UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Cláudia Amaral dos Santos TODA BOA MÃE DEVE... governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais Porto Alegre 2009 2 Cláudia Amaral dos Santos TODA BOA MÃE DEVE... governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para obtenção do título de Doutora em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira Linha de Pesquisa: Estudos Culturais em Educação Porto Alegre 2009 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ________________________________________________________________________________ S237t Santos, Cláudia Amaral dos Toda boa mãe deve... : governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais / Cláudia Amaral dos Santos; orientadora: Rosa Maria Hessel Silveira. Porto Alegre, 2009. 212 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2009, Porto Alegre, BR-RS. 1. Infância. 2. Maternidade. 3. Puericultura. 4. Manual. 5. Biopolítica. 6. Foucault, Michel. I. Silveira, Rosa Maria Hessel. II. Título. CDU – 373.2 ______________________________________________________________________________ Bibliotecária Neliana Schirmer Antunes Menezes – CRB 10/939 neliana.menezes@ufrgs.br 3 TODA BOA MÃE DEVE... governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito para obtenção do título de Doutora em Educação. Aprovada em 29 set. 2009. ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira – Orientadora ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto – UFRGS ___________________________________________________________________________ Profa. Dagmar Elisabeth Estermann Meyer – UFRGS ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Isabel Edelweiss Bujes – ULBRA ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Laura Godinho Lima – USP ___________________________________________________________________________ 4 À minha mãe pela coragem como enfrenta os desafios da vida. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço, inicialmente, à Universidade Federal do Rio Grande do Sul que possibilitou que uma estudante de escola pública pudesse cursar gratuitamente a graduação, o Mestrado e o Doutorado numa das melhores instituições de ensino do país. À minha orientadora pela atenção e dedicação dispensadas à pesquisa, além do apoio e da amizade construída ao longo dessa caminhada. À banca de avaliação da pesquisa, professor Alfredo Veiga-Neto e professoras Maria Isabel Bujes, Dagmar Meyer e Ana Laura Godinho Lima, pela leitura atenta e pelas ricas recomendações. Ao grupo de orientação, em especial, Michele, Letícia, Ninha e Simone, pela amizade e solidariedade nos momentos difíceis. Aos colegas, amigos e amigas Zenaide, Lica, Leila, Bela, Suyan, Anderson, Iara, Bete, Gládis, Ana Paula, Jaque, Mary, Bianca, Janaína, Roberta, Tatiane, Taís e Sílvia pelas longas conversas, pela atenção dispensada a pesquisa e pelo ombro nas horas difíceis. Às irmãs, primos e primas, especialmente Amanda, Luiza, Juliane, Rafael, Ana Laura e Augusto, pelo carinho e incentivo (e pelas boas risadas também). Ao Henrique, por toda paciência e carinho durante a finalização dessa Tese. Ao meu pai do coração, que mesmo sem ter “estudo”, aprendeu, ao longo da minha caminhada, a valorizá-lo. À minha avó, pelo incentivo e por sempre ter acreditado em mim. E, por fim, à pessoa mais importante da minha vida - minha mãe - por todo o amor, companheirismo e dedicação dispensada à minha educação. 6 Letters Become words Become sentences Become lies Become you U2 7 RESUMO Essa pesquisa tem por objetivo investigar como o livro “A Vida do Bebê”, talvez o maior e mais conhecido manual de infância do Brasil, escrito pelo pediatra brasileiro Rinaldo De Lamare, promove/promoveu biopolíticas dirigidas às mães para a constituição de infâncias saudáveis e normais. Ressalto o quanto o manual analisado desempenhou/desempenha uma função pedagógica, ensinando mães e pais a como agir com suas/seus filhas/filhos, como devem alimentá-los, que ambientes e brinquedos lhes devem proporcionar, assim produzindo subjetividades, identidades e saberes. Para a realização da análise, foram utilizados, como referencial teórico, os Estudos Culturais, a partir de um olhar pós-estruturalista, e os estudos de Foucault, principalmente os conceitos de biopolítica, governamento, saber/poder e disciplina. Como material de análise foram utilizadas duas edições do manual, a saber, a 17ª edição (de 1963) e a 41ª edição (de 2002), procurando-se enfatizar por meio de quais estratégias discursivas o autor do livro, investido do saber médico, em específico o pediátrico, conduzia as condutas maternas e paternas; quais os saberes e os poderes colocados em circulação na subjetivação materna e paterna para a promoção de crianças normais e saudáveis; como o manual aqui analisado constitui-se como tecnologia para o governo das famílias e das infâncias ao longo de quase sete décadas e através de que estratégias o especialista promovia biopolíticas dirigidas às mães; como eram caracterizados os sujeitos infantis tidos como normais e anormais e quais eram os modelos de família, mãe, pai, educação e criança promovidos na publicação. A partir da análise verificou-se a força do discurso da psicologia como forma de subjetivar as mães; a exaltação da amamentação nas últimas décadas como única forma de alimentar física e “emocionalmente” o bebê; a centralidade da mãe na vida do bebê, sendo esta responsabilizada por tudo que ocorrer com a criança; o endereçamento da publicação a mães heterossexuais, casadas, brancas, de classe média e alta e urbanas, embora nas últimas edições os pais tenham sido mais citados como também importantes para o bebê; e, por fim, a visão evolutiva do desenvolvimento da criança normal na publicação ora objeto de estudo. Palavras-chave: Infância. Maternidade. Puericultura. Manual. Biopolítica. Michel. Foucault, ___________________________________________________________________________________________ SANTOS, Cláudia Amaral dos. Toda boa mãe Deve... : governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais. Porto Alegre, 2009. 212 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 8 ABSTRACT This work aims at investigating how the book “A Vida do Bebê”, probably the largest and major children‟s guide in Brazil, written by Brazilian paediatrician Rinaldo de Lamare, has encouraged biopolicies targeted to mothers for normal healthy early lives. I highlight to what extent the analysed guide has played its instructive role, teaching parents how to behave with their children, how to feed them, which environment and toys they should provide them, thus producing subjectivities, identities and knowledge. To conduct the analysis we have used as a theoretical referential the Cultural Studies from a poststructuralist perspective, and Foucauldian studies, particularly concepts of biopolicy, government, knowledge/power and discipline. We have used as analysis materials two issues of the guide 17th edition (1963) e 41st edition (2002), seeking to emphasise on which discursive strategies the author used as a doctor, specifically a paediatrician, to guide parents‟ behaviours; which pieces of knowledge and power were circulating in parents‟ subjectification to promote normal healthy children; how the analysed guide has been a tool to govern families and children throughout nearly seven decades, and which strategies the specialist encouraged biopolicies targeted to mothers; how infant-subjects were regarded normal and abnormal, and which were the models of family, mother, father, education and child provided in the book. With the analysis we have checked the strength of the psychological discourse as a way to subjectify mothers; extolling breast-feeding late decades as the only way to physically and „emotionally‟ feed the baby; the mother‟s centrality in the baby‟s life when she is blamed for everything occurring to the child; the sending of the book for homosexual, married, white, high- and middle-class, and urban mothers, though in late editions fathers have also been mentioned as significant for the baby; and finally the evolutionary vision for the normal child‟s development in the book which is now the object of this work. Keywords: Early Life. Maternity. Child Care. Guides. Biopolicy. Foucault, Michel. ___________________________________________________________________________________________ SANTOS, Cláudia Amaral dos. Toda boa mãe Deve... : governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais. Porto Alegre, 2009. 212 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 9 RÉSUMÉ Le but de cette recherche est d‟étudier comment le livre La vie de bébé, peut-être le plus grand et le plus connu manuel de l'enfance au Brésil, écrit par le pédiatre Rinaldo de Lamare, favorise ou a encouragé des biopolitiques adressées aux mères sur la constitution de l‟enfance d‟une façon saine et normale. Je tiens à souligner que l‟importance de l'analyse de ce manuel a joué /joue un rôle éducatif, en enseignant des mères et des pères comment agir avec leurs enfants, c‟est-à-dire comment doivent-ils les nourrir, quels types d‟ambiances et des jouets ils doivent leur fournir de manière à produire des subjectivités, des identités et des savoirs. Pour ce faire, la théorie sur les études culturelles a été utilisé à partir d'un regard poststructuraliste, ainsi que les études de Foucault, en particulier les notions de biopolitique, de gouvernement, de savoir/pouvoir et de discipline. La 17e (1963) et la 41e (2002) éditions ont été utilisées comme matériel de l‟analyse dont l„objectif est de souligner quelles stratégies discursives ont été utilisées par l'auteur du livre, un médecin avec beaucoup de connaissance médicale notamment sur la pédiatrie, pour conduire le comportement maternel et paternel; quels savoirs et pouvoirs mis en circulation dans la subjectivité des parents ont été utilisés pour la promotion des enfants sains et en bonne santé; comment le Manuel ici considéré se constitue comme une technologie pour le gouvernement des familles et de l'enfance depuis près de sept décennies; à travers quelles stratégies l‟expert promouvait des biopolitiques pour les mères; comment caractérisait-on les sujets enfantins considérés normaux et anormaux et quels étaient les modèles de famille, de mère, de père, de l'éducation des enfants élus dans cette publication . De l'analyse, on a vérifié la force du discours de la psychologie comme une façon de rendre les mères subjectives; l'exaltation de l'allaitement maternel dans les dernières décennies comme le seul moyen pour nourrir le bébé physiquement et « sur son plan émotif »; la centralité de la mère dans la vie du bébé et son rôle comme la responsable de tout ce qui se produit à l'enfant; l'adresse de la publication aux mères hétérosexuels, mariés, blanches, issues des classes moyenne et aisée et des zones urbaines, bien que les pères soient également cités dans les dernières éditions comme étant des figures importantes pour le bébé et, enfin, la vision évolutive du développement normal de l'enfant dans la publication étudiée. Motsclés: Enfants. Maternité. Manuels e Puériculture. Biopolitique. Foucault, Michel. ___________________________________________________________________________________________ SANTOS, Cláudia Amaral dos. Toda boa mãe Deve... : governamento das maternidades para a constituição de infâncias saudáveis e normais. Porto Alegre, 2009.212 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 10 SUMÁRIO DEMARCANDO TERRITÓRIOS DE PESQUISA ................................................ 12 APRESENTANDO O TEMA DA PESQUISA ...................................................................... 12 OS ESTUDOS CULTURAIS NA PESQUISA EM QUESTÃO ................................................. 19 FERRAMENTAS FOUCAULTIANAS ............................................................................... 32 PROBLEMATIZAÇÕES ACERCA DA INFÂNCIA, DA MATERNIDADE E DA FAMÍLIA .......................................................................................................................... 49 ESCOLARIZAÇÃO E DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS INFANTIS ................................. 50 PROMOVENDO BIOPOLÍTICAS ATRAVÉS DO GOVERNAMENTO DA MATERNIDADE ....... 58 AS INFÂNCIAS E AS MATERNIDADES CONTEMPORÂNEAS ............................................ 70 TECNOLOGIAS PARA O GOVERNAMENTO DAS MATERNIDADES ......... 76 CARTOGRAFIAS MATERNAS....................................................................................... 82 1963 – 17ª edição.................................................................................................. 82 2002 – 41ª edição.................................................................................................. 86 OS DISCURSOS MÉDICOS NA PROMOÇÃO DE BIOPOLÍTICAS DIRIGIDAS ÀS MÃES .......................................................................................................... 91 O AUTOR DE A VIDA DO BEBÊ – RINALDO DE LAMARE .............................................. 92 A MEDICINA SOCIAL COMO ESTRATÉGIA BIOPOLÍTICA ............................................... 95 OS DISCURSOS MÉDICOS NOS MANUAIS ...................................................................... 98 Guerra às crendices e a legitimidade do saber médico ....................................... 99 Eugenia e o melhoramento da espécie humana ................................................. 105 Alimentação do bebê – um campo em constante mutação ................................. 109 Discursos encampados pelos manuais ............................................................... 112 ESTRATÉGIAS DE GOVERNAMENTO DA MATERNIDADE E DA PATERNIDADE ................................................................................................................... 115 MODOS DE ENDEREÇAMENTO .................................................................................. 116 O DISCURSO DA PSICOLOGIA COMO ESTRATÉGIA DE GOVERNAMENTO ..................... 119 REGULAÇÃO ATRAVÉS DA AMAMENTAÇÃO ............................................................. 125 11 TELEOLOGIAS - OS IDEAIS DE MÃE, PAI, FAMÍLIA, CASAMENTO, EDUCAÇÃO E INFÂNCIA ALMEJADOS EM A VIDA DO BEBÊ .............................. 137 MÃES E PAIS IDEAIS ................................................................................................. 137 O CASAMENTO E A FAMÍLIA MODELO ....................................................................... 150 A EDUCAÇÃO DA CRIANÇA IDEAL ............................................................................ 154 BEBÊS PERFEITOS ..................................................................................................... 163 O DESENVOLVIMENTO DO BEBÊ NORMAL................................................................. 171 A formação da personalidade ............................................................................. 175 O desenvolvimento da inteligência ..................................................................... 181 APONTAMENTOS DA PESQUISA ...................................................................... 187 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 193 ANEXOS .................................................................................................................... 206 12 DEMARCANDO TERRITÓRIOS DE PESQUISA A desnaturalização dos fenômenos sociais – ou seja, tomá-los não como algo desde sempre dado, mas como algo historicamente construído – é um primeiro e necessário passo para intervir nesses fenômenos. Saber como chegamos a ser o que somos é condição absolutamente necessária, ainda que insuficiente, para resistir, para desarmar, reverter, subverter o que somos e o que fazemos (VEIGA-NETO, 2003a, p. 7). Apresentando o tema da pesquisa1 No contexto brasileiro, assistimos, na atualidade, a uma proliferação de livros, revistas especializadas2, reportagens em programas de televisão3, artigos em revistas de grande circulação nacional4, cadernos especiais em jornais5, blogs, páginas na internet e manuais que procuram ensinar a mães e pais, mas principalmente às primeiras, como devem educar e cuidar de seus filhos e de suas filhas. Exemplos de tal disseminação discursiva podem também ser visualizados através de livros como: “A Vida do Bebê”6, “Seu Bebê”7, “Gravidez para grávidas”8, “Larousse dos pais e filhos”9, “A bíblia da gravidez”10, “O segredo das crianças felizes”11, “Momentos mágicos com seus filhos”12, “Criando bebês”13, “Criando meninos”14, “Criando meninas”15, “Domando sua ferinha”16, “Guia das famílias felizes”17, 1 Partes do Projeto de Tese (SANTOS, 2007) foram incorporados a essa versão da Tese, assim como os trabalhos e os artigos publicados desde o ingresso no Doutorado. 2 Como, por exemplo, as revistas Pais & Filhos, Crescer em Família , Meu Nenê e Família, dentre outros títulos disponíveis no mercado (sobre análise feita dessas revistas, ver SANTOS, 2004). Cabe citar também a revista Supernanny, lançada em 2006, a partir de um programa televisivo, no qual uma pedagoga ensina pais e mães a educarem crianças “difíceis”. 3 Sobre análise empreendida no programa Globo Repórter, ver Santos e Silveira (2008). 4 No caso das revistas destaco a segunda edição especial da Veja intitulada Criança, lançada em maio de 2003 (a primeira edição foi em 1998). Além disso, merece menção a matéria de capa da Veja de 21 de julho de 2004 “10 regras fáceis para educar seus anjinhos”. Sobre análise feita da revista Veja Criança, ver Santos (no prelo) e sobre matérias veiculadas em revistas nacionais ver Santos (2006). 5 Cabe relembrar o suplemento Meu Filho (lançado em 30 de agosto de 2004) do jornal Zero Hora, que circula às segundas-feiras e que substituiu o caderno ZH Escola. 6 Autoria de Rinaldo de Lamare. Editado pela Ediouro. 7 Autoria de Dorling Kindersley. Editado pela Publifolha. 8 Editado pela Alegro. 9 Editado pela Larousse. 10 Editado pela CMS. 11 Autoria de Steve Biddulph. Editado pela Fundamento. 12 Autoria de Steve Biddulph. Editado pela Fundamento. 13 Autoria de Howard Chilton. Editado pela Fundamento. 14 Autoria de Steve Biddulph. Editado pela Fundamento. 15 Autoria de Gisela Preuschoff. Editado pela Fundamento. 16 Autoria de Christopher Green. Editado pela Fundamento. 17 Autoria de John Irvine. Editado pela Fundamento. 13 “Bicho papão não existe: ajudando seu filho a superar medos”18, “Manual do bebê”19, “Dicas do pediatra para pais” (três volumes, divididos por faixas etárias)20, “Como cuidar de bebês e crianças”21, “Novíssimo manual de instruções do seu bebê”22, “Seu filho no dia-a-dia”23, dentre muitos outros possíveis de serem encontrados em bancas e livrarias, ou através de buscas na Internet24. O meu interesse pelos discursos que circulam em publicações destinadas a mães e pais formalizou-se quando escolhi o material para a pesquisa de Mestrado. Tal investigação, concluída em março de 2004, foi intitulada “A invenção da infância generificada: a pedagogia da mídia impressa constituindo as identidades de gênero”, e nela problematizei como as revistas Pais & Filhos, Meu Nenê e Família e Crescer em Família constituíam discursivamente as identidades de gênero nos sujeitos infantis. Para realizar tal proposta, analisei, então, 53 edições do conjunto das três revistas citadas, publicadas entre os anos 2000 e 2002. O critério utilizado na seleção dos artigos era que, de alguma forma, esses envolvessem as questões de gênero dentro da faixa etária dos 0 a 6 anos – período também conhecido como primeira infância, área, no campo da educação, no qual sou graduada25. A partir do exposto acima, foi possível dividir o material empírico em quatro temáticas: 1) artigos sobre decoração de quartos de bebê e de criança; 2) matérias sobre brinquedos; 3) matérias sobre moda e 4) reportagens diversas sobre educação, saúde, alimentação, genética, esporte, entre outras, que, de certa maneira, tratassem das relações de gênero. Em especial, nesse último bloco de artigos - mas também através das seções Cartas26 e em outras seções, como Pergunte ao Dr. De Lamare, pude perceber as formas com que a infância era nomeada e normatizada pelos especialistas consultados nas revistas então analisadas. A centralidade dos especialistas pôde ainda ser inferida nas prescrições feitas a pais e mães nas diversas matérias que fizeram parte do estudo. Além disso, na seção Cartas das três revistas, foram encontradas perguntas relativas às dietas corretas às quais devem ser submetidas as crianças, à 18 19 Autoria de Janet Hall. Editado pela Fundamento. Autoria de Ruy Pupo. Editado pela Alegro. 20 Autoria de Mário Santoro Jr. Editado pela Lemos. 21 Autoria de Maria Tereza Maldonado. Editado pela Saraiva. 22 Autoria de Luis Gustavo Enge. Editado pela Corps. 23 Autoria de Antônio Márcio Lisboa. Editado pela Record. 24 Dentre esses outros títulos, merecem destaque, por seu sucesso editorial, os livros de Içami Tiba (como, por exemplo, “Quem ama, educa!”, da editora Gente) e Tânia Zagury (“Limites sem trauma”, da editora Record). 25 Formei-me em Pedagogia – Educação Infantil, na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2001. Desde março de 2005, atuo como professora da educação infantil da rede municipal de Porto Alegre/RS. 26 Sobre a análise das seções Cartas de outras revistas – Nova Escola e Educação, ver Norma Marzola (2000) e Cleide Passos (2003), respectivamente. 14 “normalidade”27 de determinados comportamentos para uma certa faixa etária e o que fazer frente a perguntas e ações inesperadas. Nesse sentido, cabe ressaltar o quanto palavras como “normal”, “correto”, “certo” eram recorrentes. Além disso, pude observar que à mulher/mãe era dedicada grande parte da publicação, seja através de indicações dadas pela própria revista sobre saúde, estética, alimentação, moda, seja através de conselhos dados por especialistas ou depoimentos de outras mães. O governamento da maternidade mostrou ser o grande foco das revistas de infância, enquanto os pais eram pouco interpelados ou mesmo representados nessas, talvez porque não fossem vistos como responsáveis pelas suas filhas e pelos seus filhos. Outro elemento relevante na análise então realizada era a representação da infância como uma fase do desenvolvimento humano que remetia à beleza, à inocência, ao ser saudável e feliz, sendo que as crianças “focadas” para a construção dessa representação, através das ilustrações, eram, na maioria dos casos, de cor branca. Outras infâncias que ocasionalmente eram representadas compreendiam crianças em situação de risco, tomadas como sujeitos de algumas peças publicitárias e matérias que apresentavam ações sociais com grupos marginalizados, como crianças órfãs ou localizadas em “áreas de risco” (favelas, por exemplo). Embora tivesse concluído essa etapa da minha formação acadêmica, permaneceu o desejo de continuar a pesquisar sobre infância e maternidade. Assim, com a indicação de passagem direta para o Doutorado, um novo desafio colocava-se: o tema e o objeto sobre o qual investir no Anteprojeto de Tese. Comentando com algumas colegas e amigas sobre os meus interesses, ganhei de uma delas uma edição compacta de A Vida do Bebê28 do pediatra Rinaldo De Lamare. Ao ler o livro, decidi, juntamente com minha orientadora, realizar a pesquisa sobre esse manual - tido como a “bíblia das mães”29 ou “uma verdadeira escola para 27 Uso aspas em algumas expressões, como observado por Rosa Silveira (2002), para marcar que tal registro pertence a outro discurso, ou pelas expressões serem parcialmente inadequadas ou passíveis de reserva de acordo com o objetivo do trabalho aqui proposto. 28 Agradeço a Bianca Salazar Guizzo pelas conversas e atenção a essa etapa da pesquisa e pelo livro citado. Agradeço também a Jaqueline Martins e a Ana Paula Sefton pela última edição lançada quando do ingresso no curso de Doutorado (2002). Também não posso deixar de agradecer a minha orientadora por me disponibilizar a edição do final dos anos 1970 (aproximadamente 1978), a Iara Bonin pela edição de 1993 e a Simone Olsiesky dos Santos pelos livros sobre puericultura das décadas de 1940, 1950 e 1960. 29 Conforme peça publicitária veiculada na revista Pais & Filhos por ocasião do lançamento da 40ª edição (1997). Reiterando essa caracterização, o encarte Mundo do Bebê, veiculado pelo jornal Zero Hora (03/09/2004), faz referência a “duas „bíblias‟ para ajudar os pais a entender os bebês: a primeira é o livro do médico Rinaldo de Lamare, „A Vida do Bebê‟, publicado pela Ediouro, um clássico das famílias brasileiras que conta com edição atualizada. A outra é a obra de Benjamin Spock, „Meu filho, meu tesouro‟, editada pela Record, que é considerada um dos maiores sucessos de venda de todos os tempos” (p.6). 15 mães, que se apoiaram no livro para a difícil arte de criar seus bebês” 30. Esse livro demonstrou ser muito produtivo para análise das questões concernentes ao governamento da maternidade e às infâncias descritas como normais e anormais. Assim, a partir daquela edição compacta, escrevi o anteprojeto, que foi analisado por uma banca designada pela Comissão do Pós-Graduação em Educação, que, no final de 2004, aprovou esse anteprojeto e, em março de 2005, ingressei no Doutorado. No decorrer de 2005, concomitante à realização das disciplinas, iniciei uma busca em sebos e em livrarias do centro de Porto Alegre à procura de edições mais antigas do que as já citadas em nota (publicadas em 1978, 1993, 2002). Anterior à década de 1970, a única edição localizada foi a 17ª edição, publicada em 1963 (edição que será objeto de estudo dessa Tese). Nessas buscas, encontrei também outros livros como A Vida de Nossos Filhos (1973), A Educação da Criança (1967) e Diário do Bebê: eu e os meus primeiros anos (1993), todos de autoria de Rinaldo De Lamare. Além disso, realizei buscas nas bibliotecas setoriais da UFRGS, Biblioteca da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Nesta última, encontrei o Manual Básico da Alimentação Escolar (1970), também de autoria do especialista em questão. Dessa forma, iniciei a leitura da edição mais antiga a que tive acesso de A Vida do Bebê (1963). Então, várias questões, além do governamento da maternidade e as infâncias (a)normais, chamaram-me atenção. Algumas dessas serão alvo desta Tese, como o tipo de alimentação recomendada (que muda de edição para edição), a indicação de determinados produtos e as questões próprias daquele contexto histórico (como, por exemplo, as práticas higiênicas e o descrédito das práticas não científicas) em conexão com o tema central da pesquisa. Ademais, ressalto que inicialmente minha ideia era trabalhar apenas com a maternidade, mas, no decorrer da leitura, fui percebendo que, ao não se falar sobre os pais, na maioria das vezes, estava-se falando sobre qual era a posição do pai na educação e nos cuidados da criança (essa temática será alvo do quinto e sexto capítulos). Assim, foi inspirada na leitura da edição de 1963 que estruturei o Projeto de Tese. Concluída essa primeira etapa, iniciei a análise da edição publicada em 2002 e, ao contrário do que inicialmente pensava, muitas prescrições da edição mais antiga (ou seja, depois de quase quarenta anos) permanecem, embora tivessem surgido novos temas (como o teste de paternidade, por exemplo) ou outras abordagens fossem dadas a um tema já citado (como a adoção). Assim, para acompanhar as mudanças que as diferentes edições do livro sofreram ao 30 Prefácio da edição compacta A Vida do Bebê (DE LAMARE E CABRAL, 1992). 16 longo das últimas décadas31 é que pretendo examinar duas edições do livro separadas por quase 4 décadas de publicação - uma edição do início da década de 1960 (1963) e a última edição lançada até o ingresso no Doutorado32 (2002). No Projeto de Tese, então, procurei apontar as estratégias de governamento das maternidades e das paternidades e a constituição de infâncias normais e anormais, a partir do discurso médico. No caso da infância, analisei como esta era narrada, descrita, produzida, ou seja, como o desenvolvimento infantil era normatizado entre 0 e 24 meses de idade e como eram nomeadas as infâncias anormais. Nessas análises das edições de A Vida do Bebê, procurei olhar para os textos escritos e as imagens de forma a estranhar questões que a maioria das pessoas considera normais e naturais, objetivando desconstruir “os lugares comuns inquestionados, sobre os quais se edificam os discursos” (LARRAURI33, 2000, p. 14). Assim, na etapa do Projeto, pretendi dar conta das questões que a leitura interessada das duas edições de A Vida do Bebê me permitia analisar. Para a segunda etapa (após a qualificação), pretendia incorporar as análises das outras duas edições já citadas, a saber, 1978 e 1993, bem como entrevistas com mães e pais, para analisar como elas/eles narravam e viam a utilização do manual, assim como o endereçamento dessa publicação. No entanto, durante a banca de qualificação do Projeto, foi sugerido que a Tese aprofundasse mais as análises nas 31 Em uma peregrinação aos sebos do centro de Porto Alegre localizei outros livros que se assemelham em temática a A Vida do Bebê; são eles: O primeiro ano de vida de René Spitz; Ser criança: como amar e entender nossos filhos; O grande livro das mães de J. R. Woki; Convivendo com crianças de G. Patterson; Alimentando seu filho de Spock; Bebê primeiros passos: do nascimento ao segundo ano de vida; Guia dos pais; O que muitas mães não sabem de Friedrich Tempel; Do pediatra às mães de Nestor Marbosa; Como criar um filho saudável... apesar do seu pediatra de Robert Mendelsohn; Como cuidar de bebês de zero a um ano de Maria Tereza Maldonado; Uma vida para seu filho de Bettelheim; Faça o seu filho feliz de Willy Starck; Nossos filhos: a eterna preocupação de Ronald Pagnoncelli de Souza; Os três primeiros anos de vida de Buiton White; Criando filhos saudáveis de Jacyr Pasternak; O despertar do bebê: práticas de educação psicomotora de Janice Levy; Como cuidar de seu bebê de Francis Williams; Como multiplicar a inteligência do seu bebê: uma suave revolução de Glenn Domam e Janet Domam; A criança e nós de Joseph e Laurie Braga; A nova puericultura de Raimundo Martagão Gesteira; Atlas de puericultura de Ana Calera; Como cuidar de seu bebê e criança pequena de Maria Tereza Maldonado; Você e o seu bebê; A saúde do bebê de Penélope Leach; O livro do bebê de Mansueto Bernardi; Meus filhos de Balbach; A saúde da criança de Waldemar Weller; A vida do nosso bebê de Hannah Uflacher; Como conhecer e educar nossos filhos de Mucchielli; O livro do pai; Meu filho meu tesouro de Spock; O almanaque dos pais de Adams Sullivan; Criando filhos em tempos difíceis de Spock; Bebê e mamãe de Neifert, Price e Dana; Seu filho do parto à adolescência de Aldo Lins; Vou ser mãe de Laurence Pernoud; Pais e filhos: novas soluções para velhos problemas de Ginott; Manual de sobrevivência do bebê de Rossi; Nós e nossos filhos de Raymond Beach; Como educar seus filhos de Ruy Pupo Filho; Seu bebê de Rosembluth; Crianças sem problemas de Goldenstein e Freitas, A grávida e o bebê: da concepção ao parto de De Lamare e Simão Colouski, demonstrando a grande variedade de títulos e a relevância da temática. Saliento também que encontrei diversas edições de A Vida do Bebê, são elas: 24ª, 25ª, 26ª, 27ª, 29ª, 35ª, 38ª, 39ª e A vida de nossos filhos 9ª e 12ª edição. 32 Em 2009, foi lançada uma nova edição de A Vida do Bebê, embora o autor do livro Rinaldo De Lamare tenha morrido em 2002. 33 As traduções dessa autora são de minha responsabilidade e revisadas pela orientadora. 17 edições de 1963 e 2002 e deixasse as análises das demais edições e as entrevistas para futuras pesquisas, centrando-me apenas na instância da produção e da veiculação de discursos. Dessa forma, a Tese foi redimensionada ampliando a problemática para abranger as biopolíticas dirigidas às mães para produção de infâncias saudáveis e normais, não se restringindo às estratégias de governamento e aos discursos sobre as infâncias normais e anormais, e procurando também dar visibilidade para aqueles discursos que rompem, vazam e provocam fissuras nos discursos mais legitimados, assim como as retiradas estratégicas (temas presentes e defendidos na edição de 1963 e omitidos na edição de 2002, por diferentes razões). Ressalto que não foram foco de análise os tópicos sobre doenças, problemas de saúde, higienização, alimentação, processos e encaminhamentos com relação a dentição, vacinação, roupas adequadas e remédios a serem utilizados em determinadas circunstâncias, mas sim temas que estivessem mais próximos do campo educacional, como, por exemplo, as questões cognitiva, psíquica e lúdica na formação dos sujeitos. Nesse sentido, é procurando dar continuidade ao tipo de estudo que culminou na Dissertação e partindo de questionamentos levantados durante a realização da mesma e do Projeto de Tese, que esta Tese tem por objetivo apresentar uma pesquisa em que pretendo investigar como o livro A Vida do Bebê, talvez o maior e mais conhecido manual de puericultura e infância do Brasil, escrito pelo pediatra Rinaldo De Lamare, promove/promoveu biopolíticas dirigidas às mães para o desenvolvimento de infâncias saudáveis e normais. Também procuro mapear, para este campo específico, “a maneira pela qual o saber circula e funciona suas relações com o poder”, como referem Hubert Dreyfus e Paul Rabinow34 (1995, p. 235). Gostaria de ressaltar também que, para realizar a pesquisa, me utilizo dos conceitos elaborados por Michel Foucault, como, por exemplo, biopolítica, governamento, disciplina, norma, poder e saber, na medida em que eles me permitem pensar sobre o objeto que escolhi para essa análise. Dessa forma, utilizo os escritos daquele autor para ir além dele, naquilo que o autor não pesquisou e não se propôs a pesquisar. Ademais, a partir da sugestão da banca de qualificação, procurei estruturar a pesquisa a partir do artigo Como se deve fazer a história do eu?, de Nikolas Rose (2001a). O autor nos apresenta uma abordagem intitulada “genealogia da subjetivação35” que se preocupa “com as 34 Gostaria de demarcar que citarei o primeiro nome e o sobrenome dos autores quando referidos no corpo do texto pela primeira vez e somente o sobrenome nas demais citações. Já nas citações entre parênteses utilizarei apenas o sobrenome. 35 Rose utiliza o conceito de subjetivação para designar práticas e processos heterogêneos “por meio dos quais os seres humanos vêm a se relacionar consigo mesmos e com os outros como sujeitos de um certo tipo” (ibidem, p. 18 práticas pelas quais as pessoas são compreendidas e pelas quais se age sobre elas [...] [e] seu domínio de investigação é o das práticas e técnicas, do pensamento enquanto ele busca tornarse técnico” (p. 34, grifos do autor). Rose explica que as sociedades modernas e ocidentais promovem a noção do eu “como uma entidade naturalmente singular e distinta” (ibidem, p. 33). Essa noção de eu sustenta, em grande parte, os sistemas penais (com as ideias de responsabilidade e intenção), os sistemas de moralidade (com a valorização da autenticidade e em seu emotivismo) e as políticas (com a ênfase nas noções de direitos, escolhas e liberdades individuais), que possibilitaram a emergência de discursos como o da psicologia “como uma disciplina científica, com um conhecimento positivo do indivíduo e como uma forma particular de falar a verdade sobre os humanos e de agir sobre eles” (ibidem, p. 34). A genealogia da subjetivação, então, procura mostrar as condições de possibilidade da emergência daquilo que denominamos “eu”, “a partir de uma série de práticas e processos contingentes” (ibidem, p. 35). Assim, o foco dessa genealogia são as “relações que os seres humanos têm estabelecido consigo mesmos como eus” (ibidem, p. 35). É partindo dessas escolhas que estruturei a Tese conforme o artigo de Rose (2001a), ou seja, utilizei-me dos mesmos subtítulos e temáticas propostos pelo autor, a saber, problematizações, tecnologias, autoridades, governamento, estratégias e teleologias. Nesse sentido, no decorrer da pesquisa, analisarei por meio de quais estratégias discursivas o autor do livro, Rinaldo De Lamare, investido do saber médico, em específico o pediátrico, conduz as condutas maternas e paternas. Para quem o manual é escrito? Quais os saberes e poderes colocados em circulação na subjetivação materna e paterna na promoção de crianças normais e saudáveis? Como o manual aqui analisado constitui-se como tecnologia para o governo das famílias e das infâncias? Através de que estratégias discursivas A Vida do Bebê promove biopolíticas dirigidas às mães? Que discursos são legitimados para falar sobre a infância? Quais “conselhos” são priorizados para governar a ação materna? Como são caracterizados os sujeitos infantis tidos como normais e anormais? Quais são os modelos de família, mãe, pai e criança promovidos na publicação? Há diferenças nos discursos utilizados pelos especialistas entre as duas edições analisadas? Ao esboçar as perguntas que delimitarão esse estudo, concordo com Jorge Larrosa (2003, p. 107), quando esse afirma: 36). Em outra passagem, o mesmo autor utiliza subjetivação “para designar processos pelos quais somos „fabricados‟ como sujeitos de um certo tipo” (ibidem, p. 53). 19 As perguntas são a saúde do estudo, o vigor do estudo, a obstinação do estudo, a potência do estudo. E também seu não poder, sua debilidade, sua impotência. Mantendo-se na impotência das perguntas, o estudo não aspira ao poder das respostas. É partindo de tais inquietações que apresento fragmentos do referencial teórico dos Estudos Culturais que me ajudarão a compreender o material e o corpus36 escolhido para Tese. Os Estudos Culturais na pesquisa em questão Como procurarei evidenciar ao longo desta Tese de Doutorado, o manual que me proponho a analisar insere-se numa longa tradição dos manuais que desempenham uma função pedagógica, à medida que ensina a mães e pais como agir com suas filhas e seus filhos, como as crianças devem alimentar-se, quais os comportamentos esperados e adequados a cada faixa etária, quais são os problemas mais comuns na infância, dentre outros ensinamentos, produzindo, assim, subjetividades, identidades e saberes. Dessa forma, assumo o sujeito como um produto do discurso e das relações de saber e poder que se impõem a ele, filiando-me à perspectiva teórica dos Estudos Culturais, a partir de um olhar pós-estruturalista de análise. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (1998, p. 10), a subjetividade (isto é, aquilo que caracteriza o sujeito) não existe nunca fora dos processos sociais, sobretudo na ordem discursiva, que a produzem como tal. O sujeito não „existe‟: ele é aquilo que fazemos dele. Subjetividade e relações de poder não se opõem: a subjetividade é um artefato, é uma criatura das relações de poder. Destaco, no entanto, que falar de sujeitos constituídos, produzidos pelos discursos que o rodeiam “não é o mesmo que falar de indivíduos determinados. Há uma possibilidade de escolha e recusa nas relações de poder; os indivíduos podem aprender como não ser tão governados” (DAHLBERG, MOSS, PENCE, 2003, p. 50). No referencial proposto, não cabe dizer que possuímos uma identidade/subjetividade nossa37, íntima, uma vez que “vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a 36 Segundo Rosa Fischer (2002, p. 43) o corpus de análise deve ser visto como “um conjunto de textos associados a inúmeras práticas sociais, [que devem ser analisados] [...] igualmente como práticas que são, como constituidores de sujeitos e corpos, de modos de existência não só de pessoas como de instituições e inclusive de formações sociais mais amplas”. 37 Norbert Elias (1994) realiza uma interessante discussão a esse respeito, ao escrever sobre a concepção de Homo clausus, ou seja, a ideia do sujeito fechado em si mesmo e constituído independente do contexto social e das relações culturais e históricas, isto é, a sociedade seria formada por indivíduos cada vez menos coimplicados, uma sociedade como agrupamento de indivíduos pulverizados. Este indivíduo estaria mais sozinho, mas encontrar-se-ia mais visível, mais localizável, em nome da segurança de todos (essa sociedade seria o que 20 linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos” (WOODWARD, 2000, p. 55). Nesse sentido, nossas identidades são construídas culturalmente, são contraditórias, fragmentadas e inacabadas e estão ligadas a estruturas discursivas e narrativas, a sistemas de representação, possuindo estreitas conexões com as relações de poder. Ademais, a identidade só pode fazer sentido se compreendida em relação à diferença. Identidade e diferença são inseparáveis e só inteligíveis nessa relação. Falar de uma identidade implica necessariamente demarcar fronteiras entre o que é “próprio” dessa identidade e o que não é. Por exemplo, nos últimos anos vemos configurar-se um modo de ser mãe diferente da identidade materna veiculada e imposta há décadas nas sociedades ocidentais, caracterizada pela dedicação exclusiva à criança. Histórias de mulheres que abandonaram a profissão e outros interesses próprios em nome do cuidado da prole estão sendo substituídas – ainda que de forma incipiente, uma vez que a pressão cultural sobre essas mulheres é muito forte – por mães que trabalham, estudam, vão à academia de ginástica, saem com seus namorados (se são solteiras), dentre outras possibilidades. Corroborando essa breve explanação de como se dá a relação entre identidade e diferença, Silva (2000a, p. 83) explica: Fixar uma identidade como norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades. [...] Normalizar significa eleger arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. [...] A identidade normal é „natural‟, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade (grifos do autor). Por ser a identidade produzida pela linguagem e devido ao caráter instável da última (uma vez que os significados são constantemente reconstruídos e produzidos), a identidade também assume essa instabilidade e passa a ser vista não como algo que se possua e que seja a mesma no decorrer de toda vida, mas, conforme enfatiza Hall, como um tornar-se permanente. No entanto, é preciso destacar também que as identidades são posições de sujeito, que o capturam e o fixam em determinadas relações de poder. Assim, podemos Júlia Varela chama de sociedade de cristal e Gilles Deleuze chama de sociedade de controle). Para Elias “pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, „dentro‟ delas, isolado de todas as demais pessoas e coisas „externas‟, têm dificuldade em atribuir importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua vida, existem em interdependência dos outros” (ibidem, p. 238). Elias, nas páginas finais de seu livro explica que “a imagem do homem com „personalidade fechada‟ é substituída [...] pela de „personalidade aberta‟, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto ou total) de autonomia face à de outras pessoas e que, na realidade, durante toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente delas. A rede de interdependência entre os seres humanos é o que nos liga” (ibidem, p. 249). Para Andréa leão (2007) essa interdependência é marcada por tensões e conflitos. 21 pensar, a partir de publicações como A Vida do Bebê, sobre o que a identidade materna promovida por esse manual produz nas mulheres leitoras. O que esses discursos produzem na vida dessas mulheres-mães? Como essas mulheres-mães se veem e se narram a partir do modelo de maternidade promovido por livros como esses? Da mesma forma que o conceito de identidade é ampliado pelos Estudos Culturais para além do psicológico, enfatizando seu caráter cultural, o conceito de pedagogia cultural também procura ampliar a noção de educação para além da escola; nesse sentido, a educação é entendida como um processo mais amplo que está envolvido na produção de sujeitos, ou seja, como uma prática social constituidora das identidades dos mesmos. O termo pedagogia cultural supõe que a educação ocorra numa variedade de áreas sociais, incluindo, mas não se limitando à escolar. Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc (STEINBERG e KINCHELOE, 2001, p.14). Nesse mesmo sentido, devemos expandir o conceito de pedagogia, como proposto por Henry Giroux (1995), para além da questão de domínios de técnicas e de metodologias, ou seja, “pedagogia como uma configuração de práticas textuais, verbais e visuais que objetivam discutir os processos através dos quais as pessoas compreendem a si próprias e as possíveis formas pelas quais elas interagem com outras pessoas e seu ambiente” (p. 100). Larrosa (2002a), através de seu interessante artigo “Tecnologias do eu e educação”, considera também como práticas pedagógicas “aquelas nas quais se produz ou se transforma a experiência que as pessoas têm de si mesmas” (p. 36). Tais práticas pedagógicas, citadas pelo autor, podem ocorrer na escola, mas não se limitar a ela, como, por exemplo, podem estar presentes em grupos de terapia de reeducação, em reuniões políticas, religiosas e familiares. Segundo Larrosa “o importante não é que se aprenda algo „exterior‟, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do „educando‟ consigo mesmo” (ibidem, p. 36). O autor, como explicitado acima, amplia de forma significativa os espaços nos quais ocorreriam práticas pedagógicas, assim como o conceito de pedagogia cultural de Shirley Steinberg e Joe Kincheloe, além de ressaltar o processo através do qual “a pessoa humana se fabrica no interior de certos aparatos (pedagógicos, terapêuticos,...) de subjetivação” (LARROSA, 2002a, p. 37). Acredito que a visão de prática pedagógica descrita por Larrosa e Giroux possa ser compreendida através dos manuais, como A Vida do Bebê, que produzem e/ou transformam as experiências que mães e 22 pais têm de si mesmas/mesmos ao lerem tais livros, isto é, práticas, discursos e identidades são fabricados através dessa leitura. Dentro do enfoque dos Estudos Culturais, a cultura pode ser tomada como o conjunto de significados partilhados entre os sujeitos de determinado grupo localizado num tempo e espaço específicos, daí decorrendo o seu caráter contingente. O partilhamento de tais significados se dá através da linguagem, que é o meio no qual o significado é produzido e disseminado (HALL, 1997b). Ademais, a cultura organiza e regula as práticas sociais através da luta entre diferentes grupos sociais pela legitimação de certos significados em detrimento de outros, de forma que poderíamos dizer que a luta pela significação em uma dada cultura está relacionada com a luta pela legitimação dos significados nela implicados. Com relação a esse campo de estudos, valho-me do seu caráter transdisciplinar38 para interrelacionar as diferentes temáticas que esse estudo abrange: manuais, infâncias, paternidades, maternidades e especialistas. Para tanto, utilizo-me das análises textuais e discursivas (embora não utilize nenhum campo específico da Análise do Discurso), procurando salientar “como essas visões ou relatos específicos são construídos como reais, verídicos ou naturais através de determinados regimes de verdade” (ROSE, 2001a, p. 140). Para tanto, não diferencio artefatos de baixa e alta cultura, uma vez que os Estudos Culturais veem todos os artefatos culturais39 como textos produzidos através de processos de construção social e articuladores de significados, assim como a cultura deixa de ser vista como “a” cultura (elitista) e passa a estar ligada ao domínio político, a ser vista de forma muito mais abrangente. Para Mattelart e Neveu (2004, p. 133) “a cultura deixou de ser um componente extraordinário da vida social (ritos, obras prestigiosas), para penetrar a carne do cotidiano”. Nesse sentido, Costa (2005, p. 109) argumenta que: Os Estudos Culturais expressam, então uma tentativa de „descolonização‟ do conceito de cultura. Cultura não mais entendida com o que de „melhor foi pensado e dito‟, não mais o que seria representativo como ápice de uma 38 Sobre esse caráter transdisciplinar, interdisciplinar e até contradisciplinar dos Estudos Culturais, Cry Nelson, Paula Treichler e Lawrence Grossberg (1995, p.9) afirmam que as análises feitas a partir desse referencial “se aproveitam de quaisquer campos que forem necessários para produzir o conhecimento exigido por um projeto particular”, sendo que o mesmo ocorre com a metodologia, pois “a escolha de práticas de pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões dependem de seu contexto”. Para Armand Mattelart e Érik Neveu (2004, p. 15-16) “o termo [antidisciplinar] marca a recusa de divisões disciplinares, de especializações, a vontade de combinar as contribuições e os questionamentos advindos de saberes cruzados, a convicção de que a maioria dos desafios do mundo contemporâneo ganha ao ser questionada pelo prisma cultural. A iniciativa tem o mérito de contrabalançar os efeitos de isolamento derivados da hiperespecialização”. 