... .2..1..0............... Fig.71 e fig.72 – Roni Horn, Still Water (The River Thames, for Exemple), 15 fotolitogravuras, 77,5×105,5 cm cada (1999). Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .2..1..1............... Tâmisa. Esses números, uma interferência gráfica sobre as fotografias, referem-se a notas de rodapé impressas na borda branca inferior das imagens. Cada uma das notas apresenta reflexões sobre o rio, sobre a água, sobre a vida e também a morte — sabemos que o Tâmisa é escolhido como destino final de muitos suicidas — atravessando referências tão variadas quanto a poesia de Emily Dickinson ou uma música de Burt Bacharach, por exemplo, até a pensamentos mais mundanos. Em uma das notas, lemos: “O Tâmisa sou eu”.116 Em outra: “Você está seguindo as notas de rodapé na devida ordem ou você está somente escolhendo aquelas que mais gosta?”.117 Em Seuils (1987), o crítico literário Gérard Genette elabora o conceito de “paratexto” como aquilo que rodeia e estende o texto para além dele próprio. Podemos aproximar esse conceito da operação empreendida por Horn nessa série. Em apurada leitura sobre a obra de Genette, o pesquisador Rodrigo da Costa Araújo explica-nos: A palavra paratexto é composta do prefixo grego para, que designa, semanticamente, uma modificação da palavra texto. Conforme a etimologia de origem, tal prefixo indica, desde logo, algo que se coloca perto de, ao lado de; pode ser usado para exprimir a ideia de tempo, duração. Algo que acontece paralelamente a outra coisa. Ao compor a nova palavra, portanto, sinaliza uma organização textual que se coloca ao lado de uma outra, com a qual mantém uma relação direta, não de dependência, mas de continuidade. (...) Esses ele- 116 “23. The Thames is me”. Tradução minha. Still Water (The river Thames, for Exemple) (1999). (COOKE; DUVE; NERI, 2003, p. 4). 117 “26. Are you following the footnotes in their proper order, or are you just picking out the ones you like?”. Tradução minha. Still Water (The river Thames, for Exemple) (1999). (COOKE; DUVE; NERI, 2003, p. 4). .2..1..2............... mentos constitutivos, segundo o crítico francês — que se apresentam nas franjas do texto —, retomam o texto como força discursiva. Daí serem elementos limítrofes, e, por isso mesmo, não deveriam ser lidos na sua marginalidade, mas, pelo contrário, como verdadeiros atos de linguagem. (ARAÚJO, 2010, pp. 1-2). Nesse sentido, a justaposição da imagem fotográfica às notas de rodapé introduz no trabalho de Roni Horn zonas intersticiais dignas do paratexto, destacando ainda o conceito de margem como visualidade e textualidade intrínsecos a cada fotografia. As margens do rio Tâmisa que não são mostradas em nenhuma imagem, ressoam, entretanto, nas margens brancas que carregam as notas. Tal abordagem multiforme da noção de margem — margem do recorte fotográfico salientada pelo espaço gráfico branco e pelo texto nela contido e margens invisíveis do rio — amplia a imagem fotográfica para um terreno de experimentações que podem também estar operando imagens do inframince de Marcel Duchamp, conectando-se ao trabalho Litoral. A relação dos sentidos implicada em Still Water (The River Thames, for Exemple) permite-nos constatar que a intensidade do trabalho de Roni Horn está exatamente nas diferentes camadas de leitura possíveis entre fotografia e texto. O título da série poderia ser traduzido literalmente como “água parada”, aquela água que é um resíduo, que sobra e não tem vida e, assim, colocando-nos imagens das correntes do rio estáticas em seu congelamento fotográfico, pode gerar uma tensão entre o tempo aprisionado da fotografia com o tempo líquido do pensamento que escorre por entre as notas de rodapé. Faz uso, ao mesmo tempo, de um ditado inglês still waters run deep, cuja tradução se aproxima de “águas silenciosas — ou paradas — são sempre perigosas”, aqui talvez uma alusão aos suicídios e acidentes ocorridos no rio. .2..1..3............... Procuramos nos assegurar de que os números impressos na imagem da água indicariam diretamente alguma nota específica. Assim, estaríamos tentados, por exemplo, a pensar que a nota sobre a água escura estaria localizada nas ondulações negras da fotografia. Se observarmos atentamente, uma por uma, nota a nota, perceberemos que as conexões não são tão diretas: mais olhamos, mais parecerão não combinar entre si. As notas de rodapé entrelaçadas às águas do rio Tâmisa afirmam-nos que nenhum rio é igual a outro, assim como nenhuma leitura das quinze gravuras se repetirá, o vai e vem de cada número, de cada nota, em cada fluxo de água, permanecerá intransponível. A dimensão inframince, não fugindo a sua própria substância e consistência, atravessa os trabalhos que desenvolvo. Duchamp define-a como diáfana transparência, que cruza os sentidos, um encontro efêmero e sutil. Poderíamos pensar com as proposições Lembrancinha e Litoral (e igualmente com aquela de Horn), que os sentidos tomados pela palavra, que se sobrepõe à imagem das águas, também seriam algo da ordem do inframince? Essa definição indicaria a direção tomada pela proposição Litoral aqui abordada. A ideia de contato inframince, nesta pesquisa, vem ao encontro do litoral como uma zona de contatos efêmeros, de ínfimos processos de misturas assinalados ou demonstrados pelo gesto artístico em contato, por sua vez, com a ideia de natureza infra-ordinária. Essa ideia igualmente poderia estar no contato entre palavra e imagem. O inframince contata o infraordinário em uma espécie de margem que coloca em suspensão zonas outrora delimitadas, imagem e palavra, cultura e natureza, rio e cidade. No conto A Terceira Margem do Rio de João Guimarães Rosa (1908-1967), publicado inicialmente em seu livro Primeiras Estórias, em 1962, um personagem, pai de família, sem explicação aparente, vai morar definitivamente em uma canoa, dentro de um grande rio. Quem nos narra a história, é um dos filhos, perplexo .2..1..4............... com a repentina mudança de comportamento do patriarca, tendo em vista que, até então, formavam uma família ribeirinha tal como as outras. Ao longo do conto, o filho nos conta o desenrolar das vidas dos familiares, sempre tendo em perspectiva o isolamento do pai. Desde o título, o conto tem em vista a figura do rio como um personagem ativo dentro da história, juntamente ao pai e ao filho, as duas outras figuras centrais da narrativa. Ao leitor, familiarizado com a ideia de um rio com duas margens, deixa-se a dúvida do que seria a terceira. Essa terceira ou outra margem é a grande questão colocada por Guimarães Rosa, e são variadas as possiblidades interpretativas. Ao mesmo tempo em que o pai está sempre perto, ele torna-se cada vez mais distante para a família, torna-se alguém completamente estranho e apartado da vida do dia a dia. Ao mesmo tempo em que o rio é elemento cotidiano, está sempre lá fora, mesmo que evolva e gere hábitos e costumes a quem com ele conviva, ele é algo de misterioso e deslocalizado, ele não parece ter início, nem fim, parece ser ilimitado. O pai estaria à margem desse mundo conhecido, seria a terceira margem a loucura, ou o pai teria uma missão quase mística e hercúlea? Ou tratar-se-ia de um outro lugar, nem rio, nem terra? Conforme coloca Lorenzo Papette: O rio está também ligado ao seu fluir, ao movimento contínuo da sua corrente, dinâmica do eterno tornar-se. A sua evidente centralidade, a sua força sagrada e sensual revelam elementos de um conjunto mais complexo, constituído por aquela parte de terra que forma as beiras, contraposta ao rio pelo estatismo, mas que ao mesmo tempo se pode dilatar até o conter. As margens delimitadas pelo rio correspondem à terra onde este pode escorrer, onde a separação é só aparente: o rio delimita, separa ou junta, depende do ponto de vista. A canoa e .2..1..5............... seu navegador são talvez a terceira margem, uma alternativa, um diferente olhar. Novo aproamento móvel e flexível, capaz de criar um epicentro de sentido, de subverter papéis e de fazer perguntas implícitas e inquietantes sobre a identidade e o carácter canónico das duas margens. Cada margem, por mais próxima ou longe que esteja, alude ou precisa sempre de um para além e de um aquém. Lá e cá: lugares de confronto, lembrança, diversidade e também de reconhecimento. Eis porque o pai tem que ficar à espera: deve continuar a encarnar com a sua canoa a terceira margem. Ele não tem outra possibilidade, naquele momento, de integrar, num processo de reciprocidade, o fugaz sentido de identidade de quem, visto da distância de um não-lugar, parece incapaz de se reconhecer no próprio destino, a saber: ser, em sentido amplo, habitante da mesma margem, da mesma língua, da mesma diversidade: a humanidade. (PAPETTE, s/d, p. 03). A figura do pai, assim, está nesse não-lugar e não-tempo. Ele torna-se igualmente um não-pai, uma não-figura, já que o próprio narrador vai desvelando a metamorfose do patriarca em alguém que não parece mais ser quem era, não precisa mais de alimento, de água, nem abrigo. O pai parece fadado a sua missão, o filho que se recusa a seguir o pai e tomar o seu lugar para que ele se liberte do fardo, impõe o conflito do conto. Salvar o pai ou definhar na incerteza. O conto trata, assim, de questões universais e tem o rio como grande articulador da narrativa. O rio para Guimarães Rosa é a eternidade, o que se alastra para o fora de campo, como se vê na imagem repetida de Litoral e Lembrancinha, e em Untitled de Gonzalez-Torres e Still Water de Horn. A terceira margem, nessa perspectiva, talvez seja o tempo e o espaço em suspensão que todo rio pode vir a constituir, dependendo de uma .2..1..6............... certa disposição e entrega, entre as duas margens, entre a terra e a água, entre humanos