39 Tais artefatos, segundo Marisa Costa, Rosa Silveira e Luís Sommer (2003, p. 38), são produtivos, pois “inventam sentidos que circulam e operam nas arenas culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são estabelecidas”. Assim, nesse referencial os manuais são considerados artefatos culturais, disseminadores e produtores de saberes. 23 civilização, como busca de perfeição, não mais a restrição à esfera de arte, da estética e dos valores morais/criativos (antiga concepção elitista). Cultura, sim, como expressão das formas pelas quais as sociedades dão sentido e organizam suas experiências comuns; cultura como o material de nossas vidas cotidianas, como a base de nossas compreensões mais corriqueiras. A cultura passa a ser vista tanto como uma forma de vida (ideias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e relações de poder), quanto toda uma gama de produções de artefatos culturais (textos, mercadorias, etc). Os Estudos Culturais passam a se constituir como um campo de pesquisa a partir da década de 1960, na Grã-Bretanha, e sua institucionalização ocorre, inicialmente, no Centro de Estudos Culturais Contemporâneos (Centre for Contemporary Cultural Studies) da Universidade de Birmingham, irradiando-se para variados centros acadêmicos de outros países. Para Mattelart e Neveu (2004, p. 72): Os Estudos Culturais nascem de uma recusa ao legitimismo, das hierarquias acadêmicas dos objetos nobres e ignóbeis. Eles se fixam sobre a aparente banalidade da publicidade, dos programas de entretenimento, das modas vestimentares. O próprio estudo do mundo popular atinge infinitamente menos as figuras heróicas dos dirigentes do que a sociabilidade cotidiana dos grupos, os pormenores de decoração, as práticas e os costumes. Costa, Silveira e Sommer (2003, p. 36) definem os Estudos Culturais como uma “movimentação intelectual que surge no panorama político do pós-guerra, na Inglaterra, nos meados do século XX, provocando uma grande reviravolta na teoria cultural”. Embora se destaque a importância que o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos teve para a irradiação dos trabalhos nessa área para outros centros acadêmicos, muitos autores nãoeuropeus afirmam que já realizavam pesquisas tendo como centralidade de análise a cultura antes da institucionalização dos Estudos Culturais, como por exemplo, Martín-Barbero e Canclini, na América Latina. As pesquisas realizadas nesse campo de estudos utilizam diferentes formas de investigação, sendo as mais conhecidas a etnografia e a análise textual e discursiva (que aqui será utilizada). Além disso, suas pesquisas enfocam várias temáticas, como, por exemplo, os estudos de gênero, de raça/etnia, de nacionalidade/regionalidade, das pedagogias culturais, das identidades, dos estudos da ciência, dentre outras possibilidades que são produzidas na atualidade. Assim, no campo da educação pode-se dizer que os Estudos Culturais em Educação constituem uma ressignificação e/ou uma forma de abordagem do campo pedagógico em que questões como cultura, identidade, discurso e representação passam a ocupar, de forma articulada, o primeiro plano da cena pedagógica (COSTA, SILVEIRA, SOMMER, 2003, p. 54). 24 A cultura assume esse caráter central no pensamento acadêmico a partir da “virada cultural”, ou seja, a partir da mudança de paradigma de certos campos das ciências sociais e humanas que passam a ver a cultura como condição constitutiva da vida social (HALL, 1997a). Nesse sentido, a cultura passa a ser a lente através da qual vemos os fenômenos à nossa volta. Segundo o mesmo autor (1997b), os significados são produzidos em diversas instâncias e circulam através de diferentes processos e práticas, sendo o processo de significação não permanente e instável, o que pode ser aplicado, no caso desse trabalho, ao livro analisado, que produz e veicula determinados modelos identitários de maternidade, paternidade e infância. Nesse sentido, os Estudos Culturais, aliados à perspectiva Pós-Estruturalista, enfatizam a linguagem e o discurso no processo de constituição e produção de identidades. Sobre esse aspecto Graeme Turner (1997, p. 52) explica: Nós nos tornamos membros de nossa cultura por meio da linguagem, adquirimos nosso senso de identidade pessoal com a linguagem, e é graças a ela que internalizamos os sistemas de valores que estruturam nossa vida. Não podemos sair do âmbito da linguagem para produzir um conjunto de significados pessoais totalmente independentes do sistema cultural. Segundo Michael Peters (2000), o Pós-Estruturalismo pode ser definido, embora não de forma tranquila, como um movimento filosófico que inicia na França, na década de 1960 e tem como fontes filosóficas os trabalhos de Friederich Nietzsche e Martin Heidegger. O Pós-Estruturalismo, segundo o mesmo autor, questiona o cientificismo, o racionalismo e o realismo do Estruturalismo40, assim como sua pretensão de identificar estruturas universais, adotando, assim, uma posição antifundacionista e enfatizando o perspectivismo. O discurso, no referencial pós-estruturalista, segundo Stuart Hall (1997a, p. 29), pode ser compreendido como uma linguagem para se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento. 40 O Estruturalismo organiza-se a partir da linguistica estrutural de Saussure e Jakobson, que privilegia a linguagem como sistema abstrato de elementos, que se definem pela sua oposição uns em relação aos outros, analisável fora de suas condições de uso (PETERS, 2000). Além disso, Peters afirma que o Estruturalismo se define como “uma abordagem estruturo-funcional de investigação científica dos fenômenos, cuja tarefa básica consistiria em revelar as leis internas de um sistema determinado” (p. 22). 25 Ou, como definem, de forma breve, Tim O'Sullivan et alii (2001, p. 82) “é o processo social de fazer e reproduzir sentidos(s)”. Dessa forma, o discurso produz o próprio objeto de que fala, o qual não consiste de uma realidade a ser descoberta e sim uma realidade a ser criada, inventada, produzida, pois o mundo adquire sentido pelo discurso. Além disso, todo discurso ocorre em circunstâncias históricas, culturais e sociais específicas, dotado de certa legitimidade. Assim, o significado, para essa perspectiva, “é uma construção ativa, radicalmente dependente da pragmática do contexto, questionando, portanto, a suposta universalidade das chamadas „asserções de verdade‟” (PETERS, 2000, p. 32). Nesse sentido, não se pode atribuir um único significado para os conceitos que aqui serão objeto de análise, como ser criança, ser mãe e ser pai. A partir de tal perspectiva, o sujeito é constituído através de práticas sociais da sua cultura; no caso desse estudo, por exemplo, busco analisar como os discursos dos especialistas governam as condutas maternas e paternas para produção de sujeitos infantis normais e saudáveis. Logo, o sujeito aqui descrito é entendido como descentrado, fabricado pelo discurso, não autônomo41, fragmentado; ele é constituído, “pensado, falado, produzido” (SILVA, 1999, p. 113). Michel Foucault enfatiza a necessidade de se pensar “um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história” (2005, p. 10). Assim, nessa perspectiva não cabe falarmos em uma essência do sujeito, ou em um sujeito que ao se conscientizar possa mudar o curso da História. Nesse último caso, Dreyfuss e Rabinow (1995, p. 121) escrevem que “não há sujeito, nem individual, nem coletivo, movendo a história”. E, no caso da suposta essência, Foucault explica que as coisas não têm essência “ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas” (2003a, p. 18). Percebendo o sujeito dessa forma, filio essa pesquisa a uma perspectiva pós-moderna, que desconfia dos saberes totalizantes – metanarrativas42 – os quais buscam explicar a estrutura e o funcionamento do universo e do mundo social. A Pós-modernidade propõe a 41 Uso o termo autonomia no sentido dado pelo Iluminismo, ou seja, como definidor do sujeito consciente das suas ações e capaz de resolver seus problemas independentemente dos outros. Segundo James Marshal (2002), a autonomia seria um mito “que obscurece as formas pelas quais a compreensão que temos de nós mesmos como capazes de efetuar escolhas livres e autônomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados, tanto individual quanto coletivamente” (p. 22). Nesse sentido, a autonomia pode ser tomada em termos foucaultianos como o governo de si. 42 As grandes narrativas são “histórias que as culturas contam sobre suas próprias práticas e crenças, com a finalidade de legitimá-las” (PETERS, 2000, p. 18). 26 deslegitimação da ciência43, o descrédito nos significados universalizantes e transcendentais, a crise da representação, a fragmentação e o descentramento das identidades (SILVA, 1999 e 2000b). Assim, abandonar as grandes narrativas significa que possamos nos envolver com saberes mais locais e contingentes, com pequenas narrativas. Tal opção adota “um processo de questionamento, diálogo, reflexão e construção de significados que conduza não sabemos para onde e que não tenha um ponto final óbvio” (DAHLBERG, MOSS, PENCE, 2003, p. 29). O que nomeamos como Pós-modernidade inicia em meados do século XX e “questiona os princípios e pressupostos do pensamento social e político estabelecidos e desenvolvidos a partir do Iluminismo” (SILVA, 1999, p.111) e as ideias de razão, racionalidade e progresso constante geradas no interior desse. Ou, como explicita de forma breve Jean-François Lyotard, é “a incredulidade em relação às metanarrativas” (1989, p.12). Tal incredulidade produz mudanças radicais nas formas de pensar, viver e organizar o mundo, além de eliminar os universalismos em favor de posturas contingentes. Zygmunt Bauman (2004) enfatiza, no seu livro Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, que as características da modernidade líquida (denominação dada pelo autor à Pós-Modernidade), como a fluidez, a fragilidade e a transitoriedade, estão também imperando sobre todas as espécies de vínculos sociais e afetivos, produzindo relacionamentos rápidos, superficiais, transitórios, fluidos, frágeis e movidos pela impulsividade (como a de um consumidor que compra algo por impulso). Relacionamentos tornam-se investimentos em curto prazo, que devem ter retorno rápido e garantido. Assim, a Pós-modernidade sustenta-se, como descrito anteriormente, na forma de um questionamento dos princípios da Modernidade. Esta pode ser entendida como um longo processo histórico que inicia na Europa com o pensamento de Bacon e Descartes (século XVII e XVIII). Tal movimento, como define Peters (2000, p. 13), baseia-se na “crença no avanço do conhecimento, desenvolvido a partir da experiência e por meio do método científico”. A crise da representação, citada anteriormente, decorre da visão pós-moderna e pósestruturalista de que aquela não reflete uma suposta realidade, mas, sim, produz a realidade através de formas de nomear, dizer e enunciar. Caberia nos perguntarmos sobre como uma determinada representação de um grupo cultural, por exemplo, se torna “verdade”? Como ela 43 A proposta de deslegitimação da ciência pode ser, inclusive, pensada – localmente - no seguinte sentido: como uma professora da educação infantil, formada em Pedagogia, tem legitimação para colocar em suspenso os discursos do maior manual de puericultura do Brasil? 27 se fabrica como verdade? As análises de como determinados grupos são representados, seja na mídia, seja em outros espaços sociais, tornam-se relevantes, pois “o modo como as pessoas ou os eventos são representados nas instituições molda e modela as formas como os sujeitos envolvidos concebem a si, aos outros e ao mundo em que estão inseridos” (BUJES, 2002a, p. 22). Justamente por acreditar que o manual aqui analisado tenha efeitos concretos nas vidas das suas leitoras e dos seus leitores e por acreditar nos “efeitos de poder, aí implicados, [é] que tais representações podem (e devem) ser problematizadas” (MEYER, 2000, p. 121). Nessa perspectiva, a linguagem passa a ser “encarada como um movimento em constante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca capturar de forma definitiva qualquer significado que a precederia e ao qual estaria inequivocamente amarrada” (SILVA, 2002, p. 249). Percebendo a linguagem como não representativa de uma suposta realidade ou do mundo, essa pesquisa apóia-se nos autores e nas autoras da virada linguística (final do século XIX e início do século XX). Autores como Foucault, como escreve Durval Muniz Albuquerque Júnior (2006), passam a questionar a suposta [...] transparência da linguagem, de sua capacidade de representar adequadamente o referente ou objeto a que se refere [...] que a torna incapaz de dizer e de fazer ver as coisas tal como são. Esta opacidade advém do próprio caráter político da linguagem, vem do fato de que seu uso é estratégico, de que segue objetivos e astúcias dadas por interesse diversos e divergentes no interior da sociedade e ao longo da história (p. 98). Ademais, a forma como falamos e pensamos é dependente do local histórico e cultural onde nos localizamos. Como explica Rorty (1988), não há ganchos no céu, no qual possamos amarrar nossas certezas. Essa postura frente à linguagem também se encontra em Nietzsche, quando o mesmo diz “o fato não existe, mas apenas interpretação” (NIETZSCHE, apud CONDÈ, 1999, p. 47). Nessa pesquisa, também utilizo-me dos Estudos de Gênero, associados às perspectivas teóricas citadas anteriormente. Para esse campo, o conceito de gênero passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem (MEYER, 2003, p.23). Assim, o conceito de gênero é entendido como uma construção social determinada pela sua contingência, ou seja, as representações possíveis do que é feminino e masculino dependem das condições históricas e culturais de determinado momento. Nesse contexto, 28 julgo interessante citar a carta de uma mãe44 preocupada com o filho que não segue um determinado modelo de masculinidade, que assim escreveu à revista Crescer: Percebi que as crianças de 7 anos começam a fazer seus grupos de Bolinha e Luluzinha e fico indecisa, porque meu filho só brinca com meninas na escola, em casa, na casa da avó. Pedro gosta de ajudar na cozinha, adora me ver maquiando, gosta de vestidos, de esmaltes e de batons. Ele adora animais – em especial cachorros - é muito carinhoso, meigo, tranquilo, não brinca de luta, de guerrinha, não gosta de futebol, de pipas [...] Pedro também adora teatro, gosta de imitar pessoas – principalmente mulheres. Nessa carta a mãe explicita sua preocupação com a suposta identificação do menino com o gênero feminino, com o “espectro da homossexualidade”, desconsiderando que há muitas formas de vivermos os nossos gêneros. Vale relembrar, de acordo com Meyer (2001, p. 32), que: Nós aprendemos a ser homens e mulheres desde o momento em que nascemos, até o dia em que morremos e essas aprendizagens se processam em diversas instituições sociais, a começar pela família, passando pela escola, pela mídia, pelo grupo de amigos, pelo trabalho, etc [...] Gênero reforça a necessidade de se pensar que há muitas formas de sermos mulheres e homens, ao longo do tempo, ou no mesmo tempo histórico, nos diferentes grupos ou segmentos sociais. Joan Scott, no seu conhecido artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995), expõe que o termo gênero teria sido utilizado inicialmente por feministas anglo-saxãs, no início da década de 1970, que “queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (p. 72). O uso de tal expressão tinha como objetivo negar o determinismo biológico presente no termo sexo. Assim, segundo Scott (ibidem, p. 86), gênero seria “um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos”. Meyer (2003) explica que, com esse conceito de gênero, pretendia-se romper a equação na qual [se efetuava] a colagem de um determinado gênero a um sexo anatômico que lhe seria „naturalmente‟ correspondente [...] [no entanto,] continua(va)-se operando com o pressuposto de que o social e a cultura agem sobre uma base biológica universal que os antecede (p.15, grifos da autora). No entanto, Linda Nicholson (2000) contrapõe-se a essa noção de gênero (como o que é construído culturalmente) em oposição ao sexo (como o que é dado biologicamente), entendendo que o corpo (o sexo) seria uma interpretação social, ou seja, ele também seria objeto de produção de conhecimento. Relembre-se que, tradicionalmente, o sexo tem sido 44 V. 9, n. 104, julho de 2002, p. 83. 29 considerado como aquilo que fica fora da história e da cultura, como aquilo que está no corpo, biologizando-se o mesmo. Para Nicholson, a concepção de que o sexo seja “o provedor do lugar onde o gênero seria supostamente construído” (ibidem, p. 11) tem levado muitas feministas ao que ela chama de “fundacionalismo biológico”, que as levaria a reconhecer semelhanças entre as mulheres (uma “essência feminina”) e a universalizá-las, fixando-lhes uma identidade, que recebe apenas a nuance da raça/etnia e da classe social. Tal concepção não tem permitido pensar que há múltiplas formas de ser mulher e de ser homem, como “uma complexa rede de características”, conforme a autora define. O que Nicholson propõe é que o corpo também seja uma variável, que também o sexo seja visto como uma construção cultural e que nossas pesquisas sejam feitas em contextos específicos, não universalizáveis. Dessa forma, o corpo seria um construto sócio-cultural e linguístico, produto e efeito de relações de poder (MEYER, 2003). Para essa última autora, não se está, portanto, negando a materialidade do corpo ou dizendo que ela não importa, mas mudando o foco dessas análises: do „corpo em si‟ para os processos e relações que possibilitam que sua biologia passe a funcionar como causa e explicação de diferenciações e posicionamentos sociais (ibidem, p. 19). Através do corpo pode ser inscrita uma série de marcas que “falam” sobre o local em que esse corpo se constituiu - classe, raça, gênero, nacionalidade e a que cultura pertencemos. Tais marcas podem ser lidas através dos gestos, dos comportamentos, das roupas, dos cortes de cabelos, dos usos de linguagem, dos tipos de barba utilizados, da realização de diferentes formas de depilação, das linguagens utilizadas, etc. Sobre a inscrição do gênero que é feita nos corpos, gostaria de destacar os brincos como definidores do gênero feminino nos bebês. Esses se constituem como o mais visível demarcador das identidades de gênero na primeira infância, pois muitas crianças só são percebidas como meninas ou meninos, na faixa etária dos 0 a 2 anos, pela presença/ausência deste objeto cultural carregado de significados. Tais marcadores culturais de gênero inscritos no corpo já produzem no sujeito infantil determinadas posturas. Se os brincos, na cultura ocidental, demarcam precocemente no corpo a que gênero as crianças pertencem, já na adolescência esse marcador não pode ser lido isoladamente, pois muitos meninos/rapazes usam, atualmente, brincos. Nessa perspectiva, Luís Henrique Santos (1997) define o corpo como um livro, ou seja, uma superfície de inscrição, de “escritas provisórias”; assim, “o corpo traz em si as 30 marcas [...] de uma cultura, as quais podem ser lidas e assim indicar onde esse corpo se constitui” (p. 86). No mesmo sentido, Jane Felipe (1999, p. 169) afirma: Há um enorme investimento da sociedade em geral para que os sujeitos sejam ou se comportem desta ou daquela forma, que gostem de determinadas coisas em função do seu sexo. Os tipos de jogos, brinquedos e brincadeiras que oportunizamos a meninos e meninas, a utilização dos espaços que permitimos a um e a outro, são alguns exemplos de como os indivíduos vão se constituindo. A partir de diferentes pesquisas empreendidas no campo dos Estudos de Gênero e dos Estudos Feministas tem-se percebido que as relações de gênero têm sido construídas a partir de binarismos45: homem/mulher, forte/fraco, racional/intuitivo, público/privado, dentre outros. Para Derrida, os binarismos explicitam “um desequilíbrio necessário de poder entre eles” (apud WOODWARD, 2000, p. 50). Nesse sentido, as mulheres são o outro dessa relação, o oposto do primeiro elemento, que é tido como a norma e o padrão, a partir dos quais todos devem se assujeitar. A partir disso, o que as pesquisas nesse referencial teórico, como a aqui realizada, buscam apontar são os modos pelos quais características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pelas quais se reconhece e se distingue feminino de masculino, aquilo que se torna possível pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico (MEYER, 2003, p.14). Nesse sentido, esta Tese busca também analisar como o manual em questão constitui as identidades maternas e paternas, a partir de representações do que é ser mulher e homem, mãe e pai, uma vez que tais representações na pedagogia cultural analisada não dão “espaço” para o hibridismo, para identidades fragmentadas, múltiplas, pois “ou se é um ou outro”. Dessa forma, busco, aqui, desconstruir46, problematizar (dar visibilidade) “os processos, as estratégias e as práticas sociais e culturais que produzem e/ou educam indivíduos como mulheres e homens de determinados tipos” (MEYER, 2003, p. 18). 45 É interessante destacar a “leitura” de gênero apresentada no livro Diário do bebê: eu e os meus primeiros anos (DE LAMARE, 1993). Foram publicadas três versões do mesmo livro: 1) com a capa rosa; 2) com a capa azul e 3) com a capa branca; talvez as duas primeiras opções estejam de acordo com o sexo do bebê – menina e menino, respectivamente - e a terceira opção às mães que ainda não sabem a qual sexo pertence o bebê. O conteúdo do livro é igual para todas as versões. 46 Compreendo o processo de desconstrução não como destruição, mas como a ação de mostrar como determinado discurso ou verdade foram construídos como tal. 31 Por fim, pensar as identidades a partir desses referenciais é pensá-las como plurais, em constante processo de transformação (portanto, não fixas) e, até mesmo, contraditórias (HALL, 2001). No mesmo sentido, Mattelart e Neveu (2004, p. 104) escrevem: Não podemos mais conceber o indivíduo em termos de um ego completo e monolítico ou de um si autônomo. A experiência de si é mais fragmentada, marcada pela incompletude, composta de múltiplos si, de múltiplas identidades ligadas aos diferentes mundos sociais em que nos situamos. No mesmo sentido, Albuquerque Júnior (2006) escreve, a partir da produção de Foucault, que normalmente “as identidades são tratadas como fruto de homogeneizações do que é plural” (p. 99). A partir de tais pressupostos, pretendo analisar como as grandes narrativas sobre infância produzem discursivamente - através de textos escritos e imagens47, principalmente do livro A Vida do Bebê – modelos identitários de infância normal e saudável através do governamento das condutas maternas e paternas. Assim, esse estudo compartilha do objetivo proposto por Costa (2000, p. 9) de “mostrar como operam alguns dispositivos e práticas culturais para constituir nossas concepções sobre o mundo e sobre as coisas e coordenar as formas como agimos”. Busco, nesse sentido, discutir práticas e concepções pouco problematizadas acerca dos discursos sobre o sujeito infantil, a maternidade e a paternidade e pretendo discutir também o que tal manual produz, mesmo porque, a partir desse referencial teórico, não cabe uma análise em parâmetros de bom/mau, certo/errado, verdadeiro/falso, adequado/inadequado etc. Além disso, ressalto que não avaliarei, ao longo da Tese, as imagens do ponto de vista estético e destaco meu olhar leigo sobre a linguagem imagética, ainda que, no decorrer das análises, as imagens façam parte do meu corpus de análise. A partir desses referenciais teóricos, esta pesquisa alia-se às realizadas principalmente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que tem se constituído como um pólo de produção de pesquisas sobre infância, maternidade e paternidade no Brasil, tema este que vem ganhando visibilidade nos últimos tempos em diferentes campos, entre eles, o da Educação. Cito, nesse sentido, as pesquisas de Jane Felipe de Souza (2000), Maria Carmem Silveira Barbosa (2006), Maria Alice Goulart (2000), Moysés Kuhlmann Júnior (2001), Maria Isabel Bujes (2002a), 47 Utilizo, nesse trabalho, a imagem como um texto, ou seja, “como uma porção coesa, uma unidade de linguagem [...] à qual um grupo cultural atribui significado, a partir do conhecimento de um código, ao menos parcialmente comum” (SILVEIRA, 2001, p. 19), não fazendo “referência apenas às expressões da cultura letrada, mas a todas as produções culturais que carregam e produzem significados. Um filme, um quadro, uma foto, um mapa, um traje, uma peça publicitária ou de artesanato podem ser considerados textos culturais” (COSTA, SILVEIRA, SOMMER, 2003, p. 38). 32 Karine Coutinho (2002), José Straub (2002), Leni Vieira Dorneles (2002), Sandra Mara Corazza (2000 e 2002), Fabiana Amorim Marcello (2003), Carin Klein (2003 e 2006), Janaína Souza Neuls (2004), Bianca Salazar Guizzo (2005), Jaqueline Martins (2006) e Ana Paula Sefton (2006), que procuram destacar o tema infância e/ou maternidade e paternidade, uma vez que essas áreas ainda são pouco estudadas e articuladas no âmbito da academia (STEINBERG e KINCHELOE, 2001 e WALKERDINE 1999). Como algumas das pesquisas citadas acima apontam, o governamento das crianças, das mães e dos pais é discursivamente produzido e posto em circulação na cultura em diversas instâncias, como a mídia, seja impressa ou televisiva, os manuais, os livros, etc. Costa, Silveira e Sommer (2003, p. 57) explicam que a pedagogia da mídia refere-se à prática cultural que vem sendo problematizada para ressaltar essa dimensão formativa dos artefatos de comunicação e informação na vida contemporânea, com efeitos na política cultural que ultrapassam e/ou produzem as barreiras de classe, gênero sexual, modo de vida, etnia e tantas outras. Assim, tendo esboçado de forma breve o referencial teórico dos Estudos Culturais, passo, no próximo item, a escrever sobre os conceitos elaborados por Michel Foucault, aqui compreendidos como ferramentas que me auxiliarão no empreendimento analítico a ser feito nos próximos capítulos. Ferramentas foucaultianas Como escrito anteriormente, utilizo-me dos conceitos propostos por Michel Foucault por acreditar que os mesmos permitem lançar um outro olhar para as questões analisadas nessa Tese, tendo clareza que o objeto desse estudo poderia ser pensado de outras formas a partir de outros referenciais. Reafirmo a produtividade do pensamento do autor citado, que me permitiu aprofundar questões e matizar discursos e não vê-los apenas como ideologias que defendem a posição privilegiada de um grupo sobre os demais. Assim, os conceitos aqui enfocados - poder, saber, disciplina, biopoder, biopolítica e governamento - emergem nos estudos de Foucault, principalmente na década de 1970, quando o autor passa a se interessar pela forma como os discursos emergem e sob quais condições de possibilidade. Nesses estudos, as relações de poder e de saber passaram a ocupar o primeiro plano de suas análises. Foucault, em Vigiar e Punir (2002b), descreve a emergência, a partir do século XVII, de uma sociedade disciplinar e, consequentemente, do indivíduo moderno a partir da 33 disseminação de micro estratégias que visavam agir sobre os corpos individualmente, para que estes se tornassem dóceis48 e úteis49. Com o fim dos suplícios descritos no livro por Foucault, inicia-se uma busca por técnicas que tomam por objeto cada vez mais a alma dos criminosos, dos escolares, dos doentes, dos soldados, etc., do que os seus corpos propriamente ditos. O mesmo autor explica que este poder que se exerce sobre os corpos tem por objetivo a alma, elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. [...] A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo (FOUCAULT, 2002b, p. 28-29). Nesse contexto, o corpo torna-se algo produzido, fabricado de forma microscópica, detalhista e intermitente pela disciplina; “ela é técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (ibidem, p. 143). O autor, em outra passagem (2003a), escreve que o corpo é inteiramente marcado pela história e é o alvo principal das relações de poder e saber, através de um investimento contínuo; “elas [as relações de poder] o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 2002b, p. 25). Para que os corpos se tornem disciplinados, é necessário o controle do tempo (regulamentado, controlado – para cada atividade deve haver um tempo específico -, utilizado de forma exaustiva, para que se obtenha a maior eficiência) e do espaço (exercido em locais fechados, onde o indivíduo é colocado em um lugar específico, sendo esta localização, funcional e estratégica, pois o localiza em uma série e o separa dos outros), a organização do tempo (em sequências, com complexidade crescente, divididas em níveis a serem verificados por uma prova, culminando na ideia de um desenvolvimento progressivo) e a composição de tais forças (a partir da noção do corpo como peça de uma engrenagem, na qual todos precisam estar conectados ao/no mesmo tempo, aprendizagem esta realizada por meio de um sistema preciso de comando). Dessa forma, a disciplina investirá sobre cada um dos sujeitos (escolares, prisioneiros, pacientes, etc) ao mesmo tempo em que procurará interrelacionar todos, fazendo com que cada um ocupe um lugar específico no todo. Na lógica disciplinar, o 48 49 Dócil, entendido como tendo apresentado diminuição das resistências e aumento da obediência. Referindo-se ao aumento das forças do corpo para alguma atividade específica. 34 espaço assume importância vital, assim como o tempo, na produção de corpos dóceis e úteis e de almas em consonância com o projeto disciplinar. Além da disciplinarização dos corpos, Edgardo Castro (2006) nos chama atenção para a disciplinarização dos saberes. Como poderemos ver nos próximos capítulos, a medicina precisou organizar-se para normalizar um corpo de saberes técnicos, a serem controlados e regulados por determinadas instituições com legitimidade para tal. Veiga-Neto (2003c) define a sociedade disciplinar como aquela na qual os sujeitos aprenderam, principalmente através da família e da escola, o que é certo e errado. O autor relembra que disciplina deriva do latim discere + pueris, conforme algumas fontes, que significaria dizer às crianças. Para a pesquisa em questão podemos nos perguntar o que o discurso médico nos diz sobre o que devemos dizer às crianças. Acredito que algumas pistas para essa pergunta poderão ser mais bem compreendidas nos próximos capítulos. Para Foucault (2005), a partir da sociedade disciplinar entramos na era da ortopedia social, que se materializa através de uma rede de instituições de vigilância e de controle50 (como a polícia) e de correção (como, por exemplo, as instituições pedagógicas, médicas, psiquiátricas, psicológicas e criminológicas), nas quais se busca enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência de acordo com certos padrões. A disciplinarização dos corpos deve ser exercida através de práticas cotidianas sobre os indivíduos, de forma sutil e contínua, em instituições de sequestro (como, por exemplo, a escola, o hospital, a caserna e a prisão), que capturam os corpos e os confinam por um determinado tempo. Como escreve Foucault (2002b) para o “sucesso” do poder disciplinar é necessário o uso de três instrumentos: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. A vigilância hierárquica caracteriza-se por um olhar ininterrupto sobre todos, objetivando a internalização desse olhar, para que os próprios indivíduos possam tornar-se os vigias de si mesmos; é a economia do poder com a redução dos custos com a vigilância. Esse dispositivo constituiu-se como um olhar que observa, analisa e corrige comportamentos e posturas. Essa “máquina óptica” permite analisar as diferenças entre os indivíduos, tornandose “um aparelho de observação, de registro e de treinamento” (FOUCAULT, 2002b, p. 145). 50 Talvez seja interessante para a compreensão minuciosa do pensamento de Michel Foucault a diferença entre vigilância e controle. O primeiro termo vincula-se a processos disciplinares, que individualizam, que tornam o sujeito vigiado visível permanentemente, ou seja, tem a ver com o manejo de uma multiplicidade para organizála e fixá-la. Já o controle não implica visibilidade permanente, pois permite mobilidade, trocas, circulação, mas em produção de documentação e de registro permanente. É importante ressaltar que esses dois processos não se excluem, pelo contrário, podem ser articulados para produção de melhores efeitos. 35 A sanção normalizadora visa reprimir e evitar os desvios de um caminho tido como normal e natural, promovendo regras, além de corrigi-los, recompensá-los e hierarquizá-los. Tal caminho é constituído pela regularidade e pela média do conjunto de indivíduos observados e examinados – a norma. Como aponta François Ewald (1993), no princípio do século XIX norma não será mais sinônimo para regra, mas tornar-se-á um “princípio de valorização” e “sua referência já não é o esquadro, mas a média” (p. 79). A noção da norma surge a partir dos estudos de Foucault sobre o poder disciplinar e sobre os normais e anormais, na medicina e na psiquiatria do final do século XVIII e XIX. Em seu curso Os anormais (2001)51 Foucault nos explica que a figura do anormal do século XIX era composta de três indivíduos que o precediam: o monstro, o incorrigível e o masturbador, ou seja, o anormal era uma espécie de monstro, dotado de uma incorrigibilidade e possuidor de “um segredo ao mesmo tempo comum e singular inerente à conduta do onanista” (FONSECA, 2002, p. 250). Conforme observa Márcio Fonseca (2002, p. 244), “a norma, em Foucault, reporta-se ao funcionamento dos organismos” e não às categorias do direito, pois ela ocorre no vazio deixado pelas leis. Nessa perspectiva, escreve Ewald (1993), não há soberano numa sociedade regida pela norma, pois ela é de todos, sendo “a norma [o que] faz do grupo o único soberano de si próprio” (ibidem, p. 110). Além disso, a validade de uma norma, para o autor citado acima, “provém do fato de não se impor” (ibidem, p. 110). A norma é média estatística do conjunto da população. Esta regularidade do grupo social torna-se, assim, critério de julgamento, que verifica quem está dentro da norma e quem não está. Para aqueles que estão sob o abrigo da norma, mas não são o sujeito padrão, referencial, serão acionados mecanismos de regulação52, visando à sua correção. Para incorporá-los à norma, ainda que em posição de anormais, os estranhos serão objeto de poderes e saberes que procurarão absorvê-los, conhecê-los, isolá-los. Assim, como enfatiza Ewald, o anormal não é de natureza diferente do normal, pois ambos estão sob o abrigo da norma e, inclusive, o anormal é previsto pela norma, não constituindo um indivíduo exterior ou à parte. No caso específico da norma disciplinar, esta possui um caráter prescritivo, pois independe das características do grupo a qual é aplicada. Como explica Ratto (2004) essa norma “produz individualidades através de modos de comparação que estabelecem medidas 51 52 Curso ministrado no Collège de France entre os meses de janeiro e março de 1975. Chamo atenção para a diferença de sentido atribuídas, na perspectiva proposta por Michel Foucault, às palavras regulação e regulamentação. A primeira refere-se a práticas e discursos que visam tornar alguém normal, enquadrando-o em uma lógica específica. Já a segunda vincula-se às práticas de normatização, ou seja, criar regulamentos para algo ou para alguém. 36 comuns, regras de julgamento, parâmetros voltados para a formatação minuciosa de todas as individualidades e, ao mesmo tempo, de cada uma delas” (p. 52). A norma articula-se com o exame e a vigilância hierárquica, toma as pessoas como objeto de conhecimento e as compara, estabelecendo padrões e diferenças que não são de natureza ou de essência, mas a média entre os indivíduos forjada na relação comparativa entre eles. As diferenças são estabelecidas numa escala - do normal ao anormal. Nessa lógica, a norma individualiza por comparar indivíduos diferentes e aqueles indivíduos que serão alvo principal dessa norma serão aqueles que se afastarem dessa média, ou seja, “[...] quem não a cumprir estará muito mais individualizado que aquele que a cumprir” (DIAZ53, 1993, p. 28). Inicialmente, como descreve Ewald (1993), as disciplinas objetivavam fixar os indivíduos (disciplina bloqueio), e o que permitiu a desinstitucionalização das disciplinas e a proliferação de técnicas disciplinares pela sociedade como um todo (disciplina mecanismo) foi a norma. Nessa argumentação, cabe referir Quetelet e a teoria do homem médio. Por essa formulação, Quetelet conhecia as constantes presentes numa população específica e através das características constantes do grupo criou o homem médio, esse ser fictício, como escreve Ewald, que pode não representar nenhuma pessoa real, mas torna-se a medida para avaliar todo o grupo. No entanto, esse homem médio não é universal, pois ele será característico de um determinado tempo e espaço. O homem médio deve ser o “centro de gravidade” (como diz Quetelet, citado por Ewald), a base de avaliação do grupo, “a definição daquilo que não deixamos hoje de invocar sob a forma da norma e do normal” (EWALD, 1993, p.95). Ademais, o homem médio só faz sentido na relação do indivíduo com o grupo, tornando-se “um modo de individualização dos indivíduos, já não a partir de si próprios [...], mas a partir do grupo ao qual pertencem” (ibidem, p.95). Portanto, a norma é auto-referencial, não sendo absoluta, nem universal, nem eterna, demonstrando grande capacidade de adaptação e deve ser sempre considerada no plural. O olhar normativo torna o homem um objeto que não penetra na profundidade das causas, “os fatos bastam-se a si mesmos” (EWALD, 1993, p. 111). Este não é interpretativo, mas é infinito e incessante. O que a norma torna visível são os desvios, as diferenças em relação aos outros, assim, não há individualidade que não seja comparável, pois não há como escaparmos à norma. Nessa lógica, não há diferenças de essência entre os indivíduos, mas de grau. 53 As traduções dessa autora são de minha responsabilidade e revisadas pela orientadora. 37 Retomando os instrumentos da disciplina, o exame torna os indivíduos objetos de conhecimento, através do qual se compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza e exclui, combinando as técnicas de vigilância e a sanção normalizadora. Para Foucault, o exame é a matriz das ciências do homem, como, por exemplo, a psicologia, a psiquiatria, a sociologia, dentre outras, pois implica algum tipo de registro que possibilita a acumulação de informação que possibilitará a comparação com outros indivíduos. Esta relação poder e saber não só extrairá saberes dos corpos como produzirá nesses mesmos corpos comportamentos e atitudes que visam ordenar as multiplicidades humanas (FOUCAULT, 2002b). Assim, a partir da Modernidade, ao contrário da Idade Média, houve um movimento de inclusão54 de todos os “estranhos”, antes excluídos, a fim de que se constituísse um campo de saberes (e de poderes) sobre esses sujeitos. Na disciplina, é através do exame que se pode julgar permanentemente mediante a “superposição das relações de poder e de saber” (FOUCAULT, 2002b, p. 154). O filósofo também nos chama a atenção para a invisibilidade do poder disciplinar no exame, ao contrário da visibilidade daqueles que estão sendo avaliados. Além disso, o exame torna cada um daqueles indivíduos sob o seu comando um caso singular, que necessita de um registro documental do seu processo, o qual permite localizá-lo no grupo no qual se encontra. O poder, no sentido atribuído por Foucault, não pode ser pensado como negativo, isto é, não como uma força que diz não, que obriga e que reprime, mas como constituidor de práticas que produzem verdades, conhecimentos, identidades, prazeres, saberes e discursos; “ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade” (FOUCAULT, 2002b, p. 161). Dessa forma, tomo o conceito de poder, conforme elaborado pelo autor citado, como algo que não se possui ou se detém, mas como uma estratégia, como algo que se exerce. No mesmo sentido não há “o” poder emanando de um centro (comumente atribuído ao Estado) e sim relações de poder disseminadas por toda estrutura social, porque “provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p. 89). Nessa compreensão, as relações de poder só ocorrem entre sujeitos livres55 que ocupam posições diferentes e/ou possuem forças desiguais. Assim, não há como escapar ao poder, pois as relações sociais são permeadas pelo exercício do poder e por movimentos de resistência56, embora muitas correntes teóricas afirmem que o 54 Como explica Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 948), “não é o caso de glorificar a inclusão per se, por outro lado não se trata de simplesmente rejeitá-la”. 55 É importante frisar, que se não existe liberdade de ação dos sujeitos envolvidos, o que está em questão não é poder, mas sim práticas de dominação. 56 Os movimentos de resistência só podem ocorrer dentro de redes de poder. Poder e resistência não são antagônicos, mas estratégias possíveis em um campo de ações. 38 conhecimento, a verdade e o saber podem eliminar o poder que oprime a sociedade e podem libertar e fazer a humanidade “evoluir”. Contrariamente a essa proposição, Foucault argumenta que poder e saber caminham juntos numa relação de imanência, na qual o saber se constitui a partir da acumulação de informações e dos registros, que são formas de exercício do poder, ao passo que o poder só se exerce a partir de um saber que lhe dê suporte. Como explica Diaz (1993) “o poder necessita de verdades para circular e transmitir-se” (p. 14). A mesma autora argumenta que a verdade é uma invenção57 social e histórica, sendo que cada sociedade produz os seus domínios de saber e esses geram novos objetos de estudo, conceitos e técnicas. Também ressalto que, ao problematizar nessa Tese as diferenças no governamento de pais e mães, não pretendo prescrever uma relação igualitária entre os gêneros, para que pudéssemos atingir uma sociedade livre de poder, pois tal sociedade não existe, nem é possível de ser atingida. O que se pretende analisar nessa Tese é como os discursos presentes na publicação para pais e mães os posicionam em relação à educação e à saúde das crianças. Em seu texto A Governamentalidade, Foucault (2003c) explica que foi na segunda metade do século XVIII, com a emergência da problemática da população58, que a família tornar-se-á “segmento privilegiado, na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população [...] é pela família que se deverá passar” (p. 289); nesse sentido podemos fazer uma relação com as campanhas de vacinação, por exemplo, ou o manual aqui analisado. Para Jacques Donzelot (2001), esse período é marcado por uma “passagem de um governo das famílias para um governo através das famílias” (p. 86). A família torna-se mecanismo de proteção da infância pobre, da aliança mãe-médico, de promoção da escola, dentre outras. A partir da problemática colocada pelos fenômenos relativos à população 59, o Estado precisará reorganizar-se em suas estratégias60, com vistas a organizar a população e promover 57 58 Podemos pensar na invenção como fabricação e criação humana de algo. A população até o século XVIII era considerada um dos elementos do soberano, juntamente com o território e as riquezas. A partir desse século, a população deixa de ser uma noção jurídica política de sujeitos e passa a ser um objeto técnico político de uma gestão e governo (FOUCAULT, 2007). No mesmo sentido, Fonseca (2006) esclarece que até o século XVII a noção de população “[...] remetia ao movimento pelo qual se repovoava um território que havia se tornado „despovoado‟ devido a desastres naturais, epidemias ou guerras” e no século XVII “[...] aparece como princípio da riqueza e da força produtiva de um determinado Estado, pois era aquilo que fornecia ao Estado os braços para as atividades produtivas” (p. 157). 59 Como a população é composta de indivíduos diferentes, cujo comportamento não se pode prever, a tecnologia governamental procurará articular o interesse individual ao do Estado, através da produção do interesse coletivo (governamento do desejo da população). 60 Foucault (1995) explica que podemos nos referir a estratégia como um “conjunto de meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder [assim como] podemos também falar de estratégia própria às relações de poder na medida em que estas constituem modos de ação sobre a ação possível, eventual, suposta dos outros” (p. 248). 39 a vida, através de políticas públicas (biológico a serviço do político). A biopolítica61 emerge como uma resposta econômica e política a esses fenômenos específicos e variáveis próprias da população, como, por exemplo, natalidade, morbidade, expectativa de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de doenças, formas de alimentação, condições de habitat, criminalidade, dentre outras. Essa tecnologia visa, assim, o equilíbrio global, “[...] a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos” (FOUCAULT, 1999, p. 297). Todas essas questões de longa duração passam a fazer parte dos cálculos do Estado, visando também à maximização das forças e da vida. Assim, a biopolítica olhará para o corpo enquanto espécie, para gerir e dispor sobre a vida e sobre a morte, administrar processos biológicos, assegurar sua regulamentação (fazer viver), através de uma política de saúde62 que vise “intervir nas condições de vida, para modificá-las e impor-lhes normas” (FOUCAULT, 1997, p. 86). Para gerir a população, a biopolítica utilizar-se-á dos saberes produzidos pela estatística e pela demografia, assim como da medicina63 para higienizar e medicalizar a população para ampliar a expectativa de vida e aumentar as forças dos corpos, tornando-os mais saudáveis, mais úteis e mais organizados. Para Ewald (1993), o cálculo das probabilidades e a estatística são a própria linguagem da norma. Nesse momento, gostaria de fazer uma distinção relevante para o estudo realizado, no caso, a diferença entre norma disciplinar e norma biopolítica, a partir de Fonseca (2002). A norma disciplinar é anterior ao grupo ao qual ela é aplicada, como já explicitado anteriormente. Ela decompõe os indivíduos, classifica-os, estabelecendo sequências e ordenações, fixando procedimentos de adestramento e controle e, por fim, separa o normal e o anormal, processo denominado de normação (e utilizado no manual analisado nessa Tese). Além disso, a norma disciplinária é prescritiva e proibitiva. Já a norma biopolítica é retirada do grupo e retranscrita a ele, ou seja, as campanhas de vacinação, por exemplo, são realizadas para combater uma regularidade de doenças que afligem aquela população específica. Dentro 61 Edgardo Castro (2006) nos chama a atenção para os três desenvolvimentos que o conceito de biopolítica teve na produção de Foucault entre 1976 e 1979. Primeiramente, no curso Em defesa da sociedade, de 1976, a biopolítica “aparece como uma transformação da „guerra das raças‟” (p. 70-71). Em segundo lugar, no primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault introduz a biopolítica como uma transformação do direito do soberano de “fazer morrer e deixar viver”. E, por fim, nos cursos de 1978 e 1979, a biopolítica aparece relacionada a governamentalidade. 62 Um exemplo de biopolítica vem da pesquisa National Children’s Study, iniciado em 2007 nos Estados Unidos. O objetivo desse estudo é “encontrar formas de prevenção e tratamento das doenças infantis mais comuns. Detectar no desenvolvimento infantil tendências a problemas de saúde na vida adulta” (VEJA, 2004, p. 91). Tal programa acompanhará cem mil crianças do nascimento até os 21 anos de idade. Esta é considerada a maior pesquisa já realizada sobre saúde infantil nos Estados Unidos. 63 A medicina e a higiene passam a ter um caráter de “autoridade social incontestável” em termos de infância, principalmente, a partir das pesquisas de Louis Pasteur, no campo da epidemiologia, que teve efeitos concretos na redução da mortalidade infantil (KUHLMANN JÚNIOR, 2001). 40 de espectros possíveis da curva de normalidade, os mecanismos de seguridade irão atuar sobre os menos normais, a fim de os tornarem mais normais, processo denominado de normalização. A norma biopolítica é central para as ações e para os procedimentos do Estado relativos à população, como as políticas públicas de saúde e de educação. Essa norma tem em vista o conjunto da população e atuará sobre aqueles indivíduos que estão mais expostos a determinadas doenças (campanhas de vacinação infantil, p.ex.), a acidentes (campanhas de trânsito para os jovens, p.ex.), a contaminações (campanhas pelo uso de preservativos, p.ex.), dentre outros exemplos. O que dá sentido à norma biopolítica é a regularidade e a probabilidade dos acontecimentos num determinado grupo, além de visar a seguridade social (observar – classificar – intervir). Ademais essa norma não proíbe, como a anterior, mas circunscreve os fenômenos dentro de limites aceitáveis. E, para Foucault, será a sexualidade que articulará o corpo individual ao corpo da população e será a norma que articulará a disciplina e a regulação da vida na constituição de um novo poder: o biopoder (FOUCAULT, 1999). Nas palavras de Duarte (2006, p. 27), “Foucault percebeu que o sexo e, portanto, a própria vida se tornaram alvos privilegiados da atuação de um poder disciplinar que não tratava simplesmente de regrar comportamentos individuais ou individualizados, mas que pretendia normalizar a própria conduta da espécie”. Foucault nos chama atenção, no primeiro volume de História da Sexualidade (1988), para a emergência de novos mecanismos de poder ao longo do século XVIII e XIX que visavam o controle das populações, através da gestão da vida biológica (estratégias biopolíticas) e do controle dos corpos individuais (técnicas disciplinares). Nesse sentido, o biopoder atua em dois níveis: do corpo individual e do corpo populacional; disciplina e biopolítica, como afirma Foucault, se apóiam e se complementam nas diferentes instituições em que o sujeito se encontra, através de operações individualizantes sobre o corpo e daquelas que visam aos fenômenos relativos à população. Ao contrário do poder de soberania (anterior ao século XVIII) que fazia morrer e deixava viver, o biopoder fará viver e deixará morrer quando não houver mais possibilidades de recuperação64. No mesmo sentido, enquanto o poder de soberania era exercido através da lei, na era do biopoder, a norma assume a centralidade. Assim, nas sociedades no qual o biopoder atua, a lei e os sistemas jurídicos não serão eliminados, mas passarão a ser guiados pela norma. Nas sociedades de normalização, norma e lei não estarão em pólos opostos e a lei não terá como características reprimir e matar, mas qualificar, medir e hierarquizar 64 Nesse aspecto podemos pensar no nazismo como movimento que levou esse preceito ao limite. 41 (FOUCAULT, 1988). Um exemplo disso podemos localizar nas políticas higienistas e eugênicas (que serão analisadas nos capítulos seguintes), que investirão sobre a população impondo-lhes normas para as habitações, o uso dos espaços públicos, as relações familiares, etc. Como enfatiza o filósofo, o biopoder foi um elemento indispensável na promoção do capitalismo. Em uma sociedade gerida pelos princípios do biopoder, a norma, segundo Ewald (1993), servirá para gerir as populações e promoverá os conceitos de risco e seguridade. Primeiramente, o autor nos chama a atenção para não confundirmos perigo e risco. O primeiro designa um acontecimento fatal que pode ocorrer com qualquer um. Já o risco é uma medida que é retirada de um grupo de indivíduos, por determinadas ações, por ocuparem certos espaços, por viverem de acordo com alguns preceitos, etc. Como salienta o autor, nada é um risco; não obstante, tudo pode se constituir um risco. O conceito de risco emerge com a Modernidade e implica a mensuração, cálculo e previsão de possíveis acontecimentos, comportamentos e condutas. O risco precisa do saber, para explicá-lo e para calcular a probabilidade de determinadas situações e ações no futuro, procurando administrá-lo e preveni-lo. A noção de risco coloca no sujeito a responsabilidade e a culpa pelos seus atos, como, por exemplo, se vê nas campanhas em prol da amamentação (como veremos em capítulo posterior) que visam incentivar as mães a amamentar, para que as crianças tenham menores chances de adquirirem determinadas doenças, assim como a vacinação. A atual perspectiva médica, em consonância com o neoliberalismo, culpabiliza o indivíduo e não o Estado e a ordem social pela saúde dos indivíduos. Dessa forma, não somos na contemporaneidade pessoas doentes ou saudáveis, mas pessoas com mais ou menos riscos de nos tornarmos doentes. Na educação, a noção de risco também está presente através do discurso da importância da família, já que famílias nomeadas como “desestruturadas” teriam maiores riscos de que as crianças delas oriundas se evadissem da escola, fossem repetentes e/ou apresentassem problemas de conduta. Como explica Ripoll (2004), “a ideia de risco passou a substituir a „incerteza‟, a „indeterminação‟ e o „destino‟, através da possibilidade do cálculo matemático” (p. 233). Como explica a mesma autora, a partir de Lupton, prestar atenção aos riscos nos quais estamos enredados “contribui na formação de novas subjetividades e de nossas vidas sociais” (ibidem, p. 236). Sobre a formação contemporânea da subjetividade em termos de risco, podemos pensar no bombardeio de informações que nos advertem sobre os riscos aos quais estamos expostas se fumarmos e bebermos durante a gravidez, se não utilizarmos a camisinha nas relações sexuais, se não formos pacientes e amáveis com os nossos filhos e as nossas 42 filhas, se não contarmos ao pediatra toda e qualquer anormalidade que percebamos nas crianças, dentre outros tantos conselhos que recebemos diariamente, com maior frequência através da mídia. Nessa lógica, o risco pode ser previsto e calculado (pelos corretores de seguros, a partir de questionários produzidos pelas ciências atuariais, por exemplo). O risco, como descreve Ewald (1993), “é um princípio de objetivação. Confere uma certa objetividade aos acontecimentos da vida privada, profissional ou comercial” (p. 89). Dessa forma, não importam as causas e as motivações de um acidente, “apenas conta o fato da sua ocorrência, ou mais exatamente, da sua ocorrência multiplicada, repetida, regularmente quase idêntica a si” (p.91). Por essa racionalidade, o número faz sentido por si mesmo, sendo pura superfície, pois não remete a nada que seja ele próprio. Em termos de seguridade e biopolítica, não existem (ou não importam) indivíduos dotados de subjetividade, o que faz sentido é o conjunto das características de determinada população. Numa sociedade organizada a partir de uma racionalidade biopolítica, o risco deve ser pensado como calculável e social, pois não há risco individual. Assim, “a segurança só tem alcance perante grupos; passa pela socialização dos riscos. A segurança65 faz de cada um a parte de um todo” (EWALD, 1993, p. 96). Como assevera o autor citado, segurança pode ser considerada como “[...] um esquema de racionalidade, uma maneira de decompor, recompor, ordenar certos elementos da realidade. É a prática de um certo tipo de racionalidade, aquele que formaliza o cálculo das probabilidades” (ibidem, p. 89). Um exemplo dessa racionalidade são as políticas de inclusão escolar que visam incluir todos os indivíduos na escola, a fim de que todos possam ser objetos da disciplina e da biopolítica, para garantir a segurança das populações66 (VEIGA-NETO e LOPES, 2007). Foucault (2006) explica que, para que os dispositivos de segurança atuem de forma eficiente, quatro noções desempenham um papel importante, sendo elas: a noção de caso (não como um acontecimento individual, mas a identificação de fenômenos individuais num campo coletivo); a noção de risco (que é a análise da distribuição dos casos, verificando qual 65 Embora Ewald (1993) fale em segurança, utilizo na Tese o termo seguridade por acreditar, a partir das discussões empreendidas na disciplina “Nascimento da biopolítica: implicações educacionais”, ministrada pelo professor Alfredo Veiga-Neto, que esse termo explique melhor as dinâmicas exploradas por Michel Foucault no curso “Nacimento de la biopolítica” (ditado no ano de 1979). Por esse entendimento, seguridade teria um maior espectro de ação do que segurança e estaria relacionado a uma disposição de medidas de segurança. 66 No curso Os Anormais, Foucault (2001) aproxima o universo jurídico e médico, através da análise de casos, nos quais se pode perceber o deslocamento do ato do crime para o “temperamento”, a personalidade do sujeito acusado, além de buscar no seu passado as origens e as motivações para o ato infringido. Nas palavras do autor, trata-se de mostrar “como o indivíduo já se parecia com o seu crime antes de o ter cometido” (ibidem, p. 24). Assim, os especialistas que serão chamados a analisar esses indivíduos procurarão avaliá-los para averiguar o nível de periculosidade que este representa para si e para os outros. 43 é o risco para cada um); a noção de perigo (cálculo que permite avaliar que os riscos não são iguais para todos, portanto há riscos diferenciais) e a noção de crise (que permite identificar a multiplicação de casos para a intervenção por um mecanismo natural ou artificial). No curso Seguridad, territorio, población (200667), ministrado no Collège de France, em 1978, Foucault fala da invenção, a partir do século XV, de novos dispositivos de “governo68 dos homens”. Nesse período, ocorre uma crise do poder pastoral na forma como era exercido nas tradições judaico-cristãs (visibilizada pelos movimentos da Reforma69 e Contra-Reforma), que propiciará novas maneiras de governar os outros e de se autogovernar, juntamente com o surgimento de novas práticas sociais, econômicas e políticas (VEIGANETO, 2002). A ideia de governo dos homens originou-se no Oriente pré-cristão e, depois, no Oriente cristão. O poder pastoral é uma das formas que o governo dos homens assumiu, primeiramente nas práticas religiosas de judeus e, posteriormente, difundiu-se no Ocidente70 com o cristianismo, através de três princípios: a verdade, a salvação e a obediência. Esse tipo de poder específico objetiva a conduta dos homens e articula-se duas formas: o cuidado de cada uma das ovelhas pelo pastor, ao mesmo tempo em que este não perde a visão do rebanho como um todo. O pastor deveria conhecer cada uma das suas ovelhas no detalhe, daí o caráter individualizador do poder pastoral, assim como deveria salvar cada delas; isto implicava obediência total e irrestrita ao pastor. Nesse jogo de relações, ao pastor era permitido conhecer a verdade de cada fiel, através da confissão. No mesmo sentido, Rose (2001a, p. 38) explica que a relação pastoral é uma relação de aconselhamento espiritual entre uma figura de autoridade e cada membro de seu rebanho, corporificando técnicas tais como a confissão e a exposição do eu, a exemplaridade e o discipulado, incorporado à pessoa por meio de uma variedade de esquemas de auto-inspeção, auto-suspeição, exposição do eu, autodeciframento e autoformação. Para Foucault, na Modernidade, com a laicização do poder pastoral, a medicina foi uma das instâncias que assumiu, assim como a Pedagogia, o poder pastoral em suas 67 68 A tradução desse texto, em específico, de Foucault é de minha responsabilidade e revisada pela orientadora. O termo governo aparece pela primeira vez nos estudos de Foucault no curso dos Anormais,quando escreve sobre o modelo de exclusão da lepra e o modelo inclusivo da peste. 69 Foucault (2006) escreve que muitas guerras e disputas produziram-se em torno do poder pastoral. Para eles, todas as guerras religiosas resumiam-se a quem tinha o direito de governar os homens. E a Reforma Luterana foi a grande batalha pelo poder pastoral. Para o autor (ibidem), fazer a história do pastorado é fazer a história dos procedimentos de individualização humana no Ocidente. 70 A ideia do rei como pastor e os homens como rebanho já existia entre egípcios, assírios e babilônicos, mas se intensificou entre os hebreus e essa relação tornou-se fundamentalmente religiosa (Deus como pastor supremo). 44 instituições e práticas (como poderemos ver posteriormente nas análises de A Vida do Bebê), articulando obediência ao especialista, confissão dos segredos e busca da salvação. Para Foucault (2006, p. 269-270): O homem ocidental se individualiza por intermédio do pastorado na medida em que este o leva a uma salvação que fixa para sempre sua identidade, o submete a uma rede de obediências incondicionais, lhe inculca a verdade de um dogma no momento mesmo em que lhe arranca o segredo de sua verdade interior. Identidade, sujeição, interioridade: a individualização do homem ocidental durante o longo milênio do pastorado cristão se produziu ao preço da subjetividade. Por subjetivação. É preciso chegar a ser sujeito para converter-se em indivíduo. No entanto, é preciso salientar que não houve substituição do pastorado por outras formas de conduta, mas “intensificação, multiplicação, proliferação geral do tema e das técnicas da conduta. Com o século XVI entramos na era das condutas, na era das direções, na era dos governos” (FOUCAULT, 2006, p. 268). Assim, essa crise citada anteriormente, em decorrência de movimentos de contracondutas71, não implica se desfazer do poder pastoral, mas o contrário: “como se beneficiar com um melhor pastorado, como ter um guia melhor, como se salvar mais seguramente, manter melhor a obediência, aproximar-se mais da verdade” (ibidem, p. 269). Nesse sentido, podemos pensar, na contemporaneidade, a intensificação do processo de condução de condutas, através de mídia, das áreas psi, da educação, etc. E são práticas72 como as propostas pelo poder pastoral que, articuladas a regimes de verdade, como, por exemplo, a Medicina Pediátrica e a Pedagogia, constituirão dispositivos de saber/poder sobre a infância, por exemplo, que permitirão definir o que verdadeiro falso para as crianças nas instituições nas quais elas estiverem inseridas. Nessa pesquisa, utilizo governamento e não governo, como explica Veiga-Neto (2002), por compreender que este último está tradicionalmente associado a Governo – “[...] essa instituição do Estado que centraliza ou toma para si a caução da ação de governar” (ibidem, p. 19, grifos do autor). Como explica Foucault, essa associação foi estabelecida, pois “as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado (1995, p. 247). Já governamento, seguindo a sugestão de Veiga-Neto (2002), é utilizado nessa Tese como ações direcionadas e calculadas para que se possa obter determinados comportamentos e condutas, “distribuídas microscopicamente pelo tecido social” (ibidem, p. 21). O 71 No Brasil, podemos pensar a Revolta da Vacina, no começo do século XX, como um movimento de contraconduta, que se opôs à racionalidade médica da época. 72 Entendo prática com um regime de racionalidade (FOUCAULT, 2007). 45 governamento implica cálculos e estratégias para produzirem no indivíduo posturas, escolhas e desejos que tenham determinadas finalidades; no dizer de Foucault (1995, p.244) “o exercício do poder consiste em „conduzir condutas‟ e em ordenar a probabilidade”. No caso do estudo a que me proponho, o conceito de governamento torna-se uma importante ferramenta teórica. Assim, entendo esse conceito como a intenção de conduzir as condutas do corpo, dos gestos, dos comportamentos, das vontades, dos hábitos de indivíduos ou de pequenos grupos humanos (VEIGA-NETO, 2003b). Como explica Mitchell Dean73 (1999), “conduzir significa levar, direcionar ou guiar e pode implicar uma espécie de cálculo quanto a como isto deva ser feito” (p. 10); além disso, governar implica “[...] moldar com qualquer grau de deliberação aspectos do nosso comportamento de acordo com um determinado conjunto de normas e para uma variedade de fins” (ibidem), por diferentes instituições e autoridades. Dessa forma, o autor argumenta que governar a conduta humana envolve concebê-la a partir de uma determinada racionalidade, que visa, então, moldá-la, controlá-la e regulá-la para determinados fins e efeitos. Ou, como define Foucault (1995, p. 244), de forma mais simples, “governar [...] é estruturar o eventual campo de ação dos outros”. Nesse sentido, podemos pensar, na esteira do pensamento de Thompson (2005), que tais manuais promovem, por intermédio das prescrições do livro A Vida do Bebê, o controle das condutas maternas e paternas, através do governamento à distância ao produzir pais e mães auto-regulados – cidadãos responsáveis e auto-reflexivos. Aqui encontramos uma das características mais marcantes da contemporaneidade: a proliferação de “inúmeras e polimorfas estratégias de controle da conduta espalhadas nos interstícios do social” (SILVA, 1998, p. 8). No caso deste estudo, o governamento das condutas maternas e paternas visa à produção de mães e pais responsáveis e de crianças com um bom desenvolvimento físico, cognitivo e psíquico. A partir disso, aponto a produtividade e a positividade dessa forma de poder que visa à promoção da saúde e da educação da criança, bem como à produção de sujeitos “mais inteligentes e equilibrados emocionalmente no futuro”. Os discursos, no caso do livro a ser analisado, colocam em andamento estratégias de saber e de poder que visam ao governamento de condutas maternas e paternas em relação às crianças. Como argumenta Fonseca (2000, p. 219) “como seria possível governar, sem conhecer aquilo a que se governa, aqueles a quem se governa e os meios pelos quais se governam os homens e as coisas?” Assim, o poder implica relações de força, que colocam 73 A tradução desse autor é de responsabilidade de Ricardo Uebel. 46 ações em movimento; ações essas legitimadas pelos saberes que as promovem, ou seja, a partir da justificativa do saber, o poder se torna “necessário e natural”. Nessa perspectiva o sujeito torna-se lugar de investimentos do poder e do saber e “aquilo que opera esse cruzamento nos sujeitos é o discurso” (VEIGA-NETO, 2003b, p. 157-158). O governamento, assim, pode ser levado a efeito por muitas pessoas e com fins específicos, para cada um dos grupos ao qual se dirige; “[...] a prática de governo são [...] práticas múltiplas, na medida em que muita gente pode governar” (FOUCAULT, 2003c, p. 280). Ademais, para se atingir cada um desses objetivos específicos, será preciso conhecer o grupo que se quer governar, articulando poder e saber. Assim, pode-se considerar os manuais como uma estratégia de governamento da maternidade em meio a outras, como os programas governamentais (por exemplo, o Programa Primeira Infância Melhor, da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul), a mídia impressa e televisiva (como já exposto no começo desta Tese), as campanhas de vacinação e de informação, etc. Nesse sentido, entendo que o manual analisado nesse estudo busca governar os corpos infantis através de estratégias de poder/saber que atuam sobre as práticas promovidas por mães e pais. A Vida do Bebê, ao descrever os sujeitos infantis, sejam meninas ou meninos, desta ou daquela forma, os está constituindo, produzindo e estabelecendo formas de governálos. Para Rose (1998, p. 37) o “governo depende, pois, de verdades que encarnam aquilo que deve ser governado, que o tornam calculável e praticável”. Nessa direção, o sujeito governado (no caso mães e pais) tem de ser visto como sujeito de suas escolhas; a ele deve ser dada a possibilidade de pensar que pode ser livre para fazêlas, pois, assim, os efeitos do poder se tornam invisíveis e mais produtivos, além de serem muito mais longos do que se fossem da ordem da violência74, a qual dificulta ao sujeito a possibilidade de resistência. Esta, nos adverte Foucault, só pode ocorrer em uma sociedade na qual os sujeitos são livres, sendo tais práticas de liberdade inseridas pela cultura. 74 De forma simples, poderíamos diferenciar poder de violência da seguinte maneira: o primeiro governa a ação alheia, através de estratégias de poder/saber; já o segundo governa o corpo do outro, não sendo este “livre” para escolher (compreendendo sujeitos livres como aqueles que têm diante de si um campo de possibilidades de ação). Nas palavras de Foucault “[...] aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta ou imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. [...] Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e se encontra resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que „o outro‟ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (1995, p. 243). 47 Por fim, algumas palavras acerca da governamentalidade. Para Rose (2001a) a governamentalidade referia-se “à emergência de racionalidades políticas ou mentalidades de governo, no qual o governo se torna uma questão de gerenciamento calculado das questões de cada um e de todos a fim de se alcançar certos objetivos desejáveis” (p. 41). De forma breve, podemos pensá-la como uma relação entre o governo de si e dos outros e as maneiras de governar. Por governamentalidade, Foucault (2003c, p. 291-292) compreende 3 coisas: 1 – conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 – a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania, disciplina, etc - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3 – o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. A partir da governamentalização do Estado, este passou a se interessar cada vez mais pelas condutas assumidas por cada um dos indivíduos pertencentes a uma população específica, como poderemos citar ao longo dos próximos capítulos. *** No sentido de problematizar as indagações aqui esboçadas “em que elas dão a pensar, em que elas dão a fazer, em que elas dão a dizer” (FISCHER, 2005, p. 139), é que busco, no próximo capítulo, articular a emergência histórica dos sujeitos que me parecem centrais à pesquisa empreendida, a saber, a mãe, a criança, a família e o especialista. No capítulo Tecnologias para o governamento das maternidades, procuro destacar a emergência do tipo de publicação aqui analisada e apresento um breve mapeamento dos temas presentes nas duas edições de A Vida do Bebê (1963 e 2002). Em Os discursos médicos na promoção de biopolíticas dirigidas às mães, caracterizo alguns aspectos da atuação profissional do especialista em questão – o pediatra De Lamare – e de sua maior publicação – A Vida do Bebê, além de expor fragmentos do discurso médico presente nas edições de 1963 e 2002. No quinto capítulo, Estratégias de governamento da maternidade e da paternidade, analiso como o especialista governa principalmente as mães com o objetivo de promover uma infância saudável e normal no manual citado. No capítulo Teleologias – os ideais de mãe, pai, família, 48 casamento, educação e infância almejados em A Vida do Bebê, discuto os modelos identitários de mãe, pai, família, casamento, educação da criança prescritos pelo livro, assim como as práticas promovidas para se ter um bebê com um desenvolvimento normal. E, por fim, em Apontamentos da pesquisa, ressalto as potencialidades e os achados da pesquisa. 49 PROBLEMATIZAÇÕES ACERCA DA INFÂNCIA, DA MATERNIDADE E DA FAMÍLIA A reflexão histórica não serve para repetir o que já sabemos. Serve para desafiar crenças e convicções, convidando-nos a olhar em direções inesperadas (RAMOS DO Ó, 2003, p. XXI). O objetivo deste capítulo não é refazer uma história da emergência da infância, da maternidade, da família moderna e dos especialistas em infância, mas, sim, trazer alguns recortes e olhares de uma possível articulação entre essas dimensões. Para isso, utilizo-me de alguns autores e autoras que pensam esses conceitos como formados através de um processo de constituição social, histórica e cultural. Interessa-me entender, nessa seção, que ordens de problematizações75 sobre a família e a infância justificam a escrita de um manual como A Vida do Bebê; que sistemas de julgamento orientam as definições acerca do que é pertinente tratar em relação à educação e à saúde da infância brasileira; por que manuais como o citado se dirigem principalmente às mães; por que a educação materna se torna importante na Modernidade; como a educação para a maternidade e a educação da infância tornaram-se uma preocupação, alvo de investimentos de um grupo de especialistas e, também, como a maternidade e a infância tornaram-se objetos a serem governados por um poder sobre a vida. Meu objetivo principal nesse capítulo é fazer uma história do presente, ou seja, partindo de uma problemática atual, avaliar as condições de emergência dessa. Tal processo lembra-me a seguinte recomendação escrita por Foucault (2003b, p. 170): [...] não tomar o ponto em que estamos como a conclusão de um progresso que se teria precisamente de reconstituir na história, quer dizer, ter a respeito de nós mesmos, de nosso presente, do que somos, do aqui e do hoje, esse ceticismo que impede que se suponha que é melhor, ou que é mais. O que não quer dizer que não se tente reconstituir processos generativos, mas sem afetá-los de uma positividade, de uma valorização. Como escreve Margareth Rago, devemos pensar a história “como „origem baixa‟, lugar de acontecimento, da emergência em sua singularidade, a partir da disputa de forças em conflito” (2002, p. 263). Nesse sentido, ressalto que procurarei realizar um exercício de desfamiliarização, buscando “[...] dessacralizar e desnaturalizar aquilo que nos chega do passado como sendo valores universais e eternos” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006), 75 Utilizo aqui a noção de problematização de Foucault descrito por Diaz (1993) como um trabalho que “[...] a partir do objeto de estudo eleito [...] trata de determinar como e por que, em um momento dado, estes objetos são problematizados através de uma determinada prática institucional e por meio de aparatos conceituais” (p. 20). 50 atentando para a contingência de comportamentos e discursos que interrelacionem maternidades, infâncias, famílias e especialistas. Assim, a infância76, nesta pesquisa, é vista como constituída por uma história que não é natural, que não pode ser tomada como uma “evolução” das práticas e sentimentos humanos para com os pequenos e que não começa como nos contos de fada – era uma vez. A infância é uma construção histórica, social e cultural e em processo de constituição permanente, o que admite transformações, retrocessos, rupturas e descontinuidades. Escolarização e disciplinarização dos corpos infantis Philippe Ariès (1981), a partir de suas pesquisas, expõe uma das mais importantes perspectivas sobre a construção social da infância pela Modernidade. Segundo esse autor, a sociedade tradicional reduzia a infância ao seu período mais frágil, pois, logo que a criança adquirisse uma certa independência dos adultos, era introduzida no mundo destes (através do vestuário, do trabalho e do lazer dos adultos), no qual a aprendizagem era realizada pela socialização77. É preciso destacar que essa infância descrita por Ariès, em nenhum momento histórico ou em nenhuma cultura/sociedade foi universal, o que nos levaria a falar sempre em infâncias presentes em um dado período histórico e em espaços sociais específicos. A partir do século X, um conjunto de mudanças na Europa dará novo sentido ao tema da infância, como, por exemplo, a revolução agrícola, o aumento gradativo da população e o surgimento das cidades. No entanto, é a partir da Reforma Religiosa (século XVI), através da criação dos colégios protestantes e católicos, principalmente os primeiros, que ocorre a moralização dos jogos, danças, festas, hábitos e linguagem, além da vigilância constante sobre a sexualidade das crianças. Assim, entre os séculos XVI e XVIII, inventa-se a infância e sua essência inocente, que deveria ser protegida do mundo adulto. Tal essência inocente atribuída ao sujeito infantil também estaria ligada à noção religiosa do pecado, cometido pelos adultos, daí decorrendo a necessidade de separar as crianças daqueles. Assim, inicialmente o adulto representava um possível corruptor da infância, mas também representava aquele que deveria educar e disciplinar as crianças, sendo responsáveis pelas mesmas. Zohar Shavit (2003, p. 26) 76 Talvez seja relevante diferenciar os termos criança e infância. Tomo a palavra criança para designar o sujeito localizado no período da vida do ser humano que compreende do nascimento à puberdade, e infância como o significado social atribuído a esse período da vida humana. 77 Sobre Ariès, Colin Heywood (2004) questiona algumas fontes utilizadas por aquele autor para comprovar a tese da inexistência da infância (no sentido que atribuímos a ela hoje) na Idade Média. Para Heywood, a iconografia e a literatura não são bons materiais para analisar a temática da infância, pois a primeira não teria obrigação em representar a “realidade” daquele momento histórico e os escritores medievais escreviam, principalmente, sobre reis, batalhas e política, ou seja, não era só a infância que não encontrava espaço na literatura, mas tantos outros temas que nos são caros hoje. 51 explica que “as crianças eram agora encaradas como criaturas delicadas que tinham de ser reformadas e salvaguardadas; e a maneira de as reformar era através da educação e através de livros produzidos primariamente como veículos pedagógicos”. Elias (1994), ao analisar o tratado de Erasmo de Rotterdam Da civilidade em Crianças (publicado em 1530), afirma que esse tinha, entre outras funções, cultivar sentimentos de vergonha. Um exemplo disso é a referência à presença permanente de anjos que vigiavam as crianças – argumento usado para justificar o controle de impulsos ao qual a criança estava acostumada. Destaca-se nesse tratado a escassez de argumentos de natureza médica e de higiene, em favor de critérios em nome da polidez e da boa educação. Percebe-se também a descrição detalhada de funções naturais, o que denota o quão cotidianas eram essas questões, assim como falar nelas ainda não se tinha se tornado embaraçoso. Mariano Narodowski (199478), escrevendo sobre a constituição da infância e da pedagogia na Modernidade, afirma que “[...] criança não se nasce mais que biologicamente; ser criança se aprende e, sobretudo, se aprende na escola” (p. 59). Assim, será na escola, mas também em outras instituições de sequestro, como denomina Foucault, que serão produzidos os saberes/poderes sobre os sujeitos infantis. Para Foucault (2005), as instituições de sequestro têm como objetivo “fazer do tempo e do corpo dos homens, da vida dos homens, algo que seja força produtiva” (p. 122). Nesse sentido, tal objetivo dar-se-á pelo controle temporal da vida dos indivíduos, pela vigilância de seus corpos e pelo exercício de um poder polimorfo que assume um caráter econômico, político, judiciário e epistemológico. Transpondo para a Pedagogia as relações propostas por Foucault, podemos entender que a dimensão epistemológica produzirá: 1) um saber pedagógico constituído através da própria prática de poder exercida sobre o aluno, ou seja, um saber extraído dos e produzido pelos próprios alunos, a partir de seu próprio comportamento, e 2) um saber sobre os indivíduos que nasce da observação dos mesmos, fruto da vigilância e da classificação. Dessa forma, Foucault conclui: “é assim que os indivíduos sobre os quais se exerce o poder ou são aquilo a partir de que se vai extrair o saber que eles próprios formaram e que será retranscrito e acumulado segundo novas normas, ou são objeto de um saber que permitirá também novas formas de controle” (2005, p. 121-122). Para Narodowski (1994, p. 60), “[...] há vários séculos a pedagogia moderna exerce um poder capaz de construir saberes acerca da infância e promover na infância determinados saberes”. Na mesma perspectiva, Bujes (2005) explica que era necessário infantilizar a infância para que determinados saberes e poderes agissem 78 Todas as traduções desse texto de Mariano Narodowski são de minha autoria, revisadas pela orientadora. 52 sobre ela. O sentimento de infância (o significado social atribuído a ela) possibilitou uma forma de disciplinar, normalizar, regular, aprisionar o sujeito infantil através de tratados de civilidade (ou revistas e livros na atualidade) e da escolarização tornada cada vez mais precoce. Retornando à formação da escola e da pedagogia moderna, apesar da expansão que aquela sofrerá a partir do século XVI na Europa, grande parcela da população continuava a ser educada como na Idade Média: ou através do envio de crianças à casa de outras pessoas, a fim de que aprendessem algum ofício79, ou trabalhavam realizando pequenas tarefas nas terras e oficinas da própria família. Também faz-se necessário registrar que o trabalho para as crianças pobres e trabalhadoras significava não só a aprendizagem de um ofício, mas também da moralidade, tendo em vista que até o século XVIII acreditava-se na natureza má e pervertida das crianças. Da mesma forma, a ênfase na inocência das crianças não terá muito sentido para essas crianças, que ingressarão cedo no que se chama hoje de mundo adulto. Quando argumento que Ariès apresenta uma perspectiva de análise da constituição da infância na Modernidade, isso se deve ao fato que o autor referido se detém, principalmente, na análise da infância da burguesia e da aristocracia da Europa Ocidental, entre os séculos XV e XVIII. Além disso, Kuhlman Júnior (2001) ressalta que se deve levar em consideração que também o sentimento de infância possa ter sido vivido pelas classes populares, seja na Europa, seja no Brasil, embora haja poucas referências a isso. Algumas dessas outras infâncias estão referidas, narradas e mencionadas nos livros organizados por Marcos Freitas (1997) e por Mary Del Priore (1999a), nos quais são narradas e discutidas as infâncias das crianças indígenas, negras e brancas, provenientes da aristocracia, das camadas pobres e escravas, entre os séculos XVI e XX, no Brasil. A partir de tais textos é interessante destacar algumas semelhanças e diferenças entre tais infâncias. No Brasil, as crianças brancas e negras conviviam entre si até os sete anos, quando as primeiras iam estudar e as segundas, trabalhar como escravas nas fazendas de canas-de-açúcar, café e mineração. Após a abolição da escravatura no Brasil (final do século XIX), as crianças pobres seriam absorvidas pelo processo de industrialização crescente no país. Apesar das desigualdades sociais e econômicas entre as infâncias brasileiras, havia um investimento religioso (católico) sobre todas elas, sendo que todas eram batizadas logo que nasciam. Além disso, as crianças brancas da 79 No Brasil, até o século XIX, as crianças brancas pobres também eram enviadas à casa de outros, a fim de que aprendessem algum ofício, enquanto que as crianças da elite recebiam as primeiras instruções em casa, para, posteriormente, frequentarem os colégios, e alguns cursavam a universidade na Europa (COSTA, 2004). 53 aristocracia eram narradas por viajantes estrangeiros que estiveram no século XIX no país, como mimadas e indisciplinadas. Talvez essas características possam ser explicadas porque a educação e os cuidados dessas crianças eram entregues às escravas negras e por essas mesmas crianças serem donas dessas mesmas escravas adultas, o que retirava a autoridade dessas mulheres (DEL PRIORE, 1999b). É interessante, para a análise aqui proposta, a compreensão do termo infância (enfant), que, segundo Ariès, está vinculado, assim como outras expressões utilizadas na época, às relações feudais de dependência. Enfant designava os homens de baixa condição, cuja submissão aos outros continuava a ser total. Essa forma utilizada no francês provavelmente está relacionada a infans (latim), que significa “sem fala”, relacionando dependência ao ato de não falar. Segundo Ana Camargo e Cláudia Ribeiro (1999, p. 17), “a noção de infância carrega consigo a ideia daquele que não fala e, por não falar, a criança ocupa a terceira pessoa nos discursos que dela falam”. Dessa forma, a infância é vista como período de dependência, como período a ser tutelado por outros que não estejam nessa situação, ou seja, os adultos. A infância se torna exterioridade: só se pode falar dela quem já passou por ela. A partir disso, poderíamos olhar para o livro analisado nessa pesquisa e nos perguntarmos quais são os discursos que podem e são legitimados para falar sobre a infância. Tais questões serão objeto de análise dos próximos capítulos desta Tese. Vimos, assim, como, a partir da Modernidade, em determinados grupos sociais, inventa-se um sentimento de infância que particulariza essa faixa etária80 e coloca a criança no centro das atenções da família. A centralidade da criança pode ser verificada, no caso dessa pesquisa, no livro objeto de estudo, que se constitui como veículo de produção de sentidos a respeito da infância, da maternidade, da paternidade e do próprio especialista. A partir do Iluminismo, a infância (de estratos sociais específicos) e sua “inocência natural”81 deveriam ser protegidas e separadas do mundo adulto, para que se produzissem sujeitos de acordo com o projeto pedagógico da Modernidade. Tal projeto tinha na escola o local da produção (aprisionamento) de sujeitos a serem emancipados pela razão, sujeito esse centro e agente dos processos sociais. Como expõe Júlia Varela (2002, p. 87), 80 É importante destacar que a idade não era uma preocupação na Idade Média. Narodowski (2001) descreve a situação das escolas na época de Comenius (século XVII), na qual as classes nas escolas não eram divididas por idade, coexistindo crianças, jovens e até adultos. 81 Também considero importante destacar a idealização da infância empreendida pelos românticos, principalmente no século XIX, que viam na criança um ser abençoado por Deus, “[...] e a infância como uma fonte de inspiração que duraria a vida toda” (HEYWOOD, 2004, p. 11), pois elas seriam dotadas de maior sabedoria, sensibilidade estética e valores morais. 54 em função de uma nova concepção de infância – que então começava a ser aceita especialmente por alguns grupos sociais ligados à camada média – vai-se produzir uma separação cada vez mais marcada entre o mundo dos adultos e o das crianças, e vai surgir a necessidade de delinear, de pôr em ação, novas formas específicas de educação. Assim, a Modernidade inventa uma criança ideal que, na idade “apropriada”82 (naturalizada, principalmente, pelo discurso da Psicologia e da Biologia), deve ser chamada à razão, sair das trevas, do pré-logismo em que se encontra (sair da caverna de Platão), para percorrer as diversas etapas do desenvolvimento humano e chegar à “luz” do conhecimento “descoberto” e legitimado pela ciência, pois - como expõe Narodowski (1994, p. 39) a respeito da pedagogia de Rousseau83 - “a criança é um ser inacabado que possui a capacidade inata de alcançar conquistas superiores, de „tornar-se‟ como adulto”, atingindo, assim, autonomia moral e intelectual. Nesse sentido, explica Spigel (apud BUJES, 2002a, p. 13): A criança é um construto cultural, uma imagem gratificante de que os adultos necessitam para sustentar suas próprias identidades. A infância constitui a diferença a partir da qual os adultos definem a si mesmos. É vista como um tempo de inocência, um tempo que se refere a um mundo de fantasias, no qual as realidades dolorosas e as coerções sociais da cultura adulta não mais existem. A infância tem menos a ver com as experiências vividas pelas crianças (porque também elas estão sujeitas às ameaças de nosso mundo social) do que com as crenças dos adultos. O Iluminismo foi o movimento filosófico que, entre outros elementos, assumiu a infância como alvo para constituição do sujeito moderno. O movimento Iluminista emergiu no século XVIII e inventou a Modernidade através de grandes narrativas (metanarrativas) que explicam o mundo e são, em grande parte, legitimadas por um caráter científico. Tais saberes 82 Dois exemplos dessa passagem do mundo infantil para o adulto: o primeiro foi dado por Ariès (1981), através da análise da infância de Luís XIII (século XVII), em que aquele declara ser a idade de sete anos o fim da infância. Ao chegar nessa idade, é exigido do príncipe que abandone seus brinquedos e ingresse no mundo adulto (nesse caso, principalmente, o mundo militar e político). O mesmo processo ocorre com D. Pedro II, que, aos oito anos, teve de largar “[...] os jogos infantis entregando-se totalmente às atividades do espírito; [pois] com oito anos já era um homenzinho” (MAUAD, 1999, p. 146). De acordo com a pesquisa empreendida por Manuel Pinto (1997) a idade-referência dos sete anos tem a ver com o 4º Concílio de Latrão (de 1215), que considerava a criança dessa idade com “algum uso da razão” e estava autorizada à confissão e à comunhão. Com relação às idades, Narodowski relembra a pesquisa de Ariès, quando esse assinala o quanto a idade é uma preocupação moderna, pois a Modernidade inventa “[...] a necessidade da medição cronológica de toda a vida do ser humano” (NARODOWSKI, 1994, p. 41). Bujes (2002a, p. 23) observa “[...] que, somente a partir do século XVIII, o termo „infância‟ deixou de referir-se apenas às crianças muito pequenas que ainda não falavam e passou a englobar as crianças maiores, estendendo-se do nascimento à puberdade”. 83 Ressalto a importância de Rousseau (1712-1778) para a história da infância pela consolidação do conceito moderno de infância, pois, para esse, a criança possui uma natureza essencialmente boa, pura, frágil, desprotegida, imatura e maleável e o que estava corrompido era a sociedade. Com Rousseau inicia-se a reflexão sobre os castigos, que eram considerados naturais e recomendados, inclusive na Bíblia. “Rousseau concentrou todos os seus esforços em substituir os castigos arbitrários impostos por pais e educadores pelo que ele chama de „castigos naturais‟ e que derivam da própria natureza das coisas” (HERNÁNDEZ, 1998, p. 100), ou seja, a pena ou castigo seria consequência natural da falta cometida. 55 são “verdades” tidas como universais, transcendentais e próprias da natureza, então, incontestáveis. Esse movimento tem como característica a crença no uso da razão para se chegar à verdade, à objetividade, à autonomia, ao progresso, considerando-se o sujeito o agente do próprio destino, ao mesmo tempo em que se cultiva um profundo otimismo em relação ao futuro. Tais objetivos deveriam ser atingidos através da educação84. Dentre seus principais autores encontram-se Kant, Bacon, Hobbes, Descartes, Locke85, Rousseau, dentre outros. Nesse sentido, o sujeito moderno apresenta-se como “maduro e adulto, independente e autônomo, livre e auto-suficiente, e, acima de tudo, racional, um indivíduo cujas outras qualidades servem todas à razão” (DAHLBERG, MOSS, PENCE, 2003, p. 34). Os iluministas acreditavam que a escolarização “reduziria a criminalidade e a desordem, tornaria os trabalhadores mais produtivos e, acima de tudo, introduziria valores morais na „massa ignara‟” (HEYWOOD, 2004, p. 204). Para atingir tais metas, o Iluminismo necessitava, entre outras coisas, de uma matéria prima, um ser incompleto que viesse a ser produzido - a criança. Para produzi-la, inventou-se a pedagogia, uma sedimentando a outra, ou, nas palavras de Narodowski (1994, p. 23) “a infância representa o ponto de partida e o ponto de chegada da pedagogia”. No caso específico da pedagogia, Narodowski (1994, p. 198) explica: Sobre a infância, a pedagogia erige vários elementos que irão delimitá-la efetivamente como corpo e buscará ao longo destes séculos inventar elementos que permitam estabelecer padrões de normalidade no que diz respeito tanto à infância em geral quanto a seu agir no campo escolar. É claro que, ao longo destes três ou quatro séculos, a pedagogia soube dar respostas diversas ao problema da infância, mas, é sem dúvida, em meados do século XVIII, quando é capaz de fixá-la de acordo com seus próprios cânones. A pedagogia pedagogiza a infância na medida em que já não vai ser possível pensá-la sem recorrer a categorias e conceitos pedagógicos. A infância é vista como um lugar que um “outro” precisava ocupar para ser este novo sujeito, o sujeito da Modernidade, do futuro. Nessa nova visão de infância, a criança não é mais um adulto pequeno como na Idade Média. Dessa forma, “a partir do século XVIII, [...] a 84 Educação, conforme exposto pelo Prof. Alfredo Veiga-Neto (em palestra realizada por ocasião do I Seminário Brasileiro de Estudos Culturais em Educação, em julho de 2004, em Canoas, na Universidade Luterana do Brasil) pode ser compreendida como práticas que visam conduzir, colocar o sujeito na cultura onde este se encontra, através de coerções e constrangimentos. Em resumo, “educar é colonizar”. 85 John Locke (1632-1704) e a teoria por ele elaborada – a da tábula rasa – também marcaram durante muito tempo a forma de pensar a educação das crianças. Para este, o recém-nascido era uma espécie de superfície sobre a qual os adultos poderiam escrever aquilo que julgassem apropriado. Conforme explicita Pinto (1997, p. 41) “para Locke, a preocupação deveria orientar-se no sentido de levar a criança a deixar de ser o que é, para se transformar num adulto”. Um contra-exemplo de tal concepção foram as crianças “selvagens” encontradas nas florestas da Europa, entre os séculos XVII e XIX, principalmente o caso do menino de Aveyron. Muitas dessas crianças sequer conseguiram adquirir a língua falada. 56 infância passou a ser problematizada e a criança considerada como a „semente do amanhã‟, necessitando por isso mesmo ser cuidada, vigiada, controlada” (CAMARGO e RIBEIRO, 1999, p. 28). Nas palavras de Narodowski (1994, p. 31) “agora a criança começa a ser percebida como um ser inacabado, carente e portanto individualizado, produto de um recorte que reconhece nela necessidade de resguardo e proteção”. As crianças aqui são vistas como diferentes dos adultos, “[...] mas são estes que a(s) descrevem e interpretam seus desejos, suas necessidades, suas possibilidades intelectuais, seus limites” (BUJES, 2002a, p.38), uma vez que estas são constituídas como seres em falta, dentro de um vir-a-ser. Nesse sentido, o que o Iluminismo via como um fenômeno natural e biológico nada mais é que o significado social atribuído por um determinado contexto histórico e cultural à fase inicial da vida humana. Dessa forma, haverá tantas infâncias quanto os discursos que as nomeiam e descrevem. Ressalto, como o observado por Pinto (1997), que, embora não houvesse um sentimento de infância como o reconhecemos hoje, isto não significa que as crianças na Idade Média fossem tratadas com desprezo ou fossem negligenciadas: “uma coisa é a existência da ideia de infância e outra a de afeição pelas crianças” (p. 35). Se em alguns momentos podemos inferir pela leitura de Ariès que os pais não amariam seus filhos, por que os manteriam então? Para Heywood (2004), ter filhos poderia “selar o elo de amor entre um homem e uma mulher, garantir a sucessão familiar, proporcionar companhia agradável e trazer a perspectiva de segurança durante a idade avançada e a enfermidade” (p. 66). O mesmo autor explica que, talvez, as concepções sobre a infância na sociedade tradicional fossem tão diferentes da nossa que nem a reconhecêssemos nos dias atuais. O processo de racionalização empreendido principalmente pelas escolas, como instituição, trazia, de forma associada, a proposta de ordem, disciplinarização e moralização da infância através da mudança de hábitos e comportamentos que deveriam diferenciar a criança do adulto, separar o ensino para o povo do ensino para a burguesia e a aristocracia, distinguir a escolarização feminina86 da masculina (lembrando que aquela se inicia apenas entre os séculos XVIII e XIX, na Europa) e, por fim, diferenciar a escolarização para crianças brancas daquelas para crianças negras e de outras etnias. A partir de então, um aparato “científico” buscará olhar este corpo infantil para estudá-lo, delimitá-lo, analisá-lo, controlálo, objetivá-lo, considerando que, segundo Neil Postman (1999) relembra, o conceito de infância fez surgir uma série de especialistas e a infância “[...] passa a ser um campo 86 Segundo Michelle Perrot (1998), “o protestantismo era muito mais favorável à instrução das moças do que o catolicismo, que desconfiava da imaginação delas” (p. 102). Assim, em países protestantes a alfabetização feminina começa já no início do século XVIII. 