e não-humanos, entre a cidade e o rio. 3.2 Encontro das águas O conceito de inframince é, em minha pesquisa, significante para pensarmos no rio como uma intersecção entre estados distintos da matéria, a água e a terra, e entre cultura e natureza. Essa via de pensamento conduziu-me a Eu encontro o Guaíba no Caí (2014) (fig. 73), que se trata de uma ação demarcada pela fotografia realizada às margens do rio Caí em Montenegro. A proposta consistia em carregar um pouco de água do Guaíba — água da torneira de Porto Alegre — em uma garrafa e jogá-la no rio Caí, misturando assim suas águas e acelerando o encontro dos rios, pois sabe-se que o rio Caí desagua no Guaíba, e é um de seus formadores juntamente com o Gravataí, o Jacuí, o Rio dos Sinos e o Taquari. No dia combinado com alunos da Uergs, para realizar um conjunto de práticas artísticas urbanas, uma forte chuva caiu sobre a cidade de Montenegro. Resolvemos, entretanto, realizar todas as ações previstas mesmo com a tempestade. A imagem ganhou assim mais elementos aquosos, com a presença da chuva. A imagem em especial, que acabou por se intitular Eu encontro o Guaíba no Caí, não foi uma fotografia exatamente planejada, contou com o auxílio espontâneo de uma aluna que tomou a posição de fotógrafa. Várias fotografias foram realizadas, e selecionei aquela que considerava dar conta do contexto urbano e de meu posicionamento em relação ao rio, destacando o gesto de derrubar água dentro d’água. Percebo que o foco nesse trabalho, que une ação e fotografia, bem como o recorte gráfico das linhas pontilhadas na série Litoral, funciona como demarcador de espaços da arte dentro da .2..1..7............... Fig. 73 – Mariana Silva da Silva, Eu encontro o Guaíba no Caí, fotografia 50×70 cm (2014). Fonte: acervo pessoal. .2..1..8............... natureza presente na cidade. A fotografia recebeu um tratamento de pós-produção para que adquirisse tonalidades mais amarronzadas e saturadas. A intenção era que, exatamente, a imagem fotográfica ultrapassasse a zona de registro de minha ação na/ sobre a natureza e adentrasse em uma zona de contato entre as várias possibilidades de misturas entre arte e natureza naquele enquadramento. Como uma artista formada entre as décadas de 1990 e 2000 no Instituto de Artes da UFRGS, comecei a utilizar a fotografia de maneira casual, pretendendo documentar eventos momentâneos em muitas de minhas práticas que envolviam a gestualidade do corpo. Minhas primeiras imagens, produzidas ainda durante a graduação em Artes Plásticas, procuravam nitidez e qualidade necessárias a dar conta de uma ideia específica, em que a fotografia não era encarada como fim. Alterações posteriores da imagem previamente realizada não eram bem vistas em minhas experiências iniciais; acreditava que o resultado deveria ser condizente com o momento em que foi executada a tomada. Da mesma forma, as maneiras de expor os trabalhos fotográficos deveriam possuir elementos minimamente visíveis, que não competissem com a ação registrada e que se mimetizassem ao espaço expositivo. Faço aqui esse breve relato para salientar que na série de cartazes intitulada Litoral e na proposta Eu encontro o Guaíba no Caí há diferenças na produção e na apresentação das imagens. A série Litoral foi desde o início pensada para a forma cartaz, um objeto múltiplo a ser distribuído durante a exposição e defesa desta tese de doutorado. Partiu de fotografias, mas não poderia ser realizado unicamente como uma imagem disposta na parede, por exemplo. A relação da fotografia com a palavra, com as marcações gráficas, é essencial. Já no outro trabalho em questão, Eu encontro o Guaíba no Caí, mostrou-se importante para mim a alteração cromática da imagem, conforme mencionado. Atra- .2..1..9............... vés dessa reflexão, de comparar os procedimentos empregados para dar a ver determinadas relações entre o infraordinário, o inframince e a natureza, constato que experimento em minha pesquisa formas de apresentar e construir, primeiramente, imagens da natureza, e aqui, mais especificamente, do rio. O gesto de jogar água sobre água, e a mistura da água da chuva com a água do Caí, tem um inegável caráter de efemeridade, embora sua posterior reelaboração fotográfica se transforme em outra coisa. Não se descarta a eventual retomada desse gesto, que pode vir a “misturar” águas em outros momentos, bem como águas de outros rios e na companhia de outras pessoas. Penso ser importante perceber que o trabalho em questão compreende dois momentos: a ação, em sua circunscrição na zona fluvial, no contato do gesto que aciona as águas do Caí e do Guaíba, e a fotografia que decorre dessa mesma ação. Eu encontro o Guaíba no Caí faz com que as duas operações se encontrem. Esse trabalho conecta-se a uma proposição de Hélio Oiticica, Contra-Bólide (Devolver a terra à terra) (fig. 74), uma operação poética de deslocamento de terra. Nessa ação, o artista coletou terra preta de uma parte da cidade do Rio de Janeiro, Jacarepaguá, zona oeste, e a transportou até o aterro de lixo do bairro Caju, um dos mais antigos da cidade, localizado na zona portuária. Ele despejou uma porção de terra sobre outra, utilizando uma espécie de bastidor de madeira, uma circunscrição delimitada, retirando-o depois. Com sua forma partícula de escrita, Oiticica relatou a proposta Devolver a terra à terra da seguinte maneira (conforme documento digitalizado e disponível no acervo do artista)118: 118 OITICICA, Hélio. Acontecimentos poéticos-urbanos, s.d. Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br/programaho/ >. Acesso em: 23 maio 2018. .2..2..0............... account sobre¯ DEVOLVER A TERRA À TERRA meu em KLEEMANIA a 18 dez. 79 no CAJU¯ trata-se de uma operação poética q se instaura no que chamo de CONTRA-BÓLIDE ® ou seja: é a contra operação poética da que gerou o Bólide: o BÓLIDE-VIDRO (e o BÓLIDE-CAIXA também: já que a cor-pigmento pintada ou caixificada em bloco-cor era uma forma de concretizar a massa-pigmento de uma forma nova extra-pintura) q continha o pigmento a terra etc. na verdade não o continha como se fora a “caixa de guardar terra” mas concretizava a presença de um pedaço da terra-terra: dava-lhe uma concreção primeira e contida afastando-a do estado disperso naturalista: daí desde já oposto aos EARTH WORKS americanos q se formam in natura (não q fossem estes propriamente naturalistas: apenas q se dão na natureza ou usam como elemento essencial de componente de concreção paisagística):. nesta operação CONTRA-BÓLIDE pego uma forma de madeira de 80×80×10 cm e preencho-a de terra preta trazida de outro lugar: mas em vez de ser esta terra colocada num container é ela colocada nesta cerca sem fundo: o fundo é a própria terra da localidade onde foi colocada a forma: a forma é então retirada deixando então TERRA SOBRE TERRA que ali fica: o CONTRA-BÓLIDE passa a ser então em vez de obra uma espécie de programa-obra in progress q pode ser repetido quando houver ocasião-necessidade para tal: o CONTRA-BÓLIDE revelaria a cada repetição desse programa-obra in progress o caráter de concreção de obra-gênese q comandou a invenção-descoberta do BÓLIDE nos idos de 63: por isso era o BÓLIDE uma nova ordem de obra e não um simples objeto ou escultura! .2..2..1............... Fig. 74 – Hélio Oiticica, Contra-Bólide Nº 1 – Devolver a Terra à Terra (1979), realizado no Aterro do Caju, Rio de Janeiro, durante o evento Kleemania. Fonte: . Acesso: setembro de 2018. .2..2..2............... A ação de Oiticica está atrelada ao que ele chamava de um “acontecimento poético urbano”, em homenagem ao centenário do artista Paul Klee (1879- 1940), daí o título do evento, “Kleemania”. Como nos fala desde o título, trata-se de uma continuidade do pensamento originário ao conceito de “bólide”, que ele chamava de “transobjetos”, construídos a partir de objetos já existentes, caixas, vidros, dentre outros recipientes, que continham diversas materialidades. Eram recorrentes as preocupações do artista de pensar pigmento, matéria e superfície em uma dinâmica continente x conteúdo. Por outro lado, o recipiente de Devolver a terra à terra, ou seja a fôrma de madeira vazada, é retirada, permitindo que seu conteúdo, a terra, sobreponha-se à terra do aterro e, dessa forma, torne-se um “contra-bólide” — muito mais do que um “transobjeto”, uma ação. O artista deixa claro que a ação pode ser refeita e que não se trata de um interesse paisagístico do entorno, muito menos de uma abordagem objetual; há mais um enfoque na obra em progresso, que será continuada pelo tempo e ambiente urbano. Trata-se de uma matéria natural, assimilando também os detritos sedimentados do aterro de lixo do Caju. O “contra-bólide”, então, passa a ser uma operação a partir do “bólide” inicial, que era um objeto, formado por conteúdo e continente. Especialmente em Devolver a terra à terra, o continente passa a ser mais uma ferramenta, e não o resultado em si, e não temos mais um objeto; ele se dilui no contexto urbano e natural. As matérias envolvidas passam a agir em conjunto, através do gesto do artista. Uma ação efêmera que age na matéria da natureza é igualmente processada pela artista Gina Pane (1939-1990) em Enfoncement d’un rayon de solei (literalmente, “afundando” ou “enterrando um raio de sol”). Nesse trabalho (fig.75), a céu aberto, em uma área coberta de vegetação, a artista abriu um buraco no solo e, com a ajuda de um pequeno espelho, “capturou” a .2..2..3............... luz do sol, direcionando-a para a terra. Pane lida com diferentes elementos da natureza, o entorno verde, o céu, a terra, o sol e seu próprio corpo. A operação realizada, tanto em meu trabalho quanto naqueles de Pane e Oiticica, é registrada em uma sequência de fotografias. Em Eu encontro o Guaíba no Caí, não planejei a fotografia, que foi realizada por uma das alunas que estava comigo naquele momento, conforme mencionado anteriormente. Acredito que outros elementos da natureza no infraordinário acabaram por reforçar o não-planejamento da imagem e a disposição da ação aos fluxos das águas e do clima: a chuva e o guarda-chuva tornam-se figuras que reafirmam uma disponibilidade para com o entorno. Posteriormente, selecionei uma das imagens para constituir a forma fotográfica do trabalho. No caso de Oiticica, entretanto, não vemos uma preocupação com a forma fotográfica, a fotografia não passa a assumir a posição de trabalho, ela é um registro feito por participantes do momento da ação. Nesse trabalho de Gina Pane119, como na maioria de suas performances, há um registro calculado de cada tomada, alinhando enquadramento, foco e recorte ao que a artista queria mostrar. Se em Eu encontro o Guaíba no Caí a ferramenta de levar a água de um rio a outro é uma pequena garrafa, na proposição de Oiticica a terra volta à terra com o auxílio do bastidor; na proposição de Pane, o espelho é utilizado como instrumento para a coleta do material, o raio de sol. É a luz solar e a terra, vivas, que têm a habilidade de operar transformações, deterioração e germinação. 