57 privilegiado de intervenção social, de controle e regulação, de exercício de poder e de saber” (BUJES, 2002a, p. 42). Camargo e Ribeiro (1999) argumentam que “tais investigações produziram conhecimentos na área da psicologia, da pedagogia, da biologia, da pediatria que foram apreendidos e reproduzidos em instituições como a escola e a família” (p. 21). Tais discursos nos impuseram determinados óculos/lentes ao olharmos para infância, nos impedindo de vê-la de outras formas, naturalizando certas invenções e convenções. Narodowski (1994) explica que a infância parece ter gerado um amplo leque de discursos que a contextualizam axiologicamente, a perfilam eticamente, a explicam cientificamente, a predizem de acordo com esses cânones. A infância é a chave óbvia da existência da psicologia da criança e da pediatria: um recorte específico do ciclo vital humano que justifica a elaboração de um semnúmero de premissas e afirmações igualmente específicas, particulares dessa etapa da vida do homem, exclusivas da infância (p. 24). Cabe sublinhar que a pedagogia aqui citada é a pedagogia moderna, de cunho Iluminista, diferente de uma possível pedagogia anterior ao século XVI, uma vez que aquela se constitui como um saber experto, como um regime de verdade, delimitando um campo de saberes e de conhecimento que lhe são próprios, produzindo, assim, sujeitos que também lhe são próprios. Ancorado nessa perspectiva, Narodowski (1994) destaca a constituição paralela destas três esferas: infância, família e escola. Neste contexto, a infância emerge como condição de possibilidade da Modernidade, pois representa a dignificação do novo “[...] num movimento infinito em direção ao futuro que seria sempre melhor, mais perfeito do que o passado” (COSTA, 2002, p. 146). Nesse sentido, não seria possível a elaboração de um conceito de infância na sociedade tradicional ocidental, pois, para esses momentos históricos (pré-modernidade), o nascimento não é visto como a irrupção do novo, como transformação, mas sim, como repetição dos ciclos de vida, assim como ocorre na natureza (ARIÈS, 1981). Segundo Krishan Kumar (1997, p. 80), no mundo antigo e medieval o tempo era visto no espelho da mudança cíclica das estações, na alternância interminável entre dia e noite, ou nos ciclos reprodutivos de nascimento, morte e novo nascimento. Nessa perspectiva, o tempo humano era regular e repetitivo. Compartilhava do caráter cíclico de toda matéria criada. Havia mudança, mas não novidade. 58 A partir dessa nova configuração da infância, passa-se do “infanticídio tolerado”87 da sociedade tradicional, ou seja, de práticas culturais como abandono88, sufocamento, afogamento, estrangulamento, espancamento, além das mortes ocasionadas pelo uso de faixas, nos quais os corpos infantis eram imobilizados89, para um investimento familiar sobre as filhas e os filhos, em relação aos quais não serão admitidas perdas, pois cada criança torna-se única e sua perda é insubstituível. Heywood (2004) enfatiza que não devemos pensar que os pais não sentissem a morte dos seus filhos ou a aceitavam tranquilamente antes da Modernidade e, sim, que a morte era algo bem mais comum devido às altas taxas de mortalidade infantil da época, além de estar associado a uma resignação religiosa que às vezes os impedia de expressar plenamente as emoções. Ana Oliveira (2007) no livro A criança na sociedade medieval portuguesa referenda já na Idade Média tratados médicos de origem hispano-árabes que recomendavam que a criança deveria ser “bem tratada, protegida e fortificada” para resistir aos primeiros tempos de vida frágil do bebê. A autora ressalta que, embora uma em cada três crianças morresse nos primeiros anos de vida, isso não significava que pais, mães, parentes e vizinhos não dedicassem a ela grandes afeições, contrariando em parte a tese de Ariès. No Brasil, o sentimento de infância, segundo Jurandir Costa (2004), era rarefeito em suas manifestações até o começo do século XIX, quando a medicina dará novo vigor ao tema da infância e da família. Promovendo biopolíticas através do governamento da maternidade Ao lado do sentimento de infância referido, constrói-se a noção de família, da privatização da vida familiar, da especialização dos cômodos da casa, da higienização e da instrução da família “[...] sobre seus deveres e suas responsabilidades, e [para] aconselhá-la em sua conduta com relação às crianças” (ARIÈS, 1981, p. 255). Elias (1994) com relação a essa temática escreve que 87 Segundo José Gondra e Inara Garcia (2004), na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no século XIX, foram apresentadas 16 teses que abordavam a questão do infanticídio, o que denota a importância do tema na época. 88 Aminatta Forna (1999) explica que o abandono era um dos métodos de planejamento familiar. O crescente número de crianças abandonadas propiciou o surgimento de instituições para os enjeitados, principalmente a partir do século XVIII, como, por exemplo, a roda dos expostos. 89 Em A Vida do Bebê De Lamare pronuncia-se, ainda na edição publicada em 1963, contra as faixas e roupas que tinham como objetivo imobilizar o bebê. Segundo Jacques Gélis (1997) as faixas se tornaram símbolo do mundo de coibições anterior aos preceitos médicos de higiene, pois limitavam os movimentos das crianças. 59 o controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por elementos da alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo aos seus socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa, compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior, governante, é que a família vem a ser a única – ou, para ser mais exata, a principal e dominante – instituição com a função de instilar controle de impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem socialmente requeridas dos impulsos e das emoções (p. 142). Sobre o quarto – esta peça específica da casa - Elias (1994) escreve que este assumiu funções, com o passar do tempo, que na Idade Média não possuía. Na Idade Média, o quarto era coletivo, abrigava homens, mulheres, hóspedes, crianças, etc. Depois passa a ser um espaço íntimo e privado que abriga funções corporais que não são sociais, além de ser reduto da família nuclear. Ademais, tornou-se cada vez mais comum a ideia de que cada pessoa tivesse o seu quarto e a sua cama e “desde cedo as crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e experiências que isto traz” (ibidem, p. 170). Um detalhe interessante é descrito por Perrot ao falar sobre a disseminação do uso de cortinas pela burguesia no século XIX: “[...] desejo de uma burguesia que se fecha na família e seus segredos, mas que se espalha por uma sociedade permeada pelos valores privados” (1998, p. 49). Para Elias (ibidem) o processo civilizatório produziu uma lenta, mas progressiva eliminação dos impulsos da vida pública da sociedade, tornando-se cada vez mais necessário o conhecimento de códigos de comportamento nos diferentes espaços sociais ocupados. E esta limitação, como todas as demais, é feita cumprir cada vez menos pela força física direta. Na verdade, é cultivada desde tenra idade no indivíduo, como autocontrole habitual, pela estrutura da vida social, pela pressão das instituições em geral, e por certos órgãos executivos da sociedade (acima de tudo, pela família em particular) (ELIAS, 1994, p. 186-187). No século XVIII, como escreve Donzelot (2001), “floresce” uma literatura sobre a “conservação das crianças”90, questionando os asilos para crianças abandonadas, as amas de leite e a má educação das crianças ricas. Para tais livros, os serviçais seriam a “causa” de todos esses males, isto é, as pessoas da classe trabalhadora são tidas como ignorantes, conduzindo mal a educação das crianças da elite e, por não terem condições econômicas 90 No Brasil tal literatura floresce no final do século XIX, com o jornal quinzenal A Mãe de Família, publicado entre 1880 e 1881, e o livro Arte de Formar Homens de Bem, de 1880. Já em Portugal, no final do século XVIII começa a publicação dos primeiros tratados de puericultura, como aponta António Gomes Ferreira (2000). 60 favoráveis, muitas mulheres dessa classe acabavam se tornando amas de leite91 e abandonavam os próprios filhos. A consequência disso seria o empobrecimento da nação e o enfraquecimento da elite. Será contra estes que se erigirá o pensamento social e médico da época, o que resulta em duas estratégias: a difusão da medicina doméstica, “ou seja, um conjunto de conhecimentos e de técnicas que devem permitir às classes burguesas tirar seus filhos da influência negativa dos serviçais e colocar esses serviçais sob a vigilância dos pais” (ibidem, p. 22) [como poderemos ver nas críticas lançadas por De Lamare contra conselhos e práticas sugeridas por outras pessoas que não o pediatra, principalmente na edição publicada em 1963] e a diminuição do custo social resultante do nascimento de crianças pobres. Com o crescente interesse do Estado pelas condições de saúde da população, os médicos passaram “[...] a sofrer transformações – estes passaram a ser responsáveis não só pelo tratamento dos indivíduos doentes como também pelas condições de saúde de toda a população” (MARTINS, 2004, p. 80). Assim, foi criada uma série de regulamentações sobre as condições de vida da população, constituindo um novo campo de saber que dominou o século XIX: a higiene. Conforme Donzelot (2001), os tratados médicos do século XVIII traziam em suas páginas descrições das doutrinas médicas e conselhos educativos. Já os do século XIX terão um tom imperativo (como poderá ser visualizado em vários trechos de A Vida do Bebê nos capítulos subsequentes). Ana Paula Martins (2004) explica que a transformação do médico em conselheiro familiar com autoridade para expressar suas ideias e prescrever condutas se deu através da aliança estabelecida com a mulher, personagem central tanto para a entrada de ideias médicas e científicas no meio familiar quanto para a construção da reputação e da fama dos médicos (p. 140). Nesses tratados a mãe é transformada em guardiã (ou fiscal, como denominada por De Lamare, na edição publicada em 1963), além de serem estabelecidas neles, como enfatiza Donzelot (2001), nítidas diferenças entre médico e mãe: o primeiro prescreve e a segunda executa. Como escreve Kuhlman Júnior (2001), no Brasil, as mães burguesas assumirão a tarefa de impor normas higiênicas às mães de classe trabalhadora, através de institutos, como, por exemplo, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância (IPAI), como será citado posteriormente. 91 Segundo Yvonne Knibiehler (1996), o costume de utilizar amas de leite era mais difundido nos países católicos do que nos países protestantes, por estes terem outra visão da maternidade e da família, que exaltava virtudes como amor e aleitamento materno. 61 Já para as famílias de classe trabalhadora, não haverá livros ou médicos para intervir em suas práticas; sobre elas o Estado estabelecerá vigilância direta através do controle de condutas (como abandono, relacionamentos ilegítimos, vagabundagem, etc). Um exemplo disso, segundo Kuhlmann Júnior (2001), são as instituições de educação infantil92 que foram disseminadas, inicialmente, na Europa e logo após no restante do Ocidente, a partir da primeira metade do século XIX para atender às mulheres trabalhadoras 93 (para que essas não abandonassem seus bebês) devido à crescente industrialização e urbanização e para acompanhar o processo de expansão do ensino elementar. Já no Brasil, as instituições de educação infantil chegam na década de 1870. No entanto, a educação infantil, no caso o “jardim de infância” também foi frequentada por crianças das classes média e alta por serem apontadas como “[...] um lugar propício ao seu desenvolvimento [da criança] e ao cultivo de bons hábitos” (idem, 2000, p. 472), além de serem, descritas como instituições “[...] modernas e científicas, como modelos de civilização” (idem, 2001, p. 74, grifos do autor). Instituições como as creches fazem parte de um grupo de ações que visam proteger, cuidar e moralizar a infância (sua saúde, sua assistência e sua educação e instrução). Assim, o casamento passa a ser incentivado, principalmente, nas classes populares, pois pais casados teriam mais chance de protegerem e educarem seus filhos sem assistência do Estado. Nessa lógica, a mulher aliar-se-ia ao médico, cuidando melhor das crianças e controlando o marido, além de constituir uma casa higiênica. Essa casa higiênica deve abrigar apenas pai, mãe e filhos, em espaços separados para preservar a intimidade do casal, mas possibilitar a vigilância sobre as crianças. Para Donzelot (2001), a habitação que abriga a família deve ser higiênica e responsável pela ordem pública. Nessa organização, a mãe, além de responsável pela casa, marido e crianças, também será a maior culpada pelo fracasso da família higiênica. É nesse período - século XIX – que a escola tomará novo impulso, pois filantropos e médicos higienistas acreditam que é através dela que se poderá tanto investir melhor sobre a infância (inculcando-lhes novos valores e disciplinando os seus corpos) quanto retirar da família a autoridade arbitrária que impõe às crianças (como, por exemplo, abusos sexuais, exploração do trabalho infantil). António Ferreira (2000), em sua pesquisa sobre a história das crianças portuguesas no Antigo Regime, na qual analisa manuais médico-sanitários que 92 É importante chamar atenção para a clássica divisão na educação infantil presente até a segunda metade do século XX entre a creche (instituição de cunho mais assistencialista para crianças de 0 a 3 anos de idade) e o jardim-de-infância (instituição “educativa” para crianças de 4 a 6 anos). 93 Conforme enfatiza Barbosa (2006) as creches eram instituições assistencialistas voltadas às mães trabalhadoras e não para as crianças. 62 tratam sobre os cuidados prestados às parturientes e aos recém-nascidos, aponta que, desde o final do século XVIII, os médicos, de acordo com as tendências educativas da época, tentavam “impor alguma disciplina desde os primeiros tempos da infância, querendo que os meninos se habituassem a regras precisas” (p. 192), para que seus corpos se tornassem mais dóceis. Para os higienistas, as altas taxas de mortalidade infantil, ainda no século XIX no Brasil, eram decorrência da imprudência e desconhecimento no cuidado infantil, principalmente das mães. Para eles, somente alterando o modelo patriarcal de família, no qual o pai era o centro da família, é que se poderia diminuir o alto índice de mortalidade infantil. “Nesta nova família, a antiga omissão para com as crianças daria lugar a uma participação mais justa e equitativa entre homens e mulheres” (COSTA, 2004, p. 169-170). Neste caso, o pai propiciaria condições materiais favoráveis e a mãe, a educação e os cuidados apropriados para o bom desenvolvimento da criança. Não obstante, para isso, seria necessário instruir as mães. O interesse do Estado sobre os corpos grávidos94 dar-se-á pelos efeitos destes sobre as condições gerais da população. Nessa articulação, os filhos deixam de ser propriedade dos pais e passam a ser do Estado, sendo os pais apenas os tutores. Assim, proteger a infância passa a significar proteger a sociedade, isto é, investir na educação e na saúde da criança é produzir adultos mais aptos ao trabalho e de acordo com a ordem social vigente. Nesse contexto surge a noção de que a família pode prejudicar ou auxiliar o desenvolvimento da criança. Assim, os pais deveriam incutir “bons hábitos”95 nos filhos desde cedo, como uma planta que, bem regada, dá bons frutos96 (jargão ainda utilizado na educação infantil ou, como muitos ainda denominam, “jardim-de-infância”). Também pode-se perceber a proliferação das ideias de John Locke, conforme as quais a criança deve ser moldada, disciplinada e domada desde cedo. No Brasil, os colégios e internatos assumirão em grande parte a tarefa de disciplinar os corpos infantis, através da organização do tempo e do espaço institucional, além do controle da sexualidade infantil. Para Foucault (2001), foi a campanha de controle e vigilância da sexualidade infantil (campanha antimasturbatória) promovida, principalmente, no final do século XVIII e início do século XIX, que serviu de condição de possibilidade para a organização familiar do tipo nuclear, restritiva a pais, mães, filhos e filhas, pois somente uma família próxima e densa em 94 Como relembra Oliveira (2007), até o final da Idade Média era rara a presença de um médico à cabeceira de uma parturiente, pois este era um assunto de mulheres por ser um acontecimento privado e doméstico. 95 Esse preceito será retomado posteriormente. 96 Tal representação foi disseminada a partir das ideias de Rousseau. 63 torno do corpo infantil poderia assegurar tal controle, assim como garantir a vida desse pequeno ser. Além disso, essa vigilância feita pelos pais se fundamenta agora numa racionalidade médica, de forma semelhante ao livro aqui analisado, que privilegia tal racionalidade para guiar pais e mães sobre como lidar com as suas filhas e os seus filhos. Para os médicos da época, o onanismo transformava as crianças em adultos fracos e doentes, o que resultava em uma nação, consequentemente, débil. A sexualidade da criança passa a ser governada pelo médico através da família (não mais por motivos religiosos). Também é importante registrar que, anteriormente ao século XVIII, é impensável a intervenção do Estado nos relacionamentos entre pais e filhos. No século XIX, na Europa, esta intervenção será mais efetiva, principalmente através de uma vigilância sobre as famílias de classe trabalhadora, visando à proteção da infância e a melhoria das condições de higiene, pois tal classe era vista como incapaz de cuidar e educar adequadamente das crianças, retratando uma visão da classe burguesa de como era correto cuidar e educar a infância. Ademais, ao impor tal racionalidade, os reformadores burgueses acabavam por submeter a sabedoria popular tradicional. Cláudia Fonseca (1995) explica que a promoção da família nuclear nas camadas de baixa renda tem objetivos, em termos foucaultianos, de governamentalidade, ou seja, ao termos uma família, diminuir-se-ia o número de crianças abandonadas, os pais procurariam trabalhar para conseguir criar e educar da melhor forma possível seus filhos, além de serem reguladas as relações sexuais entre marido e mulher. Costa (2004) explica que o amor entre homens e mulheres foi defendido e valorizado no século XIX por acreditar-se que este é que definia a felicidade do casal e não mais o dinheiro ou as propriedades (valores da sociedade patriarcal). Era o amor que unia dois seres de “natureza” tão diferente e esse sentimento se estendia até os filhos (valor também defendido por De Lamare). Desse momento em diante, mais importante do que ter filhos é mantê-los e educá-los. A partir de então, a educação dos filhos tornou-se um ato de amor e não mais uma mera obrigação. Consequentemente, os higienistas propagam a ideia de que a finalidade de vida de todo homem e mulher era tornarse pai e mãe, respectivamente, o que implica maior atenção e educação dada às crianças, principalmente meninos, para que esses não se tornassem libertinos, celibatários ou homossexuais. Com a higiene, a vida deste cidadão ordinário, habitante comum da grande cidade brasileira do século XIX, vai girar em torno dos filhos: vai casar para ter filhos; trabalhar para manter os filhos; ser honesto para dar bom exemplo aos filhos; investir na saúde e educação dos filhos; poupar pelo futuro dos filhos; submeter-se a todo tipo de opressão pelo amor dos filhos; 64 enfim, ser acusado e aceitar a acusação, ser culpabilizado e aceitar a culpa, por filhos (COSTA, 2004, p. 251, grifos do autor). No Brasil, segundo o autor citado, somente na segunda metade do século XIX é que a medicina higiênica será inserida no governo político dos indivíduos. Isso só foi possível porque a medicina aliou-se ao novo sistema que surgia contra a antiga ordem colonial. A cidade e a população tornam-se campo do saber médico. Costa (2004, p. 28-29) assinala que “[...] O Estado aceitou medicalizar suas ações políticas, reconhecendo o valor político das ações médicas”. Temas como a salubridade e a higienização das populações foram amplamente defendidos pela medicina higiênica, que utilizou mecanismos disciplinares (corpos individuais) e estratégias biopolíticas (regulamentação da população). Nesse sentido, uma das dificuldades encontradas pela medicina brasileira do século XIX era a “reconversão das famílias ao Estado pela higiene” (COSTA, 2004, p. 30-31), considerando que, no período colonial, a administração frequentemente esbarrava no interesse e tradições das famílias. Assim, uma série de estratégias foi utilizada para trazer a família ao abrigo da norma médica, resumidamente, para “mostrar os ganhos e benefícios que poderiam ser extraídos da prática de sujeição” (ibidem, p. 31), como, por exemplo, prolongamento da vida, melhoria nas condições gerais da saúde, garantia de vida aos recém-nascidos, etc. Como bem escreve o autor, não se trata de negar os reais ganhos que a população obteve com esse dispositivo, como, por exemplo, redução da taxa de mortalidade, controle de doenças, aumento da longevidade, mas “[...] o que importa é notar que a própria eficiência da higiene funcionou como auxiliar na política de transformação dos indivíduos em função das razões do Estado” (ibidem, p. 32). Cynthia Veiga (2004) também relata que, no século XIX, se disseminaram publicações especializadas para as mulheres, veiculando um modelo de comportamento para elas “na expectativa de que a mulher aprendesse de forma racionalizada a ser boa mãe, boa esposa e boa dona de casa” (p. 48). Dentre as questões promovidas por tais publicações, assim como em teses e discursos proferidos por especialistas na época, o aleitamento materno foi uma das mais defendidas. Para essa mesma autora, somente no final daquele século é que o aleitamento materno passou a ser visto como “padrão de comportamento maternal”, quando mulheres pertencentes à burguesia passaram a cuidar em tempo integral dos seus bebês97. Além disso, o aleitamento materno nesse período era ardentemente defendido por médicos, principalmente, por ser um assunto da higiene e da moral, contestando, assim, a utilização de 97 Dessa forma, passam a ser alvo de atenção às mulheres-mães que trabalhavam ou que se dedicavam a frivolidades (ou no caso mais recente de A Vida do Bebê, as mães solteiras). 65 amas de leite98 (alguns higienistas inclusive denominavam o leite das amas de “mercenário”) que, na maioria das vezes, pertenciam a classes sociais inferiores à das famílias que as contratavam. No Brasil, a temática das amas de leite foi especialmente debatida devido ao fato de grande parte delas serem escravas, “cujos hábitos e posições nem sempre as colocam ao abrigo dos vícios fornecendo por isso um leite sem princípios nutritivos suficientes” (MONCORVO FILHO99 apud VEIGA, 2004, p. 54). Para Costa (2004), foi com a associação entre “aleitamento mercenário” e os altos índices de mortalidade infantil que se deu início à criação da “mãe higiênica”, pois somente quando a vida da criança tornou-se um problema econômico e político é que as mães foram chamadas a amamentar seus próprios filhos, sendo, então, a mãe vista como mediadora entre crianças e o Estado. Dessa forma, “a mãe higiênica nasceu, portanto, de um duplo movimento histórico: por um lado, emancipação feminina do poder patriarcal; por outro, „colonização‟ da mulher pelo poder médico”100 (ibidem, p. 255). A amamentação não era vista como vital para a sobrevivência dos pequenos até o século XVIII. No entanto, o discurso higiênico afirma que toda mulher devia ser mãe e toda mãe deveria amamentar, entendendo, como ouvimos até hoje, que amamentar é um “ato de amor”. Conforme apontam algumas pesquisadoras feministas, a amamentação foi imposta à mulher como uma forma de mantê-la em casa, não concorrendo com o homem no mercado de trabalho. A amamentação, segundo os médicos higienistas da época (e até hoje podemos localizar discursos como este), estreitava os laços familiares, dando unidade à família. Nesse momento do texto, cabe um parêntese a respeito da diferença entre o dispositivo de aliança e o dispositivo da sexualidade. Em História da Sexualidade: a vontade de saber, Foucault escreve sobre as diferenças entre o dispositivo de aliança, promovido até o século XVII, e o dispositivo da sexualidade, promovido a partir do século XVIII. O primeiro 98 António Ferreira (2000) aponta que desde o século XVIII, em Portugal, a amamentação foi muito defendida. E, para isso, apelava-se para o sentimento materno e sua natureza para dar de mamar às crianças. No entanto, a presença das amas era muito comum, o que tornava mais comum a entrega dos recém-nascidos a essas mulheres. A ama deveria ser “[...] mulher virtuosa e bem acostumada, sadia, asseada, entre vinte e trinta anos, alegre, calma, dócil e carinhosa, casada com homem igualmente sadio e, de preferência, filha de camponeses vigorosos” (p. 182). 99 Arthur Moncorvo Filho, médico e filantropo, autor de Lições de Hygiene Infantil, de 1918, fundou em 1899 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro (IPAI). Esta instituição difundia noções de puericultura intra-uterina e extra-uterina, higiene infantil às famílias pobres, prestava assistência às mulheres grávidas e incentivava o aleitamento materno e a vacinação das crianças (LIMA, 2006). Segundo Maria Queiroga (2005, p. 202), “foi Moncorvo Filho que, ao celebrar em 12 de outubro de 1924, o dia das crianças, institucionalizava essa data através do ato do Presidente Artur Bernardes. Foi nesse dia, que ocorreu, entre outras festividades, o Concurso de Robustez, o qual era realizado três vezes ao ano, premiando as mães dos bebês mais saudáveis – aqueles amamentados pelo menos durante seis meses”. 100 Tal colonização da mãe pelo saber médico poderá ser mais bem visualizada nos próximos capítulos. 66 dispositivo se estrutura a partir de um sistema de regras que visa manter a lei, através da reprodução do sistema de alianças matrimoniais entre famílias de mesmo status, que visa à transmissão de riquezas entre os mesmos grupos. Nessa lógica, o que reinava era o sangue, a transcendência e a genealogia (DIAZ, 1993). Já o dispositivo da sexualidade utiliza-se de “técnicas móveis, polimorfas e conjunturas de poder [que visam] uma extensão permanente dos domínios e das formas de controle” (FOUCAULT, 1988, p. 101). Para este dispositivo, o corpo e as suas sensações é o que importam. Ao contrário do sistema de aliança, o importante não é a riqueza transmitida, mas o corpo que produz, que consome e, através dele, se pode controlar as populações. Para esse novo domínio, o sexo, a descendência e a herança são os focos de atenção que estarão a cargo da medicina, da pedagogia e da economia (DIAZ, 1993). O dispositivo da sexualidade compreende quatro estratégias de saber e poder desenvolvidas sobre o sexo. Na primeira temos a histerização do corpo da mulher, corpo este saturado de sexualidade, com patologias próprias do campo médico e corpo que se vincula ao social (através da fecundidade), à família e à criança. A mãe deve ser responsabilizada biológica e moralmente por seus bebês, sendo a “mãe nervosa” a visão negativa dessa figura, como bem descreve De Lamare (1963, p. 319). Os pais devem-se amar ou pelo menos compreender-se bem. A mãe nervosa, de má instrução, ou cheia de problemas emocionais (má compreensão pelo marido, dificuldades econômicas), não está em condições satisfatórias para criar e educar um bebê. Também ao pai as mesmas condições da esposa atingem. Os pais transferem para os filhos toda a sua tensão nervosa. Como poderemos observar nos próximos capítulos, a mãe será a grande responsável pela educação dos bebês. Dessa forma, uma mãe de pouca instrução e/ou com problemas emocionais seria um entrave ao bom desenvolvimento da criança. No entanto Costa (2004) considera a figura da mulher nervosa um recurso utilizado pelas mulheres para defender-se dos homens e dos médicos. A segunda estratégia refere-se à pedagogização da sexualidade da criança, pois se acreditava que quase todas as crianças e adolescentes se dedicariam a alguma atividade sexual, que lhes poderia trazer danos físicos e morais. Assim todos os adultos envolvidos na educação das crianças deveriam vigiá-las. O terceiro elemento é a socialização das condutas de procriação, isto é, socialização econômica através de medidas fiscais, socialização política pela responsabilização dos casais e a socialização médica através de práticas de controle (um exemplo disso é o estímulo e o desestímulo que as famílias recebem dos governos para que aumentem ou estabilizem a população em função das metas políticas e econômicas). Por fim, 67 temos a psiquiatrização do prazer perverso. Em A Vida do Bebê pode-se encontrar rastros, principalmente, da primeira e da terceira estratégias. É importante salientar a presença significativa que os especialistas assumem, principalmente a partir do século XIX, no campo da infância e da maternidade. Pediatras, pedagogos, psicólogos, psiquiatras e, mais recentemente, psicopedagogos apresentam-se como os detentores das respostas aos males e dificuldades enfrentados por esses dois sujeitos – a criança e a mãe, atribuindo status de universalidade e de neutralidade ao conhecimento proferido, assim como de capacitadores da população desinformada. Costa explica que “a medicina, ao se impor como técnica de regulação do contato entre indivíduos e família, cidade e Estado, teve na casa um dos maiores aliados” (2004, p. 110). A partir das más condições de higiene e da arquitetura das casas até o século XIX no Brasil (quentes, úmidas e escuras), a medicina entrou na casa da família para organizá-la, tanto em termos de disposição, quanto na uniformização das residências. O mesmo autor aponta que tal organização tinha como um dos objetivos a proteção de mulheres e crianças, tendo em vista que esses eram os habitantes da casa em tempo integral. As casas coloniais anti-higiênicas eram condenadas pelos médicos por serem propagadoras de uma série de doenças. Da mesma forma, o regime escravagista era condenado, pois os escravos seriam propagadores de doenças e de maus hábitos e da degradação moral das famílias brancas com seus costumes. Gondra e Garcia (2004), em sua pesquisa sobre as teses desenvolvidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no século XIX sobre a higiene da infância, explicam que a racionalidade médica deste período produziu um discurso especializado sobre a infância101 “[...] para assegurar a continuidade da vida, afastando, com isso, as crianças de práticas rudes, cujos sujeitos por eles responsáveis eram convertidos, pela lógica da ciência, em ignorantes, curiosos e indiscretos” (p. 72). A legitimidade médica emergiu principalmente com os avanços da pesquisa no tratamento de doenças infantis - com a invenção de vacinas e medicamentos -, que dizimavam grande parcela da população infantil. Os médicos também se tornaram os principais defensores da amamentação e promotores das condições de higiene das famílias. Nesse aspecto a escola também teve uma parcela de responsabilidade. Através dessas instituições, os/as professores/as monitoravam a saúde das crianças, através do controle 101 Segundo Knibiehler (1996) é no começo do século XIX, a partir da realização sistemática de necropsias, que se inicia a constituição de uma medicina infantil, a partir do conhecimento acumulado e diversificado das enfermidades infantis. 68 de doenças, condições sanitárias das famílias e alimentação adequada (por meio da merenda escolar). Assim, a criança passa a ser alvo de investimentos dos pais, que tinham por obrigação cuidar da sua saúde física, amamentá-la com leite materno, oferecer-lhe um vestuário limpo e saudável e propiciar exercícios físicos, visando ao bom desenvolvimento. Filhos saudáveis, educados e disciplinados: esses eram os objetivos a serem alcançados para que o país pudesse prosperar. “Uma criança bem-cuidada [...] tornar-se-ia o perfeito adulto higiênico” (COSTA, 2004, p. 144). Nessa lógica, a partir da conduta apresentada pelo sujeito poderíamos averiguar a história familiar e educativa deste. Martins (2004), em seu livro Visões do feminino, disserta sobre como a mulher também foi objeto de uma vasta produção discursiva entre os séculos XVIII e, principalmente, XIX, prescrevendo-lhe condutas higiênicas e regulando seus comportamentos. A partir desse período histórico, um grupo de médicos olhará para o corpo feminino, percebendo-o como “naturalmente” diferente do masculino102. Assim, as especificidades do corpo da mulher foram objeto de intensa produção discursiva. Vários autores explicam as especificidades do corpo feminino relacionando-as com a maternidade, o que viria a colocá-la como responsável pelo cuidado e educação das crianças e da família. Para tanto, investia-se muito na educação dessas futuras mães, pois de uma “educação correta e bem orientada da menina, visando à boa formação moral e à contenção do corpo, iria resultar uma mulher saudável, de caráter dócil e submissa ao esposo” (ibidem, p. 42). Esses estudos sobre as especificidades femininas também justificavam a impossibilidade de a mulher trabalhar103, pois seu corpo não resistiria aos esforços físicos, sendo o único trabalho aceito o doméstico, realizado na sua própria casa (ibidem). Para isso muitos médicos apoiaram as representações que vinculam a mulher-mãe com anjos, santas e a própria Virgem Maria (como poderemos visualizar em todas as edições de A Vida do Bebê). Assim, as mulheres passam a ser objeto de análise dos médicos. O aparelho reprodutivo feminino torna-se imperativo para explicar a natureza feminina: por um lado, explica a função essencial da mulher - ser esposa e mãe; e por outro, explica seu caráter doente e imoral (MARTINS, 2004). Já o interesse sobre o corpo masculino só se dará quando 102 Até esse período prevalecia a teoria do sexo único de Galeno e Aristóteles, no qual só havia um único sexo, do qual a mulher seria uma versão inferior, por ser mais fria e úmida do que o homem e ter os órgãos genitais invertidos, ou seja, interiorizados em relação ao homem (ser mais perfeito da natureza). A mulher nessa escala de perfeição estaria mais próxima das crianças e das raças tidas como inferiores. 103 Como observa Badinter (1985), por ser a mulher dotada de dedicação, paciência e “amor sem limites” é que passa a ser considerada a educadora por excelência. Tal concepção propiciou, entre outros fatores, o movimento de feminilização do magistério. 69 este for marcado por “excessos”, como, por exemplo, a masturbação, a libertinagem e a homossexualidade. Como a criança, a mulher também será tutelada pelos especialistas e serão estes que dirão o que é melhor para ela: qual o marido ideal, qual a melhor idade de casar, ter filhos, como cuidar deles, etc., não podendo ela representar a si mesma (principalmente, no dizer da época, por não ter capacidade racional e moral para isso). Os médicos, nesse contexto, exercem relações de poder/saber sobre as famílias ao defenderem assuntos próprios à esfera privada familiar. Assim, nas palavras de Martins, “a mulher, esta categoria universal [...] não nasceu da costela de Adão, mas do discurso médico-científico produzido nos séculos XVIII e XIX” (2004, p. 169). O século XX, como denomina Forna, inaugura a era da “mãe científica”, período no qual as mulheres, principalmente das classes média e alta, não deixarão de ler manuais ao engravidarem, pois “poucas se atrevem a encarar a maternidade sozinhas104” (FORNA, 1999, p. 63). Com a dificuldade de aplicação dos preceitos higiênicos a toda população (poucos podiam recorrer a médicos para aconselhar-se), muitos médicos passaram a apoiar a organização de uma assistência pública mantida pelo Estado para criar maternidades, distribuir roupas e medicamentos e pagar indenizações às mães trabalhadoras que engravidassem. Tal proposta não foi acolhida por anos pelos governantes no Brasil. Os médicos apenas viram atendidas suas propostas por uma política oficial na década de 1930. A partir da década de 1920 a crença no poder da ciência e da razão torna-se mais forte no Brasil devido ao discurso de que o desenvolvimento econômico poderia auxiliar nações pobres a saírem das trevas em que se encontravam (atraso econômico, industrial, educacional, etc). No campo educacional é o período de florescimento da Escola Nova105, da educação profissional como recurso para as camadas pobres, das teorias sobre o desenvolvimento infantil, de ampliação da rede primária de ensino, de modificações no currículo do curso Normal (com a inclusão de disciplinas, como, por exemplo, Psicologia, Puericultura e Higiene 104 Ademais, a autora, ao analisar alguns manuais do século XX, explica que os especialistas recorrentemente apresentavam visões conflitantes sobre o desenvolvimento infantil (como poderá ser visualizado nos próximos capítulos). Forna também destaca a figura de Freud para a difusão da tese de que as experiências ocorridas na infância vão incidir sobre a vida adulta. 105 No Brasil o discurso da Escola Nova foi popularizado por Lourenço Filho e Anísio Teixeira, principalmente, a partir das décadas de 1920 e 1930. A Escola Nova tinha como alguns dos seus princípios colocar a criança como elemento ativo na aprendizagem, dar liberdade para a criança, respeitar as suas características e interesses e acompanhar as fases do desenvolvimento infantil (QUEIROGA, 2005). 70 – estas duas últimas ministradas por médicos pediatras que preparavam as estudantes para a maternidade e a docência) e da responsabilização do Estado pelo campo educacional. No que tange à maternidade em tempo integral, este discurso ganhou novo impulso após a Segunda Guerra Mundial, quando os homens retornaram da guerra e precisaram voltar aos seus empregos, ocupados nesse período por mulheres (no caso específico da Europa e dos Estados Unidos). Nas décadas de 1940 e 1950, um grupo de especialistas, dentre eles, John Bowlby e Donald Winnicott defendiam, a partir de suas pesquisas, que as mães não deveriam se afastar dos seus bebês, pois isso prejudicaria o desenvolvimento infantil. Bowlby tornou-se famoso devido à teoria do vínculo, pela qual a presença e a postura da mãe frente à criança teriam efeitos importantes no futuro desta. A presença constante e a satisfação em cuidar do bebê deveriam ser os objetivos de toda boa mãe. A repercussão de tal teoria, nos Estados Unidos, trouxe o fechamento de grande parte das instituições de educação infantil abertas no período da Segunda Guerra (FORNA, 1999). Já Winnicott deu novo vigor à teoria do vínculo mãe-bebê, tornando-se conhecido através dos programas veiculados na BBC de Londres. Para este “a mulher precisa ter paciência de santa, abnegação106, auto-sacrifício e capacidade para encontrar satisfação nas tarefas mais prosaicas da maternidade” (FORNA, 1999, p. 83). As infâncias e as maternidades contemporâneas Assim como a maternidade, a infância passou a ser vista como natural, a partir de um longo processo histórico que culmina na segunda metade do século XIX no Ocidente, quando grandes contingentes de crianças saíram das fábricas e oficinas e foram para as escolas, e as famílias nucleares, urbanas e de classe média e alta passaram a promover um sentimento de proteção, carinho e responsabilidade para com suas filhas e seus filhos. Nessa empreitada ocorre uma “sacralização da infância”, como descreve Heywood (2004), pela qual as crianças deixam de ter valor econômico e passaram a ter valor emocional inestimável. Atualmente, algumas/alguns estudiosas/os apontam para uma crise na infância moderna. Essa crise é explicada por Steinberg e Kincheloe (2001) como parte de vários processos107; dentre eles, os autores destacam a fragmentação da família moderna, o acesso ilimitado a informações sobre o mundo adulto e a hiper-realidade108 na mídia eletrônica. Já 106 107 Palavra muitas vezes utilizada por De Lamare na edição publicada em 1963. Para Elias (1994, p.220) “é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos”. 108 Hiper-realidade refere-se à característica de muitas mídias, pela qual as imagens que veiculam são mais dotadas de “realismo” que a suposta realidade “da vida concreta”. 71 Donzelot (2001) acredita que a crise da família seria condição de possibilidade da emergência da ordem social atual. Segundo ele, a heterogeneidade social é decorrente da “flutuação das normas sociais e dos valores familiares” (p. 13). Anteriores às posições de Steinberg e Kincheloe, estão as propostas de Postman (1999). Para o autor, a prensa tipográfica (sic) seria uma das responsáveis pela invenção da infância, pois a leitura e a escrita separaram o mundo adulto do infantil. Nesse sentido, a capacidade de leitura e, em consequência, o acesso a segredos – conhecimento – passou a ser a linha divisória entre a infância e a adultez. A aquisição de tal capacidade criou a necessidade de escolas e, a partir dessa, institucionalizou-se o controle adulto sobre o conhecimento infantil. Segundo o autor acima citado, a partir da invenção do telégrafo, que eliminou o tempo e o espaço como dimensões da comunicação humana e possibilitou a simultaneidade e a instantaneidade da mesma, o controle sobre a informação tornou-se gradativamente impossível. Dessa forma, principalmente a partir do advento da televisão, as crianças passaram a ter acesso a um grande contingente de informações sobre o mundo adulto, o que estaria produzindo o desaparecimento da infância e, em consequência, de um mundo adulto à parte. Para Postman (1999, p. 94) principalmente a televisão, mas todos os meios de informação eletrônica em geral, estaria destruindo a linha divisória entre adultos e crianças “primeiro, porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo, porque não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento; e terceiro, porque não segrega seu público”. Como o próprio afirma, "sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância" (ibidem, p.94). Esse processo de desaparecimento da infância e do mundo adulto criou, segundo Postman (1999), o adulto-criança, pois como a mídia eletrônica afasta a alfabetização para a periferia da cultura e toma seu lugar no centro, outras atitudes e outros traços de caráter passam a serem valorizados e começa a surgir uma nova e atenuada definição de idade adulta. É uma definição que não exclui as crianças e, portanto, o que resulta daí é uma nova configuração das etapas da vida. Na era da televisão existem três. Num extremo, os recém-nascidos; no outro os senis. No meio, o que podemos chamar de adulto-criança (p. 112-113). Partindo de uma concepção mais contextualizada e menos simplificadora do que o autor referido anteriormente, Sampaio (2000) explica que o processo de dissolução das fronteiras entre a criança e o adulto não decorreria, na sociedade brasileira, das mídias eletrônicas, mas da desigualdade social. A autora acredita que, em princípio, não é a partir da mídia televisiva que a criança e o adolescente têm um maior acesso à vida adulta e aos seus 72 segredos, mas através das experiências que a situação de miséria e exclusão social lhes impõe, os empurrando para o mercado de trabalho, para a delinquência, para a prostituição e para o crime organizado, “retirando-lhes a chance de viver essas fases de suas vidas chamadas de infância e adolescência” (p. 171). Como explica Sampaio (2000, p. 171), em sua pesquisa sobre a relação televisão, publicidade e infância, a visibilidade dessa geração de „crianças sem infância‟, dos meninos e meninas de rua, da prostituição infantil e da violência está presente também na televisão, de modo particular, nos noticiários, reportagens e propagandas de entidades associadas à defesa e proteção da criança. Essas crianças não são, contudo, uma referência importante para a elaboração de programações para o segmento e podem ser consideradas inexpressivas para a publicidade. Na televisão, predominam imagens de um outro tipo de criança que, para as emissoras e a publicidade, são vistas sobretudo na condição de „consumidores mirins‟. É, também, em função delas que é concebida a sua programação e publicidade mais elaboradas. A representação de infância da mídia analisada por Sampaio é a de “um espaço utópico – o reino da inocência, da sensibilidade, da desproteção, da felicidade, como também de uma quase miraculosa progressão cognitiva” (BUJES, 2002b, p.18). Já Narodowski (1998), descreve nos dias de hoje uma infância idealizada, hiper-realizada, como aquela infância da realidade virtual, ou seja: “trata-se das crianças que realizam sua infância com a Internet, os computadores [...] e que há tempos deixaram de ocupar o lugar do não-saber” (p. 174). Um exemplo dessa infância está mostrado em matéria intitulada “Infância hi-tech”109, que utiliza como referência a pesquisa realizada pelo canal pago Cartoon Network, destinado ao público infanto-juvenil, com 1.503 meninas e meninos de seis a onze anos, das classes média e alta de quatro capitais brasileiras, pesquisa essa que definiu o perfil dessas crianças como: “mais inteligentes, [...] ligadas em novas mídias, informadas, vaidosas, consumistas e folgadas” (p. 70). Segundo a matéria da revista Época, a infância hi-tech “é retrato de uma geração que aprende a dominar a informática ao mesmo tempo em que é alfabetizada” (p. 72). Dessa forma, na contemporaneidade, acredito que a infância não esteja desaparecendo, mas sim esteja em processo de reconfiguração, ou seja, estão em andamento novas formas de constituição de ser criança. Muitos são os processos que atualmente constituem essa infância: as novas configurações familiares (aumento do número de famílias monoparentais, de mães adolescentes que dividem com suas mães a responsabilidade pela educação da criança, de casais sem filhos, ou com um/a único/a filho/a, casais homossexuais), as pedagogias culturais, 109 Época, 3 de novembro de 2003, p. 70-84. 73 as novas tecnologias de informação, a exacerbação do consumo, etc. Assim, se ser criança se aprende na escola e na família, através da pedagogia moderna, na pós-modernidade o aprender a ser criança foi ampliado para além das instituições como família e escola, embora essas ainda se constituam como espaços de investimento num futuro melhor. Esse processo de reconfiguração da infância também se articula a uma conformação da maternidade e paternidade. Conforme aponta Hobsbawn (1995), o século XX assistiu à entrada em massa de mulheres casadas no mercado de trabalho, assim como o acesso das mulheres ao ensino superior possibilitou um novo vigor ao movimento feminista a partir da década de 1960. Como escreve o autor “[...] o que mudou na revolução social não foi apenas a natureza das atividades da mulher na sociedade, mas também os papéis desempenhados por elas ou as expectativas convencionais do que devem ser esses papéis, e em particular as suposições sobre os papéis públicos das mulheres, e sua proeminência pública” (p. 306-307). Além disso, Hobsbawn descreve que em grande parte dos países europeus (mas também em outros países com Estados Unidos e América Latina) o índice bruto de divórcios chegou mesmo a triplicar entre 1970 e 1985. Além dos divórcios outro índice que disparou foi o número de pessoas vivendo sozinhas (em muitos países ocidentais atinge 25% da população), o número de famílias chefiadas por mulheres sozinhas, filhos de mães solteiras e mães adolescentes.Todos esses dados apontam para as diferentes configurações sociais e de família produzidas na contemporaneidade. Um exemplo dessa reconfiguração são as motherns (termo que, em inglês, significa a junção das palavras mother – mãe - e modern - moderna). A matéria “Mothernidade”110 inicia explicando que há duas certezas sobre a maternidade. A primeira é o amor incondicional que só sendo mãe mesmo para entender – e que muitas adoram descrever detalhadamente, de preferência com fotos do filho a tiracolo. A segunda é que nenhuma mulher está totalmente pronta para ser mãe – e muito menos para admitir isso” (p. 6). Mais adiante a matéria apresenta uma terceira verdade trazida por duas publicações lançadas em 2005 (Mulheres e crianças primeiro – Humor para mães à beira de um ataque de nervos e Mothern111 – Manual da mãe moderna): “na falta de certezas absolutas, valem o método tentativa e erro e grandes doses de bom humor” (p.6). Segundo a ZH Donna, estes 110 111 ZH Donna, 08 de maio de 2005. Em 19/08/2006, estreou no canal pago GNT uma série de treze episódios livremente inspirados no livro Mothern. O seriado de mesmo nome mostra quatro mães que tentam “conciliar o trabalho e a vida cultural e/ou noturna com a troca de fraldas, a choradeira, os barulhentas e melequentas festas infantis e outros quetais” (ZERO HORA, 13 de agosto de 2006. Caderno TV+ Séries, p. 3). 74 livros pretendem “desmistificar a imagem da mãe como aquela mulher serena, de cabelos bem-penteados, que embala um bebê rosado e quietinho na sala impecavelmente arrumada e com cheiro de bolo recém saído do forno” (p. 6). Tais livros revelariam “o que todo mundo vive e pouco se fala: mães não são nem nunca foram perfeitas, e – surpresa – muitas já desistiram de buscar a perfeição” (p. 6). As autoras do livro Mothern apresentam na matéria citada alguns dos truísmos mothernos: [...] bons modelitos para grávidas ainda estão para nascer; seu filho não é melhor do que os outros; se seu marido não troca fraldas, troque de marido; mães também têm tesão; existe vida após a maternidade; instinto maternal não existe; mães adoram uma culpa, motherns não; você nunca vai ser perfeita; família é bom, mas enche (ZERO HORA, 2006, p. 7). Acredito que essa nova concepção de maternidade coloque em suspensão um dos mais preciosos atributos maternos – o instinto materno. Além disso, assumir que nunca se será a mãe perfeita e que família às vezes “enche” constituem rupturas interessantes no modo de ser mãe que há décadas tem se imposto às mulheres, embora inicialmente a matéria do jornal Zero Hora anteriormente citada reafirme que o amor de mãe é incondicional (como se todas as mães amassem espontânea e extremamente os seus filhos). Um exemplo disso é a fala de uma das mães citadas na matéria: Não tem como viver numa casa como se fosse um castelo, com filhos sempre arrumadinhos, quietinhos. Não vou sacrificar a infância deles para que tudo fique em ordem. Até porque uma mothern não se dedica integralmente como a Amélia112 do passado [...] Maternidade é uma parte maravilhosa na minha vida, mas não é tudo. Parece até vergonha uma mãe admitir que tem outros interesses (p. 8). Embora essa concepção de maternidade constitua uma ruptura, ela também corresponde às urgências da contemporaneidade que procura tornar todos os cidadãos produtivos, não só em termos de trabalho, como também em relação aos seus corpos (sadios e malhados) e, sobretudo, aptos às demandas do mercado. No caso das motherns, as mulheresmães possuem uma profissão (que não foi abandonada por causa da maternidade), fazem academia de ginástica, possuem personal trainers, ou, ao menos, se preocupam com a forma 112 Amélia é a representação da mulher perfeita – boa mãe, esposa dedicada e ótima dona de casa. 75 física e, como estão localizadas, na maioria, nas classes média e alta, estão aptas a consumir os últimos produtos lançados no mercado tanto para elas, como para as crianças113. Segundo uma das autoras, a proposta do livro Motherns é “rir das verdades que incomodam, do que pouco se fala, do que não se questiona muito, mas vive-se todo dia” (p. 9). Para as autoras, mãe moderna “tem a ver com estar antenada no mundo, não deixar a maternidade transformar você em uma doninha de casa, fazer as coisas de acordo com suas próprias convicções e valores, não se prendendo tanto a regras” (p. 9). O mesmo questionamento é feito com relação ao mito do instinto materno - “o mito de que ser mãe é fácil, de que é maravilhoso o tempo todo, algo que te basta na vida, que basta o filho nascer para a gente saber como agir. Puro mito! A gente sai da maternidade com um assombro em mãos: e agoraaa?!” (p. 9). Por fim, além das motherns, outro novo conceito é o de fatherns – pais modernos114. Para estes a nova concepção de paternidade implica, sobretudo participar da educação dos filhos, embora a mãe seja citada como o elemento fundamental na vida da criança, questão também presente na última edição de A Vida do Bebê. Dessa forma, embora as motherns venham questionando algumas atribuições culturalmente impostas a elas no cuidado infantil, os pais seguem “participando”115 mais em termos de concessão, “modernidade” e moda. No próximo capítulo procuro analisar o manual como uma tecnologia de poder que visa ao governamento de pais e mães, assim como apontar os temas presentes nas edições de 1963 e 2002 de A Vida do Bebê. 113 Atualmente já existem as baby planners consultoras contratadas por mulheres grávidas “[...] para orientá-las em tarefas diversas relacionadas à gestação” (FOLHA DE SÃO PAULO, 8 de junho de 2008, suplemento Mundo, p. 23). Dentre as tarefas realizadas estão o “[...] acompanhamento nas consultas médicas; orientação na escolha do enxoval da criança; organização dos convites a amigas e parentes para o chá de bebê [...]; contratação de fotógrafo para o ensaio da gravidez; aula de maquiagem e estilo para gestante; entre outros” (ibidem). 114 Já há referência ao pai moderno desde a edição publicada em 1963 de A Vida do Bebê. 115 Como explica Denise Gastaldo (1997) a questão da participação pode implicar maior apropriação do poder, mas também implica maior controle. 76 TECNOLOGIAS PARA O GOVERNAMENTO DAS MATERNIDADES Trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos (LARROSA, 2002b, p. 133). Rose (2001a) utiliza a palavra tecnologias para referir-se [...] a qualquer conjunto estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo mais ou menos consciente. As tecnologias humanas são montagens híbridas de saberes, instrumentos, pessoas, sistemas de julgamento, edifícios e espaços, orientados, no nível programático, por certos pressupostos e objetivos sobre os seres humanos (p. 38). É procurando pensar os manuais como tecnologias de governo das maternidades que, nesse capitulo, proponho investigar os meios inventados para moldar e orientar as condutas das mães e dos pais, mas, principalmente; das mães, investigando que racionalidade rege tais meios (os manuais de puericultura) e como tais meios se articulam com os saberes, assim como os diferentes instrumentos utilizados para tornar a educação dos pais e das mães como seu objeto na promoção de biopolíticas. Em relação a manuais como A Vida do Bebê podemos pensar como esses ensinam mães e pais a serem um tipo especial de sujeito, isto é,sujeitos responsáveis pela saúde e o bom desenvolvimento das crianças. Conforme citei anteriormente,comecei a me interessar pela A Vida do Bebê já no decorrer do Mestrado quando me deparava com a coluna Pergunte ao Dr. De Lamare, na revista Pais & Filhos, a qual, apesar de já ser assinada por outro médico116, permanecia com o nome do pediatra Rinaldo De Lamare, o que denota a legitimidade e o prestígio (e a marca) que seu nome possui ainda nos dias de hoje no campo da pediatria. Na referida seção - Pergunte ao Dr. De Lamare - presente nas nove edições então analisadas da revista Pais & Filhos, as questões mais recorrentes eram sobre problemas respiratórios e relacionados ao sono, além de perguntas sobre: o período de retirada das fraldas, a amamentação, o desmame, a alimentação, as precauções e as medidas a serem tomadas para determinados problemas de saúde, as recomendações para o uso de acessórios e equipamentos específicos para crianças pequenas e quando procurar determinados especialistas. Cabe salientar que muitos dos problemas relacionados ao sono e ao comportamento dos bebês nas últimas décadas vêm sendo explicados a partir de fatos 116 Na época, assinada pelo médico Geraldo Leme - pediatra da Clínica Dr. Rinaldo De Lamare e também coordenador geral da 41ª edição de A Vida do Bebê. 77 ocorridos durante a gravidez e o parto, apontando o quanto esses momentos são nomeados como importantes para a futura mãe e para o desenvolvimento do bebê. Um exemplo encontramos na carta de uma mãe preocupada: Tenho uma filha de três meses que vem apresentando alterações de comportamento. Ela está tranquila, sorrindo e brincando. De repente, irritase aparentemente sem motivo. Procuro brincar, conversar, mas nada adianta. Observo também quando ela está com sono, acontece o mesmo. Então tento aconchegá-la no colo ou na cama, com a chupeta. Parece pior. [...] Gostaria de saber como proceder, e se tem a ver com a gestação117. Nesse exemplo gostaria de destacar a relevância que especialistas como De Lamare adquirem para essas mães que escrevem ou que consultam a revista ou o livro na busca da resolução dos problemas que possam estar enfrentando (o tema dos especialistas e do discurso médico serão objetos de análise no próximo capítulo). Também é interessante salientar o grau de ansiedade dessa leitora da revista que escreve sobre sua filha de apenas três meses que estaria apresentando “alterações de comportamento” e questiona-se se, por acaso, ela, quando grávida, não teria contribuído para esse estado da criança, mesmo que dentro da barriga, pois, hoje, se considera o feto como um ser que sente e que ouve, o que implica uma responsabilização e educação da mãe. Ressalto ainda o quanto esse tipo de manual pediátrico ou para educação de crianças tem uma longa história. Segundo Postman (1999), The Boke of Chyldren, de Thomas Phaire, publicado em 1544, é considerado o primeiro livro ocidental de pediatria. Assim, o tipo de dicas que encontramos em A Vida do Bebê pode ser também encontrado no livro de Phaire, considerando-se as particularidades de cada contexto histórico-cultural. Por exemplo, encontramos no livro do século XVI recomendações sobre o uso de argolas de borracha para exercitar os dentes do bebê, além de listas de doenças “graves e perigosas” (sic). Outro livro popular na época era de Thomas Raynald, que teve sete edições antes de 1600, sendo editado até 1676, o que denota o quanto o assunto era relevante na época, mantendo-se até hoje atual, marcando a importância que a infância vem assumindo desde o século XVI. No mesmo sentido, Oliveira (2007) relata a presença, na Idade Média, de muitos tratados médicos e de educação, nos quais se refletia e prescrevia comportamentos e cuidados. Além dos livros de pediatria, também foram famosos, a partir do século XVI, os manuais de civilidade, sendo o mais conhecido Da civilidade em crianças, de Erasmo de 117 Pais & Filhos, v. 33, n. 393, janeiro de 2002. 78 Rotterdam, editado em 1530118. Para Elias (1994, p. 69) “este tratado reveste-se de uma importância especial menos como fenômeno ou obra isolada do que sintoma de mudança, uma concretização de processos sociais”. O livro de Erasmo é dedicado a um menino nobre e escrito para a educação de crianças. A rápida disseminação da obra como manual educativo para meninos demonstra o quanto esse atendia as exigências da classe nobre naquele momento histórico. Segundo Elias, tal obra “fala de muitas coisas que desde então se tornaram impublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas como naturais” (ibidem, p. 69). Em outro livro também famoso, Emílio, de Rousseau, segundo Narodowski (1994, p. 35), “[...] se insiste constantemente na boa alimentação das crianças, se reivindica a lactação e até se dão conselhos acerca de melhores modos de ferver a água que se fará beber como, assim também, da necessidade de tomar um banho”. Nesse momento, cabe registrar o escrito por Leão (2007), quando a autora chama atenção para essa literatura pedagógica que remonta desde o século XVI e o quanto essa “[...] desempenhou importante papel na longa formação cultural da leitura no ocidente” (p. 42). Além dessas publicações, a partir do século XIX, passou a ser comum as colunas de médicos da época em jornais e revistas, respondendo questões mais recorrentes sobre a saúde e a higienização das crianças e, posteriormente, os cursos de puericultura se disseminaram em alguns países, assim como a difusão de programas de rádio (como o realizado por Winnicott em Londres, na metade do século XX). No Brasil, conforme lembra Leão (2007), os manuais de civilidade começaram a ser difundidos com a instalação de uma livraria francesa na corte do Rio de Janeiro, em meados do século XIX. No entanto, somente em 1875, no Rio de Janeiro, é publicado o primeiro manual de autoria brasileira (Guilermina de Azambuja Neves) para os alunos das escolas públicas, cujo título é Entretenimentos sobre os deveres de civilidade colecionados para o uso da puerícia brasileira de ambos os sexos. Também podemos pensar o manual analisado nessa Tese como uma minienciclopédia, sobre a infância, no caso, como descrito por Vera Casa Nova (1996) pela “[...] inabalável certeza de que a difusão universal dos conhecimentos e das técnicas viria acarretar a libertação do homem, concorrendo para sua progressiva felicidade neste mundo” (p. 60). Em decorrência do que é apresentado em tais livros e manuais, penso que A Vida do Bebê (e os outros livros citados no começo dessa Tese) dá sequência a essas obras, que foram inventadas na Modernidade e que foram se atualizando a partir de demandas históricas e 118 Segundo Elias (1994), até o século XVIII, esse manual teve mais de 130 edições. 79 culturais específicas, o que me relembra a observação de Foucault quando este diz que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (2002a, p. 26). Retornando ao objeto de análise aqui proposto, observo que, em 2009, o livro A Vida do Bebê foi reeditado pela Ediouro, encontrando-se atualmente na 42ª edição, número considerável tratando-se do panorama editorial brasileiro. Segundo peça publicitária sobre o lançamento da 41ª edição (edição analisada para Tese), a leitura do livro é para “antes, durante e após a gestação”, sendo o famoso best-seller “leitura obrigatória das mamães interessadas em aprender a lidar com seu neném”119. Além dos números brasileiros, foram encontradas notícias120 de que as herdeiras do autor e a Ediouro haviam fechado contrato com uma editora de Portugal que iria lançá-lo na Europa. Também merece destaque a edição compacta vendida na forma de quatro fascículos, pelo Jornal Diário Gaúcho 121, de Porto Alegre, no decorrer dos meses de junho a agosto de 2004122. Ademais o livro A Vida do Bebê foi, em 2004, selecionado123 para integrar a relação de títulos que seriam adquiridos pelo Programa Livro Aberto da Fundação Biblioteca Nacional para posterior distribuição em bibliotecas públicas do país, o que aponta para a popularidade e a atualidade do livro. Assim, percebe-se o quanto a infância - talvez mais do que nunca por razões biopolíticas - é alvo de preocupações, seja por meio de propagandas 124, que buscam sua proteção de todos os tipos de violência, como abuso sexual, maus-tratos, trabalho infantil, exploração sexual125, seja por meio de ações governamentais e políticas públicas (como, por exemplo, o programa Primeira Infância Melhor). Além disso, muitos debates têm sido promovidos em decorrência das notícias de aumento da violência contra as crianças126. Apesar de todos os investimentos sobre a infância e a família promovidos nos últimos três séculos, não podemos deixar de registrar, como descrito por vários autores aqui já citados, que muito daquela infância característica das sociedades tradicionais ainda pode ser encontrada nas 119 120 Pais & Filhos, v. 33, n. 390, outubro de 2001. Disponível em: . Acesso em maio de 2004. 121 Periódico de circulação diária na Grande Porto Alegre, vendido a preços populares. Faz parte do grupo Rede Brasil Sul (RBS). 122 Mais especificamente vendidos nos dias 21/06, 07/07, 21/07 e 07/08. 123 Maiores informações ver . 124 Em 2004, o governo da Suécia aprovou uma lei que protege as crianças da publicidade, isto é, estão proibidos anúncios televisivos voltados para menores de 12 anos (como, por exemplo, roupas, brinquedos, comida), pois se entende que estes não têm idade suficiente para diferenciar um programa “real” de um comercial. 125 Um exemplo de tais propagandas é a veiculada na segunda metade do ano de 2003, que se intitulava “O amor é a melhor herança, cuide das crianças”, promovida pela Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS). 126 No Rio Grande do Sul, o caso que alcançou grande repercussão e ensejou várias discussões sobre a questão da infância, noticiado desde os primeiros meses de 2004 até 2007 (época dos julgamentos), foi o assassinato, realizado por Adriano da Silva, de oito meninos na região norte do Estado. 80 sociedades contemporâneas (crianças que trabalham desde cedo, pais que abandonam crianças por não ter condições de criá-las, etc). Um exemplo de política pública voltada à infância é o programa Primeira Infância Melhor (PIM), promovido pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, em articulação com outras secretarias estaduais e municipais, desde 2003. O objetivo do programa consiste em promover a saúde e a educação de crianças pequenas nas cidades mais pobres do Estado e baseou-se no programa promovido em Cuba denominado Educa a tu hijo. O programa conta com apoio da UNESCO e trouxe para o Rio Grande do Sul um grupo de pesquisadores, através de seminários, para explicitar os objetivos dessa ação. Segundo o secretário de Saúde do Estado, Osmar Terra, durante a realização do I Seminário Internacional da Primeira Infância, em 2003, o programa focaliza os cuidados da infância, na área da saúde, educação e cultura, a partir da promoção da saúde, da vida e das competências infantis. Para o secretário, o desenvolvimento da primeira infância é oportunizado a partir da valorização da criança, do comprometimento dos governos e das comunidades, através do auxílio às famílias (inclusive gestantes). Tendo como objetivo o desenvolvimento integral das crianças, os visitadores que acompanham as famílias devem transformar seus conhecimentos em práticas para que as crianças sejam “estimuladas adequadamente”. Naquela ocasião o secretário expôs que o programa visava atender as cem mil famílias mais pobres do Estado127, através dos visitadores de família que fariam três visitas mensais. Cada visitador acompanharia 25 famílias e receberia um salário mínimo por este trabalho. O programa parte da premissa que as crianças pouco estimuladas dos 0 aos 6 anos de idade apresentam maiores dificuldades na escola posteriormente, por não terem sido desenvolvidas neurologicamente. Como o Estado não tem condições para construir escolas de educação infantil para todos, os visitadores fariam este papel de estimuladores das crianças nesse período, além de acompanharem a saúde (encaminhamento para tratamento de saúde, promoção da prevenção, atenção às vacinações, etc), a higiene e a alimentação. Por fim, a proposta de tal estratégia biopolítica é que, ao estimular e cuidar das crianças até os 3 anos, principalmente, os custos governamentais posteriores com a evasão, a repetência escolar e com os tratamentos de saúde sejam reduzidos, porque se parte da premissa que os primeiros anos de vida terão influências cruciais sobre o resto da vida da criança. Em 2004, durante o II Seminário Internacional da Primeira Infância, realizado em Porto Alegre, os médicos Berry Brazelton e Joshua Sparrow 127 Até o ano de 2006, segundo Klein (2006), 283 municípios já estavam capacitados pelo programa, com 1.200 visitadores domiciliares atendendo 30.000 famílias e 45.000 crianças. 81 foram os principais pesquisadores palestrantes, sendo que Brazelton é mundialmente conhecido pelos seus livros sobre o desenvolvimento infantil. Programas como o PIM, segundo Helen Penn (2002) visam o desenvolvimento cerebral, a partir da intervenção na primeira infância. Esses programas partem da premissa de que “crianças pequenas são consideradas maleáveis e suscetíveis à influência externa [...] e que o cérebro se desenvolve com mais intensidade nos primeiros anos de vida” (p. 9). Estes argumentos têm como objetivo transformar crianças em adultos produtivos futuramente, além de reduzir os possíveis efeitos da pobreza. A autora ressalta ainda que a retórica usada nesses programas é redencionista, pois entende que, se chegarmos a tempo (até os três primeiros anos) e convertermos os pais quanto à melhor maneira de educar seus filhos, poderemos garantir um melhor futuro para elas. Nessa lógica é mais fácil dizer que os problemas estão na família, no desenvolvimento neuronal do que nas políticas públicas de acesso a educação, saúde, saneamento básico, moradia, emprego, etc. Esse programa governamental de atenção às famílias, principalmente de classe popular, demonstra a centralidade com que a família tem sido tratada nas políticas do Estado, a exemplo de outros programas de transferência de renda, como Bolsa-Família, por exemplo. Nesse caso também, como aponta a pesquisa de Donzelot (2001), receber auxílios do Estado requer compromissos por parte da família, como, no caso atual, manter as crianças na escola e estar em dia com o calendário de vacinação das crianças. O Estado, a partir de tecnologias como essas, procura regular a relação pais e filhos, governando as condutas maternas e paternas para o bom desenvolvimento infantil. Para o PIM, esses modos específicos de controle e vigilância sobre as famílias pobres se dão através dos visitadores domiciliares (uma atualização da polícia das famílias?). Nesse programa as mães também recebem manuais para ajudá-las a melhor exercer a tarefa de cuidar e educar as crianças, como, por exemplo, O Guia da Gestante, que explica como fazer o pré-natal, os cuidados necessários na gravidez, a importância de o pai participar desse processo (reafirmando a importância de constituírem uma família), a necessidade do vínculo mãe-bebê, os cuidados de uma alimentação correta, como ter um parto seguro, assim como garantir a amamentação do bebê. Na pesquisa empreendida por Carin Klein (2006), a autora analisa como o PIM posiciona “as mulheres fundamentalmente como mães, educadoras e nutrizes naturais e culturais das crianças, responsabilizadas quase de forma integral pela prevenção da saúde da família e pela geração da „infância melhor‟” (p. 9). Prescrições como as expostas no Guia das Mães citado acima são dirigidas às mães, mas os pais também são convocados a participar do cuidado e da educação das crianças, sendo a sua função complementar à da mãe. Para 82 justificar a maior visibilidade materna, o programa “lança mão de retóricas baseadas em universalidades e essencialismos, como o amor incondicional ligado à gestação e à nutrição do bebê” (KLEIN, 2006, p. 70). Após essa breve discussão sobre as tecnologias para promoção de infâncias mais saudáveis e normais, passo a descrição do manual objeto dessa pesquisa. Cartografias Maternas Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra cartografia pode ser definida como “(1) conjunto de estudos e operações científicas, técnicas e artísticas que orienta os trabalhos de elaboração de cartas geográficas, (2) descrição ou tratado sobre mapas”. Embora esta Tese não seja sobre mapas, no sentido usual, utilizo o termo cartografias128 para me referir a mapeamentos realizados através da leitura do livro A Vida do Bebê, nas duas aqui edições analisadas, a saber, 1963 e 2002. Com relação à prática de leitura, Roger Chartier (1996129) salienta que “[...] devemos levar em conta que a leitura sempre é uma prática encarnada em gestos, espaços e costumes” (p. 108) e observa que tal concepção implica o reconhecimento de vários tipos de contraste, como: entre capacidades de leitura (vistas de maneira bem mais complexa do que o simples binômio analfabeto/alfabetizado), entre normas de leitura e entre as expectativas e interesses que diferentes grupos de leitores/as projetam sobre a prática de leitura. Assim, chamo atenção para os tipos de leitura que podem ser feitas em um manual como A Vida do Bebê – uma busca de respostas a situações adversas, como descrito no início desse capítulo; uma leitura minuciosa que acompanha o crescimento do bebê mês a mês – assim como a prática de leitura que um livro com as dimensões das últimas edições exige – em função do peso e do tamanho do livro que impedem levá-lo para todo lugar como uma revista, por exemplo. Por fim, ressalto que as considerações feitas por mim nessa Tese resultam de uma entre as possíveis leituras a serem realizadas, tendo em vista a riqueza do material. Nesse sentido, descreverei a seguir a edição de 1963. 1963 – 17ª edição A capa dessa edição é dura, possuindo 24 cm de altura e 17 cm de largura. O livro é composto de várias ilustrações: algumas são fotos (todas em preto e branco, com a exceção da 128 Ressalto que o termo cartografia aqui utilizado não está estritamente vinculado ao uso feito por alguns autores, como, por exemplo, Deleuze. 129 As citações desse texto em particular de Chartier foram traduzidas por Rosa Maria Hessel Silveira. 83 capa e da imagem da Virgem do Leite presente no interior do livro) de mulheres-mães e bebês, enquanto outras são desenhos que ilustram o bebê em diferentes espaços, como, por exemplo, o cercado. Na capa dessa edição130 encontramos no alto à esquerda uma imagem de Nossa Senhora com o menino Jesus no colo. Embaixo da imagem, centralizado, o título do livro e o nome do autor. No alto à direita encontramos o número da edição (17ª) e abaixo dele encontra-se escrito “aumentada e atualizada” (acredito que essa seja uma estratégia de venda de cada nova edição). Como explica Fabiana Marcello (2003), o discurso sobre a representação da maternidade não são exclusivos da Igreja Católica, mas são absorvidos e ressignificados em outras instituições e espaços sociais. Maria torna-se o ícone de boa mãe, utilizada no manual para que as mães possam almejar tal identidade de mãe bondosa, abnegada e com total dedicação e desprendimento (a esse tema voltarei no quinto capítulo dessa Tese). Nesse sentido, podemos pensar que tipos de sentimentos, por exemplo, o autor (ou editor) busca promover ao colocar uma imagem como a da Nossa Senhora na capa de um livro endereçado, principalmente às jovens mães. Na folha de rosto, no alto, temos o nome do pediatra seguido do epíteto “Laureado pela Academia Nacional de Medicina e Docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil”. Abaixo temos o título do livro seguido do subtítulo “ensinamentos e conselhos modernos e práticos, escritos especialmente para as mães criarem e educarem o seu filho, desde o 1.º dia de vida até completar os 2 anos, justamente na idade mais importante, difícil e interessante do ser humano”131, o número da edição, o ano da publicação e os dados da editora. Nas páginas seguintes temos uma citação132, uma dedicatória e um agradecimento. Na dedicatória, lê-se “êste livro é dedicado àquelas crianças desamparadas da sorte e da fortuna, cuja observação e estudo133 permitiram a formação profissional do autor, e que pela sua mesa de exame desfilaram nos diversos hospitais, humilde, chorosa e sofredoramente...134”. Já no agradecimento, encontramos “pela magnífica colaboração, beijo as mãos agradecido, de minha querida Germana, espôsa e secretária135”. 130 131 A capa encontra-se em anexo. Essa passagem será mais bem explorada no quinto capítulo da Tese, pois explicita a quem é endereçada a publicação. 132 Esta também será citada posteriormente por estar presente em todas as edições. 133 Aqui se pode visualizar a relação poder/saber médico, pois através do acúmulo de saber o médico pode ser considerado como aquele que salva as crianças dos sofrimentos. 134 Optei por manter a ortografia da época em todas as citações do autor. 135 Esse é o papel conferido à mulher no manual: esposa, mãe e auxiliar do médico. 84 Além das imagens de cunho religioso (há também a imagem da virgem do leite136) presentes no livro, a formação católica do pediatra aparece em outras passagens do manual. Um exemplo disso é que, segundo o autor, a primeira atitude em relação ao bebê prematuro deve ser batizá-lo (pois, na crença católica, acreditava-se que as crianças “pagãs” – não batizadas - mortas não iam para o Céu e, sim, para o Limbo das Almas137 pelo fato de as crianças carregarem o pecado original e este não ter sido apagado pelo batismo). No século XVIII, António Ferreira (2000) escreve que as más condições de higiene e a falta de conhecimentos médicos levaram a um grande número de óbitos de recém-nascidos138. Portanto, os primeiros meses eram os mais perigosos, fase em que o mais importante era batizar os pequenos para garantir-lhes, pelo menos, a salvação eterna, já que a garantia de vida na Terra não era possível. Em outro momento a Bíblia é utilizada para justificar que o castigo seja compatível com o amor materno (passagem que será citada no sexto capítulo). Para De Lamare a adoção da religião, no caso católica, é um valor que deve ser incutido desde cedo nas crianças pela família; nas suas palavras: Despertar na criança o conhecimento de um motivo superior da razão da nossa existência, para nós católicos – Deus -, com toda a influência dessa fôrça que dirige o comportamento humano, é tarefa aconselhável e louvável dos pais [...] A grande vantagem de uma boa religião é a de dar importância excepcional aos valores espirituais e morais da sociedade a que, sem dúvida alguma, pertencerá o jovem (DE LAMARE, 1963, p. 328). Nos livros analisados por António Ferreira (2000) também se encontravam recomendações de que, desde muito cedo, os pais dessem lições de princípios religiosos e da moral católica, para que as crianças não caíssem no pecado. Assim, a criança ouviria falar de Deus e aprenderia a rezar, sendo esta aprendizagem realizada com “naturalidade”. Gondra (2000) também chama atenção que, a partir da análise das teses defendidas pelos alunos ao final do curso para obtenção do título de doutor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 136 Reprodução de um quadro da escola de Van Eyck (pintor flamengo renascentista). Essa imagem é uma dentre as tantas representações de Nossa Senhora. 137 Em 2007, o Papa Bento XVI aprovou o estudo da Comissão Teológica Internacional, pelo qual as crianças mortas não batizadas não vão mais para o Limbo das Almas, mas são salvas e levadas ao Céu. 138 António Ferreira (2000) explica que essa urgência para o batismo era muito maior no Antigo Regime. Na França do século XVII a administração desse sacramento era nas primeiras 24 horas e em Portugal nos primeiros 8 dias. O batismo era compreendido como uma lavagem do pecado original, assim como expurgava o demônio. Dessa forma, “a criança ficava menos sujeita a contingências maléficas e, portanto, mais capaz de sobreviver. Tal ideia conjugava-se com a convicção de que as crianças não batizadas eram alvos preferidos das bruxas que atuavam chupando o sangue ou lançando algum feitiço por influência do diabo” (p. 274). 85 (FMRJ), no século XIX, muitos médicos procuravam associar preceitos cristãos e ciência moderna. Além disso, a edição publicada em 1963 possui 362 páginas divididas em 27 capítulos. Os capítulos se organizam, principalmente, por faixas etárias, ou seja, do capítulo I até o capítulo XX, compreende-se – de forma crescente, mês a mês - do nascimento até os 2 anos de idade. Os últimos sete capítulos tratam de práticas médicas domiciliares, socorros urgentes, como evitar “moléstias” e doenças, finalizando com uma descrição dos bebês-problema e a educação da criança. Em cada capítulo relativo às faixas etárias são descritas as medidas ideais, as características da criança com essa idade (como, por exemplo, a inteligência e a personalidade), o processo de dentição, o método de vida (assim nomeadas pelo autor as práticas que visam ao cuidado da saúde e a educação da criança), a vacinação e a alimentação. Ao longo dos 27 capítulos percebe-se a ênfase dada às áreas da pediatria, psicologia infantil e educação, o que poderíamos associar ao exposto por António Ferreira (2000), na pesquisa já citada no capítulo anterior, que a partir dos últimos dois séculos já não bastava apenas garantir a vida do bebê, era preciso educá-lo desde o berço, para evitar “a formação de gênios impertinentes, obstinados e imperiosos” (p. 288). Ademais, gostaria de citar as práticas higiênicas presentes em todo o livro. Relembremos que, segundo Lima e Rodrigues (2006, p. 5) “os manuais de puericultura foram um recurso largamente empregado para essa tarefa [a prática higiênica], associando conhecimentos científicos e orientações práticas destinadas a garantir o bom desenvolvimento dos bebês”. No entanto, as mesmas autoras ressaltam que os livros foram apenas um dos recursos utilizados pelos pediatras para intervir na atuação das mães. Os meios de comunicação, programas governamentais, campanhas e instituições, como, por exemplo, hospitais e maternidades, também foram importantes no governamento da maternidade. Como define Ripoll (2004), no caso de sua pesquisa sobre o aconselhamento genético, os especialistas poderiam ser pensados como “facilitadores de decisão”, através do discurso científico que aponta o que é melhor para as crianças, os pais e as mães. Em A Vida do Bebê, observa-se uma grande ênfase higienista em tudo que se refira ao bebê. Assim, objetos, móveis, brinquedos e roupas devem ser minuciosamente limpos e regularmente higienizados. Um exemplo disso são os tópicos sobre lavagem da roupa do bebê (descrita minuciosamente), como deve ser organizado e limpo o quarto do bebê, de que materiais devem ser os utensílios, os móveis e o piso (materiais que possibilitem a fácil higienização, assim como possibilitem maior ventilação e iluminação). O contato físico entre pessoas e o bebê também é totalmente condenado. 86 Os adultos que convivem com o bebê devem estar em perfeito estado de saúde. Cuidado com os criados! [lembrem-se do receio para com os serviçais dos higienistas do século XIX, descrito no capítulo anterior]. A ama sêca139, principalmente, deve ser examinada pelo médico antes de ser admitida. [...] E, sobretudo, evitar o beijo. „Pessoa adulta que beija criança não tem educação, especialmente educação sanitária‟” (DE LAMARE, 1963, p. 253). O excessivo cuidado com a higiene da criança, assim como a tudo que se refira a ela, faz parte de um contexto histórico específico, como já descrito no capítulo anterior. Segundo o pediatra, “para criar o bebê sadio e forte e em boas condições no primeiro ano de vida, é aconselhável isolá-lo” (1963, p. 17). Assim, principalmente na primeira metade do século XX, estava instaurada uma “guerra” contra hábitos e crendices não científicas. Isto fica muito visível em diversas páginas de A Vida do Bebê, como destacarei no próximo capítulo. Por fim, gostaria de ressaltar também a temática dos produtos veiculados em A Vida do Bebê. No livro, grande parte dos produtos indicados, como alimentação, medicamentos, sapatos para correção e produtos de higiene destinados ao bebê são referidos através das marcas. Um exemplo disso são os produtos de higiene como cremes, talcos, sabonetes e óleos, em que a marca mais citada é Johnson, apontando para um certo endereçamento de classe social. Feito esse mapeamento geral da edição de 1963 (as especificidades do discurso médico serão tratadas no próximo capítulo), verificaremos como esses tópicos foram tratados na edição publicada em 2002. 2002 – 41ª edição Na capa dessa edição140 temos na parte superior a imagem de uma bebê (assim pode ser identificada pelo brinco de pérola, além de vestido cor de rosa e faixa de cabelo com um tope da mesma cor, demarcando bem o gênero ao qual pertence a criança), de olhos castanhos esverdeados e cabelos castanhos. Ela olha para o lado, com um leve sorriso, e deste lugar para o qual ela olha emana uma luz que ilumina o seu rosto141. O fundo da capa de A Vida do Bebê é azul, com o título, abaixo da imagem, em letras douradas. O nome do autor aparece acima da imagem em letras brancas. Na contracapa temos uma pequena foto de De Lamare vestindo terno (e não jaleco) ao lado de uma breve autobiografia sua, no qual são exaltados seus feitos e títulos recebidos. 139 140 Expressão utilizada na época pelo médico, para referir-se a babá. A capa encontra-se em anexo. 141 Essa luz poderia representar a ciência que inventou saberes que “salvaram” os pequeninos das “trevas da ignorância” (utilizando palavras do autor)? 87 Ademais essa edição é maior tanto em termos de altura e largura (28 cm x 20 cm), quanto de número de páginas, em relação à edição publicada em 1963. A capa também é dura, como em 1963, mas a qualidade do papel é superior. As páginas são coloridas e possuem muitas fotos de crianças. Na capa nota-se novamente a mesma estratégia observada na edição publicada em 1963; lê-se: “41ª edição revista e ampliada”. Essa edição, pelo tamanho, volume e peso, não é um livro que as pessoas possam levar com facilidade a qualquer lugar, impondo uma certa prática de leitura, ou seja, é um livro que se lê, a princípio, em casa, estando este pousado sobre uma mesa. Como escreve Chartier (1996, p. 111) “[...] devemos recordar que não existe texto fora do apoio que lhe dá a leitura (ou o fato de escutar) e que não existe compreensão de um escrito que não dependa das formas nas quais chega ao seu leitor”. Logo nas primeiras páginas encontramos o mesmo subtítulo e a mesma imagem de Nossa Senhora com o menino Jesus no colo presente na capa da edição publicada em 1963. Na página ao lado, temos a seguinte epígrafe: “a maior felicidade e proteção do bebê é ter seus pais perfeitamente esclarecidos quanto a sua criação e educação”. Na página 6 também está presente a mesma citação de Pinard e, na página 7, a dedicatória e o agradecimento à esposa permanecendo iguais aos da edição publicada em 1963. Penso que talvez o deslocamento da imagem religiosa da capa para o interior seja uma estratégia para atrair leitoras não tão religiosas, assim como dar um aspecto mais laico, científico e moderno à publicação. António Ferreira (2000) explica que, nos manuais portugueses do século XVIII por ele analisados, os discursos religiosos foram substituídos pelo discurso iluminista, numa perspectiva cívica e laica, na educação da infância; nesse novo enfoque, “as propostas valiam agora mais pela sua lógica e pertinência, pela persuasão dos seus argumentos, pela verossimilhança das situações descritas do que pela autoridade dos textos sagrados” (p. 286). Apesar de encontrarmos a mesma imagem de Maria no começo da edição publicada em 2002, o tema religião não será mais abordado, assim como não será feita menção a apressar o batismo no caso de prematuros. O batismo apenas será citado quando o autor falar sobre as roupas do bebê, entre elas a que deveria ser utilizada nesse momento. De forma semelhante à edição publicada em 1963, cada capítulo de A Vida do Bebê, edição de 2002, apresenta em sua abertura uma imagem de um bebê (em 1963 as imagens eram em preto e branco, já em 2002, são coloridas), acompanhada de uma legenda e de um quadro com os números relativos à média esperada para seu desenvolvimento (peso, estatura, perímetro cefálico, perímetro torácico e ganho de peso mensal). No entanto, as imagens, legendas e medidas são diferentes em 2002, como poderemos analisar no sexto capítulo. Além disso, nessa edição temos uma introdução após o quadro, explicando como deveria ser a 88 criança naquele período. Após essa breve apresentação, seguem-se os tópicos sobre a formação da personalidade, o desenvolvimento da inteligência e a alimentação (estes estão presentes em todos os capítulos que acompanham o desenvolvimento do bebê). O subcapítulo “Método de vida”, presente na edição publicada em 1963, foi incorporado na introdução dos capítulos que descrevem como é o bebê daquela idade, ou no subcapítulo “Ensinamentos Complementares”. A edição de 2002 possui 771 páginas divididas em 31 capítulos, além de um índice de medicamentos que se encontra no final do livro. Assim como a edição anteriormente analisada, cada capítulo (do 1º ao 25º) enfatiza uma faixa etária que compreende do nascimento aos 2 anos de idade, também mês a mês. Do 26º ao 31º capítulos temos a abordagem das práticas médicas domiciliares, dos socorros urgentes, de como evitar doenças e acidentes, das doenças infecciosas, das doenças comuns na criança (não-contagiosas) e dos chamados bebês-problema. Dentro de cada capítulo sobre uma faixa etária específica, são prescritas formas de educar desde cedo a criança e são apresentados tópicos sobre a formação da personalidade, o desenvolvimento da inteligência, a alimentação, a vacinação, a disciplina, dentre outros temas característicos de cada mês. Já as práticas higiênicas em muitos aspectos continuam iguais. Tudo que se refira ao bebê, como, por exemplo, fraldas, quarto, liquidificador, mamadeiras, brinquedos, etc, deveria ser lavado ou esterilizado regularmente. No entanto, não mais é necessário utilizar, por exemplo, máscaras para fazer a mamadeira ou ferver as fraldas, como ocorria na edição publicada em 1963. Também se deve destacar o surgimento das fraldas descartáveis e dos lenços umedecidos “que proporcionam a praticidade que a vida moderna exige” (DE LAMARE, 2002, p. 20), facilitando em grande parte as tarefas higiênicas relativas à evacuação e à micção do bebê. Os produtos para higiene infantil também mudaram. A marca Johnson foi substituída pelas marcas Nívea Baby e Natura – talvez por que sejam marcas que estejam mais próximas ao que a consumidora de classe média e alta preferem hoje, por serem produtos mais “ecologicamente corretos”. Os remédios serão nomeados pelos seus nomes genéricos e também pelas marcas disponíveis e conhecidas no mercado farmacêutico. De Lamare sempre ressalta que a mãe “não use remédios sem orientação do seu pediatra” (p. 21), reafirmando a importância do especialista. Outro tema que deve continuar sendo alvo de muitos cuidados por parte dos pais é a escolha da babá. Os pais devem continuar atentos à saúde daquela, exigindo uma radiografia dos pulmões para contratá-la, além de estarem sempre atentos ao seu comportamento e à 89 possibilidade de estar omitindo informações sobre a criança que possa comprometer a sua saúde, como, por exemplo, quedas e tombos. Não obstante, outras práticas mudaram, como, por exemplo, o banho. Ao contrário da edição publicada em 1963, em que o banho só era recomendado após a queda do coto umbilical, em 2002, ele é recomendado após as duas horas de repouso na incubadora, tendo-se cuidado apenas para não molhar o coto. Já o banho de imersão total só é recomendado após a queda. Também ao contrário do proposto na edição de 1963, em 2002, o bebê não precisa mais ser isolado de outras pessoas, mas deve-se limitar as visitas e os contatos para evitar que seja infectado. No entanto, todo cuidado é pouco, pois, segundo o pediatra, qualquer enfermidade pode evoluir para algo mais sério. Mantém-se a indicação de que adulto que beija recém-nascido não possui educação sanitária, como em 1963. Um exemplo desse cuidado é a sugestão de cartaz para ser colocado diante dos visitantes na maternidade e em casa (DE LAMARE, 2002, p. 35): NÃO me beije. NÃO faça gracinhas no meu rosto. NÃO fale alto. NÃO fale debruçado sobre mim. NÃO me segure ao colo. NÃO segure minhas mãos sem antes lavar as suas. NÃO bata a porta. NÃO tussa no meu quarto. NÃO acenda luz forte. NÃO venha com muita gente. NÃO venha resfriado. SIM, dê-me presentes úteis e seguros. Como pode ser observado acima, o quarto do bebê continua descrito e “vigiado” no detalhe, como na edição de 1963. A regra para o pediatra permanece sendo “luz apagada, vidraça aberta e porta fechada” (2002, p. 21), além de se evitar cores “vivas” (sic) ou figuras que “acabarão por fatigar ou irritar o bebê” (ibidem). Nessa edição foram encontrados muitos temas novos, como a escolha do pediatra (deve ser feita pelos pais, por recomendação de outro profissional ou de familiares; também deve ser verificado se o pediatra escolhido é habilitado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, se pode ser localizado facilmente, etc), a escolha do hospital (que deve ser realizada de comum acordo entre casal, pediatra e obstetra), os cuidados psicológicos da mãe com o bebê, o que a mãe deve contar ao pediatra, o exame de Apgar, o cigarro na vida do bebê, o teste do pezinho, a descrição de doenças hereditárias, genéticas e desconhecidas em 1963 (como a 90 AIDS), os cuidados com o bebê nas viagens de avião e de automóvel, a escolha da creche e a preocupação desde os primeiros meses com a educação, a linguagem e a disciplina do bebê. Assim, na maioria dos capítulos existe um maior grau de detalhamento das informações (algumas novas e outras diferentes de 1963), assim como a inclusão de temas novos, como já citado anteriormente. Também são citados os endereços de instituições para que os pais possam entrar em contato demandando maiores informações, como, por exemplo, a Associação de Fibrose Cística e o Centro de Desenvolvimento do Down. E, para os pais que querem continuar acompanhando o desenvolvimento dos filhos após os dois anos, De Lamare sugere a leitura de Nossos filhos de 2 a 16 anos também de sua autoria. No final do livro datado de 2002, há o endereço do Dr. Geraldo Leme para “a leitora que queira contribuir para o aperfeiçoamento deste livro, enviando sugestões, apontando falhas” (p. 771). Na edição de 1963, essa estratégia também existia na forma de um folheto encontrado dentro do livro (no caso com o endereço do próprio De Lamare). Por fim, nesse capítulo procurei explorar as tecnologias para o governo das famílias, centrando-me, ao final, na descrição das edições de 1963 e 2002 de A Vida do Bebê. No próximo capítulo, objetivo explorar mais o discurso especialista presente nessas edições. 91 OS DISCURSOS MÉDICOS NA PROMOÇÃO DE BIOPOLÍTICAS DIRIGIDAS ÀS MÃES O que todo mundo vê nem sempre se viu assim. O que é evidente, além disso, não é senão o resultado de uma certa dis-posição do espaço, de uma particular exposição das coisas e de uma determinada constituição do lugar do olhar (LARROSA, 2002a, p.83). A quem compete a autoridade para falar sobre a infância? Como essa autoridade se estabelece? Como o saber da ciência é justificado como o mais adequado para orientar as práticas em relação às crianças? Que ordens de discurso sustentam tais práticas preconizadas? Tais questões serão problematizadas neste capítulo a partir da literatura médica de aconselhamento para as mães. Assim, na primeira parte trago algumas informações sobre a biografia142 de Rinaldo De Lamare, que poderão nos auxiliar na compreensão de por que A Vida do Bebê se tornou o maior manual brasileiro para as mães. Na segunda parte, contextualizo a emergência da medicina social (e, dentro desse espectro de áreas que se constituíram, ressalto a Puericultura) e a produção de saberes sobre a população a fim de potencializar a vida. Por fim, exploro os discursos presentes no livro A Vida do Bebê, em suas duas edições, tendo em vista que muitas são as vozes que ecoam no manual, provenientes de diferentes campos, principalmente, da medicina, da pedagogia e da área psi. Além disso, citarei três manuais de autores brasileiros, contemporâneos de Rinaldo De Lamare, a fim de verificar se os discursos que circulam nesses materiais são semelhantes àqueles proferidos em A Vida do Bebê, e/ou no que se diferenciam. Tais manuais são: Higiene e Puericultura143 de Valdemar de Oliveira144, publicado em 1956; Manual de Mães145 de Ladeira Marques146, editado em 1945; e Meus Filhos147 de Alfons 142 Conforme escreve Albuquerque Júnior (2007, p. 6) “a escrita biográfica é um gênero de discurso que visa dar uma coerência, construir uma homogeneidade, estabelecer uma continuidade para experiências que são por definição dispersas, fragmentárias, descontínuas”. 143 Esse manual era destinado, principalmente às cadeiras do Curso Pedagógico dos Institutos de Educação do Brasil e fazia parte da Coleção Didática do Brasil da Série Normal da Editora do Brasil. Possui 331 páginas, divididas por temáticas. As imagens presentes nesse manual são, em sua maioria desenhos que representam a temática discutida, embora também existam mapas e poucas fotos em preto e branco. 144 Médico e professor de Higiene da Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco e das Faculdades de Medicina da Universidade do Recife. 145 Esse livro possui 246 páginas e se organiza por temáticas. As imagens presentes no manual são desenhos em preto e branco, que representam determinadas situações descritas na página na qual se insere. 146 Médico. O prefácio do livro é assinado por Olinto de Oliveira (então Diretor do Departamento Nacional da Criança – cargo posteriormente ocupado por De Lamare). 