119 É conhecido o trabalho da artista juntamente à fotógrafa Françoise Masson, com quem trabalhou por uma década, demonstrando a preocupação de Pane em reconfigurar suas ações através da fotografia. Ver, por exemplo, o texto de Julia Hountou, Le corps au mur: la méthode photographique de Gina Pane (2000, pp. 124-137). .2..2..4............... Fig. 75 – Gina Pane, Enfoncement d’un rayon de soleil, operado ao meio-dia, dia 20 de julho de 1969, 4 fotografias coloridas, 110×163 cm (1964). Fonte: GROSENICK, 2001, p. 430. .2..2..5............... Em minhas incursões pelos espaços públicos, dificilmente deixo algum rastro ou interferência; acrescentar não é uma prática, mas, em muitas situações, há a retirada de algum fragmento da natureza, como as cascas de árvore e os seixos. Nesse caso, instalou-se uma exceção, que foi levar água de um lugar para outro. Para mim, essa era uma operação compreensível em meu percurso, mesmo de origens diferentes, água ainda é água, e, em seu curso natural, as águas iriam encontrar-se em algum momento. Penso que esse é um ponto de contato com o trabalho de Oiticica e sua ação de devolver terra à terra, bem como com Enfoncement d’un rayon de soleil de Pane: mesmo promovendo o encontro de dois elementos distintos, raio de sol e terra, ainda concerne a elementos que naturalmente se encontram. Interessa-me que meu percurso seja algo que aja por si, que não adicione alguma coisa permanente em um local específico, seja uma beira de rio ou um terreno vago. Parece-me que, assim, a rotina e os acontecimentos serão mantidos e se desenrolarão independentemente de minha presença. Novamente, pode-se retomar a investigação artística de Herman de Vries, gerada ela também da observação, coleta e escrita a partir da natureza, para se analisar procedimentos de acréscimo e retirada de algo neles mesmos. O texto escrito pelo artista é uma reflexão que se assemelha a um acordo com sua própria obra, uma declaração escrita em letras minúsculas, the world we live in is a revelation (“o mundo em que vivemos é uma revelação”), que demonstra, em seu processo, o valor equivalente entre todas as coisas, humanas e não-humanas, arte e vida. Assim como o pensamento textual desenvolvido por Oiticica, de Vries cria uma escrita associada inerentemente a sua prática. Segue um trecho em sua formatação original: .2..2..6............... ao redor da nossa casa há apenas um pequeno jardim. muitas plantas crescem lá de muitas espécies e todos os tipos de insetos abundam em torno e entre. (...) eu colecionei de todas as espécies diferentes nesse pequeno jardim uma folha e as montei na superfície de um papel. uma multidão de formas tornou-se visível em “formas do jardim”. (...) existem artistas que usam materiais naturais, criam com materiais naturais ou os levam para seu trabalho. eu não. a diferença é que eles usam materiais naturais — eu só os apresento. não tenho nada a acrescentar, nada a mudar (...) em 1972 escrevi durante um passeio por nossas vastas florestas: minha poesia é o mundo eu escrevo todos os dias eu reescrevo todos os dias eu vejo todos os dias eu leio todos os dias eu como todos os dias eu durmo todos os dias o mundo é meu acaso isso me muda todo dia meu acaso é minha poesia esta linha de pensamento ainda está me guiando agora. não tenho nada a dizer: está tudo aqui. arte não é definível. toda definição é uma limitação. mas para mim isso tem a ver com a formulação da consciência ou com o processo de tornar-se consciente. essa consciência eu vejo acontecendo ao meu redor na natureza e eu mostro o que eu vi acontecendo, o que eu vi sendo. .2..2..7............... isso e nada aqui e em todo lugar todos eschenau, outubro de 1992. (DE VRIES, 2012, pp. 163165, tradução minha).120 Inicialmente, o interesse de De Vries pelo mundo natural foi filtrado pelas concepções do grupo Zero121 (do qual fez parte entre os anos 50 e 60); nessa perspectiva, representar a realidade de maneira objetiva e cientificamente engajada. Ao longo dos anos, entretanto, essa objetividade foi se somando a uma narrativa (“eu escrevo todos os dias / eu reescrevo todos os dias / eu vejo todos os dias”) que se desdobra sutilmente, revelando uma visão mais pessoal da relação do artista com a natureza e de seu processo de trabalho com ela. A natureza é reintegrada constantemente à vida, assim como para De Vries a arte não pode ser separada dela. Isto não implica, contudo, a construção de trabalhos artísticos per- 120 “around our house is only a small garden. many plants grow there of many species and all kinds of insects abound around and between. (...) i collected from all the different species in this little garden one leaf and mounted them on the surface of paper. a multitude of forms became visible in ‘forms from the garden’. / (...) there are artists who use natural materials, they create with natural materials or take them into their work. not me. the difference is that they use natural materials i only present them. i have nothing to add, nothing to change (...) / in 1972 i wrote on a walk in our vast forests: / my poetry is the world / i write it every day / i rewrite it every day / i see it every day / i read il every day / i eat it every day / i sleep it every day / the world is my chance / it changes me every day / my chance is my poetry / this line of thought is still guiding me now. i have nothing to say: it is all here.art is not definable. every definition of it is a limitation. but for me it has to do with the formulation of consciousness or with the process of becoming conscious. this consciousness i see happening around me in nature and i show what i have seen happening, what i have seen being. / this and no thing here and everywhere / all / eschenau, october 1992.” 121 Grupo de artistas de várias nacionalidades, cuja temática de trabalho girava em torno da luz e do movimento. .2..2..8............... manentes no ambiente. É claramente exposta em seu enunciado a ideia de perecibilidade dos elementos recolhidos, dos processos em seu lugar de origem, e a de não-interferência (“a diferença é que eles usam materiais naturais — eu só os apresento / não tenho nada a acrescentar, nada a mudar”). Estabeleço assim uma analogia a minha forma de proceder no espaço da vida e no espaço da arte, que por vezes se encontram. São apresentações da natureza, do rio e do contato com a cidade. 3.3 Olhar o rio Pensando na presença quase invisível dos rios em meu cotidiano, tendo em vista a constituição urbanística da cidade de Porto Alegre e os encontros fortuitos e esporádicos com o rio Caí, passei a procurar registros de sua passagem no dia a dia. Esse interesse fez com que recolhesse água da torneira, em minha residência em Porto Alegre, e a levasse para lançar ao rio Caí em Montenegro. O rio corre também nos encanamentos e desagua banalmente nos banhos cotidianos e na louça a lavar. É nessa reflexão que se encontra o trabalho Americano River (2015) (figs. 76, 77 e 78), fotografia apresentada com uma moldura azul e uma pequena placa que carrega seu título. A “imagem mental” do trabalho apareceu inesperadamente ao beber água da torneira e a constatar os percursos que a água do rio vem a assumir cotidianamente. Naquele momento, não pensei exatamente no Guaíba ou em qualquer outro rio, imaginei, entretanto, a oposição entre a extensão dos grandes rios e a ordinariedade de sua chegada pelas torneiras do apartamento. Dessa forma, recordei-me do copo tipo americano, tão comum na cultura brasileira, mas baseado em um design estrangeiro, longínquo. Foi nesse ponto que as palavras se sobrepuseram à imagem, como em Lembrancinha e Litoral. Passei a realizar alguns testes .2..2..9............... .2..3..0............... Fig. 76 – Mariana Silva da Silva. Montagem de Americano River na Banca de Qualificação (2016). Fonte: acervo pessoal. Fig. 77– Mariana Silva da Silva. Americano River. Fotografia 60×40 cm, moldura e etiqueta metálica (2015). Fonte: acervo pessoal. .2..3..1............... Fig. 78 – Mariana Silva da Silva, teste para Americano River (2015). Fonte: acervo pessoal. .2..3..2............... descompromissadamente, não sabendo ao certo se a fotografia poderia corresponder ao pensamento. Em uma segunda etapa, com o cenário e a iluminação apropriados, foram realizadas as fotografias, e acabei por selecionar uma delas para o trabalho, ao qual depois foram incorporadas a moldura e a etiqueta metálica com o título. Esses elementos constituem a