147 Este livro possui 400 páginas e é organizado por temáticas e, dentre os manuais analisados, é o único que se estende até a juventude. Dentre as imagens presentes nesse manual encontramos desenhos em preto e branco que 92 Balbach148, lançado em 1967. A partir desses livros busco problematizar as seguintes questões149: o que tornou o manual de Rinaldo De Lamare mais atraente que os outros? seria a quantidade de informações? a maneira de se dirigir às mães? a forma de descrever o bebê? o teor das orientações? a confiabilidade que as mães depositavam nele? a acessibilidade da publicação? dentre outros questionamentos possíveis que serão explorados ao longo dos demais capítulos. O autor de A Vida do Bebê – Rinaldo De Lamare Julgo necessário trazer aqui algumas considerações a respeito do autor – Dr. De Lamare150, como ficou conhecido o pediatra Rinaldo Victor De Lamare. Nascido em Santos (SP), em 2 de janeiro de 1910, formou-se pela Faculdade Nacional de Medicina, atual UFRJ, em 1932, ano em que fundou uma clínica no subúrbio de Madureira (RJ), onde implantou o tratamento de hidratação oral para a diarréia – então a principal causa de mortalidade infantil no país. A simples receita, que consiste na mistura de uma colher de sobremesa de açúcar e uma colher de chá de sal num copo de água filtrada a ser administrada em uma colher de chá a cada 15 minutos, tornou-o um pediatra conhecido. A receita desagradou colegas que receitavam medicamentos em troca de comissões de até 20% sobre o valor gasto pelo cliente na farmácia. Diante dos resultados obtidos pelo soro caseiro, De Lamare ganhou notoriedade, o que motivou o início de uma romaria ao pequeno consultório na Estrada da Portela. “Cheguei a atender 100 crianças num só dia”, recorda o pediatra em uma entrevista à revista Época disponível na Internet. Além disso, participou do movimento para vencer os adversários à vacina contra a poliomielite e difundi-la. Em 1940, teve a ideia de reunir conhecimentos práticos num livro inspirado no Guia das Mães, do pediatra brasileiro Germano Wittock. A Vida do Bebê, lançado em 1941151, já vendeu mais de 6,7 milhões de exemplares até janeiro de 2004152, uma marca impressionante representam situações descritas pelo autor, além de fotos coloridas de crianças de cor branca, na maioria, loiras e de olhos azuis. 148 Pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Possui diferentes livros sobre suas pesquisas sobre nutrição e plantas medicinais. A edição analisada desse manual é a primeira, tendo sido publicado uma tiragem de dez mil exemplares. 149 Tais questões foram levantadas por ocasião da banca de qualificação. 150 As informações referentes a biografia do pediatra foram extraídas de: ; ; . Acesso em maio de 2004. 151 Essa primeira edição vendeu mil exemplares, o que já é um número significativo para época. 152 Jornal do Brasil, 29 de janeiro de 2004. 93 considerando o mercado editorial brasileiro e o tipo de publicação: um manual com endereçamento restrito. Na maior parte dos seus 92 anos de vida, De Lamare se dedicou à pediatria, tendo publicado oito livros, além de A Vida do Bebê, sendo o primeiro deles o também famoso A Vida de Nossos Filhos (com 14 edições, que trata das questões que envolvem as crianças entre 2 e 16 anos), além de A Educação da Criança, Diário do Bebê, Manual Básico da Alimentação Escolar e A Grávida e o Bebê153. Cabe aqui citar o anúncio publicitário do livro A Vida do Bebê, publicado na revista O Cruzeiro, de 25 de junho de 1949 (página 96): O melhor livro brasileiro sobre o problema da criação da criança. O autor, Dr. Rinaldo De Lamare, especializando-se na clínica infantil, condensou num notável volume toda a sua longa experiência e todos os conhecimentos modernos sobre o assunto. Este livro é o mais fácil de ser manuseado. O que contém mais conselhos úteis. O que explica o modo de cuidar da criança desde o nascimento até a idade escolar. O que fornece tabelas e gráficos explicativos e melhor ensina como alimentar o bebê. Um livro de utilidade em todos os lares. Um conselheiro das mães e um amigo das crianças. Cr$ 60,00 Em todas as livrarias ou pelo Reembolso Postal. Rua Livramento, 203, Rio de Janeiro. Nessa propaganda podemos localizar a que se propunha o manual – a criação da criança, a pretensa modernidade de tais ensinamentos e o endereçamento às mães, qualificado, o livro, como de fácil manuseio, útil e com as respostas por que as mães mais anseiam: o modo correto de cuidar e de alimentar o bebê. De Lamare também foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) de 1948 a 1949, diretor do Departamento Nacional da Criança, superintendente e vice-presidente da Legião Brasileira de Assistência, ambos criados no governo de Getúlio Vargas. Além disso, foi livre docente pela Faculdade Nacional de Medicina e professor titular da cadeira de Pediatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em 1964, foi convidado a dirigir o Departamento Nacional da Criança, ocasião em que, numa viagem a Pernambuco, deparou-se com o quadro de miséria que assolava aquela região: “a média era de seis crianças por mãe e cada criança recebia uma colher de sopa de leite por dia”, relata De Lamare na entrevista citada anteriormente. Em função da triste realidade encontrada no Nordeste brasileiro, o pediatra preparou um relatório no qual defendia o planejamento familiar, sugerindo o número de dois filhos por casal. Em decorrência de tal relatório, foi convocado pelo presidente da República, General Humberto Castello Branco: “ele disse que eu iria jogar 153 Nas pesquisas empreendidas não foi possível localizar os dois livros que compõem toda a produção de Rinaldo De Lamare. 94 o governo contra a Igreja, contrária à anticoncepção, e o Exército, que queria população numerosa para ocupar as fronteiras do Norte”, explica o pediatra em matéria da revista Época. Decepcionado, o pediatra voltou ao consultório, já então transferido para Copacabana (RJ). No entanto, permaneceu ligado a políticos, tratando dos netos de três presidentes militares: Castello Branco, que, apesar das divergências, o manteve na família, Artur da Costa e Silva e Emilio Médici. Clinicou até os 75 anos. Em 1991, assumiu a presidência da Academia Nacional de Medicina, tornando-se o segundo pediatra a chegar a esse cargo. Ademais, participou dos mais diferentes eventos relacionados à saúde da criança no Brasil e no exterior e, em muitos deles, compareceu na condição de delegado oficial do Brasil. De Lamare faleceu em sua residência, no dia 28 de abril de 2002, por insuficiência respiratória. Por ocasião de sua morte o Senado aprovou um requerimento do senador Pedro Simon154 para inserção em ata de nota de profundo pesar pelo falecimento do pediatra. Após a morte do pediatra, a família recebeu diversas homenagens155, como, por exemplo, as medalhas Fiocruz/Instituto Fernandes Figueira do Mérito em Saúde da Mulher e da Criança, em 2005. Também localizei Projeto de Lei que declara o pediatra em questão o patrono da pediatria brasileira156. O autor do projeto indica De Lamare pelas medidas que adotou na redução da mortalidade infantil no país, como, por exemplo, a hidratação oral, o planejamento familiar e o aleitamento materno. O nome do pediatra também tornou-se nome de escola no município do Rio de Janeiro e de um centro de cidadania na mesma cidade. Este último abriga catorze órgãos municipais que visam desenvolver diversos projetos sociais, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Assistência Social, como cursos profissionalizantes, programas educativos e serviços para todas as idades. 154 Simon inclusive declarou que o livro A Vida do Bebê “é tão útil que, além de lê-lo com frequência para resolver problemas relativos a seus três filhos, comprou mais de 50 exemplares para presentear amigos”. O senador Lindberg Cury também afirmou na matéria do Jornal do Senado (datado de 30 de abril de 2002) que o manual “foi o seu „livro de cabeceira‟ durante a criação de seus três filhos”. Notícia encontrada em: http://www.senado.gov.br/jornal/noticia.asp?codEditoria=21&dataEdicaoVer=20020430&dataEdicaoAtual=200 61226&nomeEditoria=Plen%E1rio&codNoticia=4524. Acesso em março de 2007. 155 Em vida, De Lamare também foi agraciado com diversas homenagens, como, por exemplo, a condecoração com a Medalha Tiradentes, dada pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro pelo seu trabalho, em 1998. 156 Atualmente, De Lamare ocupa a posição de titular 1, da cadeira 28 do patrono Luiz Osório Serafim. A Sociedade Brasileira de Pediatria atualmente possui 30 patronos. 95 A medicina social como estratégia biopolítica Como nos relembra Foucault (2002a), não haveria começo – origem – de um discurso e, por isso, a emergência da medicina social só pode ser pensada como um processo que se constitui com o surgimento da problemática da população. Para nos explicar isso, em “O nascimento da medicina social” (2003d), Foucault reconstitui três etapas da formação da medicina social: a medicina de Estado (na Alemanha), a medicina urbana (na França) e a medicina da força do trabalho (na Inglaterra). O mesmo autor também ressalta que “a inserção da medicina no funcionamento geral do discurso e do saber científico157 se fez através da socialização da medicina, devido ao estabelecimento de uma medicina coletiva, social e urbana” (ibidem, p. 92). A medicina de Estado desenvolvida na Alemanha, no século XVIII, visava promover “uma prática médica efetivamente centrada na melhoria do nível de saúde da população” (ibidem, p. 83). Essa polícia médica consistia em: um sistema de observação da morbidade, uma normalização da prática e do saber médico (controle do Estado sobre a formação médica), uma organização administrativa para controlar a atividade dos médicos e uma estrutura de médicos nomeados pelo Estado para a responsabilização por uma região (surge, então, a figura do médico como administrador da saúde). No caso alemão, o que importava não eram apenas os corpos dos trabalhadores, mas os corpos dos indivíduos que constituem o Estado em sua totalidade. Nas palavras do autor, “[...] desde a medicina de Estado alemã, nenhum Estado ousou propor uma medicina tão nitidamente funcionarizada, coletivizada, estatizada quanto a Alemanha” (p. 85) do final do século XVIII e começo do XIX. Já na França do mesmo período, vemos constituir-se uma medicina social a partir do fenômeno da urbanização. A formação de um espaço urbano unificado, inicialmente, se buscou por razões econômicas, devido às relações comerciais e, posteriormente, por razões políticas. O grande número de pessoas pobres que aportavam e se instalavam na cidade aumentava as tensões políticas entre os diferentes grupos, o que provocava um sentimento de medo crescente na população. Assim, através da higiene pública buscou-se aplicar o modelo da peste, o qual consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um [...] e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto 157 A ciência, nessa pesquisa, é considerada um espaço que produz e legitima determinados saberes, em detrimentos de outros. 96 quanto possível completo, de todos os fenômenos (FOUCAULT, 2003d, p. 89). Essa medicina urbana francesa objetivava: atacar as regiões de amontoamento de tudo que pudesse provocar desordens e doenças, como, por exemplo, o deslocamento dos cemitérios para fora da cidade e dos caixões individuais (e não mais o empilhamento dos cadáveres); controlar a circulação, não dos indivíduos, mas das coisas ou dos elementos, como, por exemplo, a água e o ar (devido à teoria dos miasmas158); e, enfim, organizar os diferentes elementos necessários à vida comum, como fontes de água potável e esgoto. Foucault ressalta que a medicina urbana possibilitou o contato da medicina com outros campos (como, por exemplo, a química), além de torná-la uma medicina das condições de vida e do meio de existência e não necessariamente dos corpos dos indivíduos unicamente. Outra noção importante surgida nesse contexto foi o da salubridade, como “[...] o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível” (ibidem, p. 93). Um exemplo desse modelo de medicina social pôde ser visto também no Brasil, através da pesquisa empreendida por Gondra (2000), na qual o autor analisa teses defendidas pelos alunos ao final do curso para obtenção do título de doutor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ), no século XIX, nas quais, apesar da maioria delas ser sobre aspectos cirúrgicos e patológicos, uma parcela delas investia na prevenção das doenças através da intervenção médica no meio urbano. Os médicos, assim, seriam vistos como “cientistas do social” e “planejadores do urbano” (p. 325). E, por fim, temos o modelo inglês de medicina social desenvolvido no século XIX. Nesse modelo temos os pobres e os trabalhadores como objetos de medicalização, promovendo [...] a ideia de uma assistência controlada, de uma intervenção médica que é tanto uma maneira de ajudar os mais pobres a satisfazer suas necessidades de saúde, sua pobreza não permitindo que o façam por si mesmos, quanto um controle pelo qual as classes ricas ou seus representantes no governo asseguram a saúde das classes pobres e, por conseguinte, a proteção das classes ricas (ibidem, p. 95). 158 Essa teoria referia-se à crença de que a qualidade do ar exercia fator direto sobre a saúde do indivíduo, pois ele conduziria elementos patogênicos; por isso, também, a transferência dos cemitérios para fora da cidade, impedindo que a ação do ar carregado de putrefação pudesse atingir a população, assim como o alargamento das ruas e avenidas, a fim de que o ar puro pudesse circular melhor. 97 Em termos objetivos, esse sistema visava controlar a vacinação - obrigando a população a se vacinar159 - organizar o registro de doenças, localizar focos de insalubridade e agir sobre esses lugares. Como expõe Foucault no artigo referido, foi o modelo da medicina inglesa que se disseminou no mundo Ocidental do século XIX e XX, pois possibilitou três coisas: “[...] assistência médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e esquadrinhamento geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos perigos reais” (ibidem, p. 97). Um dos ramos que levará a contento o propósito da medicina social será a Puericultura. Como descreve Maria Manuela Ferreira (2000), esta estaria vinculada aos cuidados da criança do pré-natal aos três anos de idade, possuindo “um caráter mais descentrado da criança, globalizante e coletivo, porque procurará questionar, articular e intervir eficazmente nas diferentes relações bio-sócio-culturais que em seu torno se entrecruzam” (p. 88), enquanto a Pediatria constitui-se mais pelo estudo fisiológico da criança entre os 0 aos 12 anos de idade. Para a autora referida acima, [...] a Puericultura será, pelas suas atribuições, a ciência médica eleita por melhor se adequar a perseguir tais propósitos junto das populações e, em particular, das mães. Encontrará na educação, o mecanismo social privilegiado para desencadear uma cruzada civilizadora que se pretende não apenas curativa (a partir da Pediatria e centrada no indivíduo), mas preventiva, educativa, centrada no coletivo social. [...] onde os médicos são os arautos de uma nova ordem sócio cultural (p. 88-89). Ladeira Marques, nas páginas iniciais de seu Manual de Mães, manifesta-se nesse sentido, explicando que “a medicina do futuro será essencialmente preventiva. A medicina do passado, essencialmente individualista, encarando em si o doente como unidade patológica cede o passo, no momento, às grandes realizações da medicina social relativas à proteção da coletividade” (1945, p. 15). A Puericultura, dessa forma, endereçará seus preceitos às mães e às normalistas através de cursos e manuais visando educar principalmente a população feminina, em relação às crianças. Dessa forma, a educação também será alvo de investimentos dos médicos, pois a “verdade” médica precisava ser ensinada a mães e professoras para que uma infância higiênica, saudável e normal pudesse se constituir e, consequentemente, uma nação forte e saudável. 159 No caso do Brasil, podemos referendar a Revolta da Vacina, no começo do século XX, como uma forma de resistência a esse controle do Estado da saúde da população. 98 Como escreve Gondra (2000) muitos médicos viam na casa, na mãe e na educação as forças que mais intervêm na formação higiênica dos jovens. Portanto, era preciso intervir principalmente na organização da casa (especialização dos cômodos da casa e promoção da privacidade), e da família, através da aliança mãe-médico e da estruturação de escolas nos padrões higiênicos. Segundo Martins (2008), os médicos atuaram de três modos articulados: primeiro como especialistas, através das clínicas, organizando e divulgando seus conhecimentos; segundo, atuando como funcionários públicos junto às instâncias políticas; e, por fim, educando a maternidade através de conjunto de meios, como, por exemplo, as maternidades, os manuais e a mídia em geral. Os discursos médicos nos manuais Nessa parte do capítulo, procuro problematizar trechos dos discursos enunciados por De Lamare em A Vida do Bebê, em suas edições (1963 e 2002) e nos três manuais publicados entre 1945 e 1967 (e, portanto, contemporâneos às primeiras edições de A Vida do Bebê). Ao problematizar tais discursos não viso revelar finalmente o que os autores quiseram dizer mesmo, mas principalmente “as relações de poder que os possibilitaram” (DIAZ, 1993, p. 13). Embora De Lamare seja o autor de A Vida do Bebê, compreendo-o, como explicou Foucault (2002a), não “como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de argumento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (p. 26). Nesse sentido, embora tenha descrito De Lamare como o autor do manual em questão, vejo-o como porta-voz, como princípio organizador de uma série de discursos de diferentes campos, como poderemos ver a seguir. Além disso, a leitura dos demais manuais pôde refinar meu olhar para aquilo que distingue A Vida do Bebê e para as semelhanças discursivas presentes nos manuais da metade do século XX. A linguagem utilizada pelos autores dos manuais afina-se com os apontamentos da pesquisa empreendida por Lima e Rodrigues (2006), na qual as autoras analisaram treze manuais de puericultura destinados às mães e publicados no Brasil entre 1918 e 1941. As autoras dividiram os manuais em três grupos: o primeiro era constituído por manuais organizados a partir de artigos publicados em jornais ou veiculados pelo rádio; o segundo constituía-se de livros didáticos para cursos de puericultura, embora também fossem manuais para mães; e, no terceiro, encontravam-se livros escritos exclusivamente para auxiliar as mães no cuidado e educação das crianças. 99 Enquanto aqueles destinados a cursos de puericultura apresentam uma preocupação maior em apresentar a fundamentação científica das recomendações, os livros destinados às mães priorizam a clareza e a simplicidade do texto, possuem uma linguagem mais informal e convidativa, falam diretamente à mãe e enfatizam a prática, recorrendo às justificativas científicas apenas como uma forma de legitimar regras a serem seguidas (LIMA e RODRIGUES, 2006, p. 9). Assim, como será mais bem evidenciado nesse capítulo e nos dois seguintes também, o discurso médico endereçado às mães e aos pais é construído no manual de forma persuasiva, utilizando-se de um discurso científico e atual (para o contexto histórico), que procura aconselhar ao invés de ordenar, criando uma relação de confiança (e até poderíamos dizer de cumplicidade) entre médico e leitora. E, como todo regime discursivo, está vinculado a determinadas premissas e determinadas restrições. Dessa forma, podemos ver os manuais não somente como narrativas de como educar e cuidar dos bebês, mas como a materialização das relações de força de um saber, que se forma muitas vezes pela constante repetição (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Um exemplo disso é o constante apelo às mães que não aceitem conselhos de outras pessoas que não o médico, como veremos a seguir. Guerra às crendices e a legitimidade do saber médico Como poderemos ver ao longo desse capítulo, a legitimação do médico para falar sobre a saúde da criança será constantemente reafirmada por certas “credenciais”, ou seja, o poder de legitimação do discurso médico se deve ao fato de ele fazer parte de uma instituição que lhe dá suporte para afirmar determinadas coisas e negar outras. Assim, na edição de 1963, de A Vida do Bebê, De Lamare recomenda que as mães não dêem ouvidos a conselhos de outras pessoas que não o pediatra, principalmente, “comadres” e avós, por serem frutos de crendices que não possuem nenhuma comprovação científica ou até prejudicam o estado de saúde do bebê. Assim, essas avós e comadres não poderiam falar de um campo no qual não estão inseridas e, a partir disso, o médico desconsidera o discurso da crença popular, promovendo uma separação entre o discurso verdadeiro – a ciência, no caso, a medicina - e o falso – o saber popular. Um exemplo disso é a forma como aborda a tumefação da mama do recém-nascido. Segundo De Lamare, esse problema é causado pela hipertrofia das glândulas mamárias do recém–nascido e, quando espremida, jorra um líquido semelhante ao leite materno, denominado na crença popular de “leite de bruxa”. A voz da ciência pronuncia-se da seguinte forma sobre essa denominação: “sendo um fato normal, não há, absolutamente, razão para dar interpretações feiticeiras, traduzindo ignorância de quem as pronuncia” (p. 21). 100 Nesse sentido, Foucault (2002a) nos explica que “para pertencer a uma disciplina, uma proposição deve poder inscrever-se em certo horizonte teórico” (p. 33), além de responder a certas condições. Uma proposição como a citada acima (“leite de bruxa”) deixa de ser considerada da área médica, por exemplo, para ser enquadrada como uma crendice popular. A disciplina (no caso a medicina), assim, “é um princípio de controle da produção do discurso” (p. 36). Além disso, nessa ordem discursiva, Foucault nos chama a atenção para um outro grupo de procedimentos que permitem o controle dos discursos: a rarefação - ou seja, “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (p. 37). Martins (2004), em sua pesquisa sobre a medicina da mulher do século XIX e XX, explica que a desqualificação das práticas enraizadas na cultura popular estava associada a culpabilização da mãe e “à divulgação do saber médico como uma espécie de novo catecismo para formar boas mães capazes de criar bem seus filhos se seguissem tais conselhos” (p. 232). Nesse novo contexto, o médico não se colocava contra as mães, pois precisava delas, mas argumentava que, se elas tinham errado antes, era por ignorância (como demonstrado por De Lamare), o que podia ser evitado com o apoio do médico através, principalmente, dos manuais de puericultura160. Muitos dos médicos, inclusive, defendiam a inclusão da puericultura no currículo das escolas primárias para meninas, o que, em muitos casos, se tornou realidade (como o livro de Valdemar de Oliveira já citado), sendo tais disciplinas muitas vezes ministradas por médicos. Em outra passagem, De Lamare explica algumas doenças que acometem o recémnascido e informa, por exemplo, qual era a causa da doença conhecida popularmente como mal dos sete dias. “É pelo umbigo do recém-nascido que lhe penetra a infecção, provocando o tão temido mal dos sete dias que, em tempos idos, quando não se tinham as noções primordiais de higiene e assepsia da ferida umbilical, enchia o cemitério de pequenos inocentes, vítimas da ignorância da época” (DE LAMARE, 1963, p. 24, grifos do autor). De Lamare, sem dúvida, é um homem de sua época, que acredita nos benefícios e no progresso da ciência moderna. Para ele, a morte de crianças pequenas era fruto da ignorância que a ciência pretendia eliminar. Por vezes, o autor utiliza-se da ironia para falar de tais crendices, como no caso do tétano. “O povo teme o prego „enferrujado‟ e, segundo alguns, queimando o prego logo depois de ter ferido o pé, nada acontecerá... Melhor prática seria talvez a de 160 Segundo a Assistência Pública e Privada no Rio de Janeiro (apud KUHLMANN JÚNIOR, 2001, p. 92) a puericultura era considerada na primeira metade do século XX “como a ciência da família, feita com a colaboração confiante da mãe e do médico, do amor materno esclarecido pelos médicos”. 101 queimar o pé, pois a outra de nada adiantará...” (ibidem, p. 276). O recurso utilizado por De Lamare – a ironia – visa tornar problemáticas as relações estabelecidas pela tradição da cultura popular, subjugando-a ao saber da medicina. Como explica Albuquerque Júnior (2006), a ironia mostra os defeitos “de forma a que ninguém possa mais acreditar nela” (p. 102). Rago (2005, p. 46), no seu artigo “Rir das origens”, explica que: A academia precisa do passado, a razão precisa de uma narrativa histórica, podemos dizer, mas de um passado que a legitime, valorizando e confirmando a origem do homem como um progresso, como um começo nobre e solene, com uma evolução positiva na linha de continuidade que culminaria no ponto alto da existência dos próprios doutores, enfim, como um elogio da razão. Assim, as crendices e a ignorância fariam parte de um passado que a razão moderna e científica visa eliminar. Como explica Martins (2008, p. 149) “a primeira lição que as mães deviam aprender era fugir dos leigos”. Nesse sentido, as avós, em específico, são, para De Lamare e os demais autores de manuais, as que mais promovem tais crendices, como no caso da amamentação e o “reaparecimento das regras”; De Lamare assim se pronuncia: “muitas avós asseguram que, durante a menstruação, o leite fica „ruim‟; isto, entretanto não está provado” (1963, p. 37). Ladeira Marques, no Manual de Mães, pronuncia-se sobre o uso de faixas161 (em 1945), utilizando para isso também o recurso da ironia: “é de boa regra que seja dispensada a touca e abolido o cinteiro e as faixas, denominadas faixas italianas, que outra função não parece ter do que converter a criança em verdadeiro bife à milanesa...” (p. 36). Para esse médico, os manuais são justamente importantes e úteis “[...] sobretudo entre nós, onde esta arte tão simples e tão necessária é geralmente desconhecida, e tantos obstáculos encontra na ignorância popular, nos preconceitos, em costumes tradicionais, e o que é pior, na falsa presunção de muita gente” (prefácio). Nesse sentido, o médico advoga pelo fim das “[...] velharias do chá de sabugueiro162, purgativo, lavagem, papel vermelho nas vidraças163, etc... como desnecessárias e prejudiciais” (ibidem, p. 129) e contra os saberes proferidos principalmente por mulheres, como, por exemplo, no trecho referente à criança que é a acometida por uma convulsão: “pressurosamente acode a comadre com o purgante, a vizinha 161 162 Balbach no seu manual também se pronuncia pela abolição das faixas, em 1967. Balbach, ao contrário, recomenda o chá de sabugueiro nos casos de sarampo, o que aponta para uma descontinuidade do discurso médico, mas que pode ser explicado pelo fato de Balbach ser um pesquisador de plantas medicinais. 163 Recursos esses utilizados pela crendice popular nos casos de sarampo. 102 „entendida‟ interfere com fricções de vinagre e inalações de amônia, e a titia solteirona propõe escalda-pés e mesmo o sinapismo causticante” (ibidem, p. 167). Para o especialista, tais “asserções populares” (sic) não fazem parte da medicina atual preconizada ao longo do livro, que está submetido a uma doutrina “clássica e rigorosamente calcada nos cânones da moderna ciência pediátrica” (prefácio). Em Meus Filhos (1967), Alfons Balbach também credita às avós uma série de equívocos realizados pelas mães, já que “não são poucos os erros higiênicos que as mães cometem em relação aos seus filhos, principalmente quando se deixam influenciar pelas avós164. Quantas vêzes se mostram refratárias ao conselho médico” (p. 150-151). Embora o autor afirme recorrentemente a ciência como uma luz que elimina as trevas da ignorância, seu manual é fortemente carregado de um discurso religioso, que se manifesta através de citações da Bíblia, de orações e de histórias com fundo moral e religioso. Em outros trechos, assim De Lamare (1963) se refere às mulheres que propagam conhecimentos não científicos, ao mesmo tempo em que reafirma a centralidade do médico para saúde e educação da criança: Duas tarefas que nunca serão passadas a outros: amamentar e educar o seu filho. Para tal, as mães devem aceitar apenas a colaboração de parentes e amigos, conselhos do médico, mas orientação e amor só seus. Quando o casal mora só, tudo é mais fácil. Com avós, sogros ou parentes as coisas se complicam. Não somos inimigos das avós, sogros ou titias, quando êstes, inteligentemente, sabem agir dentro dos limites úteis, com tôda sinceridade e afeição, mas sim, quando desejam furtar a autoridade dos pais, ou impor pretensiosamente, sua opinião sôbre a do especialista (p. 11-12). [...] as jovens mães se devem precaver contra os conselhos das vizinhas, comadres, tias, sogras, avós, agregados, etc., sobretudo daquelas que se gabam de terem criado 10 ou mais filhos, pois estas são justamente as mais „perigosas‟ em seus „palpites‟ (p. 43). No 3º mês [o bebê] começa a balbuciar, e as avós e as titias são „especialistas‟ em interpretar palavras significativas (p. 99). Podem as mães estar certas de que, em tais casos, mais perigosos do que a possibilidade, felizmente excepcional, da morte repentina, são a ignorância e o pânico, agravados pelo conselhos, verdadeiros „palpites‟ das pessoas leigas (p. 240). Nos diferentes trechos citados acima, vemos confirmada a legitimidade do médico e a sua responsabilidade para com pais, mães e crianças. Além disso, a mãe “moderna e 164 A avós e as tias também são acusados pelo autor de contar histórias para assustar as crianças. 103 consciente” deve realizar todos os procedimentos indicados pelo “médico moderno”, desconsiderando outras fontes orais, como, por exemplo, outras mães, avós, etc. Ladeira Marques (1945) reafirma tal postura, afirmando que toda e qualquer diferença observada na criança pela mãe deve ser comunicada ao pediatra, pois somente a ele compete avaliar o estado do bebê; além disso, cabe à mãe apenas seguir as prescrições médicas. Gondra (2000) explica que, no século XIX, a medicina no Brasil se volta contra práticas como a homeopatia165 e contra curandeiros e benzedeiras. Para isso, constitui uma sociedade científica para defender os interesses médicos e regulamenta a formação dos médicos num “complexo projeto desenvolvido pela corporação médica com vistas a obter e manter o controle exclusivo sobre os processos de formação, seleção, organização e fiscalização da medicina, funcionando como uma eficaz estratégia para garantir o monopólio sobre a „arte de curar‟” (p. 522). No estado atual dos conhecimentos que o progresso da medicina permitiu no capítulo de doenças infecciosas, aumentou a responsabilidade do médico assistente e dos pais. Devemos felicitar a nova geração que nasceu a tempo de herdar verdadeiros milagres, que a protege de moléstias até então terríveis e geralmente fatais. Não podemos deixar, no momento, de convocar todos a prestar nossas homenagens aos cientistas que conseguiram abençoadas vitórias em benefício da criança, com sacrifício de sua vida, de sua saúde e do seu confôrto. O médico moderno deve exigir que os pais vacinem os seus filhos contra as moléstias controláveis, não permitindo que, por comodidade, falta de interêsse ou covardia evitem as mesmas. O médico moderno deve também sem temor e com energia usar os medicamentos modernos que indiscutivelmente possuem grande eficiência. Os pais devem ser orientados quanto a evolução da doença nas diferentes idades e os meios de transmissão. Deve ser esclarecida que a doença evolui diferentemente de acôrdo com o organismo de cada criança (alergia e resistência imunitária), como também com o clima da região e da estação do ano. O médico tem o dever, e os pais não devem procurar evitá-lo, de comunicar às autoridades sanitárias. Os pais devem também, uma vez confirmada a doença de seu filho, pensar também nos dos outros, evitando que a criança entre em contato com outras sadias (DE LAMARE, 1963, p. 256). Nessa longa citação, o pediatra apresenta-se como o porta-voz do discurso médico de sua época, atribuindo-se muitas funções e responsabilidades, como exigir que os pais vacinem as crianças, orientar quanto às doenças para proteger as crianças e promover uma geração mais saudável, educada e disciplinada. Além disso, reafirma a importância da figura do cientista e santifica-o, pois esse “abriu mão” de uma vida “fácil” ou “mundana” para buscar 165 De Lamare, na edição de 2002, a recomenda em determinados casos. 104 conhecimentos que trouxessem maior bem-estar à população, em detrimento da sua própria vida. Nessa edição de 1963, no entanto, o autor, em uma única passagem, aceita a possibilidade de a sabedoria popular (tal como a chama) estar correta. “Certas crianças absolutamente normais, de quando em vez „se lambem‟, acredita-se que estejam em busca de sal, e as que comem terra, apresentem deficiências minerais. Talvez a sabedoria popular tenha a sua razão...” (DE LAMARE, 1963, p. 340). As ironias que acompanhavam algumas menções sobre higiene e crendices na edição de 1963 não foram localizadas na edição de 2002. Assim, a guerra travada na edição anterior contra as crendices e as avós é bastante atenuada; ao contrário, em A Vida do Bebê, edição de 2002, as avós têm, inclusive, sua importância ressaltada na educação da criança. No entanto, na edição de 2002, permanece em algumas passagens a desqualificação de alguns saberes populares; assim, no caso da alimentação da mulher que amamenta, permanece a indicação de que alimentos como cerveja preta e canjica - que as avós consideravam bons para produzir mais leite -, não têm quaisquer efeitos, segundo a ciência moderna. O mesmo acontece com o reaparecimento da menstruação, enquanto a mulher amamenta. Como De Lamare explica, ao contrário do que as avós asseguram, o leite materno não fica “ruim” por isso. As crendices sobre o perigo das misturas de frutas (atribuído por De Lamare às avós) também estão citadas. Não obstante, algumas concessões aos saberes das avós se fazem presentes no manual. Algumas delas são: a utilização de chá de camomila para bebês com cólica nos primeiros meses, o método de perfurar as orelhas das meninas, o diagnóstico de coqueluche e formas de fazer o bebê dormir, como, por exemplo, embalar e ninar cantando velhas canções. Dessa forma, o médico permanece sendo o especialista a quem as mães devem recorrer sempre (prescrição presente em todos os manuais lidos), não devendo escutar outras opiniões e conselhos que não a do especialista. Embora a ciência médica demonstre em todo o livro a legitimidade que o campo assumiu no último século, em A Vida do Bebê também encontramos espaço para práticas não tão ortodoxas. Alguns exemplos são a referência à homeopatia para tratamento de alguns distúrbios, além de dicas para lidar com soluços e brotoejas, receitas de como preparar tenífugos e soluções para acabar com a pediculose. Ademais é importante ressaltar que, nesses manuais da metade do século XX, competia ao médico também avaliar a educação da criança (assunto presente em todos os manuais analisados – tema que será mais bem explorado no sexto capítulo). Um exemplo 105 disso é a passagem na qual Ladeira Marques compara a criança a uma planta, relação já estabelecida, como descrito no segundo capítulo, por Rousseau no século XVIII. Assim como a planta jovem exige do agricultor cuidados especiais, para orientar o crescimento do caule, zelar pelo adubo e irrigação do solo e destruição das larvas e parasitas, para que possa vicejar frondosamente a árvore futura, da mesma forma, faz-se necessária a assistência médica ao petiz, não só nas ocasiões de doença para auxílio ao organismo na luta contra germes infecciosos, como também para permitir ao médico, nos períodos de saúde, zelar pela boa orientação e regularização do regime, fiscalizar a curva de peso e crescimento, observar o desenvolvimento da inteligência e das funções motoras, defender a criança dos agravos que lhe possam proporcionar as falhas da educação, orientar os exercícios físicos, além de um sem número de providências e conselhos de educação e higiene que não só proporcionem melhores condições de saúde e desenvolvimento físico ao indivíduo adulto, como, também, melhores condições de equilíbrio e disciplina na vida social (1945, p. 1960). É interessante ressaltar o quanto os médicos se atribuíam a função de orientar as mães quanto à educação das crianças, prescrevendo hábitos e atitudes que deveriam ser promovidos e condenando outros como prejudiciais ao desenvolvimento do bebê. Dessa forma, todas as práticas prescritas às mães nos manuais são minuciosamente descritas e representadas através de desenhos e fotos, para que as mães não tenham dúvidas quanto à forma correta de realizálas, como, por exemplo, a descrição sobre a forma correta de tomar a criança para levá-la ao banho e para amamentá-la; de higienizar móveis, utensílios, chupeta, mamadeira e, inclusive, as mãos e o seio materno (no caso, citado por Alfons Balbach, 1967); e de preparar o leite, a mucilagem e demais alimentos. Depois de todas essas prescrições “comprovadas cientificamente”, descrevo, a partir de agora as discussões sobre a eugenia presente em todos os manuais. Eugenia e o melhoramento da espécie humana A eugenia tinha entre outros objetivos intervir na reprodução166 das populações para evitar o nascimento de crianças com deformidades físicas, mentais e “morais”, provenientes de gestações de fetos com má formação e de uniões entre “raças” distintas (evitando, assim, a miscigenação167), pessoas com deficiência mental e parentes. Para esse campo discursivo, a raça determinaria o comportamento do indivíduo pertencente a ela. Assim, incentivavam-se 166 Como explicitado no primeiro capítulo dessa Tese, é a sexualidade que articula o corpo individual ao corpo da população; por isso, a importância que se dá aos casamentos nesses manuais (como veremos a seguir) e por que será a medicina, principalmente, que se encarregará de controlar e intervir sobre esses corpos (no plano individual e populacional). 167 Sobre esse aspecto vale observar as políticas de imigração brasileira, no começo do século XX, que visavam ao branqueamento da população através do incentivo à vinda de italianos e alemães principalmente. 106 determinadas uniões, enquanto condenavam-se outras. Indivíduos com deficiência (física ou “moral”), através de seus filhos e de suas filhas, estariam disseminando suas deficiências no corpo da população (teoria da degenerescência168), pois para essa “verdade científica” “o casamento de dois tarados produz um terceiro tarado” (OLIVEIRA, 1956, p. 262). Por isso, muitos médicos aconselhavam que esses sujeitos considerados inferiores devessem ser, em grande parte, segregados e, até, esterilizados169. O termo eugenia (eu=boa e genia=geração) foi cunhado em 1883 por Francis Galton e essa concepção teve muitos adeptos no Brasil, principalmente, no período da Primeira República (1889-1930)170. Os defensores da eugenia171 consideravam que as aptidões e a moral eram herdadas geneticamente, por isso, a importância de bons casamentos, para gerar bons filhos, aperfeiçoando a raça. Em alguns aspectos, higienismo (descrito no segundo capítulo dessa Tese) e eugenia se aproximavam, “como o ordenamento do meio ambiente, as intervenções sobre a família, em vários aspectos, como condições de habitação, saúde, hábitos alimentares, etc” (QUEIROGA, 2005, p. 182). No entanto, em outros aspectos divergiam; como, por exemplo, no auxílio dado pelos higienistas, através da filantropia, às famílias pobres. Os eugenistas eram contrários à filantropia, que estaria auxiliando na manutenção e no desenvolvimento de famílias de raças inferiores, como pobres e não-brancos. Assim, através da eugenia visava-se à promoção de homens fortes, robustos (lembremse dos Concursos de Robustez Infantil já referidos), sem deformidades genéticas, inteligentes e de moral exemplar. O manual de Higiene e Puericultura de Valdemar de Oliveira é, de todos os manuais analisados, o mais específico e “científico” em função do público a quem era endereçado (primordialmente estudantes dos cursos normais). Nesse livro o médico afirmava ser a escola um local importante para a disseminação dos princípios da medicina, no caso, a Puericultura, e para incutir bons hábitos de saúde e atitudes e comportamentos tidos como positivos. Para o 168 Essa teoria “fundamentada no princípio da transmissibilidade da tara chamada „hereditária‟, foi o núcleo do saber médico sobre a loucura e a anormalidade na segunda metade do século XIX. Muito cedo adotada pela medicina legal, ela teve efeitos consideráveis sobre as doutrinas e as práticas eugênicas e não deixou de influenciar toda uma literatura, toda uma criminologia e toda uma antropologia” (FOUCAULT, 1999, p. 301). 169 Lília Ferreira Lobo (2003) chama atenção para o número de esterilizações realizadas, até 1925, nos Estados Unidos: 6.244 intervenções. 170 Conforme registra Lobo (2003), na segunda década do século XX é fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental, que, a partir de 1926, assume as propostas eugenistas. 171 Segundo Maria Manuela Ferreira (2000), em 1907, em Londres, é instituída a “Eugenic Education Society” e, em 1912, realizou-se o primeiro congresso sobre o assunto. 107 autor, tais princípios objetivam “[...] construir uma sociedade de indivíduos sadios e fortes, num esfôrço constante para o aperfeiçoamento da espécie humana172” (1956, p. 169), pois: Êsse ideal, podemos atingi-lo, embora lentamente, pela higiene da reprodução – numa palavra: pela Eugenia, e, posteriormente, nascido o indivíduo, pelo cultivo racional do seu corpo e do seu espírito. É esta, certamente, a parte mais importante da Higiene, porque visa ao novo ser, de quem dependerá, amanhã a grandeza das nações e o progresso social (ibidem, p. 169). Valdemar de Oliveira considera, a partir disso, que: A lei deveria considerar entre os impedimentos ao matrimônio, o estado de saúde dos cônjuges, estabelecendo o exame clínico pré-nupcial173, baseado na conhecida lei de Darwin: „os ascendentes têm tendência a transmitir aos descendentes seus caracteres gerais e individuais, antigos e adquiridos (ibidem, p. 262). Dessa forma, deveriam ser impedidos de casar os sifilíticos, os tuberculosos, os alcoólatras, dentre outros que produzem indivíduos física e psicologicamente inferiores, além de “vagabundos, desordeiros e criminosos” (ibidem, p. 262). Assim, nesses manuais, os conselhos às mães não se limitavam à educação e a saúde da criança, mas, muito antes, incidiam na constituição do próprio casamento, pois, do fruto da união de sujeitos considerados inferiores pela eugenia, dependia o futuro da Nação. Em consonância com esse pensamento, Ladeira Marques (1945) explica que uma das atribuições da medicina preventiva seria a [...] defesa da espécie promovendo a eugenia através de medidas que evitem a herança mórbida, por meio da esterilização dos indivíduos e da proibição dos casamentos consanguíneos, dos tarados e mesmo dos indivíduos sãos descendentes de famílias portadoras de anomalias e afecções transmissíveis por herança, como: hemofilia, malformações, surdo-mudez, atrofia essencial do nervo ótico (cegueira), etc (p. 15). Alfons Balbach também se alia à corrente eugenista afirmando que seria bom se todos os países promulgassem leis que impedissem o casamento de pessoas com determinadas doenças, como, por exemplo, a sífilis. Para o autor, pastor adventista, em sua época (em 1967) 172 173 Nas citações desse manual optei por manter a ortografia original. Lobo (2003) relembra que houve uma tentativa de regulamentação dos casamentos através do certificado médico pré-nupcial, através de um projeto de lei “[...] apresentado na Câmara dos Deputados, em 1927, obtendo pareceres favoráveis na Comissão de Saúde e Justiça” (p. 208). Esse, no entanto, não foi levado a termo devido à morte do autor do projeto Amaury Medeiros. Atualmente, poderíamos pensar nos departamentos de aconselhamento genético presente nos grandes hospitais públicos e privados do Brasil a atualização dos consultórios pré-nupciais dos eugenistas? 108 estaria se vivendo um período de degeneração da raça humana, na qual casais “cheios de vícios” produzem descendentes do mesmo tipo174. Já em A Vida do Bebê, De Lamare não fala da eugenia, nem apresenta tal postura moral, não obstante, no tópico sobre “as doenças do recém-nascido”, encontramos na edição de 2002 a referência a várias doenças não mencionadas (desconhecidas?) em 1963, além de novas técnicas de tratamento possíveis de serem aplicadas a bebês com doenças graves. De Lamare (2002) explica que, no caso da icterícia grave: O tratamento deverá ser iniciado o mais rápido possível, antes que o pigmento amarelo, a bilirrubina, atinja e se impregne no cérebro; nestes casos é melhor deixar a solução entregue a Deus para evitar que se confirme a frase trágica de um médico francês: „o médico-assistente, com o seu trabalho, acabará por substituir o feto morto por um idiota vivo‟ (p. 58). Essa abordagem de doenças graves que poderiam acometer o bebê pode ser encontrada em outras passagens, como no caso da rubéola175. Tal doença, se adquirida pela mulher grávida nos três primeiros meses, pode acarretar diversas lesões no embrião, como, por exemplo, surdez, catarata e problemas no coração e no sistema nervoso central. O pediatra afirma que, nesse caso, “a decisão de interromper ou não a gravidez será estritamente pessoal e familiar” (DE LAMARE, 2002, p. 66). Além disso, o autor recomenda - quando o médico suspeita de que o feto possua alguma doença hereditária grave - a realização da prática da amniocentese176, pois, se tal problema se confirmasse, “a execução do aborto177 terapêutico deveria ser discutida com os pais com a maior seriedade” (ibidem, p. 71). Assim, mesmo que De Lamare não fale de eugenia, o recurso ao aborto e o não investimento do médico sobre o bebê já acometido por grave doença, nos remete àquelas práticas que visam à promoção de indivíduos saudáveis para a “grandeza da Nação”. Dessa forma, a mulher grávida acometida por rubéola, principalmente nos três primeiros meses, corre o risco de gerar um bebê anormal, o que implicará maiores cuidados de saúde ou até mesmo a dependência da criança (e do futuro 174 A causa de tudo isso para Balbach é “a falta de conhecimento de Deus nos ambientes educacionais dos menores, a partir do lar” (1967, p. 170). 175 Tanto no caso da icterícia grave, quanto na rubéola, as mesmas recomendações são encontradas na edição de 1963. 176 Exame realizado entre a 15ª e 18ª semana de gestação para verificar se o bebê possui algum tipo de doença. Esse exame é requisitado nos seguintes casos: outros exames acusaram algum problema; a mãe tem mais de 35 anos; já teve um bebê com problemas genéticos ou problemas na medula espinhal ou no cérebro; o casal possui problemas genéticos; e a mulher já teve três ou mais abortos. Para realizar o procedimento, o médico introduz uma agulha no abdômen da grávida recolhendo o líquido amniótico para análise. 177 É interessante analisar a possibilidade de aborto exposta por De Lamare, sendo ele católico, o que poderia apontar para as diferentes posições de sujeito assumidas que, por vezes, são contraditórias. 109 adulto) do Estado ao longo de toda vida, para ter acesso a cuidados permanentes e a educação especial. No próximo item o tema da alimentação será discutido, pois esse coloca em suspenso a visão da ciência como verdade absoluta e progressivamente evolutiva, como poderemos ver através dos contrastes entre as duas edições de A Vida do Bebê analisadas. Alimentação do bebê – um campo em constante mutação Nesse subcapítulo podemos visualizar o quanto o discurso médico mudou entre as duas edições de A Vida do Bebê no que tange à alimentação da criança. Foucault (2002a), em uma passagem, nos lembra que essas grandes mutações científicas podem ser lidas “como a aparição de novas formas na vontade de verdade” (p. 16). Isso se torna mais evidente quando comparamos as duas edições e verificamos o crescimento do estímulo à amamentação ao longo das últimas quatro décadas e da censura à utilização de outros alimentos até os 6 meses de idade (período do desmame). Na edição de 1963, já nas primeiras 24 horas de vida do bebê, é indicado que se dê a ele “às colheres, chá preto, chá de erva doce178, ou água fervida adocicada com sacarina [...] ou uma colher das de chá de açúcar denominado de „nutritivo‟ [...] O cuidado de dar água à criança é importante, pois facilita o seu desenvolvimento” (DE LAMARE, p. 27). No caso de não ser possível a “alimentação natural”, De Lamare (1963) sugere o uso de leites em pó. Para a utilização desses, são prescritas instruções sobre como deve se portar a pessoa que prepara a mamadeira (“a pessoa que vai preparar o alimento deve ter as mãos lavadas e escovadas, deve evitar pentear-se, falar ou „espirrar‟ sobre a panela. O uso de máscara é conveniente”, p. 44), quais os instrumentos necessários, como deve ser a mamadeira e o bico, assim como os procedimentos de esterilização e como devem ser preparados os diferentes tipos de leite em pó179 (são citadas várias marcas também nos demais manuais analisados). O leite de vaca não é aconselhado a não ser que seja “preparado o mais cedo possível, logo que chegue à casa” (p. 47). Também são prescritos o emprego de cereais, mucilagem 180, açúcares, sucos e óleo de fígado de bacalhau – tudo isso aos 7 dias de idade. Muitas dessas indicações são acompanhadas de palavras e/ou expressões como “moderno”, “a última descoberta válida” (a 178 Marques (1945) reitera essa prescrição de De Lamare, ao indicar a amamentação até os seis meses, mas já nos primeiros dias ministrar água e chá e, aos três meses, sucos de frutas cruas. 