materialidade do trabalho, são os “paratextos” — citando novamente Gérard Genette — que funcionam como produtores de sentidos que somente a fotografia não daria conta. Após a configuração da ideia enquanto imagem, dei-me conta de que, há alguns anos, aproximadamente em 2008, havia realizado um trabalho que muito se aproxima de Americano River. Trata-se de Algumas quedas d’água (Some waterfalls) (figs.79 e 80). Essa proposta, que se constitui em três fotografias impressas em acrílico, registra três torneiras domésticas pingando água. No mesmo apartamento, no bairro Rio Branco em Porto Alegre, onde iniciei a coleta de desenhos para a realização de Rio Branco, um problema de cunho doméstico — torneiras desgastadas pelo tempo e uso rotineiro — formou o objeto fotografado. O título, em português e em inglês, e o material escolhido, a sofisticada impressão em acrílico, fazem uma irônica oposição ao modesto motivo fotografado. O imaginário despertado pelo nome do trabalho também toca em obras artísticas e fotografias que lidam com a natureza de maneira grandiosa e eloquente. Logicamente, ao analisar as imagens, não encontramos grandes cachoeiras; no lugar delas, deparamo-nos com pingos de água em queda. Nesse sentido, a série de 2008 reverbera no trabalho de 2015, cujo copo americano nomeia o rio composto por água da torneira e o recipiente de vidro. Objeto do dia a dia, o copo tipo americano tem uma história no cotidiano brasileiro. Adaptação dos copos produzidos nos Estados Unidos pelo empresário Nadir .2..3..3............... Fig. 79 e fig. 80 – Mariana Silva da Silva, Algumas quedas d’água (Some waterfalls) (2008). Imagem na exposição Salta d’Água: dimensões críticas da paisagem, ocorrida na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Instituto de Artes da UFRGS, em 2017. Curadoria de Diego Hasse e Eduardo Veras. Fonte: acervo pessoal. .2..3..4............... Figueiredo122 em 1947, o copo americano vende cem milhões de unidade por ano, sendo o preferido em padarias e bares populares pelo baixo custo e funcionalidade, além de a versão de cento e noventa mililitros ter se tornado um padrão de medida. A concepção de adaptar um utensílio estrangeiro aos hábitos locais, que acabam por se justapor ao seu original, faz com que o objeto adquira características irônicas e até, talvez, antropofágicas.123 Ao mesmo tempo, desenvolvo a ideia de que os rios adentram em nossa vida através da água encanada. Nossa experiência cotidiana com os rios é intermediada por vários artifícios, seja o muro da Mauá em Porto Alegre, sejam os encanamentos que conduzem suas águas para a vida privada. O título do trabalho Americano River é, assim, uma aproximação dessas duas palavras que tentam reelaborar a imagem do rio dentro desse contexto. Escolhi realizar a fotografia em estúdio, utilizando um fundo de papel azul, que possibilitasse uma construção de um cenário fotográfico diferente de trabalhos fotográficos realizados diretamente na natureza urbana. Aqui, trata-se de destacar o objeto, no caso, o copo cheio de água, longe de uma situação específica, longe de uma cena doméstica em particular, ou mesmo de uma pública, construindo um rio que pode, de certa forma, existir em qualquer lugar. 122 Nadir Figueiredo é uma empresa brasileira produtora de utensílios em vidro, fundada em 1912 pelos irmãos Nadir Dias de Figueiredo e Morvan Dias de Figueiredo. 123 Refiro-me ao histórico Manifesto Antropófago ou Antropofágico (1928), manifesto literário escrito por Oswald de Andrade (1890-1954), que repensa a dependência cultural brasileira, a partir da possibilidade de engolir e deglutir a tradição europeia, gerando uma nova identidade cultural brasileira da mistura e da hibridação de referências. O manifesto ressurge em minha pesquisa através da disciplina Processos participativos em arte: a conversa infinita, do curso de doutorado, ministrada pela professora doutora Cláudia Zanatta, no primeiro semestre de 2018. .2..3..5............... Americano River pretende colocar em tensão as definições de natureza e cultura no infraorinário, afastando-se e se aproximando desses conceitos que, ora parecem ser dicotômicos, ora embaralham-se indissoluvelmente. Pretendo instaurar uma relação sistêmica entre essas dicotomias, de maneira que formem um conjunto de elementos inter-relacionados, e não hierárquico. Esse modo de trabalhar a linguagem, no sentido da palavra e da imagem, alcança a obra de Marcel Broodthaers (1924-1976), Pluie (fig. 81), objeto que consiste em uma garrafa de vidro etiquetada com a palavra “pluie” (“chuva”). Como em muitos trabalhos de Broodthaers, palavra e imagem somam-se para criar uma aposta visual que vai além do próprio objeto, uma simples garrafa de vidro verde, aparentemente vazia. No lugar de um líquido, esse continente é preenchido visualmente pela palavra “chuva”, criando, portanto, imagens que vão além do que é materializado diante de nossos olhos. Na obra do artista, as palavras, na maioria das vezes, não correspondem aos objetos apresentados, é a associação entre eles que multiplica sentidos. Assim, a garrafa verde, quem sabe, acolhe ou acolherá a água da chuva. Talvez o líquido tenha evaporado, e uma transmutação natural da matéria tenha sido produzida sem que nos déssemos conta. Broodthaers, poeta, cineasta, artista, foi também um colecionador de objetos, de todos os tipos. A historiadora da arte Cathleen Chaffee (2010) levanta o apreço do artista por antiquários e objetos do cotidiano em geral, apontando que ele trabalhava em uma escala doméstica, empregando objetos básicos, moldados pela tradição e pelos hábitos do dia a dia. Perguntado, certa vez, se esses objetos funcionavam como palavras, o artista respondeu que utilizava “o objeto como palavra zero”.124 Na “chuva” de Broo- 124 Trechos de entrevista com Irmeline Lebeer: “Les objets fonctionnent-ils, chez .2..3..6............... Fig. 81 – Marcel Broodthaers, Pluie, garrafa de vidro e etiqueta de papel, 32×13,5 cm (1973). Fonte: LEEN; PATOUL, 2010, p. 94. .2..3..7............... dthaers a palavra é utilizada para acrescentar ou transformar sentidos do objeto. Em Americano River, acabo por concretizar um novo objeto, a partir da fotografia do copo, da moldura e da palavra. O copo não está presente no espaço expositivo, mas sua imagem, ou, mais especificamente, algo a partir de sua imagem, uma outra coisa. Uma imagem de um rio pequeno, na “escala doméstica”. Representar os rios, mais especificamente, a água, nunca foi tarefa fácil para os artistas ao longo da história, mas é há muito tempo um tema de seu interesse. A água escapa à imagem, ela não tem cor nem forma, toma emprestadas características que lhe são fugidias e efêmeras. É essa condição momentânea da mistura das águas e da reelaboração constante de sua consistência e essência que me interessaram inicialmente na realização de muitos trabalhos agora analisados: Tema central de vários episódios bíblicos, a água é fonte, rio, lago ou mar, está ligada a lugares que conhecemos ou que podemos imaginar. Provenientes da Fonte da Vida, os rios do paraíso irrigam o mundo e dão vida à vegetação. O mar poupa Jonas vomitado pelo monstro, protege os hebreus abrindo-se diante deles antes de se fechar à passagem dos egípcios. O Nilo salva Moisés. Jesus é batizado no Jordão, o lago de Tiberiade é o teatro dos milagres: pesca milagrosa e caminhada sobre as águas. (LANEYRIE-DAGEN, 2010, p. 125, tradução minha).125 vous, comme des mots? J’utilise l’objet comme mot zéro”. Catalogue-Catalogus, Bruxelles, Palais des Beaux-Arts, 1974, reproduzido em: BROODTHAERS, Marcel. Marcel Broodthaers à la Monnaie de Paris: Communiqué de presse. Monnaie de Paris, 2015. Disponível em: . Acesso em: 05 de agosto de 2018. 125 “Thème central de plusiers épisodes bibliques, l’eau est fontaine, fleuve, lac ou mer, et liée à des endroits qu l’on connaît ou que l’on peut imaginer. Issus .2..3..8............... Através da citação de Nadeije Laneyrie-Dagen, em L’invention de la nature, notamos que olhar para as águas é mergulhar em mitologias ancestrais, é retomar experiências primeiras do corpo, em grande parte constituído por água. Na época bizantina, por exemplo, as representações dos cursos de água não se pretendiam realistas, voltavam-se mais a múltiplas simbologias. Os rios, assim, por um longo período, configuraram um imaginário associado a crenças e religiosidade. Simon Schama acrescenta: Todos esses mitos fluviais personificavam um dos princípios determinantes das sociedades hidráulicas. No Timeu, Platão estabelece o círculo como a forma necessariamente perfeita para a criação, pois sozinho compõe uma linha completa de contenção. O princípio vale para a circular do sangue pelo corpo humano e das águas pelo planeta. Assim, os ritmos de morte e renascimento fluvial, a transmutabilidade de água, sangue e vinho descrevem um ciclo que, observadas as reminiscências adequadas, se autogoverna. (...) Assim, se o curso arterial e autocontrolado do Rio sagrado, semelhante à corrente sanguínea dos homens, constituíra uma imagem permanente do fluxo da vida, a linha das águas, do começo ao fim, do nascimento à morte, da fonte à foz, tem sido, no mínimo igualmente importante. Ademais, dominou a linguagem dos rios na Europa e no Ocidente, fornecendo imagens para a vida e morte de nações e impérios e para fatal alternância entre de la Fontaine de Vie, les fleuves du paradis irriguent le monde et donnent vie à la végétation. La mer épargne Jonas recraché par le monstre, elle protègue les Hébreux en s’ouvrant devant eux avant de se refermer au passage des Égyptiens. Le Nil sauvegarde Moïse. Jésus est baptisé dans le Jourdain, le lac de Tibériade est le théâtre de ses miracles: pêche miraculeuse et marche sur les eaux.” .2..3..9............... comércio e calamidade. As culturas clássicas do Oriente e do Oriente Próximo viam os rios sagrados como elos temporais e topográficos. O Ocidente romano, de longa data, via os rios como estradas que podiam se tornar retas; que transportavam mercadorias e, se necessário, homens armados; que definiam entradas e paradas. O modelo para o curso d’água bem-comportado era o aqueduto, a façanha maior da engenharia romana. Forma os textos latinos que organizaram a história num desenvolvimento linear para que se pudesse imaginar os rios — sobretudo o Tibre — como fluxos de poder e tempo, carregando impérios desde a nascente até a extensa foz. Paralelamente, todavia, os autores ocidentais muitas vezes percebiam nesses bulevares fluviais um paradoxo perturbador. Se o fato de divisar as margens parecia proporcionar uma certa segurança (negada, por exemplo, aos marinheiros que perdiam a terra de vista), os exploradores que subiam o rio, constatavam que, até mapear o curso de uma ponta a outra, tinham pouco controle sobre o próprio destino. Podiam ser levados a lugares onde, ao invés de senhores, acabariam se tornando cativos das águas. (SCHAMA, 2009, pp. 264-266). Os rios, anteriormente temidos e desconhecidos, passaram a ser dominados nas sociedades hidráulicas. Leonardo da Vinci, mais uma vez, deixou um grande número de desenhos que tentam entender os movimentos das águas, o encontro das correntes em zonas de confluência, a seca dos pântanos, as possiblidades de se canalizar um rio e construir barragens. Sendo assim, no Mapa de Imola (fig. 82), a cidade é dividida em setores, representados em quatro cores para identificar diferentes elementos, destacando-se as ruas em branco e os canais do rio em azul. No mapa, percebe-se uma típica organização urbana da Idade Média, uma cidade murada e cercada pelo rio. Esse modelo de cidade dificultava sua expansão e facilitou ciclos de epidemias aliado à .2..4..0............... Fig. 82 – Leonardo da Vinci, Mapa de Imola, desenho em bico de pena e aquarela, 44×60,2 cm (1502). Fonte: LANEYRIE-DAGEN, 2010, p. 167. .2..4..1............... superpopulação em uma área restrita e à falta de infraestrutura sanitária, tal como abastecimento fluente e limpo de água corrente e esgotos. A constituição das cidades brasileiras, dentre elas Montenegro e Porto Alegre, repetiu em muito as cidades europeias. É muito antiga também a relação que se estabelece entre os rios e as cidades em nosso país: as coloniais surgiram inicialmente às margens dos rios em busca de seus recursos, água potável, circulação e lazer. Sobre a configuração de Porto Alegre, cito novamente Maria Ivone dos Santos, que nos fala: Ao longo de sua história a cidade tornou-se cosmopolita e passou a abrigar novas atividades econômicas, e a ter importante atividade portuária para dar vazão às necessidades da economia florescente. Sucessivos aterros foram realizados buscando ampliar sua área central da cidade que avançou sobre as águas do Guaíba. Os imigrantes europeus imprimiriam novas feições e usos ao seu espaço urbano. (...) As linhas retas dos planos higienistas buscaram dirigir o curso das águas do Arroio Dilúvio que antes descia serpenteando e ocupando as falhas naturais do terreno, inundando em tempos de grandes chuvas as terras baixas da cidade. Com a mudança do traçado, o leito aterrado se integraria à terra firme. Pontes seriam retiradas da paisagem de Porto Alegre e essas mudanças produziriam apagamentos e lapsos, que alguns moradores ainda hoje relatam como sendo feridas no seu imaginário. (SANTOS, 2014, p. 92). A pesquisa de Maria Ivone dos Santos nos aponta os diversos conflitos advindos de uma reconfiguração das cidades brasileiras a partir de valores unicamente econômicos. Quando passamos a estudar mais atentamente as relações entre as paisagens fluvial e urbana no Brasil, constatamos que, nas mais .2..4..2............... distintas regiões o confronto entre forças é semelhante, e os rios parecem mais e mais afastados das narrativas e simbologias acionadas tanto por Santos quanto por Laneyrie-Dagen e Schama. Abordada no primeiro capítulo, a situação das enchentes em Montenegro está atrelada a essa história de infortúnios administrativos tipicamente brasileira. Sobre ela, a artista Andreia Salvadori (1985) realizou o trabalho Água da enchente (fig. 83) na região montenegrina, ouvindo relatos de abandono e destruição, ocorridos nas maiores enchentes desde meados de 1997 até o ano de 2013. Salvadori iniciou sua pesquisa126 ouvindo histórias de moradores de Montenegro; sendo moradora recente da cidade, presenciou algumas cheias. Partindo dessa experiência, passou a coletar água da enchente em recipientes de vidro como uma tentativa de “esvaziar” a cidade de tamanha quantidade de líquido e, igualmente, compartilhar as histórias contadas. Há a ideia de distribuir os frascos toda a vez que voltar a ocorrer uma enchente, uma espécie de compartilhamento de memórias das águas. Cada garrafa possui a etiqueta com a descrição do conteúdo, que constitui o título, “água da enchente”, juntamente à data do respectivo evento. Trata-se, assim, novamente, de um continente e uma etiqueta que veicula uma ideia, concatenando-se à chuva de Broodthaers e, em meu trabalho, à fotografia do copo americano. Diferentemente, esse último constrói-se partindo da imagem do objeto, um novo objeto, aliado à moldura e à etiqueta. Os continentes de vidro de outros artistas passam a compor a obra 126 Andreia Salvadori iniciou sua pesquisa sobre as enchentes de Montenegro durante a investigação de Iniciação Científica, na Uergs, intitulada A arte contemporânea e o rio: experiências artísticas a partir dos Rios Caí e Guaíba (2014), juntamente à colega Tatiane Passos, sob minha orientação. A pesquisa encontra-se citada nos referenciais dessa tese. .2..4..3............... Fig. 83 – Andreia Salvadori, Água da enchente, objeto múltiplo: vidros contendo água da enchente, rolhas e etiquetas, 5×3 cm cada (2014). Fonte: acervo pessoal. .2..4..4............... mesma, enquanto o “rio americano” passa do objeto à imagem e novamente ao objeto. Tendo feita essa constatação, pretendi que Americano River, assim como Na minha cidade tem um rio, Litoral e Lembrancinha, falasse de muitos rios, por isso nesses trabalhos não há uma identificação direta com os rios Caí e Guaíba. Os trabalhos, em sua nascente, sendo literal aqui no contexto dessa pesquisa, advém dessas naturezas fluviais em específico; contudo, procuram confluir em outras águas. .2..4..5............... O BAIRRO ARQUIPÉLAGO Deveríamos nos encontrar no Cais do Porto, perto de onde sai o Catamarã, pelas oito e quarenta e cinco da manhã. Como de hábito, não consegui me aprontar a tempo, as manhãs são complicadas e o dia prometia ser longo. Ao sair lembrei-me de que haveria sol e deveria levar um protetor solar, um lanche também seria providencial, o que me fez colocar algumas castanhas na mochila, além de uma garrafa com chá gelado. Cheguei a separar um chapéu de palha para levar, mas acabei por deixá-lo em cima do sofá, fato que me traria um grande arrependimento ao longo da tarde. Mais ou menos às nove e meia da manhã, G. e eu chegamos ao nosso encontro. Todos já estavam nos aguardando, gerando em mim um certo desconforto pelo atraso. Reunidos, seríamos nove passageiros a seguir a viagem de barco pelo rio Guaíba, mais o pescador, também nosso guia e também companheiro de percurso. Entramos todos no barco de metal um tanto enferrujado, coberto parcialmente por uma lona que seria nosso único resguardo do sol escaldante que já se anunciava. R. mais tarde observou que os pescadores não usam mais barcos de madeira, comentário que me surpreendeu sem eu saber muito o porquê. .2..4..6............... Entrando no espaço apertado, um conjunto de cadeiras de plástico nos era reservado, bem como um grande número de coletes salva-vidas envoltos em sacos transparentes. Mesmo que não os tenhamos vestido, senti-me reconfortada com seu uso em potencial, já que não sei nadar. Organizamo-nos de maneira que todos ocupássemos as cadeiras, com exceção do piloto, que precisava operar a “máquina”. Ele nos explicou brevemente o trajeto que iniciávamos, mencionando as ilhas que cruzariam nosso trajeto, muitas delas cujo nome eu não conhecia até aquele momento. O ponto de pausa da viagem seria o almoço na Colônia de Pescadores, na Ilha da Pintada e de lá retornaríamos à terra firme. Começada a viagem, o barulho do motor era muito mais alto do que eu pudera supor. Percebi também que entrava um tanto de água dentro do barco, que ia sendo retirada ao longo da viagem e jogada de volta ao rio. R. sentou ao fundo, resguardado pela sombra da .2..4..7............... lona; mais a sua frente sentaram T., V. e eu; a seguir, M.I. M. e M.A.; na proa, G. e N.G, ambos com camisetas em tons de roxo e calça e bermuda pretas, coincidência que os fez uniformizados para a travessia. O calor começara a aumentar. M. emprestou-me um lenço para que pudesse proteger minha cabeça do sol intenso, que viria a ser o grande inconveniente do trajeto. M. e M.I. também passariam a emprestar seus chapéus para aqueles que sentassem mais ao sol. As garrafas de água e chá foram guardadas em uma grande caixa de isopor que ficava no chão e na sombra. R. e M. também levaram suculentos pêssegos e T. um pacote de biscoitos amanteigados. Todos lembraram que o dia seria longo e a fome certamente aumentaria até a hora do almoço. À medida que nos deslocávamos pelas águas do rio, avistávamos o centro da cidade de um ângulo nada usual. Muitos navios ancorados despertaram comentários de todos, seu tamanho descomunal e grandioso impunha-se como uma novidade para muitos de nós. .2..4..8............... Enxergamos botes