179 Ladeira Marques (1945) prescreve as mesmas medidas de alimentação que De Lamare. 180 “Líquido espesso e gomoso que se obtém quando se cozinha a água com a farinha de cereais” (DE LAMARE, 1963, p. 50). 110 mesma palavra é usada para os tópicos sobre vacinação descrita a seguir), dentre outras. A ciência constituída na Modernidade, como explica a pesquisa empreendida por Dorothy Nelkin (apud RIPOLL, 2001), tem descrito “descobertas” científicas como, por exemplo, “a descoberta mais fantástica”, ou “a maior novidade de todos os tempos”, etc., explicitando a noção formada de que a “última descoberta” é a mais importante e o ponto final e definitivo do assunto. Ao contrário, como poderemos ver na edição de 2002, temáticas como alimentação variam bastante conforme o período. Assim, o mel, na edição de 1963, também é indicado aos 15 dias de idade por seu valor nutritivo e por “corrigir o intestino”. Já aos três meses, papas de fruta e caldo de sopas. No quarto mês são introduzidas as sopas e as papas adicionadas com biscoitos ralados e leite condensado. Aos cinco meses é feita a substituição total do leite materno pela mamadeira. A partir de então, progressivamente, vai-se introduzindo alimentos sólidos como massas, legumes, etc. Ademais, é sugerida a utilização de sucos, chás, açúcares e mel para enfrentar distúrbios como constipação ou uso de suco de limão ao invés de nitrato de prata para desinfecção dos olhos do recém-nascidos. Outros medicamentos, alguns não comuns hoje, como tintura de beladona, solução de violeta de genciana e elixir paregórico também são recomendados. Ao longo do manual, a hipo-alimentação é amplamente discutida e combatida, assim como a “super-alimentação”. Se a hipo-alimentação é prejudicial, a alimentação em demasia, também o é. Pode provocar vômitos, diarréia e esgotar a capacidade digestiva do bebê. Além de tudo, a exuberância de gorduras não é bonita, carnes moles, „balofas‟, cheia de dobras... O petiz gordo se defende muito mal das infecções, ao contrário do que possa parecer; assim uma pneumonia, por exemplo, é tanto mais grave quanto mais gordo for o doentinho. As mães devem querer seus filhos bem proporcionados, peso de acordo com o tamanho e a idade. Devem querer filhos ‘fortes’ e, não, simplesmente ‘gordos’ (DE LAMARE, 1963, p. 78, grifos do autor). Sobre o controle da obesidade já em bebês gostaria de citar a pesquisa empreendida por Jaqueline Martins (2006), na qual a autora procura mostrar como o dispositivo da magreza, através de discursos que circulam na mídia impressa e televisiva, livros de literatura infantil e nas falas de um grupo de crianças, produz, atualmente, uma ojeriza ao corpo gordo. Além disso, tal dispositivo associa corpo magro à saúde e à beleza. No entanto, como destaca a autora, até os séculos XVI e XVII a gordura era percebida como sinal de saúde e prosperidade, e esta concepção perdurou por muitos séculos, como podemos visualizar nos 111 concursos de robustez infantil realizados até a primeira metade do século XX181 e nas propagandas com bebês até a década de 1970 (lembremos das propagandas dos produtos Johnson com bebês gordinhos, rosados e loiros). Na alimentação também foram encontradas passagens que apontam para possíveis problemas futuros em função da má habilidade da pessoa que prepara e dá o alimento à criança. Essa tendência psicologizante será mais bem descrita no quinto capítulo dessa Tese. Ao longo das últimas quatro décadas pode-se perceber uma ênfase maior à amamentação e o desestímulo à alimentação artificial antes dos seis meses de idade do bebê. Na edição de 2002, de A Vida do Bebê, além do leite materno, só água pode ser ministrada nos primeiros dias. Para aqueles bebês que se alimentam com leite artificial (o nome já diz tudo, não é natural), pode ser ministrado, além da água, chá apenas. Assim como em 1963, citam-se as marcas de leite para cada tipo de bebê (prematuros, alérgicos a leite, etc). A partir dos 3 meses os bebês com alimentação artificial podem começar a ingerir outros alimentos para complementar a dieta, como, por exemplo, cereais e sopas (os sucos podem iniciar a partir do primeiro mês). Na edição publicada em 2002, nada de óleo de fígado de bacalhau. Para os bebês que não mamam exclusivamente no seio deve-se, aos poucos, segundo a edição de 2002, trocar algumas mamadeiras por sopas e papas de frutas. A alimentação é descrita minuciosamente, ressaltando-se os cuidados com o sal (para evitar futura hipertensão arterial) e com o açúcar (para evitar diabetes e obesidade). De Lamare considera que há divergências entre os puericultores182 quanto à forma de lidar com os bebês que rejeitam determinados alimentos, como a sopa. Por ser a alimentação do primeiro ano de vida do bebê alvo de tanta atenção, ele solicita à mãe que “prepare os alimentos você mesma” (DE LAMARE, 2002, p. 266). Na edição de 2002, a obesidade é tratada como uma doença e, como já se apontava em 1963, a gordura “[...] não é mais sinônimo de saúde” (DE LAMARE, 2002, p. 719). Assim, “toda mãe gosta de ter um bebê forte, mas não obeso” (ibidem, p. 719). Dessa forma, o pediatra recomenda um procedimento educacional envolvendo toda família (já que, segundo 181 É interessante recordar que grande parte dos concursos de robustez infantil ocorreu durante o governo do Estado Novo de Getúlio Vargas, que tinha como um dos lemas a promoção de uma nação forte. Nesse contexto, não podemos esquecer que a primeira edição de A Vida do Bebê ocorre em 1941, no auge do Estado Novo. 182 António Ferreira (2000) também explicita as divergências no tema da alimentação e do desmame entre os diferentes manuais do século XVIII por ele analisados. Alguns autores recomendavam desde o nascimento a introdução de outros alimentos, outros defendiam o desmame aos 5 ou 6 meses e havia ainda aqueles que defendiam o leite materno como alimento exclusivo até os 3 anos de idade. Oliveira (2007) na pesquisa que empreendeu sobre diferentes materiais sobre a criança portuguesa da sociedade tradicional, escreve que essas eram amamentadas até os 4 anos de idade no meio rural, pois o leite materno as protegia melhor contra as doenças do que outros tipos de alimentação. Já nas cidades e no meio aristocrático a amamentação era garantida pelas amas. 112 ele, em grande parte dos casos de crianças obesas, entre 55% e 80%, o pai ou a mãe ou ambos são obesos). Ademais, podem ser localizados alimentos novos (como, por exemplo, leite de soja e de cabra e fórmula de carne para bebês alérgicos a leite de vaca), assim como a eliminação de outros. Um desses últimos é o mel, que na edição de 1963 era prescrito desde os primeiros meses. Entretanto, na edição de 2002, as mães são advertidas para o risco de envenenamento causado por uma bactéria presente no mel. No tema alimentação, nos diferentes manuais analisados, cabe ao médico mudar os horários e prescrever novos alimentos à dieta do bebê, enquanto à mãe cabe apenas executar o prescrito pelo especialista. Balbach, em Meus Filhos (1967), apresenta uma postura diferente dos outros puericultores, ao abolir o consumo de carne de qualquer espécie da alimentação da criança por considerá-la “cadáver em estado de putrefação” (p. 39) e recomendar a ingestão de sucos desde o primeiro mês. Discursos encampados pelos manuais Talvez uma das características mais marcantes de A Vida do Bebê seja a utilização, por Rinaldo De Lamare, de discursos oriundos de outros campos. Embora os outros autores de manuais também façam isso, De Lamare utiliza-se muito do discurso da psicologia, o que não ocorre com os demais puericultores (como poderemos ver melhor no próximo capítulo). Na edição de 2002, por exemplo, De Lamare cita muitos autores (inclusive alguns conhecidos do campo da Educação), como Freud183, Piaget e Brazelton e outros que pertencem às áreas da pediatria, medicina, química e puericultura, como Linus Pauling, F. Escardó, K. Kenneth, Feingold184, Gesell, Gross185, Carlos Giesta, Rosa Célia, Hélio Hungria, Carlos R. P. Gonçalves Neto, Andréa Bacelar, Luiz César Povos e Paula Leme (estes últimos, médicos contemporâneos que De Lamare cita por suas experiências em áreas específicas da pediatria). Também cita costumes e pesquisas, principalmente aquelas realizadas no Estados Unidos, com o que procura dar um caráter científico à publicação. O autor utilizar-se-á da mesma estratégia para explicar diversas doenças e salientar a amamentação. 183 184 Este autor também foi citado na edição de 1963. Este médico, em específico, pronuncia-se contra os alimentos prontos dados aos bebês, porque estes tornariam as crianças mais excitadas devido aos aditivos usados na preparação dos alimentos. 185 Cirurgião estadunidense que, em 1938, realizou com sucesso a primeira intervenção cirúrgica para corrigir um defeito congênito no coração. 113 Os demais autores de manuais analisados também se utilizam constantemente da referência a outros especialistas. Valdemar de Oliveira, por exemplo, cita recorrentemente Martagão Gestera (pediatra brasileiro), Afrânio Peixoto, Renato Kehl, além de fazer referência aos feitos de Osvaldo Cruz, Pasteur, Koch (acredito que muitas dessas referências se devem ao tipo de publicação de Oliveira – um manual destinado principalmente às normalistas). Já Balbach no seu manual cita uma gama extremamente ampla de autores, inclusive filósofos (como, por exemplo, Descartes, Sêneca, Kant, Fenelon, Locke, etc) e especialistas (como Claparède), artigos de revistas científicas em língua inglesa (como, por exemplo, Physical Culture, The World’s Health), pesquisas realizadas em universidades com sede em países como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá para legitimar suas proposições, apontando que “lá” está o saber legitimado. Outro tema que merece menção são as vacinas. Com o avanço na área médica, nos últimos 40 anos – diferença de tempo entre as duas edições de A Vida do Bebê citadas - as vacinas186 foram um dos temas que mais modificações apresentou. As vacinas ampliaram o espectro de ação, suas doses aumentaram, assim como algumas já existentes foram reformuladas187. Segundo De Lamare (2002, p. 516): A vacinação é a aquisição mais sensacional que os cientistas do século XX puseram à disposição da humanidade para evitar doenças infecciosas. As crianças foram as maiores beneficiadas, protegendo-as desde o primeiro dia de vida de doenças mortais ou de doenças que prejudicam o seu crescimento e desenvolvimento. 186 As vacinas como já citadas anteriormente podem ser pensadas como uma estratégia biopolítica de promoção da saúde das crianças e a carteira de vacinação uma estratégia de controle do Estado das mães. 187 Como é o caso da vacina para poliomielite que na edição de 1963 era denominada Salk e possuía o vírus inativo. Já na edição de 2002, a vacina citada para paralisia é a Sabin, com o vírus atenuado. Na edição de 1963, temos as seguintes vacinas: nos primeiros 30 dias BCG (para tuberculose); aos 3 meses, 1ª dose da poliomielite (denominada de Salk) e 1ª dose da tríplice (para difteria, tétano e coqueluche); aos 4 meses, 2ª dose da poliomielite e a 2ª dose da tríplice; aos 6 meses, varíola (em 30 de janeiro de 1980, a vacina contra a varíola deixou de ser obrigatória no Brasil); aos 16 meses, 3ª dose da poliomielite; aos 18 meses, 3ª dose da tríplice. Esta última deve ser reativada de dois em dois anos até a idade de 10 anos. Na edição de 2002: nos primeiros 30 dias, BCG (para tuberculose) e 1ª dose da hepatite B; a partir dos 2 meses, 1ª dose da poliomielite (denominada de Sabin), 1ª dose da tríplice bacteriana, conhecida como DPT (para difteria, tétano e coqueluche) e a 1ª dose da anti-haemophilus; a partir dos 3 meses, 2ª dose da hepatite B; a partir dos 4 meses, 2ªdose da poliomielite, 2ª dose da tríplice e 2ª dose anti-haemophilus; a partir dos 6 meses, 3ªdose da poliomielite, 3ª dose da tríplice e 3ª dose anti-haemophilus; aos 7 meses, 3ª dose da hepatite; aos 9 meses, sarampo; aos 12 meses, catapora; aos 15 meses, rubéola, caxumba e sarampo, conhecida como tríplice viral, e dose de reforço da anti-haemophilus; aos 18 meses, 4ªdose da poliomielite (em 1994, o Brasil recebeu certificado de erradicação da poliomielite) e 4ª dose da tríplice. Existem vacinas opcionais como as contra a hepatite A, pneumonia, diarréia, febre amarela, cólera, meningite, gripe e leptospirose. No Cartão da Criança (documento com o registro das vacinas tomadas e que apresenta gráficos para que os pais possam acompanhar o desenvolvimento da criança) foram encontradas diferenças entre as datas e vacinas a serem tomadas pelo bebê em comparação ao manual aqui analisado. 114 Além disso, dentre os autores analisados, De Lamare é o que mais defende a vacinação infantil como meio de proteger as crianças de doenças graves. Outro tópico que apresentou diferenças significativas foi o trato no controle das evacuações e das micções. Na edição de 1963, o controle das evacuações deveria ser iniciado entre os 8 e 11 meses, o que na edição mais recente não é mais recomendado porque “psicólogos modernos” teriam provado que a “imposição de hábitos higiênicos, desempenhada por pessoas inábeis, tem sido a causa de futuras neuroses da criança” (DE LAMARE, 2002, p. 298-299). Por considerações como essas, o controle das evacuações, na edição de 2002, deve começar entre os 12 e 18 meses e estender-se até os 2 anos e meio. Já o controle das micções deve iniciar aos 20 meses e estar concluído aos 3 anos. É partindo dessa posição de saber/poder exercido pelo médico, através do seu livro, que no próximo capítulo poderemos analisar as estratégias de governamento da maternidade e da paternidade em circulação em A Vida do Bebê e nos demais manuais referidos. 115 ESTRATÉGIAS DE GOVERNAMENTO DA MATERNIDADE E DA PATERNIDADE Esse livro tem boas ideias, mas falta um pouco mais de instruções para que possamos melhorar a cada dia, principalmente cuidando desses anjinhos. Este livro é instantaneamente! MARAVILHOSO! Nos ajuda Realmente esse livro pode ser considerado um dicionário para mamães de primeira viagem, porém há dicas nele que já se encontram ultrapassadas considerando o desenvolvimento infantil atualmente. De qualquer maneira há dicas que podem fazer a diferença e ajudar bastante as mamães inexperientes188. Seu filho é o presente mais maravilhoso que a vida já lhes deu. Criá-lo e protegê-lo é um desafio aceito com alegria, ansiedade e muito amor. A maior felicidade para o bebê é ter pais o mais perfeitamente esclarecidos quanto às suas necessidades. É para ajudá-los a descobrir este caminho que este livro foi escrito (DE LAMARE E CABRAL, 1992, p. v). A partir das citações reproduzidas acima, pode-se perceber, como já descrito nos capítulos anteriores, uma das características desse tipo de manual: o de ser um material consultivo para mães que buscam informações sobre a melhor forma de educar e de cuidar da criança. De Lamare e Cabral (1992) reafirmam isso ao descrever, como objetivo do livro, tornar os pais (aqui compreendidos como pai e mãe) mais esclarecidos quanto às necessidades do bebê. Assim, busco nesse capítulo apontar quais estratégias são propostas para condução das condutas maternas e paternas, já que, para promover biopolíticas que objetivem constituir crianças normais e sadias, é preciso investir no governamento das mães e dos pais através da prescrição de práticas e de condutas adequadas ao objetivo proposto. Dessa forma, como descrito por Dean (1999), “a analítica de governamento examina as condições nas quais se formam, são mantidos e transformados os regimes de práticas” (p. 21), compreendendo analítica como uma forma de compreender a singularidade dessas formas de condução, que 188 Opiniões dadas por mães a respeito da 41ª edição de A Vida do Bebê ao site das Lojas Americanas. Disponível em: . Acesso em maio de 2004. 116 visam “moldar, esculpir, mobilizar e lidar com escolhas, desejos, aspirações, necessidades, vontades e estilos de vida de indivíduos e grupos” (ibidem, p. 12). Modos de endereçamento Os manuais, assim como a publicidade e a mídia em geral, possuem um leitor/consumidor presumido, processo esse denominado por Elisabeth Ellsworth (2001) como modo de endereçamento. Segundo Fischer (2001, p. 84), considerar modos de endereçamento “é considerar que há um endereço para aquele produto, que ele existe e é feito para chegar a alguém, para seduzi-lo, chamá-lo a ver, gostar e reconhecer-se”. A partir disso e com base em Ellsworth (que analisa esse conceito da área do cinema na educação), poderíamos perguntar, pensando a partir da pesquisa aqui proposta: Quem este manual pensa que é o/a leitor/a? Quem o/a leitor/a gostaria de ser? Como o/a leitor/a lê este livro? Como o/a leitor/a usa esse manual? Quais são os efeitos dessa leitura? Quais implicações apresentam para o/a leitor/a? Que práticas essa leitura promove? Como essas publicações querem que sua leitora e seu leitor ajam em relação às crianças? E, da mesma forma, que ideal de criança apresenta? Como explicam Dagmar Meyer e Rosângela Soares (2005, p. 30), “as perguntas desencadeiam buscas que engendram possibilidades de respostas e outras tantas perguntas, num processo que nunca está finalizado ou completo”. Pensando nas práticas de leitura promovidas, Chartier (1999) escreve que todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura. Esses protocolos de leitura produzidos pelo escrito guiam a leitora e o leitor nas interpretações e usos que esta ou este podem fazer do texto, considerando que o/a autor/a e o/a editor/a, ao produzirem um livro, têm em mente uma dada representação da leitora e do leitor a quem aquele texto se refere e dos objetivos da leitura. Assim, podemos pensar a diagramação do texto dos manuais, muitas vezes dispostos em tópicos, com quadros explicativos em sequências, como facilitadora da leitura consultiva feita pelas mães. No decorrer das páginas de A Vida do Bebê (e dos outros manuais citados no capítulo anterior) pude identificar estratégias a partir das quais mães e pais são levados a se tornarem os pais e as mães supostos pela publicação. Já no Prefácio da edição compacta (DE LAMARE e CABRAL, 1992), o livro afirma a sua legitimidade, assumindo que há mais de cinquenta anos teria sido “[...] em suas páginas que os aflitos pais tiraram suas dúvidas, acalmaram suas angústias, ajudaram seus filhos a crescerem e se desenvolverem com saúde e inteligência” e conclui enfatizando a centralidade da tarefa materna e paterna: “esperamos que [...] vocês encontrem inspiração para desempenhar o papel mais importante de suas vidas - a correta criação dos filhos” (p. VII). 117 Mães, embora pais sejam citados em algumas passagens dos manuais, são às leitoras que esse tipo de publicação é endereçado, conforme fica explicitado no subtítulo das duas edições analisadas de A Vida do Bebê: “ensinamentos e conselhos modernos e práticos, escritos especialmente para as mães criarem e educarem o seu filho, desde o 1.º dia de vida até completar os 2 anos, justamente na idade mais importante, difícil e interessante do ser humano”189. Apesar da centralidade da figura materna, optei por também falar do governamento da paternidade. Como bem explica Gillian Rose (2001, p. 158-159), “a análise do discurso envolve também a leitura do que não é visto nem dito. As ausências podem ser tão produtivas quanto a designação explícita, a invisibilidade pode ter efeitos tão poderosos quanto a visibilidade” (grifos do autor). Além disso, pode-se apontar a que pais e mães é endereçado tal manual, através, por exemplo, da imagem do quarto do bebê (presente na edição de 2002), dos produtos de higiene e dos acessórios citados no livro A Vida do Bebê. No quarto190, por exemplo, constam os seguintes móveis: guarda-roupa, cadeira de balanço e berço, além de bichinhos de pelúcia (colocados no berço e na cadeira de balanço). Já as paredes são decoradas com desenhos que parecem representar famílias de ursos se encontrando para um piquenique no campo. Além disso, o quarto é pintado de azul e branco, o que parece indicar ser produzido para um menino191. A reprodução dsse quarto, assim como as alusões aos produtos Johnson, Natura e Nívea Baby, já citados em capítulo anterior, apontam o endereçamento para uma família de classe média e alta, devido aos preços dos produtos, dos móveis e da decoração do quarto. Alguns exemplos do endereçamento dessa publicação também podem ser visualizados, na edição de 1963 de A Vida do Bebê, nas variadas responsabilidades atribuídas às mães especificamente: fazer o enxoval, contratar a “ama sêca” e vigiá-la, anotar perguntas a serem feitas ao pediatra durante as consultas, amamentar e educar (“duas tarefas que nunca serão passadas a outros: amamentar e educar o seu filho”, ibidem, p. 11), aceitar a colaboração de parentes e amigos, colaborar com o pediatra no tratamento de crianças com baixo peso, incentivar o controle das evacuações, controlar a temperatura, aplicar cataplasmas, introduzir supositórios, desinfetar o nariz, administrar remédios, incentivar a criança a alimentar-se sozinha, socorrer em casos de urgências e examinar a garganta. 189 Cristiane Cecchin (2008) analisa as representações de mãe e pai de A Vida do Bebê, a partir de uma edição de 1956, utilizando passagens do manual também analisadas nessa Tese, reforçando a hipótese de que pouco mudou esse manual ao longo das diferentes edições. 190 A imagem desse quarto encontra-se em anexo. 191 Sobre análise dos quartos de bebê ver Santos (2004). 118 Práticas como as descritas anteriormente, atribuídas exclusivamente às mães, são justificadas por De Lamare (1963, p. 226) da seguinte maneira (registre-se que tal discurso não foi localizado na edição de 2002): Toda mãe deve saber exercer, com certo desembaraço e confiança, algumas práticas médicas infantis, de uso diário e indispensáveis na assistência ao bebê doente e sadio. Quão triste não é para o médico de crianças ao prescrever certa medicação, ouvir como resposta da jovem mãe: „Doutor, não sei fazer isso...‟ As mães devem mandar as suas filhas cursar aulas de Puericultura antes de deixá-las casar, e estamos certos de que dia virá, no qual a educação de uma jovem não estará completa sem antes ter obtido o seu Diploma em cursos de Puericultura, figurando o mesmo ao lado dos certificados da 1.ª Comunhão e do Colégio192. Como em muitos discursos presentes em nossa cultura, De Lamare supõe que o bom exercício da maternidade dependa do grau de instrução (“o desenvolvimento do bebê, nos seis primeiros meses de vida, é influenciado pelas qualidades dos estímulos que ele recebe de sua mãe ou da pessoa que a substitui; naturalmente estes são relacionados com a inteligência e o nível socioeconômico de sua mãe”, idem, 2002, p. 219), da preparação da mulher para ser mãe (através da frequência a cursos específicos) e do acompanhamento do médico desde a gravidez. Na edição de 2002 de A Vida do Bebê, embora o endereçamento, na maior parte das temáticas, seja ainda à mãe, o termo genérico “pais” é mais presente, indicando uma certa participação dos homens em alguns aspectos como, por exemplo, na realização do exame préconcepcional193, na organização de um espaço próprio do bebê, na escolha do pediatra, da babá (antes tarefa exclusiva da mãe), do hospital, no uso do baby pack194 e no oferecimento da mamadeira (em caso de recusa do bebê em aceitá-la da mãe). Essa diferença na abordagem entre as edições pode ser observada nas palavras inicias de De Lamare na edição de 2002: “ os pais deverão sempre acompanhar seu filho, sobretudo na idade escolar e na adolescência, cuidando de sua saúde físico-mental-emocional para que ele possa enfrentar com êxito e paciência a competitividade da vida, convenientemente preparado” (p. 13). Nessa última edição, a mãe permanece sendo recrutada para realizar os exames solicitados pelo obstetra durante a gestação, frequentar cursos de puericultura, ler livros com ensinamentos para melhor cuidar do bebê, procurar uma pessoa com experiência ou boa 192 Ressalto novamente a importância dada pelo pediatra à religião católica, como já destacado no terceiro capítulo. Também gostaria de referir que, na edição de 2002, o pediatra não se pronuncia sobre a possibilidade de o casal utilizar a camisinha para evitar uma nova gravidez no período da amamentação, talvez, acredito, porque a Igreja Católica condene o uso de preservativos. 193 Exames feitos pelo casal antes de a mulher engravidar, como, por exemplo, hemograma, reação sorológica para sífilis, HIV, tipagem sanguínea, toxoplasmose, hepatite, entre outros. 194 Tiras que prendem o bebê ao corpo da mãe ou do pai. 119 vontade para auxiliá-la nos primeiros 30 dias (o pai é citado como uma das pessoas que pode ajudá-la nesse momento), encaminhar a licença gestante (se trabalha fora), aprender a cuidar de fraldas e roupas do bebê, esterilizar os utensílios, preparar os alimentos do bebê195, comprar medicamentos e produtos de higiene necessários, organizar o enxoval, dar informações ao pediatra, realizar a amamentação, estimular o controle das micções e evacuações da criança, ser a responsável pelo estado de saúde do bebê (inclusive antes do parto, pois deve se alimentar bem durante a gestação, ser uma gestante calma e não apresentar maus hábitos, como o cigarro196, drogas e álcool) e pela alimentação e hidratação da criança. Como escreve o pediatra em questão (2002), a mãe precisa estar sempre bem alerta, pois se prevenida sabe dos problemas que podem surgir a qualquer momento. O discurso da psicologia como estratégia de governamento Em diversas passagens a saúde e o estado emocional da mãe, principalmente durante a gravidez, são tomados como causa para diversos problemas que podem acometer o bebê. Para Pollit (apud MEYER, 2005, p. 156-157): Precisamos perguntar-nos como chegamos ao ponto de representar a mulher como sendo a maior ameaça à saúde do recém–nascido e o útero como sendo um dos mais perigosos lugares que a criança pode vir a habitar [...]. A lista de risco para saúde do feto é, hoje, muito longa; a lista de riscos para saúde das crianças é mais longa ainda. Por que o comportamento [e os sentimentos] da mãe, uma parte relativamente pequena desse quadro, passa a se configurar como um tema tão importante, enquanto fatores muito mais relevantes [como as dificuldades de acesso à rede de serviços essenciais e a baixa efetividade das políticas sociais] atraem tão pouca atenção?197 Em ambas as edições de A Vida do Bebê é possível perceber o quanto as mães são capturadas por estratégias biopolíticas que visam assegurar a saúde do bebê, através do controle do corpo deste (através de uma gestação tranquila, no qual a mãe busca realizar um pré-natal acompanhado por uma equipe médica e, após o parto, através de visitas periódicas ao pediatra, de vacinações, etc) assegurando a vida e promovendo corpos saudáveis, educados, disciplinados e controlados. 195 De Lamare, em várias passagens, chama a atenção para o cuidado na preparação dos alimentos, pois “pode ocorrer o preparo inadequado das mamadeiras, devido à manipulação das fórmulas de preparo por babás ignorantes, avós emotivas ou mães distraídas” (2002, p. 15). 196 Fumar durante a gravidez é um comportamento arriscado que responsabiliza a grávida individualmente (o pai também é responsabilizado por problemas de saúde do bebê, se for fumante, em A Vida do Bebê) pelo risco a que está expondo o bebê. Conforme já citado no primeiro capítulo dessa Tese, atualmente os indivíduos devem avaliar os riscos aos quais estão se expondo, sendo responsáveis pelos seus atos, o que Pat O‟Malley (1993) denomina de “privatização do controle do risco”. 197 A inserção entre colchetes é de autoria de Meyer. 120 Em diversas passagens, a mãe também é instruída a não se separar do seu bebê, pelo menos até os dezoito meses, período tido como indispensável para o desenvolvimento da criança, pois “o afastamento precoce de mãe e filho pode gerar futuros problemas psicológicos” (DE LAMARE, 2002, p. 15). Eis uma das características mais marcantes de A Vida do Bebê em relação aos demais manuais citados no capítulo anterior: a utilização do discurso da psicologia no governamento da maternidade, o que, em parte, pode explicar o sucesso e o diferencial do manual na subjetivação materna. Nas sociedades ocidentais contemporâneas quando se fala em infância e em maternidade na maioria das vezes se recorre ao discurso da psicologia em suas diferentes vertentes e concepções teóricas (psicologia evolutiva, psicologia do desenvolvimento, psicanálise, etc). Tal discurso popularizou-se, principalmente, a partir da década de 1950, através de programas de rádio (como, por exemplo, o de Winnicott na BBC de Londres) e de televisão, de livros para mães, dos cursos de puericultura para casais, da inserção da psicologia nos cursos Normais e nas licenciaturas dos cursos de graduação nas universidades, de políticas públicas para infância, dentre outros. No caso da psicologia evolutiva, Erica Burman (1998), em seu livro La desconstrución de la psicología evolutiva, explica que as investigações nesse campo visam produzir técnicas de medida [...] para responder a questões concretas relacionadas à teoria evolucionista e à antropologia, além da filosofia [do final do século XIX]. Deste modo, a psicologia evolutiva participou dos movimentos sociais explicitamente preocupados com a comparação, a regulação e o controle dos grupos e das sociedades, e está estreitamente identificada com o desenvolvimento de ferramentas de medição mental, com a classificação das habilidades e com o estabelecimento de normas198 (p. 21-22). Nessa perspectiva evolucionista, a criança seria o caminho para compreender o desenvolvimento humano. Segundo Rose (apud BURMAN, 1998), a psicologia evolutiva se institucionaliza e se difunde graças à clínica e a creche, que permitiram que os psicólogos observassem grupos de crianças da mesma idade e de idades diferentes, tornando-os “árbitros” do desenvolvimento normal e a psicologia como disciplina científica que fala a verdade sobre os sujeitos e guia suas ações. Para alguns autores, a emergência da psicologia na Modernidade estaria relacionada, como explicam Henrique Nardi e Rosane Silva (2004), à “criação de um conjunto de técnicas 198 Todas as traduções dessa autora são de minha responsabilidade e revisadas pela orientadora. 121 voltadas para o indivíduo, visando „adaptá-lo‟ socialmente” (p. 189), ou seja, os discursos desse campo visam estruturar as ações dos indivíduos de acordo com os objetivos políticos daquele contexto histórico. Outro autor que compartilha dessa perspectiva é Rose (2001b). Para este, o discurso psicológico tornou-se popular, pois a governamentalidade neoliberal passa a atuar na condução das condutas, através do governamento199 e da produção dos nossos desejos, atitudes e comportamentos de forma mais sutil, mas mais eficaz e com menos resistência do que seria na lógica da disciplina (com uma vigilância constante, por exemplo). Para governar melhor, é preciso conhecer no detalhe aquele que se quer governar e foi através do discurso e do conhecimento acumulado pela área psi que “[...] que forneceram os meios pelos quais a subjetividade200 e a intersubjetividade humanas puderam começar a fazer parte dos cálculos das autoridades” (ROSE, 1998, p. 38). Para esse autor, “as questões colocadas pela governamentalidade delimitam o território sobre o qual as ciências psi, seus sistemas conceituais, suas invenções técnicas, modos de explicação e formas de expertise viriam a exercer um papel-chave” (ibidem, p. 36). De Lamare, como um homem da sua época, acreditava que a ciência, no caso a articulação do saber médico e psicológico, poderia ajudar as mães a cuidarem melhor dos seus bebês. Mas, talvez, ele não imaginasse que tal articulação faria o seu manual tão famoso, pois nele encontramos a articulação da disciplina e da biopolítica, capturando as mães de forma sutil e extremamente produtiva. Ao aceitar os conselhos sobre como educar o bebê e informar-se sobre as consequências de uma má educação, as mães submetem-se às prescrições do manual em nome do “melhor” para o seu bebê, acreditando que essa é uma escolha sua; às mães é dada a ideia de que “optar” pelos ensinamentos do médico é uma escolha e que ela é livre para fazê-lo ou não. Retomando o discurso dos manuais, é nele dito que a carência da presença materna nos meses iniciais do bebê poderia ocasionar na criança “manifestações que permanecerão para sempre: torna-se nervosa, desconfiada, incapaz de se adaptar a qualquer mudança” (DE LAMARE, 2002, p. 272). Dessa forma, a mãe deve avaliar o risco ao qual está expondo o 199 Por governamento, Rose (1998) compreende “uma certa forma de buscar a realização de fins sociais e políticos através da ação, de uma maneira calculada, sobre as forças, atividades e relações dos indivíduos que constituem uma nação [...] E a subjetividade se tornou um recurso na administração dos problemas da nação” (p. 35). 200 A subjetividade, para o autor, “é, assim, o nome que se pode dar aos efeitos da composição e da recomposição de forças, práticas e relações que tentam transformar – ou operam para transformar – o ser humano em variadas formas de sujeito, em seres capazes de tomar a si próprios como os sujeitos de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles” (ROSE, 2001b, p. 143). 122 bebê ao privá-lo de sua companhia para trabalhar, já que, mesmo aos dois anos, “o mais importante para ela [a criança] é ainda a sua mãe; fica infeliz quando ela está ausente [...] Se a mãe puder, deverá arranjar um trabalho de meio-expediente, quatro a seis horas pela manhã ou à tarde” (ibidem, p. 425). Novamente, podemos considerar o endereçamento da publicação, uma vez que a “mãe De Lamare” pode optar por ter um emprego de 4 a 6 horas, ao contrário da grande maioria das mulheres trabalhadoras do país, que não podem ter essa opção. Burman (1998) problematiza a psicologia evolutiva, a partir do instante que esta elege a criança como objeto de indagação, pois “contribui a fomentar interpretações individualistas dos fenômenos socialmente estruturados, que podem reincidir na culpabilização da vítima, por exemplo, ao culpabilizar201 as mães pelas enfermidades sociais do mundo no qual estão tentando criar seus filhos” (p. 15). Um exemplo disso encontramos no tópico sobre as chupetas, no qual De Lamare explica que, se o bebê quiser chupá-la, “fora da hora das refeições, sem mostrar fome, é porque apresenta algum problema emocional (mãe difícil, sem habilidade para com ele) ou é um bebê nervoso, proveniente de gravidez acidentada ou de um parto difícil” (2002, p. 155). No mesmo sentido, a mãe que dá mamadeira no travesseiro e não no colo - que transmite, segundo o pediatra (ibidem), intimidade, ternura e calor humano demonstra rejeição e mais tarde a criança demonstrará um temperamento difícil em relação à mãe. Conforme assevera Burman (1998) teorias psicológicas, como a formulada por John Bowlby e Donald Winnicott nos anos 1950, como já referido no segundo capítulo, afirmavam que as crianças sofreriam se não estivessem sempre sob os cuidados de suas mães e que as crianças que têm posteriores problemas pessoais e de conduta teriam sido mal atendidas por elas. Tais explicações tornaram-se populares na época do pós-guerra, quando os homens regressaram às fábricas e as mulheres retornaram para o “lar doce lar”, em países da Europa e nos Estados Unidos. Segundo Burman, esse é o período da glorificação da maternidade, como pode ser visualizado na epígrafe, de autoria de Pinard202, presente em todas as edições analisadas de A Vida do Bebê: As mulheres que concebem e amamentam apresentam uma espécie de rejuvenescimento de todo o organismo, acompanhado dum caráter mais forte, mais resistentes à dor, com refinamento de tôdas as qualidades mais 201 Nos demais manuais analisados a culpabilização da mãe por diferentes questões encontra espaço, principalmente nos casos de má gerência alimentar (MARQUES, 1945) e pela imposição de alimentar o bebê a qualquer preço (BALBACH, 1967), como poderemos ver melhor no próximo capítulo. 202 Médico francês e eugenista. 123 belas da alma feminina: a bondade, a ternura, a resignação, o espírito de sacrifício e a abnegação. Essa epígrafe, que abre todas as edições, aponta a quem a publicação se dirige: às mães bondosas, abnegadas e que aceitam a maternidade como uma benção dada somente às mulheres. Nesse sentido, a maternidade se apresenta como a máxima realização de toda a mulher e o amor materno como algo natural, espontâneo e inato. Essa representação de maternidade remete à figura bíblica de Maria203 – mãe de Jesus Cristo – imagem presente nas diferentes edições como já referido. Mãe virtuosa, amorosa, protetora, abnegada e zelosa do filho, exemplo que todas as mulheres deveriam seguir. Com explica Forna (1999, p. 129-129) a mãe boa é abnegada, pois “a maternidade, assim como a religião, está ligada a sacrifício 204 e devoção”. No mesmo sentido, Eduardo Paiva (2004) nos chama atenção para o fato de Maria representar não apenas o modelo de mãe, mas também de mulher ideal, pois a “mulher honesta casava-se e procriava, renunciando ao prazer. E daí que surge o estereótipo da „santa mãezinha‟, assexuada, pura, protetora, dedicada, solidária” (p. 49). Na edição de 2002 de A Vida do Bebê, a teoria de Bowlby é reafirmada quando o pediatra explicita que afastamentos precoces entre mãe e filho podem gerar futuros problemas psicológicos, pois importante para a criança seria a presença amorosa e tranquilizadora da mãe, seu contato com ela desde o primeiro momento, o colo, o embalo, o carinho, a voz suave, as canções em sussurros, a maneira acolhedora de segurá-lo e o socorro aos seus problemas ensinarão que o mal-estar e a frustração têm um limite, que depois deles virá a gratificação (alimentos gostosos, um banho agradável, um ambiente alegre e um brinquedo ou objeto amado...) e o bebê desenvolverá normalmente várias funções mentais e psíquicas indispensáveis para o seu futuro (DE LAMARE, 2002, p. 35). Novamente, pode-se visualizar o endereçamento da publicação, pois nem todas as mães podem oferecer alimentos “gostosos”, um banho agradável e brinquedos às crianças. Ademais, o contato através do toque torna a relação mãe-bebê ainda mais importante para o desenvolvimento deste. Para De Lamare (2002), 203 Como explica Heywood (2004), a partir da historiadora Doris Desclais, a partir do século XII a Igreja Católica suaviza sua postura em relação à procriação através da devoção a Virgem Maria (embora esta tenha se tornado mãe mesmo sendo virgem), produzindo uma visão positiva da maternidade. 204 Balbach (1967), em seu manual Meus Filhos, reafirma tal discurso ao pronunciar que o “[...] coração de mãe é um insondável abismo de ternura, dedicação e sacrifício” (p. 7). Além disso, nomeia o parto como “glória maternal” e descreve a vida da mãe como o cumprimento dos deveres maternos em primeiro lugar. O autor, nomeado no prefácio como “autoridade no campo da saúde e educação”, define o mérito da mulher: “[...] governar a sua casa, fazer feliz o seu marido, consolá-lo e educar os seus filhos, isto é, fazer deles homens” (p. 8). Nesse manual, temos o entrelaçamento do discurso da saúde com religião, devido ao autor ser pastor adventista e pesquisador de plantas. 124 o toque é extremamente importante para a formação e para o fortalecimento do vínculo entre mãe e filho. Vínculo é a ligação que se estabelece entre a mãe e o bebê desde a sua concepção: esta ligação é física, emocional e espiritual. A qualidade deste primeiro vínculo determinará, em grande parte, a forma como o bebê mais tarde se relacionará com outras pessoas (p. 98). Também, recorrentemente, o autor citado acima utilizará a relação entre o ocorrido na gestação e no parto e a qualidade do vínculo da mãe com o bebê para explicar os futuros problemas da criança. Nesse sentido, Burman, ao desconstruir os enunciados da psicologia evolutiva na sua pesquisa - alguns deles facilmente localizáveis em A Vida do Bebê -, questiona a relação mãe-filha(o) tão cara às pesquisas dessa área. Conforme a autora, a díade das investigações evolutivas „sociais‟ é quase sempre formada pela mãe e filha205. Esta supressão de outras relações que rodeiam e envolvem os bebês e as crianças pequenas é um exemplo fascinante da penetração, dentro das investigações, de determinados pressupostos ideológicos acerca de qual relação é mais importante para uma criança, e de como se categoriza o mundo social dentro da esfera doméstica e da pública (1998, p. 63). Como também salienta a autora, tais explicações desconsideram as relações históricas, culturais e sociais nas quais as famílias estão inseridas, sendo que, inclusive tais “[...] explicações analisam as relações díades como se ocorressem em um vazio social, ignorando como estão estruturadas pela cultura” (ibidem, p. 64). No manual, além da presença e do toque, “a voz da mãe é o som favorito, pois ele [o bebê] o associa a calor humano, conforto e comida” (DE LAMARE, 2002, p. 219). Assim, a figura materna torna-se “naturalmente” a figura a quem a criança sempre recorre, “porque ela representa o grande poder de oferecer e proteger” (ibidem, p. 377). É interessante registrar que tais enunciados206 proferidos por De Lamare não pertencem a ele, especificamente, mas a um campo de saber do qual ele faz parte – a pediatria – em conjunção com a psicologia. Como destaca Meyer (2002, p. 383) “estes (indivíduos e instituições) podem estar produzindo textos particulares, mas estão operando dentro de regimes de verdade de um período e cultura particulares”. Segundo a mesma autora, atualmente estamos vivendo “um período de intensa „politização do feminino e da maternidade‟ (2006, p. 3). Para a autora, quatro movimentos, ao longo do século XX, forjaram esse regime de vigilância e de regulação da maternidade: 1) a racionalidade neoliberal, por depositar na pessoa a responsabilidade por sua vida e saúde e, no 205 206 A autora optou por escrever, ao longo do seu livro, filha ao invés de filho, como termo genérico. Enunciado pode ser compreendido como a manifestação de um saber. 125 caso das mulheres-mães, a responsabilidade por gerar e criar indivíduos perfeitos (mãe como parceira do Estado na promoção de uma biopolítica); 2) o aprofundamento das desigualdades sociais, em decorrência da conjunção da racionalidade neoliberal com o processo de globalização, que responsabiliza a pessoa pela busca dos meios de sobrevivência, com consequências como a feminização da pobreza; 3) o desenvolvimento de tecnologias que monitoram o desenvolvimento do feto; 4) a multiplicação dos sujeitos de direitos, como por exemplo, os fetos, sendo a mãe responsabilizada pelo desenvolvimento pleno deste. A culpabilização das mães por não terem realizado suas responsabilidades com esmero e dedicação está presente em vários momentos no manual, pois ser boa mãe é obrigatório por esses discursos. A teoria do olhar materno como um dos aspectos mais importantes do relacionamento entre mãe e filho também encontra espaço em A Vida do Bebê (2002). Nas palavras do especialista “por meio da fisionomia materna ele [o bebê] sentirá a confiança e a segurança que todo filho deposita em sua mãe” (DE LAMARE, 2002, p. 35), sendo que “a falta deste ato é uma das razões por que as crianças criadas em instituições são mais atrasadas mental e socialmente” (ibidem, p. 297). Articulado ao discurso da psicologia, através das teorias do vínculo (toque, olhar, etc), está o da amamentação como uma das estratégias de governamento da maternidade. Regulação através da amamentação Outra prática alvo de grande atenção por parte dos manuais é a da amamentação. Em A Vida do Bebê, o autor utiliza uma linguagem coloquial, não acadêmica, não especializada e próxima à leitora (talvez visando sua fácil adesão e, assim, conduzir a conduta materna), para apresentar uma série de argumentos em prol da amamentação207, tais como: 207 Como explica Londa Schiebinger (1998), foi Lineu, em 1758, que introduziu o termo Mammalia na taxonomia zoológica. Ao contrário das outras classes (Aves, Amphibia, Pisces, Insecta e Vermes) é a única “a centrar-se em órgãos reprodutivos e o único termo que destaca uma característica associada principalmente à fêmea” (ibidem, p. 221). Para a autora, foi o problema de localizar os humanos na natureza que fez com que Lineu procurasse uma classificação mais apropriada, pois antes disso os humanos eram localizados entre os Quadrupedia. Além disso, Lineu era engajado na campanha contra as amas-de-leite e exaltava as virtudes do leite materno, o que pode, em parte, explicar o seu interesse pelas mamas. No entanto, ao mesmo tempo que Lineu nomeava uma característica feminina (as mamas) para ligar humanos e animais, nomeou o Homo Sapiens (homem dotado de razão) para distinguir o homem dos outros seres. Também cabe referir que no século XVIII tornou-se comum o discurso de que as mulheres deveriam seguir os exemplos das fêmeas das grandes espécies, como, por exemplo, a leoa, que espontânea e instintivamente oferecia às mamas aos filhotes. Lineu, com o termo por ele instituído, segundo Schiebinger (1998, p. 239) “ajudou a legitimar a reestruturação da sociedade européia, enfatizando quão natural era para o sexo feminino – humano e não-humano – amamentar e amar suas próprias crias”. 126 O bebê amamentado com leite humano, o único alimento com defesas contra doenças, torna-se forte; inteligente; emocionalmente feliz! a) a criança nasceu para alimentar-se no seio materno. [...]; b) o colostro (nome dado ao leite na primeira semana) é a primeira „vacina‟ que a criança recebe; [...]; c) o ato de amamentar estimula também as glândulas internas da mulher, fazendo com que ela deixe de ovular; [...]; d) é mais nutritivo. [...] As crianças têm probabilidade de se tornarem mais altas; e) é mais higiênico, não havendo perigo de estar contaminado, causando perigosa infecção intestinal. [...]; f) mamar ao seio não satisfaz apenas o organismo do bebê, mas também o seu espírito. A mamadeira dificilmente poderá substituir o seio materno, principalmente quando dada por outra pessoa; g) a mulher que amamenta conserva e aprimora sua beleza, destituindo de fundamentos a crendice de que amamentar faz os seios caírem. [...]; h) [...]; i) o fator psicológico de querer amamentar é um fato incontestável; [...]; j) o leite materno protege contra a obesidade; [...]; l) a mulher que nunca amamentou costuma apresentar seios doloridos após os 35 anos de idade; m) a amamentação protege contra o câncer de mama, que é muito raro em mulher que amamentou; n) dar o seio não modificará sua aparência, consistência ou volume, destituindo de fundamento a crendice de que o ato de amamentar faz os seios caírem (DE LAMARE, 2002, p. 14-15). Através dessas argumentações, o autor procura persuadir as mães de que a melhor escolha (e talvez a única opção) seja a amamentação. Para isso, em muitos momentos, ele se utiliza de argumentos de ordem estética e em prol da saúde física e mental da mãe, assim como em favor do desenvolvimento e da saúde do bebê. Tais argumentos, como explica João Almeida (1999), seguem “a lógica de „informar para responsabilizar‟ [que] procura modular o comportamento da mulher em favor da amamentação, imputando-lhe culpa pelo desmame precoce, que é associado de forma direta a agravos para a saúde de seu filho” (p. 16). Conforme o mesmo autor, os benefícios da amamentação estendem-se além das crianças e das mães, atingindo as famílias e o Estado. Para a família, a amamentação traria como benefício a agregação dos membros da família; já o Estado, através de campanhas de incentivo e apoio à amamentação, teria como retorno “gerações saudáveis e com maior potencial intelectual” (ALMEIDA, 1999, p. 18). Para o pediatra Oliveira (1956), autor de um dos manuais analisados, a ênfase na amamentação208 tem como objetivo a promoção da saúde do bebê. Além disso, este médico salienta que o aleitamento é um direito do bebê e um dever da mãe, “desempenhando o mais belo papel que a natureza lhe reservou, cumpre a mulher obedecer a certos preceitos 208 Este autor já fala da alimentação utilizando como vocabulário as “calorias”. 