pendurados e homens trabalhando, que nos abanavam gentilmente lá de longe. Uma dessas grandiosas embarcações, tão alta como um prédio de vários andares, chamava-se Nika. Talvez fosse russa, provavelmente vinda de um oceano distante. Quando nos aproximávamos dos navios, percebíamos que, passados alguns minutos, correntes agitadas balançavam nosso barco, o que nos fazia sorrir e fazer brincadeiras sobre uma possível queda nas águas que, felizmente, não aconteceu. O famoso barco turístico Cisne Branco também passou por nós, com seus passageiros tirando fotos em meio a uma curiosa decoração repleta de vasos de folhagens exuberantes. Naquele instante, pensei no grande contraste entre nosso pequeno barco, o grande cisne e os imensos navios. Ao que parece, atravessamos as águas do rio Gravataí, que depois viria encontrar-se com o Guaíba, informação essa acrescentada por R., que conhecia muito bem a geografia de Porto Alegre, mesmo .2..4..9............... sendo estrangeiro a ela. R. e nosso guia apontavam nomeando os locais pelos quais passávamos: Ilha do Chico Inglês, Ilha do Pavão, Ilha do Humaitá. Nunca pensei que existiriam tantas ilhas perto de mim. No encontro da Ilha do Pavão e da ponta da Ilha Grande dos Marinheiros sobressaíam muitas casas grandes, às quais R. não sabia como se referir em português; M.I. usou a palavra “mansões” para descrevê-las. Algumas dessas casas tinham passarelas que desembocavam diretamente no rio, saídas particulares para barcos familiares. Seus jardins frontais eram rodeados por muros, mas a parte traseira desses pátios era livre, aberta às águas. Observamos dois meninos que nadavam e se divertiam perto de uma dessas passagens, eles nos acenaram igualmente. Não conseguia saber a quanto tempo navegávamos, os raios solares pareciam cada vez mais quentes e o suor cada vez mais inevitável. Comemos alguns pêssegos macios, frescos, doces e os demais lanches, um alento ao desconforto que já começava a despontar pela fome .2..5..0............... e pelo calor. Passamos a nos sentar mais próximos da lona, que gerava a única sombra do barco, e foi necessário rearranjar a ordem dos assentos para que mais de nós pudessem acomodar-se longe sol. Em alguns momentos o motor era desligado e um silêncio longo surgia. Fechando os olhos podíamos sentir a brisa úmida das águas. Lentamente, deslizamos pelo Canal da Conga, um caminho rodeado por uma vegetação fechada e aparentemente intacta. Nenhuma casa ou outros barcos à vista. Surgiram-me imagens da Floresta Amazônica e dos pântanos do Mississipi, como vemos naqueles filmes norte-americanos. Contornando a Ilha da Casa da Pólvora, encaminhamo-nos à parada para o almoço. Chegando na Ilha da Pintada, saímos um por um do barco, apoiando-nos nas mãos uns dos outros. O segredo para o equilíbrio é não olhar para baixo, para as águas. Ancoramos em frente à sede da Colônia dos Pescadores, uma pequena edificação cuja data de cons- .2..5..1............... trução vinha estampada na fachada: 4 de dezembro de 1921. Abaixo dessa informação, imediatamente olhávamos para o adorno decorativo colorido em azul e verde, contemplado pelo relevo, um tanto raro, de duas sereias com pernas. Como em uma cidade interiorana, as ruas mostraram-se repletas de casas, cachorros, árvores e calmaria. Nosso guia preferiu almoçar em casa, já que estava perto dela, enquanto R. conduziu-nos até o restaurante mais próximo, em que poderíamos comer um bom peixe. Exaustos, sentados em uma grande mesa, pedimos porções fartas de comida, cerveja, água e um litro de refrigerante de guaraná misteriosamente ainda servido em garrafa de vidro. Ao terminarmos a refeição, M. nos ofereceu sobremesas apimentadas que havia trazido do México. Cada doce vinha em uma embalagem de plástico colorido, uma espécie de bisnaga que deveria ser apertada para que a geleia escorresse pela boca. Discutimos por alguns minutos o gosto exótico e os ingredientes que deveriam compor a iguaria. Depois de bem alimentados, refrescados e descansados, iniciamos nossa caminhada pelas ruas da ilha. Como em uma expedição, todos carregavam mochilas e máquinas fotográficas, que eram disparadas a quase todo momento. Observamos diferentes casas, algumas, amplas e arejadas, outras esperando eternamente a finalização de uma pintura ou reboco, algumas com um terreno apertado, em que repousava uma piscina de plástico infantil ou algum barco abandonado. Vi um senhor limpando um peixe, e alguns gatos aguardando ansiosamente o resto da limpeza. As ruas que antes pareciam aquelas de uma cidade do interior, agora me pareciam um pouco mais abandonadas, esquecidas entre o continente e as águas poluídas do rio. Conversávamos trivialidades e descansávamos debaixo de algumas árvores que rodeavam um trapiche. Assustei-me ao pensar que deveríamos retornar todo o caminho para pegar o barco novamente. M.I. explicou-nos que não seria necessário, pois nosso caminho seria retomado daquela parte da ilha. Tomamos assim o rumo para a partida da viagem de volta. Nosso colega N.G. foi mais adiante e encontrou .2..5..2............... uma mulher que vendia melancia e que emprestou-lhe uma faca. Entramos todos no barco, levando a melancia. Para alívio de N.G., nosso guia se comprometeu a devolver a faca à vendedora da fruta, e, assim, poderíamos cortar e compartilhar os pedaços de uma melancia realmente vermelha, grande e saborosa. O barco saiu rumo ao centro da cidade enquanto todos comiam a fruta como se nunca tivessem assim o feito. O retorno foi bem mais rápido do que a ida. Ancoramos no cais e saímos do barco com certa dificuldade, pelo cansaço e insolação. Despedimo-nos e agradecemos ao guia, que parecia já estar pronto para a próxima travessia. Mais uma vez, permanecemos do outro lado do rio, entrevendo ao longe o Arquipélago, formado por dezesseis ilhas e declarado um bairro porto alegrense em 7 de dezembro de 1959. .2..5..3............... CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao iniciar esta pesquisa percebi que, ao refletir sobre a natureza, talvez a maioria de nós alcance imagens de florestas tropicais, praias com coqueiros e areia branca, mesmo geleiras no Ártico, habitadas por grandes ursos polares. O imaginário da natureza exuberante e selvagem ainda permeia os significados atribuídos ao conceito. No Brasil, especificamente, natureza com certa frequência diz respeito à Amazônia, à Mata Atlântica, e ao Pantanal. A identidade cultural brasileira está diretamente ligada à sua relação com a natureza, conforme coloca a historiadora Luciana Munari: A mistificação em torno dos insondáveis segredos e riquezas da Amazônia é tão antiga quanto o ingresso da civilização europeia na América. Desde então, a região foi construída no imaginário ocidental, a partir de múltiplas referências culturais, como a historiografia greco-romana, as narrativas de viajantes, peregrinos e exploradores, e as fabulações a respeito da Índia. A Amazônia tornou-se herdeira do terror e do encantamento exercidos pela fertilidade extrema das terras .2..5..4............... distantes sobre o homem europeu, encerrado em um ambiente de escassez e limitações em termos de terras e de recursos. A exuberância da floresta e do rio despertaram a curiosidade e o gosto pelo exótico, nunca totalmente saciado pelas numerosas incursões no território amazônico. (MUNARI, 2009, p. 146). Munari discorre que, em nosso país, ao longo dos séculos XIX e XX, tornou-se evidente, na literatura e nas artes em geral, uma concepção conflituosa dos poderes da natureza, encarada por vezes como uma entidade aterrorizadora, e, em outras, como uma entidade em vias de ser dominada pela civilização moderna. Recorrendo à arte e às narrativas dos artistas ao longo da história, a natureza esteve associada aos artistas viajantes e suas representações da fauna e da flora do novo mundo, um desconhecido a ser desbravado. Mais recentemente, é recorrente a constatação de que a natureza está fadada à destruição pela ocupação agressiva da humanidade, todos nós incluídos. São muitas responsabilidades diárias que se incorporam aos modos de viver contemporâneos. Os deveres diante das transformações ameaçadoras envolvem, nesse mesmo sentido, muitas das práticas artísticas atuais, bastante abrangentes, associadas, por exemplo, à agricultura orgânica e à preservação ambiental. Dentro dessa perspectiva, passei a notar que os trabalhos originalmente vinculados à tese de doutorado não compartilhavam ou não se inseriam diretamente no escopo ecológico, tampouco nas concepções de uma expedição científico-artística. Muitas dessas ações da arte me interessam e, todavia, não eclodem em minhas proposições. Em uma aula do curso de doutorado, durante apresentação de projetos de pesquisa, um colega sugeriu-me desbravar as terras brasileiras, de norte a sul, e perseguir o curso do Guaíba. Lembro-me que refleti motivada por alguns segundos, imaginando longas viagens de barco, es- .2..5..5............... caladas em montes, dentre outros empreendimentos, certamente sob influência da leitura de A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt127, de Andrea Wulf (2016), livro que narra as proezas do grande personagem histórico, Humboldt. Naquele momento, veio-me a constatação (com a aparente segurança de alguém que já havia muito refletido) de que meu trabalho artístico não seria capaz de me impulsionar a tal exploração. Um pouco por questões econômicas, um pouco por questões de ordem prática, porém, sobretudo, por questões de natureza. Natureza do trabalho mesmo, no sentido elementar do termo, do seu conjunto de propriedades, da constituição de seu corpo. Acredito que a indagação fez-me circunscrever, então, a pesquisa em seu desígnio próprio, aquele do infraordinário, do espaço da rua, da beira do Guaíba visto de dentro do ônibus, da estrada para Montenegro e para o Caí. O sentido, portanto, estrito abriu-me a possibilidade de inventariar apresentações de natureza em meu trabalho, investigando quais seriam elas e como se constituíriam enquanto forma artística. O projeto de pesquisa que se inaugurou em Na minha cidade tem um rio possibilitou a descoberta de antecedentes em minha produção, pistas para solidificar interesses investigativos. Algumas quedas d’água (Some waterfalls), Constelar, Lembrancinha e Rio Branco permitiram um mapeamento genealógico do tema do doutorado. As noções cunhadas por Georges Perec e Marcel Duchamp, infraordinário e inframince respectivamente, assinalam uma volta à pesquisa de mestrado, enfatizando que refe- 127 Embora não tenha citado diretamente o estudo de Wulf sobre Alexander von Humboldt (1769-1859), naturalista, geógrafo e explorador, sua leitura foi de extrema valia durante a concepção desse texto. A concepção de Humboldt sobre a natureza como totalidade que envolve diversas disciplinas vem ao encontro de autores contemporâneos como Emanuele Coccia, para quem o objetivo e o subjetivo, a ciência e a arte também são possíveis campos de conhecimento não apartados. .2..5..6............... renciais predecessores continuavam indicando trajetos para uma prática artística entremeada pela teoria e pela escrita. A escrita foi se configurando como parte essencial da metodologia de pesquisa, consolidando-se tanto como pensamento investigativo quanto obra em processo. Os relatos passaram a se somar aos capítulos da tese e os considero uma instância de reelaboração das experiências artísticas na cidade em contato com a natureza, assim como o são as fotografias, as coletas de elementos naturais e os objetos múltiplos. Artistas que escrevem foram igualmente valiosos, autorizando-me a explorar um território ainda incipiente nos primeiros dois anos do curso. Se Perec, Guimarães Rosa são referências literárias fundamentais, Duchamp, de Vries, Durham, Horn, Oiticica, entre tantos outros, incentivaram-me a considerar os textos em forma de relatos como teoria da tese tão importante quanto qualquer outra. Kristine Stiles intitula seu ensaio sobre as ações fluxus de Between water and stone, parafraseando o artista sueco Bengt af Klintberg (1938), cujos interesses, segundo ele próprio, encontravam-se entre a água e a pedra (p. 62). Stiles localiza as propostas fluxus nesse lugar do interstício, fazendo também uma aproximação ao inframince duchampiano128. Desse modo, o lugar do interstício, entre a água e a pedra, é aquele envolvido por diversas escritas que, por sua vez, são disparadas pela aparição do rio nessa procura por ressonâncias da natureza no infraordinário. O “infra” duchampiano e o “infra” perecquiano nos direcionam para uma dimensão do mais abaixo, inferior à margem, à linha fina e ao ordinário. Para tentar compreender essa zona intersticial foi necessário cercar a ordinariedade das ações atrela- 128 Ver especificamente a nota na página p. 94: STILES, Kristine. Between Water and Stone; Fluxus Performance, A Metaphysics of Acts. In: Armstrong E.; Rothfuss J. (Eds.). In the Spirit of Fluxus. Minneapolis: Walker Art Center, 1993, p. 62-99. .2..5..7............... das ao rio e seu posicionamento na fronteira da cultura. O rio, seja o Guaíba, seja o Caí, seja o Ill ou outros rios que vieram a desaguar nesta investigação assinalam a fluidez da relação rio/cidade nas proposições desenvolvidas no doutorado. Muitos artistas e autores investigados apresentam a complexidade dos conceitos levantados (natureza e cultura) e, incluindo-se nessa configuração, aquele de cotidiano. As definições são voláteis e não estanques. Circunscrever o rio nessa perspectiva, coletar pedras e cascas de árvore, percorrer a paisagem urbana, olhar para a natureza ressonante no infraordinário então seria uma tentativa de naturalizar a natureza na cidade e no dia a dia? Bruce Bégout (2010) coloca que o cotidiano “naturaliza” todo acontecimento em repetição: “É desse desejo original de perseverança, de querer viver a si mesmo como uma conjunção de transcendência e insistência, que vem a própria energia da crença, natural não naturalizante, verdadeira natura naturans129 da experiência” (p. 443, tradução minha).130 Viver é, assim, insistir, é seguir um dia após o outro consolidando hábitos. Poderia, nesse sentido, concluir que a cidade, por seu lado, é que poderia estar a cotidianizar a natureza, na medida em que criaria para ela instrumentos de intermediação, 129 A natura naturans é uma expressão em latim que significa “natureza naturante” e, juntamente com o conceito de natura naturata, forma uma oposição filosófica clássica, elaborada por Baruch Spinoza. A natureza naturante é Deus, criador e princípio de toda ação, a natureza naturada é o conjunto de seres e leis que ele criou. Ver a explicação mais detalhada da filósofa portuguesa Maria Luísa Ribeiro Ferreira em: FERREEIRA, Maria Luísa Ribeiro. Um iconoclasta panenteísta. Revista do Instituto Mumanitas Unisinos, ed. 397, agos. 2012. Disponível em: . Acesso em: julho de 2018. 130 “C’est de cette volonté originelle de persévérance, du vouloir-vivre lui-même en tant que conjonction de la transcendance et de l’insistance, que provient l’énergie même de la croyance, non pas naturelle mais naturalisante, véritable natura naturans de l’expérience.” .2..5..8............... acesso e familiarização. Talvez cotidianizar a natureza seja uma ação mais permeável do que culturalizá-la, pois não se colocaria em oposição a ela. De certa forma, interrogar a natureza e o cotidiano é seguir à risca a instrução de Georges Perec, que nos impele a “interrogar o que parece tão evidente que esquecemos sua origem” (PEREC, 1989, p. 12, tradução minha).131 Interrogar o usual significado de conceitos tão familiares que parecem já dados e compreendidos em minha pesquisa foi um desafio e uma descoberta. O que vem a ser a natureza, a cidade, a cultura? O que vêm a ser o ordinário, o infraordinário e o cotidiano? E, mais especificamente, o que vêm a ser no âmbito dos trabalhos artísticos concebidos para essa pesquisa? O vai e vem da certeza à incerteza é questionador. Se pensarmos novamente com Coccia, veremos que a terra não era naturalmente capaz de aceitar os seres humanos, tornou-se graças às plantas e sua “poluição”: É a sua atividade “poluidora”, que irreparavelmente altera esse equilíbrio, tornando-o hospitaleiro. Nós não vivemos na terra, mas dentro da bolha efêmera aberta por outros seres vivos. É somente graças a esse poluente extremamente poderoso que estamos vivos: sem a “poluição” (a emissão de oxigênio) das plantas morreríamos em poucos segundos. A questão “ecológica”, portanto, obviamente não é a de parar a poluição, mas de entender qual ser vivo pode tornar a poluição humana sua condição de possibilidade, sua comida, seu oxigênio. Esquecemos o papel dos organismos que se alimentam de ruínas, resíduos: a pesquisa deve ser direcionada àqueles que são 131 “Interroger ce qui semble tellement aller de soi que nous en avons oublié l’origine.” .2..5..9............... capazes de reinventar o ciclo metabólico onde parece parar. (COCCIA, 2017, tradução minha).132 Dessa forma, separar os fenômenos humanos (mesmo aqueles negativos, como poluição e destruição, mas também os positivos, agricultura e urbanização sustentável, jardinagem e compostagem, por exemplo) daqueles não humanos ou naturais é negar as forças de destruição e reconstrução de toda natureza. A natureza, como a cultura, não é estável, mesmo que por um dado tempo pareça ser; a palavra mesmo que dá origem à natureza, “natura”, significa um futuro que será originado a partir de transformações de todos os seres. Concluindo com Coccia: O coração não é mais natural do que a teia de uma aranha: são dois instrumentos, dois órgãos da vida. Da mesma forma, o computador que me permite escrever nesse momento é um ser natural - um instrumento da vida, atrás do qual e dentro do qual existe vida e nada além de viver - tanto quanto uma lontra, o covil de uma toupeira ou uma rajada de vento: o homem sendo um 132 “C’est leur activité ‘polluante’, qui altère irréparablement cet équilibre, à la rendre hospitalière. Nous ne vivons pas sur terre, mais à l’intérieur de la bulle éphémère ouverte par d’autres vivants. C’est seulement grâce à cet agent polluant extrêmement puissant que nous sommes en vie: sans la ‘pollution’ (l’émission d’oxygène) des plantes nous mourrions d’ici quelques secondes. La question ‘écologique’, donc, n’est évidemment pas celle d’arrêter la pollution, mais de comprendre quel vivant pourra faire de la pollution humaine sa condition de possibilité, sa nourriture, son oxygène. Nous oublions le rôle des organismes qui se nourrissent des ruines, de déchets: la recherche devrait s’orienter vers les êtres capables de réinventer le cycle métabolique là où il semblerait s’arrêter. La question est toujours: qui peut naître de nous?”, entrevista de Johan Faerber com Emanuele Coccia, 3 maio de 2017: «Les plantes montrent que vivre ensemble n’est pas une affaire de communauté ni de politique” . Acesso em: 25 de julho de 2018. .2..6..0............... ser natural, tudo o que pertence à sua atividade é parte da natureza. (COCCIA, 2017, tradução minha).133 Essa visão da natureza como uma totalidade e mistura, vinculada também ao humano e à arte, pode ser entendida como o que me moveu na investigação agora em vias de ser concluída. As referências contatadas ao longo da tese acompanhamme nesse percurso que entende arte e ciência, invenção e reflexão como algo além das classificações; uma concepção humboldtiana das disciplinas de conhecimento. É desse modo que os capítulos da tese foram organizados de maneira que se conectassem a diferentes textos, aos relatos e às falas de diversos autores, destacando essas formas textuais em cores comumente associadas à natureza, como canais de escoamento entre uma zona e outra. Uma última consideração deve ainda ser feita, sobre a exposição dos trabalhos artísticos desenvolvidos nesta pesquisa. Por se tratar de trabalhos que lidam com a natureza e o infraordinário, optei por um espaço que os comportasse conceitual e formalmente, além de escolher o múltiplo como um meio de continuar a pesquisa para além dela mesma. Assim, são distribuídas durante a defesa algumas peças aqui estudadas. Acredito que a configuração final do corpus artísitico desenvolvido, as dimensões de cada fotografia, a articulação com outras materialidades presentes, como as pedras do rio Caí, somente pode ser totalmente evidenciada a partir da experiência com o espaço do Atelier das 133 “Le cœur n’est pas plus naturel de la toile d’une araignée: ils sont deux instruments, deux organes de vie. Au même titre, l’ordinateur qui me permet d’écrire en ce moment est un être naturel – un instrument de vie, derrière lequel et à l’intérieur duquel il y a du vivant et rien que du vivant – autant qu’une loutre, la tanière d’une taupe ou un coup de vent: l’homme étant un être naturel, tout ce qui relève de son activité est part de la nature.” .2..6..1............... Pedras134, em Porto Alegre. Desde sua nomeação, “das pedras” pela artista Gisela Waetge, passando por suas plantas e árvores, seu espaço interior habitado por móveis e utensílios do dia a dia no atelier, todos esses elementos me fazem atuar em uma zona de contato entre natureza e infraordinário que, ao reencontrar as instruções do artista Hans Haacke (1936), conduzem-me a uma espécie de conclusão: “Faça alguma coisa de receptivo (...), de reativo ao ambiente, de mutável, de instável. Faça alguma coisa de indeterminado, com uma aparência sempre diferente, cuja forma não possa ser predita com exatidão (...). Elabore alguma coisa de Natural” (HAACKE, 2017, p. 204, tradução minha).135 134 O Atelier das Pedras foi outrora o atelier da artista Gisela Waetge (1955-2015). Localizado na rua Dr. Rodrigues Alves, 188, bairro Chácara das Pedras, ele é atualmente um espaço de arte e educação mantido pela jornalista e crítica de arte Luísa Kiefer. 135 “Fais quelque chose de réceptif (...), de réactif à l’environnement, de changeant, d’instable. Fais quelque chose d’indéterminé, d’apparence toujours autre, dont la forme ne peut pas être prédite avec exactitude (...). Élabore quelque chose de Naturel.” .2..6..2............... POST SCRIPTUM: O ATELIER DAS PEDRAS L. me convidou para visitar o Atelier das Pedras, em um dia que fazia sol, com a temperatura típica de outono ou final de primavera. Os pais de L., G. e F., projetaram a construção para ser um estúdio de trabalho de G. Há anos atrás, já havia estado lá, contudo, não me recordava mais das circunstâncias, nem de suas particularidades. Chegando na casa, em um bairro um tanto desconhecido para mim, A. recebeu-me com uma ansiedade tipicamente canina, latia assim que desci do carro que me transportou. L. chegou em seguida para abrir o portão. Assegurou-me que A. não mordia, o que se confirmou. A. cheirou-me e ficou de pé, apoiando-se em minhas pernas. Após esse primeiro encontro, adentramos no espaço de tijolos aparentes. Para passar pela porta, era necessário cruzar o jardim da frente. Mais adiante, descobri que havia outros jardins, um ao lado e outro atrás da casa. Ao perceber alguns arbustos crescendo meio desordenadamente, lembrei-me de que, quando criança, nunca tivemos um jardim. Na minha família, O. e L. tinham pequenos canteiros, bem diferentes. Aquele de L. era adornado por roseiras, vasos de flores e, apesar de pequeno, possuía uma ou duas árvores. Ficava na zona norte da cidade, perto de uma madeireira, em uma rua quase somente composta por casas. O jardim de O., por sua vez, ficava em outro bairro, em cima de um morro, onde as casas eram simples e, em sua maioria, de madeira. Havia bastante mato convivendo com árvores frutíferas, dentre elas, abacateiro, laranjeira, limoeiro e também uma horta essencialmente de hortaliças escuras. O terreno era compartilhado por diferentes casas, e havia mesmo um galinheiro. Nunca me perguntei se comíamos mesmo as galinhas, pensava somente nos ovos que provavelmente dali viriam. Cessei de divagar e minha atenção voltou-se para L., o atelier e os jardins. Na sala de entrada, encontrava-se uma cozinha simples, composta por uma pia, balcão e geladeira. Havia uma cafeteira elétrica e algumas xícaras a seu lado. Não era uma cozinha exatamente para .2..6..3............... cozinhar, mas para se fazer alguns lanches e tomar bebidas quentes ou geladas. Passando essa peça, em um dos lados havia uma entrada para a sala de aula e costura de G., cuja mesa, longa, estava repleta de livros e revistas. Eu havia estudado com G. nos tempos de escola; ensinou-me serigrafia, xilogravura e um pouco de cerâmica. Encontramo-nos semanalmente durante um ano e, após cada encontro, aguardava o próximo impacientemente. G. tinha uma voz calma e delicada, não falava alto e seu sotaque não era local. Olhando para os objetos de costura, veio-me sua lembrança vividamente, desdobrando alguns tecidos sobre a superfície de madeira. Resolvemos continuar nossa visita. Subimos, portanto, a escada até o segundo andar, que nos conduziu ao atelier. Grande e ensolarado, o espaço era adornado por grandes janelas e um teto composto por imensas tesouras de madeira. O chamado pé-direito do lugar era bastante amplo, conferindo uma amplitude adequada ao movimento e ao fácil deslocamento. Em frente à escada, encontrava-se uma pia .2..6..4............... metálica com algumas manchas de tinta, acompanhada por utensílios variados. Ao lado, uma janela mais estreita dava vista ao jardim. De pé, abaixando um pouco a cabeça e voltando-a levemente para a direita, avistávamos o enquadramento dos vidros focando diretamente para buganvília cheia de flores rosadas. Voltando-me ao espaço, notei que as paredes carregavam o negativo de algumas telas de G. que haviam sido retiradas para dar espaço a outras. Os respingos de tinta compunham cores que se assemelhavam à água e à transparência. À direita, deparei-me com uma pintura em suporte de bastidor, composta por aguadas e linhas geométricas em paralelo, cruzadas por outras milimetricamente desenhadas. Tons de azul se mesclavam a vários brancos, insinuando-se pelas retas. Fiquei de pé, frontalmente, em posição igualmente paralela à tela. Tínhamos quase a mesma altura. O conjunto composto pela pintura, o ambiente claro e o clima fresco encorajaram-me a, por alguns momentos, não .2..6..5............... pensar em nada. L. e A. me acompanharam e ficamos algum tempo em silêncio. A ampla sala era adornada por uma mesa grande, composta por um tampo removível branco e uma estrutura cujas rodas facilitavam os deslocamentos. Os assentos mais próximos à bancada eram um banco alto de madeira, com assento em courino azul, uma cadeira branca de plástico e, mais adiante, ao lado, uma antiga namoradeira amarronzada, cujos assentos eram estofados em tecido de algodão cru. A. voltou a fazer brincadeiras e resolvi sentar-me sobre um sofá de madeira, do tipo mogno, ou talvez fosse imbuia, sem almofadas, que ficava mais afastado do restante do mobiliário. Chamei A. para lhe fazer um agrado. Constatei que os cães, em geral, possuem uma qualidade de se divertir com quase qualquer coisa, porém sempre atentos a ruídos e movimentos. Acariciei os pelos aramados de A. — mesclados entre o cinza e o branco, com algumas manchas beges — fazendo movimentos de idas e vindas para que eles se armassem mais ainda. Findamos o .2..6..6............... percurso pelo andar superior e nos dirigimos novamente aos degraus, tendo A. logo à frente, velozmente iniciando a descida. L. passou a me apresentar o jardim principal que, além da árvore primaveril e florida, contava com uma enorme variedade de plantas. Contou-me que pretendia aparar algumas e recolher aquelas que estivessem secas. Comentei que me sentia muito bem ao redor daquela natureza, contudo não saberia nomeá-la propriamente, pois não conhecia quase nenhuma espécie vegetal. Havia algo parecido com uma palmeira e uma outra árvore cujos frutos pareciam sementes ou uvas selvagens. Caídos no chão, serviam de guloseimas aos pássaros. Um cheiro de hortelã manifestou-se com o vento; a erva brotava entre as pedras do solo, livremente escapando em forma de tufos. Provavelmente escaparam também de outro canteiro. Como de hábito, realizei algumas fotografias, interessando-me tanto pelo jardim quanto pela construção. A. ficou à vontade, cheirando insetos e folhagens de modo que passou a integrar a cena fotográfica. .2..6..7............... Pressenti que A. e L. gostariam de dar um passeio. A tarde avançava e o sol mudava de posição. Dirigi-me ao portão, distinto dos outros na mesma rua, imponentemente grandes e de ferro. De um material mais frágil, percebi se tratar de uma cerca de arame, entremeada por ripas, contornando o local com graça. Despedimo-nos e, atendendo ao generoso convite de L., desejei voltar em breve. .2..6..8............... REFERÊNCIAS ABBOU, Malek; FRANÇOIS, Rébecca. Le précieux pouvoir des pierres. Milano/Nice: Silvana Editoriale/MAMAC Nice, 2016. BARRAUD, Régis; DONARDIEU, Michel; PÉRIGORD, Michel. Le paysage: entre natures et cultures. Paris: Armand Colin, 2012. BÉGOUT, Bruce. La Découverte du Quotidien. Paris: Allia, 2010. BELLOUR, Raymond. Entre-imagens. Campinas, SP: Papirus, 1997. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 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