127 higiênicos para o fim de se tornar, ou de conservar-se, uma nutriz digna de seu filho209” (p. 295). Articulando o discurso da pediatria e da psicologia, De Lamare afirma que “[...] a afinidade entre mãe e filho é muito maior entre aquelas que amamentaram do que naquelas em que a mamadeira substitui o seio [...] amamentar seu filho é o maior prêmio que você pode ter! ‘O recém-nascido que é amamentado raramente adoece e, quando adoece, raramente morre’” (2002, p. 14, grifos do autor). Tendo em vista tais argumentos, qual mãe se negaria a amamentar seu bebê? Dessa forma, o pediatra aqui ressalta a importância da amamentação para a saúde do bebê e reafirma o vínculo mãe-bebê210 já descrito nas páginas anteriores, o que podemos ver reafirmado na passagem: “apesar do cordão umbilical já ter sido cortado, a ligação entre mãe e filho continuará pela amamentação” (ibidem, p. 94). Como podemos ver, a amamentação é fortemente defendida nos manuais analisados, mas destaco na edição de 1963 de A Vida do Bebê uma imagem - A virgem do leite – que é colocada ao lado da página que trata da relação Mãe e Filho, e que enfatiza fortemente a amamentação. O que tal representação, assim como a de Maria, busca promover nesse manual? Acredito que propicia a identificação das mães com esse ícone da maternidade, como já descrito em capítulo anterior, e, no caso da Virgem do Leite, a promoção da amamentação, pois, se Maria amamentou e essa é o ícone de boa mãe, caberia a todas seguirem seu exemplo. Oliveira (2007) escreve que ao longo do século XIV houve uma proliferação de imagens de Maria, incluindo a da Virgem do Leite, que, segundo a autora, associa a figura da Virgem ao Deus menino “contribuindo para os avanços de uma nova consciência social da gravidez e para emergência de um diferente olhar sobre a mulher e a criança” (p. 46). E, no caso da Virgem do Leite, Oliveira enfatiza que esta contribui “para detectar os progressos da valorização da maternidade ao conferirem especial relevo à amamentação materna” (p. 47). Reafirmando tal discurso, De Lamare considera que: “mãe e filho representam e representarão a mesma unidade. Depois de tê-lo tido dentro de si por nove meses, continuará a mantê-lo junto ao seio pela amamentação” (1963, p. 11), pois a mãe não deve deixar para outra este sagrado dever, a não ser que queira correr o risco de ver o seu filho dizer pela primeira vez „mamãe‟ a uma estranha, e tomar-lhe maior afeição. 209 210 Chamado pelo pediatra de “fruto sagrado do seu ventre” (1956, p. 296). Este tema permite que possamos estabelecer relações entre a primeira tese defendida no Brasil, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sobre aleitamento materno, em 1838, por Agostinho José Ferreira Brotas e De Lamare em sua última edição. Para aquele, além da superioridade do aleitamento materno, o autor sublinhava “os riscos a que são submetidas as crianças privadas do seio da mãe” (ALMEIDA, 1999, p. 35), concepção também defendida em A Vida do Bebê. 128 O leite materno é sangue branco, é a vida, a saúde e a felicidade do novo ser, e, com muita razão, já disse notável pediatra ‘existem duas coisas no mundo que são insubstituíveis, o leite e o coração maternos!’ (DE LAMARE, 1963, p. 12, grifos do autor). Dessa forma, o “sagrado” dever materno de amamentar visa promover a saúde e a felicidade do bebê, como descrito por esses manuais, através do leite materno, considerado vida, atrelando amamentação com algo divino e bom (“a boa mãe amamenta”). Assim, para Oliveira (2007) as múltiplas esculturas onde se passou a representar a amamentação do Menino Jesus pela sua mãe acabaram por permitir a gradual sacralização desse ato, projetando na Nossa Senhora o modelo das progenitoras dignificadas e exaltadas pela alimentação da sua estirpe. [...] as imagens das Virgens do Leite desempenharam um papel relevante para difusão social de num novo ideal de maternidade, mais nutritivo e protetor do que meramente reprodutor” (p. 105). No mesmo sentido Marilyn Yalom (1997) explica no seu livro História do seio, que na tradição judaica e cristã, os seios eram dignificados por produzirem o leite necessário à sobrevivência e seu significado estava atrelado ao amor maternal e ao sagrado. O leite materno era visto, dentro dessas tradições, como um alimento material e espiritual e a figura da Virgem Maria “transformou o aleitamento numa ocupação sagrada” (p. 65). Para De Lamare é através da amamentação, primeiramente, que se constrói a qualidade do vínculo mãe/bebê. As relações amistosas e amorosas estabelecidas entre a mãe e a criança, durante os primeiros dias e semanas de vida, constituem um valioso elemento para o bom desenvolvimento mental do futuro da criança. Parece que a inter-relação do leite é maior do que a do sangue. A mama é o mundo da criança e o bebê terá através dela consciência agradável de sua mãe, de acordo com a quantidade do leite que possa dar ao bebê. Para o bebê, a alimentação ao seio fornece satisfações emocionais agradabilíssimas que podem ter a mais alta importância futura (DE LAMARE, 1963, p. 41). Novamente, a prescrição da amamentação a todas as mães se deve em nome do “bom desenvolvimento mental” do bebê, através principalmente do discurso da psicologia, ou seja, da qualidade do vínculo mãe-bebê, desconsiderando o contexto e as necessidades dessa mãe. Além disso, chama a atenção a relação estabelecida pelo pediatra entre a “consciência agradável” da mãe que o bebê terá e a quantidade de leite que lhe será dado. 129 Seguindo a lógica proposta pelo autor, mesmo que a mãe tenha pouco leite211 para o bebê, é importante insistir com o seio para somente depois lhe dar a mamadeira. “Tendo sempre o cuidado de nunca desprezar o seio, pelo mínimo de leite que porventura possa ter” (1963, p. 54). Instruções para a alimentação ao seio nos seis primeiros meses 1.º - A mãe deve repousar durante 15 minutos antes de iniciar a mamada, relaxando-se, sem preocupações. 2.º - A mãe deve usar um „porta-seios‟ especial durante os últimos 3 meses de gravidez para evitar a distensão da pele, assim também como durante a amamentação. 3.º - Em seios muito duros, às vezes, é útil, antes da mamada, tirar um pouco com bomba „tira-leite‟. 4.º - O leite pode ser tirado com a bomba „tira-leite‟ e coletado em copo esterilizado que tenha sido fervido pelo menos durante 5 minutos. O leite humano guardado por mais de 6 horas deve ser fervido em banho-maria. 5.º - Quando o bebê mama, o útero se contrai, abreviando o retorno à sua posição e tamanho normal. 6.º - O excesso de gorduras e a „água de canjica‟ na alimentação materna, durante a gravidez e lactação, aumenta o volume do seio, mas não aumenta a produção do leite... 7.º A mãe deve beber o mesmo volume de leite que a criança lhe suga. Às vêzes ao ouvir o bebê chorar o leite começa a correr212... 8.º - Certos bebês se irritam com a dificuldade de abocanhar o bico do seio, ficam furiosos quando lhe seguram a cabeça e o forçam empurrando-lhe o seio. 9.º - Não gostam, também, que se lhe apertem as bochechas para lhe obrigar a mamar. 10.º - Certos bebês apresentam „crises de mastigação‟ sôbre os bicos dos seios, provocando, às vezes, rachaduras dolorosas. 11.º - Fazer o bebê „arrotar‟. Para expelir os gases, basta colocá-lo contra o ombro materno dando-lhe umas palmadinhas nas costas. 12.º - Certos bebês transpiram muito ao mamar. 13.º - Modernamente há um horário flexível, de acordo com certos bebês, antecipando ou retardando certas mamadas. 14.º - A orientação de alguns pediatras modernos, permitindo o bebê mamar quando quiser, tem provocado certos problemas. Pequenas concessões podem ser feitas, mas não a desorganização total. 15.º - A mamada das 6 da tarde, é geralmente, a menos volumosa. 16.º - A mamada das 2 da madrugada é facultativa. O bebê acorda se quiser, e não há perigo de formar um hábito. Ao completar 2 meses a abandona espontâneamente. 211 Na segunda metade do século XIX, apesar dos esforços dos higienistas brasileiros para promover o aleitamento materno, muitas mulheres não conseguiam amamentar seus bebês por terem pouco leite ou esse secar com facilidade. Surge, assim, como explica Almeida (1999), a figura do leite fraco, o que manteve a presença aceita e justificada das amas. No entanto, com a importação dos leites industrializados, da farinha láctea, do leite condensado e da mamadeira, na primeira metade do século XX, no Brasil, estes tornaram-se uma estratégia higiênica para o problema do leite fraco, excluindo, consequentemente as amas dessa trama. 212 Segundo Almeida (1999), a noção de que basta colocar o bebê ao seio para que este comece a verter leite, é um discurso higienista, próprio do século XIX, que não dispõe de sustentação biológica. 130 17.º - O bebê nem sempre, recebe sistemàticamente, a mesma quantidade em cada refeição. A mãe não deve ficar infeliz por isso. Se a mãe „forçar‟ êle pode começar a perder o apetite. 18.º - Existem bebês que gostam de descansar durante a mamada, interrompendo-a por 1 ou 3 minutos, nunca mais de 10. Não é aconselhável habituá-lo a dividir a refeição em duas partes, interrompida com uma soneca. 19.º - O bebê, às vêzes, não toma todo o volume desejado, parando, quando bem entende, nesses casos, o controle do peso é indispensável. 20.º - É recomendável dar ao bebê alimentado ao seio, 2 gôtas de vitamina A e D, desde a 4.ª semana de vida213. Por essas instruções pode-se perceber o quanto o aleitamento é uma prática cercada de regras e preceitos que visam o disciplinamento do corpo do bebê e da mãe. Além disso, há o estabelecimento de uma relação instintiva entre o choro do bebê e o leite que “jorra” do seio. Como explica Romeu Gomes (1999), quando se questionam os significados da amamentação, as discussões giram em torno da natureza e da cultura, ou seja, o quanto essa prática é cultural ou biológica. No entanto, o autor ressalta que a amamentação configura-se como uma categoria híbrida, na qual não é possível dissociar cultura e biologia. Sobre essa relação cultura e natureza algumas palavras. Segundo Veiga-Neto (2006), há alguns séculos atrás a palavra cultura era compreendida como cultivo, ou seja, como uma atividade material ligada a terra, partilhando com a palavra natureza de um fundo semântico comum. Nos séculos XVIII e XIX, intelectuais alemães cunharam o termo Kultur para se diferenciarem de civilização – termo francês para se referir aos modos de vida social. Contrariamente a este termo, Kultur estava relacionado, a partir da perspectiva do Iluminismo, à apreciação de obras de arte e da literatura e do investimento intelectual nas diferentes áreas do conhecimento (ELIAS, 1994). Não obstante, foi com o desenvolvimento do Colonialismo, no século XIX, que o conceito antropológico de cultura como um modo de vida singular tornou-se conhecido, além de ser visto como um modelo a ser atingido por outros povos. Ademais, na segunda metade do século XIX, as publicações de Mathew Arnold promoviam um pensamento dicotômico tipicamente moderno entre natureza e cultura, entre alta e baixa cultura, cultura erudita e popular, dentre outras. Como escreve Veiga-Neto (2006) proposições como as de Arnold promoveram três efeitos. O primeiro está relacionado a um dos preceitos dos Estudos Culturais – a centralidade da cultura – que se tornou “guarda-chuva e fonte de explicação para todo e qualquer fenômeno social”. No estudo empreendido por 213 Exceto por algumas expressões e algumas informações adicionais, a mesma lista de instruções é encontrada na edição de 2002, nas páginas 143 e 144. 131 Terry Eagleton (2005), no livro A ideia de cultura214, a concepção presente em alguns teóricos culturalistas de que tudo é cultural, ou seja, todas as explicações são mediadas pelo meio social onde se vive, pretende se revestir de uma validade universal que repudia as explicações biológicas ou genéticas. Dessa forma, dizer que tudo é cultural é cair na mesma cilada daqueles que explicam tudo pelo viés da natureza. Eagleton explica ainda que, após os turbulentos anos de 1960, a cultura pós-moderna, primeiramente, utilizou-se da esquerda e do capitalismo para se expandir nos países ocidentais, para, posteriormente, atingir os países de Terceiro Mundo e aqueles recentemente independentes. A cultura, nesses países (inclusive o Brasil), segundo Eagleton, tornou-se “a própria gramática da luta política” (EAGLETON, 2005, p. 178). O segundo efeito citado por Veiga-Neto (2006) diz respeito às velhas discussões entre cultura e natureza, isto é, entre o que é formado culturalmente e o que é determinado pela genética e pela constituição biológica. Nesse caso, para Eagleton (2005), o biológico sempre é explicado e mediado pelo social, pois estamos “imprensados entre a natureza e a cultura” (p. 142). Já o terceiro efeito versa sobre a dominação do homem sobre a natureza, excluindo do âmbito da natureza a figura humana. Dentro dessas discussões, procura-se, então, definir o que é natural e o que é cultural. Dessa forma, muitos autores procuram explicar tal questão articulando natureza e cultura numa relação complementar em “tensão permanente – complexa, dinâmica e bastante produtiva – entre fenômenos que se dão em esferas diferentes e que funcionam mutuamente como condições de possibilidade um do outro” (VEIGA-NETO, 2006). Retornando ao material analisado, nos manuais o ato de amamentar é minuciosamente descrito e regulado, principalmente na edição de 1963 de A Vida do Bebê. Nessa há dicas sobre como amamentar (“técnica para uma amamentação perfeita a fim de evitar bebês inapetentes, nervosos e vomitadores”, p. 27); os horários; o quanto deve mamar o recémnascido; os tipos de recém-nascido, conforme o modo de mamar; os casos em que a mãe não pode ou não deve amamentar; como deve ser a vida da mulher que amamenta; o que e quanto deve comer a mulher que amamenta e os remédios que a “nutriz” não deve ingerir. Segundo Almeida (1999), este modelo de amamentação está vinculado à corrente alemã na qual “o recém-nascido deveria ser submetido a um importante regime de disciplina e condicionamento que, traduzido em termos de amamentação, significava mamar de três em 214 Nesse livro o autor explora o conceito de cultura a partir de uma variedade de autores, procurando mapear e, ao mesmo tempo, problematizar as diferentes atribuições dadas a ela. 132 três horas e não mais do que quinze minutos em cada mama” (p. 78). Sobre a eventual possibilidade de contratar uma ama de leite, assim pronuncia-se De Lamare: Para nós, a hipótese de ama de leite se resume unicamente para quando a mãe não tem leite ou existe absoluta contra-indicação para amamentação, não havendo nada que nos faça transigir em admitir ama de leite ou receitar alimentação artificial para uma criança, quando a mãe, podendo amamentar, não o deseja fazer por uma questão de comodidade ou vaidade. Neste caso podem chamar outro médico que queira fazer a prescrição, pois pensamos como Schweizer: ‘Mãe que podendo amamentar seu filho, não o faz, não merece o nome de mãe...’ (1963, p. 38, grifos do autor). É interessante destacar o vocabulário utilizado pelo pediatra para descrever as razões pelas quais algumas mães que podem amamentar não o fazem: comodidade e vaidade. Como já descrito no segundo capítulo, essas já eram nomeadas no século XIX como mulheres da aristocracia que preferiam entregar seus bebês às amas para continuarem frequentando as atividades sociais, assim como evitar os incômodos da amamentação. Balbach (1967) no seu manual também escreve: “não é mãe aquela que se abstém voluntàriamente do materno dever de amamentar seu filho, entregando-o a uma ama” (p. 9). Para este pesquisador, se a mãe não pretende “se devotar” ao filho, em favor dos “prazeres da vida da alta roda”, ela não deve se tornar mãe. Assim como De Lamare, Balbach também lança mão de argumentos em prol da saúde e da beleza da mulher que se torna mãe e que amamenta seu bebê. No mesmo sentido, os demais manuais também reafirmam esse discurso. Oliveira (1956) afirma que, se a mulher não puder amamentar, deve recorrer a bancos de leite ou ao leite mercenário, tendo-se o cuidado de examinar minuciosamente a saúde e o comportamento da ama e leite. O leite em pó para o pediatra é um recurso usado pelas “[...] classes abastadas, onde não é grande o empenho das mães em amamentar seus filhos” (p. 309). No que tange ao aleitamento, Marques (1945) explica que a amamentação deve ocorrer a cada três horas, com uma duração de 15 a 20 minutos, impondo-se uma rigorosa disciplina ao bebê. Para este pediatra “[...] a alimentação natural, [...] [é] uma das condições necessárias à saúde e bom desenvolvimento de seus filhos” (p. 79), contrapondo-se àqueles discursos como, por exemplo, o do leite fraco, que justificam o abandono do aleitamento; segundo Marques poucos são os casos que a mãe não pode amamentar. Ao contrário de Oliveira (1956), Marques (1945) afirma que raros serão os casos nos quais o médico recorrerá às amas de leite, devido aos recursos da alimentação artificial, embora estes sejam responsáveis “[...] pelo alto índice de mortalidade verificado de preferência no primeiro ano 133 de vida infantil” 215 (p. 99). Para o médico em questão, a nutriz mercenária na maioria das vezes desconhece os preceitos higiênicos “expondo o bebê a que amamentam a perigos frequentes de graves infecções” (p. 84). No entanto, se o caso da ama for imprescindível, o médico deve avaliar a saúde da ama. A partir dessas considerações, é preciso salientar algumas diferenças entre as edições de A Vida do Bebê aqui analisadas. Embora o tema da amamentação seja defendido216 em ambas as edições, há diferenças de abordagem entre elas. Em 1963, ela é muito mais descrita em detalhes, como é possível perceber no trecho anteriormente citado. Sobre recomendações como essas, Knibiehler217 (1996, p. 114) explica que, para os especialistas, “a lactância já não é [...] a base de uma edificação moral como na época de Rousseau: trata-se de uma técnica de higiene, codificada, regulamentada, repetitiva”. Já na edição de 2002, a regulação do aleitamento não é tão enfatizada quanto os ganhos para mães e bebês, como já citado, com esse tipo de alimentação. Meyer, ao analisar os materiais educativos utilizados pelo Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, afirma que a prática de aleitamento até pode ser muito saudável, desejável e prazerosa para mães e seus bebês, mas acreditar nisso não nos autoriza a deixar de visibilizar e problematizar as poderosas redes de disciplinamento e de controle social que, em nome dela, são produzidas e colocadas em circulação nas pedagogias de amamentação (2000, p. 133). A partir das prescrições citadas anteriormente, pode-se perceber o quanto a amamentação é fortemente regulada e vigiada. Em A Vida do Bebê podemos visualizar, como referido por Meyer (2000), as pedagogias da amamentação 218 em processo, visando ao governamento das mães a serviço de uma biopolítica que visa assegurar a saúde do bebê. Segundo Almeida (1999) as altas taxas de desmame têm sido imputadas: [...] à falta de consciência materna sobre as vantagens que permeiam a prática; ao despreparo dos profissionais de saúde para informar as mães sobre tais vantagens; ao marketing dos leites industrializados; à emancipação da mulher como força produtiva; a equívocos cometidos pelo estado na 215 É o caso do leite de vaca que na época era caro e possuía baixa higienização, o que causava distúrbios alimentares e infecção intestinal. 216 Heywood (2004) aponta que desde o século XIII são encontrados textos que incentivam a amamentação e, mesmo, explicações como do estreitamento dos vínculos entre mãe e bebê através da amamentação. 217 Todas as traduções dessa autora são de minha responsabilidade e revisadas pela orientadora. 218 Para Yalom (1997), os seios começaram a assumir um significado político a partir do século XVIII, quando às mulheres foi pedido “que ponham os seios ao serviço dos interesses nacionais e internacionais” (p. 176), como, por exemplo, o incentivo à amamentação para redução da mortalidade infantil. 134 formulação e implementação das políticas para área; entre outros aspectos (p. 11). Almeida também refere, no Brasil, a falta de amparo social à amamentação219 e a visão higienista que representa o ato de amamentar como natural, instintivo e inato e que responsabiliza a mãe pela saúde do bebê. Meyer (2000) destaca que as altas taxas de desmame precoce, tomadas como indicadores para subsidiar a elaboração de programas de promoção de aleitamento, “são indicativas de que a amamentação, como sinônimo de instinto ou competência materna, segue sendo contestada, negada e até mesmo impossibilitada no âmbito dessas culturas” (ibidem, p. 131). Dizer à mulher que ela deve amamentar só no seio, como pode ser localizado em vários excertos de manuais e campanhas, é desconsiderar as diferentes configurações familiares e contextos sociais e históricos nos quais essa mulher está inserida. O período do desmame, em A Vida do Bebê, deve ser acompanhado com atenção, pois o desmame é tanto mais perigoso quanto mais precoce e repentino for. Deve-se proceder lentamente substituindo-se, progressivamente, as mamadas ao seio pelas mamadeiras. Qualquer dêsses dois tipos obedece a rigoroso critério científico, que só ao médico compete resolver, porquanto o desmame mal feito pode levar o bebê a perturbações intestinais (vômitos, diarréia) ou de ordem psicológica (perda de apetite e sono) (DE LAMARE, 1963, p. 112, destaques do autor). Novamente chamo a atenção para o entrelaçamento entre o discurso médico e psicológico promovido por Rinaldo De Lamare, para governar principalmente as condutas maternas. Ao contrário de outros discursos da área médica (como nos demais manuais), que defendiam e defendem o aleitamento materno como forma de combater a mortalidade infantil decorrente da falta de nutrientes adequados e da higiene e o uso de alimentação inadequadas das amas, De Lamare defende o aleitamento materno por outras questões, principalmente, aqueles discursos da psicologia sobre a relação mãe-bebê. Ao contrário do que é prescrito atualmente (amamentação exclusiva até os seis meses), na edição de 1963220 De Lamare defende o desmame entre os 4 e 5 meses, pois “a alimentação exclusiva pelo leite, prolongada além dos 4 e 5 meses, acaba por provocar inapetência rebelde no bebê, principalmente quando se trata de leite de vaca, cuja alcalinidade 219 Segundo Almeida (1999), não basta criar campanhas de promoção do aleitamento materno se as mulheresmães não têm apoio de instituições e organizações para amamentar seus bebês. 220 Na edição de 1963, o desmame é tido como “o período que, iniciando-se o desmame aos 3 ou 4 meses, termina no fim do primeiro ano” (p. 111). 135 neutraliza, em parte, a acidez do suco gástrico, que, como sabemos, é um dos fatores do apetite” (p. 112). Já na edição de 2002, afirma-se que o desmame para crianças alimentadas com leite de vaca pode iniciar aos três meses. No entanto, o desmame para crianças amamentadas ao seio pode ocorrer somente após os seis meses de idade, prolongando-se até os nove meses. Para as mães que trabalham, aquele deve iniciar aos quatro meses, por ocasião do fim da licença maternidade221. Tais pedagogias tornam a mulher promotora de políticas públicas, como, por exemplo, a da amamentação, mas ao mesmo tempo a tornam um sujeito de risco, se resistir às estratégias de governamento promovidas por essa biopolítica ao não amamentar. O manual, para exercer poder (direcionar a ação da mãe), utiliza-se do saber, que pode ser lido como “o melhor para o seu filho”. Aqui relembro o exposto por Meyer (2005, p. 154) quando a autora explica que “a mãe é posicionada como „causa‟ do problema e o feto/criança com o locus onde o „efeito‟ desse exercício da maternidade se materializa na constituição de um sujeitoproblema”. Ademais, o pai também é referido, na edição de 1963, como importante na manutenção de ambiente de tranquilidade na casa durante, principalmente, o período da amamentação, e recebe inclusive um “conselho” do autor: “e aqui fica um conselho para os maridos e pais (se é que lêem livros desta natureza): não briguem nem discutam com as esposas enquanto amamentam, pois, com isto, podem estar tirando o alimento do seu próprio filho!” (DE LAMARE, 1963, p. 35). Dessa forma, podemos pensar que nesses manuais não é o relacionamento do casal que importa, mas a promoção de um ambiente (lar) equilibrado para o bom desenvolvimento infantil, pois o foco, nessa publicação, é a criança. Dessa forma, alguns comportamento e atitudes dos pais-homens, na edição de 2002, (assim como na edição de 1963) também são apontados como uma das causas prováveis da diminuição do aleitamento materno; isso quando se trata de “maridos que provocam ciúme ou que não dão valor ao esforço e ao zelo da esposa que se dedica intensamente ao lar, aos filhos e a ele mesmo” (p. 83). Além do marido, o trabalho fora do lar também é responsável pela 221 Atualmente, a licença-maternidade de seis meses já vale para servidoras públicas de 58 municípios e seis Estados, que se anteciparam ao projeto de lei (de autoria da senadora Patrícia Saboya e com apoio da Sociedade Brasileira de Pediatra) que tramita no Congresso Nacional e aumentaram o direito, de quatro meses, para seis meses. No entanto, a adoção da licença é voluntária, tanto para a empresa como para a trabalhadora. A empresa que quiser conceder a licença de seis meses deve aderir ao programa Empresa Cidadã, criado pelo próprio projeto, e, com isso, o empregador terá isenção total no Imposto de Renda do valor pago às trabalhadoras nos dois meses a mais de licença. Disponível em: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/10/18/materia.200710-18.7841043822/view. Acesso em agosto de 2008. 136 diminuição do aleitamento materno, devido ao cansaço (vida atribulada e noites mal dormidas) e aos compromissos sociais assumidos, assim como o descontrole emocional materno por assumir diversas atividades. Ressalto também que muitas das dicas e práticas sugeridas, como a amamentação, são acompanhadas da expressão “comprovado cientificamente”, ou similares, atestando o caráter de verdade inquestionada da ciência. Ao meu ver tais prescrições desconsideram ou desqualificam os conhecimentos e cuidados provenientes de outras instâncias da cultura. Na pesquisa aqui desenvolvida, que assume uma perspectiva pós-moderna, o conhecimento científico não é desconsiderado, porém não é mais entendido como o único espaço de produção de conhecimento e como o único “capaz de compreender a complexidade do mundo e a multiplicidade, a ambivalência e a incerteza da vida” (DAHLBERG, MOSS, PENCE, 2003, p. 41). A verdade, sempre tão destacada no âmbito dos trabalhos científicos, sendo inclusive identificada como um dos seus principais objetivos, é explicada nos seguintes termos por Foucault (2003a, p. 12): A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua „política geral‟ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos. Os saberes produzidos pelas ciências, principalmente, nesse caso, as médicas e psicológicas, devem ser vistos como investidos e resultantes de poder, pois, para Foucault (2002b, p. 27) “temos antes que admitir que o poder produz saber [...]; que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”. É utilizando-se do discurso da psicologia como estratégia para promover determinadas práticas nas mães que poderemos ver, no próximo capítulo, como A Vida do Bebê descreve os ideais de família, mãe, pai, casamento e criança nas duas edições analisadas nessa Tese. 137 TELEOLOGIAS - OS IDEAIS DE MÃE, PAI, FAMÍLIA, CASAMENTO, EDUCAÇÃO E INFÂNCIA ALMEJADOS EM A VIDA DO BEBÊ Se as verdades são coisas deste mundo, se elas são sempre provisórias e problemáticas, precisam ser constantemente inquiridas, submetidas a uma dúvida sistemática. O que é preciso pôr em questão são os regimes de verdade estabelecidos, os raciocínios amplamente aceitos, os modos de falar corriqueiros, tornando a linguagem um alvo de problematização (BUJES, 2003, p. 5). Ao longo dessa Tese, pudemos conhecer melhor o referencial teórico a partir do qual os manuais médicos de aconselhamento materno estão sendo analisados, assim como a emergência e a imbricação histórica das figuras da mãe, da criança e do especialista. Além disso, pudemos conhecer melhor esses manuais e o discurso médico e psicológico utilizado pelos pediatras, especialmente Rinaldo De Lamare, para legitimar as práticas preconizadas e governar as condutas maternas na promoção de biopolíticas que visam à constituição de infâncias normais e saudáveis. Tendo em vista tal percurso, no presente capítulo objetivo problematizar que modelos de mãe, de pai, de família e de criança presentes nos manuais constituem os ideais almejados pela publicação, assim como os códigos de saberes que sustentam esses ideais; de que forma as características de mães e de pais adquirem importância no afã de governar os sujeitos para torná-los responsáveis por um determinado projeto político que visa assegurar a vida dos pequenos e, enfim, de que maneira a organização das relações conjugais e a forma de criação das crianças sustentam metas políticas mais amplas. Mães e pais ideais Nesse tópico, através das diferentes instruções dadas principalmente às mães, podemos perceber uma constante classificação das mesmas como dedicadas ou não, como responsáveis ou não, como possuindo comportamentos adequados ou não, dentre outras características tidas como ideais para o exercício da boa maternidade. Embora possa parecer, à primeira vista, natural (e a única possível) a forma como De Lamare dirige-se às mães, este a todo instante está produzindo apenas um determinado tipo de maternidade e de paternidade. Assim como Meyer (2000), procuro enfatizar aqui o caráter histórico e cultural da maternidade e da paternidade. Nas palavras da autora: 138 Os significados da maternidade – que permitem às mulheres ser/fazer/sentir enquanto mães – são construídos. Está implícita, aqui, a importante premissa de que as características anatômicas como ter ou não ter mamas e útero, funções biológicas como a produção de leite, comportamentos e sentimentos de doação, cuidado ou amor ilimitados usualmente inscritos no corpo feminino e colados à maternidade não têm, em si mesmos, qualquer significado fixo, final e verdadeiro, mas são produzidos e passam a significar algo específico no interior de culturas específicas (p. 120). Representações como as produzidas por A Vida do Bebê também são questionadas na pesquisa de Sampaio (2000), quando essa analisa a relação publicidade-infância e a relação mãe-pai: Nada mais „natural‟, por exemplo, do que a imagem de uma mãe que cuida carinhosamente de seu bebê, troca-lhe a fralda, dá-lhe comida na boca, canta canções de ninar, etc. A recorrência desse tipo de imagem na propaganda revela, contudo, a exclusão sistemática da figura do pai no desempenho desse mesmo papel. O caráter auto-evidente desse tipo de imagem tende a ser questionado ao nível do gênero e do público, na medida em que comerciais provocativos optam por promover uma imagem alternativa da paternidade e da maternidade (p. 282). No principal manual analisado nesta Tese, a relação mãe-bebê é tida como “valioso elemento para o bom desenvolvimento do futuro da criança” (DE LAMARE, 1963, p. 41). No decorrer dessa edição foram encontradas várias descrições de como devem ser as mães: 1) no que tange à alimentação: a mãe não deveria forçar nem obrigar o bebê a comer, deveria respeitá-lo, não ser ansiosa ou insistente, não supervalorizar o ato da refeição, não adular, não criar problemas, esperar, ser paciente e resignada, “risonha, carinhosa: nada de violências ou mau humor” (ibidem, p. 111); 2) no que diz respeito à linguagem: mães silenciosas, angustiadas ou severas podem confundir as crianças e retardar o desenvolvimento da linguagem; 3) no cuidado da prole: “a personalidade da mãe é de excepcional importância. Ela deve ser segura de si, afetuosa, calma, decidida e sem gritos histéricos ou gestos violentos” (ibidem, p. 341), ser zelosa ao examinar a criança e “fiscal” (nas palavras do autor) do desenvolvimento do bebê222. Na edição de 2002 de A Vida do Bebê, permanece o mesmo discurso, embora se estendam essas recomendações aos pais-homens; assim, por exemplo, os atrasos na fala da criança continuam sendo atribuídos a “pais [aqui compreendidos como mães e pais] superprotetores ou superindulgentes, bastando apontar ou ameaçar chorar para [as crianças] obterem tudo o que desejam” (ibidem, p. 415). Outras crianças, porém, não falariam, 222 Marques também reafirma essa postura assumida pela mãe ideal: “não estando a criança hospitalizada, é a mãe, com o seu inexorável desvêlo ao filho doente que supre as relevantes funções das enfermeiras” (1945, p. 167). Balbach (1967), da mesma forma, aconselha às boas mães que se tornem enfermeiras dos seus filhos no ambiente doméstico. 139 segundo o pediatra, por serem “atemorizadas por pais severos demais ou muito exigentes” (ibidem, p. 416). Na mesma direção, Oliveira (1956), no seu manual Higiene e Puericultura, descreve a boa mãe como aquela que “[...] cedo aprende a distinguir se o grito do seu filho tem uma causa fisiológica ou patológica” (p. 324) e que “[...] conhece o segredo de convencer o filho mais rebelde” (p. 327). Apesar da promoção de tal representação, as mães não parecem ser tão abnegadas como o prescrito pelo pediatra, pois De Lamare por diversas vezes sente a necessidade de questionar “hábitos e comportamentos” das mães, inclusive classificando-as, como na passagem: São 4 os tipos de comportamentos da mãe „desesperada‟ em face da criança inapetente: 1.º - Mãe ansiosa: Transfere a sua ansiedade ao menino, nos gestos, nas expressões, no ânimo (questões de saúde familiar, econômicas e conjugais). Mãe carinhosa e desesperada, e acaba por criar um conflito emocional defeituoso entre ela e o filho. 2.º - Mãe obcecada, escrupulosa: Dominada pelo rigor e pelo método, quer moldar o filho a seu gosto e princípio. Age com severidade, friamente e sem concessões ou tolerância. 3.º - Mãe insistente, perseguidora: É bondosa e paciente „faz tudo‟ para o filho comer sem violência (brinca, canta e fará até „palhaçadas‟ se for necessário...). 4.º - Mãe geniosa, voluntariosa: Falta-lhe contrôle, age de forma insólita, do riso ao pito! Estoura! Geralmente a mãe também tem seus problemas... Acaba discutindo com o marido por causa da refeição da criança (1963, p. 337). Tais comportamentos maternos descritos na edição de 1963 permanecem na edição mais recente (2002). Mães como as descritas acima, como escreve De Lamare (2002), poderiam dificultar as aprendizagens do bebê e mesmo que a disciplina seja indicada desde o nascimento do bebê como “método de vida”, a mãe não deveria ser tão rígida como é acima descrito, pois poderia haver, como conseqüência, filhos com uma série de problemas psicológicos, como, por exemplo, as neuroses. No mesmo sentido, “mãe nervosa”, com suas repreensões repetidas e constantes e/ou com a imposição de hábitos higiênicos, é apontada como uma das causas de possíveis neuroses apresentadas pelas crianças. A displicência dos pais também é responsabilizada por as crianças nos primeiros anos adoecerem mais do que os adultos. A passagem citada a seguir ilustra bem a “influência” dos pais nervosos e displicentes: “os vômitos nervosos, emocionais, são frequentes em crianças com distúrbios de 140 comportamento, filhos de pais nervosos e vivendo em lares desorganizados” (DE LAMARE, 2002, p. 603). No mesmo sentido, muitos problemas infantis são explicados a partir do relacionamento mãe-bebê, como, por exemplo, a síncope infantil, que é atribuída aos problemas de relacionamento entre mãe e bebê (problemas educacionais, tolerância demasiada, mãe ausente ou prepotente, sobretudo em questões de alimentação ou higiene). O pediatra também ressalta que mães despreparadas podem ter “influências prejudiciais” para o desenvolvimento do bebê. Dessa forma, vemos novamente a articulação entre medicina e psicologia, assim como a culpabilização materna por todas as doenças e distúrbios que a criança apresente, como descrito no capítulo anterior. A vaidade materna em relação a um pretenso “sucesso na maternidade” também é registrada no livro A Vida do Bebê (2002). Segundo De Lamare: Muitas mães fazem questão de que seu filho mame o maior volume possível de leite, sem indagar a quantidade realmente necessária para o seu perfeito desenvolvimento. Na maioria das vezes fazem isto mais por vaidade, a fim de que o filho pese mais que o da sua amiga, e lá vão correndo para o telefone e vangloriam-se do aumento de tantos gramas conseguidos durante a semana, „bisbilhotar‟ se o da sua amiga foi tão bem-sucedido quanto o dela... E o pior é que alguns especialistas tomam parte nesta disputa original, e ajudam a mãe a „empanturrar‟ o bebê, dando dietas hiperaçucaradas, „carregando‟ nas farinhas etc., até que a criança chegue às raias da obesidade, ou então que uma perturbação nutritiva ponha fim à corrida (p. 155). Como descrito em capítulo anterior, a alusão à vaidade materna é uma constante nos manuais, desde o século XIX. No caso recém descrito, a vaidade223 daria ensejo à competição entre mães (o que aponta para determinada classe social, no caso, média e alta) para ver quem teria o bebê mais inteligente e saudável. Tal representação de mãe pode ser questionada em várias dimensões. Assim, considerar a forma da alimentação do bebê como um caso de vaidade materna é desqualificar as mulheres de uma forma geral, o que também podemos visualizar no trecho: “a mãe que leva ao colo, ou para passear no seu carrinho, um bebê magro, sente-se profundamente humilhada em relação às suas amigas” (DE LAMARE, 2002, p. 736). Tal sentimento, ao contrário do anterior, seria fruto do “fracasso” materno, uma vez que a mãe não teria sabido alimentar adequadamente o seu bebê. A partir de tais exemplos dados por De Lamare, poderíamos pensar sobre quais representações de maternidade estão postas nessa publicação e em que medida essa representação se vincula a determinados 223 Marques (1945) também atribui, em alguns casos, a inapetência do bebê ao capricho materno que aumenta a “cota alimentar” e, como consequência, o petiz rejeita os alimentos. 141 estereótipos de mulher de classes mais favorecidas economicamente. Talvez essa articulação os remeta àqueles discursos que atribuem a essas mulheres traços como a futilidade e a superficialidade nas relações que estabelecem, seja com filhos, seja com amigas. O mesmo pediatra, em outra passagem, aponta o que seriam os erros mais comuns das mães durante o primeiro ano de vida do bebê, tido como o período em que apenas a mãe é importante (segundo a edição de 1963). 1.º - Medo de fracassar na função materna. 2.º - Aversão inconsciente à criança. 3.º - Aversão inconsciente à função materna. 4.º - Mães por demais ansiosas, superprotetoras, assustadas e pessimistas (p. 341). É interessante destacar que a aversão, descrita pelo autor, à criança e à função materna seria inconsciente, uma vez que o instinto materno é apresentado como natural e inato em todas as mulheres (“toda mãe é dotada de um sexto sentido; é o instinto que torna perceptível qualquer modificação no seu bebê”, DE LAMARE, 2002, p. 242); assim, nenhuma mulher, conscientemente, poderia odiar o seu bebê e não assumir a função materna com a abnegação necessária para tal compromisso. Bárbara Rogoff (2005), na sua pesquisa sobre desenvolvimento humano a partir de diferentes grupos culturais, explica que essa naturalidade com que visualizamos o cuidado da criança como uma atribuição exclusiva da mãe é, em grande parte, fruto de estudos provenientes das comunidades de classe média dos Estados Unidos e da Europa; e seus “achados” têm sido generalizados para todos os grupos culturais. Tal pressuposto é questionado pela autora, que apresenta a forma como diferentes comunidades lidam com o cuidado das crianças, sendo que até mesmo a premissa de que essa atividade seja de responsabilidade de um adulto é posta em suspenso no trabalho da autora. Nesse sentido, cabe referir a pesquisa empreendida por Carmem Duro (2002), na qual a autora procurou analisar as concepções de maternidade e de cuidado infantil de um grupo de mulheres-mães, cadastradas no Programa Pra Nenê na Vila Cruzeiro do Sul, em Porto Alegre (RS). Além de trazer as concepções desses sujeitos, buscou-se relacioná-las “às concepções dos/as profissionais de saúde que trabalham com essa população e com aquelas contidas nos documentos oficiais que norteiam esse programa” (p. 5). Nos documentos analisados Carmem Duro constata que: A mulher mãe é ainda percebida como aquela que deve se apropriar e efetivar o cuidado da criança, que dispõe de tempo livre e está em casa para o cuidado com a criança, não está inserida no mercado e, de algum modo, tem uma união estável, com a figura paterna presente. Tais concepções dos 142 programas de saúde materno-infantil contrastam verticalmente com a realidade e forma de ser mãe das mulheres entrevistadas (ibidem, p. 5). Ademais, a autora observa o quanto às orientações dos manuais e as prescrições das profissionais da saúde “colocam em circulação formas de viver a maternidade e a saúde infantil produzidas pelo modelo biomédico de atenção à saúde” (DURO, 2002, p. 15), que desconsideram as realidades em que os sujeitos se encontram inseridos. Também é interessante destacar a pesquisa de Fabiana Marcello (2003), em que a autora analisou “de que maneira um dispositivo da maternidade é operacionalizado no espaço da mídia para a constituição agonística de uma experiência materna” (p. 10). Para tal propósito, Marcello analisou dois conjuntos de materiais: o primeiro constitui-se de reportagens sobre a vida de quatro mães brasileiras famosas: Cássia Eller, Luciana Gimenez, Vera Fischer e Xuxa, para verificar como a mídia narra a prática materna dessas mulheresmães, enquanto o segundo grupo de matérias foi retirado da revista Crescer, na qual se buscava “operacionalizar modalidades maternas distintas, a partir de exemplos individuais de mães” (p. 11). Ao lidar com essas quatro formas de ser mãe-famosa, respectivamente, a maternidade-lésbica, a maternidade-negócio, a maternidade-dependente química e maternidade-solteira, assim nomeadas pela autora, e as maternidades produzidas/veiculadas pelas revistas, a autora procura evidenciar “como a mídia, ao produzir contínuas formas de objetivação dos sujeitos-mãe e de diferentes modalidades maternas, possibilita que elas se relacionem para a produção de sentidos diversos e elásticos sobre a maternidade” (p. 10). Outra pesquisa que merece menção foi realizada por Carin Klein (2003). Nessa, a autora investigou as representações de maternidade produzidas/veiculadas no Programa Governamental Bolsa-Escola, de âmbito federal. Tal programa apresenta o “exercício da maternidade através do cumprimento de um conjunto de práticas, tais como ser fiscal da educação das crianças e administrar a renda familiar” (p. 14). Ressalte-se, no caso dessa pesquisa, que tal programa social se destina às famílias de classe popular, nas quais outras questões se tornam relevantes. A autora enfatiza que, “ao ser colocada em discurso, a maternidade adquire diferentes significados sociais, culturais e políticos que atuam e produzem efeitos sobre o corpo, atitudes e comportamentos, enfim, sobre os modos como nos tornamos homens e mulheres, pais e mães em nossa sociedade” (p. 15). Retornando à obra A Vida do Bebê, vemos que, após o primeiro ano de vida, no qual a mãe é apontada como a figura mais importante, De Lamare (1963) ressalta que, entre o primeiro e o segundo ano de idade da criança, o pai começa a adquirir importância, embora a mãe ainda permaneça como fundamental. Nessa edição, De Lamare já aponta para o pai 143 moderno (representação tão em voga atualmente) como aquele que “colabora, orgulhoso, na criação do seu filho. Muda fraldas, prepara mamadeiras, empurra o carrinho enquanto a mãe cuida dos quefazeres domésticos” (idem, 1963, p. 11). Nesse sentido, Hennigen (2003), através de sua pesquisa sobre a construção da paternidade na mídia, em que analisa um comercial veiculado para o Dia dos Pais de um grande shopping de Porto Alegre, coloca como uma das suas hipóteses “que o cuidado das crianças se transformou numa espécie de divisor de águas entre o „novo pai‟ e o pai tradicional” (p. 201). Devo destacar que De Lamare reconhece que homens não leem manuais desse tipo, mas entende que as mulheres possam transmitir àqueles o conselho do especialista; embora o manual possa parecer inovador nessa distribuição de funções, o pai permanece representado apenas como o provedor econômico e o que apóia a esposa. Marcello (2003) enfatiza que, ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, a figura paterna não é propriamente apagada em nossa cultura, pois “sua presença é exigida em certos momentos para que se possa constantemente atualizar a normatividade materna” (p. 140), ou seja, em comparação com o sujeito-pai, há um privilégio sobre o sujeito-mãe no que diz respeito às características de responsabilidade, zelo, cuidado, afeto intenso em relação a seus filhos (privilégio que é insistentemente produzido pelo próprio dispositivo [da maternidade]). É este, pois um dos objetivos da norma neste dispositivo: assegurar e manter a relação assimétrica entre as funções dirigidas aos indivíduos-mães e aquelas dirigidas aos indivíduospais (p. 141). Os pais, assim como as mães, também cometem erros, e isso, a partir do segundo ano de vida da criança. Assim, em alguns trechos, os pais são incluídos na divisão entre mães e pais adequados ou não, conforme descreve De Lamare (1963, p. 341-342): 1.º - Pais compulsivos, sobretudo a mãe, aquela que „obriga‟, que „força‟, exagerando a sua vontade ou autoridade. 2.º - Pais desinteressados, ausentes, tolerantes ou relaxados. 3.º - Muitas exigências cedo demais! 4.º - Poucas exigências tarde demais. 5.º - Falta de habilidade para contornar situações evitando conflitos para obter a disciplina. Os “erros educacionais” das mães e dos pais em relação à alimentação são retomados na edição de 2002 para explicar as possíveis causas da falta de apetite nas crianças. Para o pediatra, a insistência (exercida às vezes de forma violenta) promovida pelas mães e pelos pais para que a criança coma, o ambiente doméstico agitado ou rígido, a falta de afetividade, 144 assim como mães e pais nervosos e angustiados, são os fatores que produzem uma criança inapetente. Dentro dessa perspectiva moral mais geral, Balbach (1967) dedica um dos capítulos do seu manual às “atitudes errôneas do pai para com os filhos” e inicia o texto distinguindo a paternidade biológica (que “está ao alcance de qualquer homem normal”, p. 204) da paternidade racional, a qual apenas uma minoria exerceria. Para ser um bom pai, para o autor, é preciso “compreender que as crianças gostam de se agitar e fazer barulho” (p. 204). A partir disso, Balbach repreende os pais severos, que não respondem às curiosidades infantis e não compreendem a espontaneidade das crianças, “não lhes conquista[m] o coração nem lhes ganha[m] a confiança” (p. 205). Além disso, este chama a atenção dos pais “complacentes”, “controladores”, “instáveis” e “neuróticos” para as consequências de seus atos para a formação da criança. Em algumas passagens, a edição de 1963 de A vida do Bebê reafirma velhos estereótipos224, nos quais o pai é tido como aquele que exerce a autoridade sobre a criança (DE LAMARE, 1963, p. 349-350): O castigo não deve ser empregado a „torto e a direito‟, e sim bem manejado e inteligentemente aplicado, pois de seus resultados dependerá o que se deseja: „autoridade paterna‟. [...] [O pai] Deve ser enérgico e não brando, e não acabar nunca em „palhaçada‟, palmadas leves, risadas, a fim de não o „desmoralizar‟; é preciso que a criança sinta energia na atitude paterna. E, por último, deve ser constante, não variando com o bom ou mau humor paterno, que castiga hoje uma falta que amanhã perdoa. Ao contrário do acima descrito, na edição de 2002 de A Vida do Bebê cabe apenas à mãe disciplinar e educar as crianças: “a mãe deverá estar calma e amorosa, porém firme; o bebê deverá perceber que ela tem a palavra final” (p. 293), pois a “autoridade paterna” já não é mais citada, atribuindo-se apenas à mãe a responsabilidade pelo disciplinamento das crianças. Nos trechos expostos acima, podemos ver como o especialista diferencia a autoridade entre mães e pais. Estes últimos devem ser enérgicos, porém constantes, enquanto aquelas devem ser calmas e firmes, pois, mesmo atuando dessa forma, o amor materno é compatível com o castigo, como explica a própria Bíblia, citada por De Lamare (“quem bem ama, bem castiga”, 1963, p.350). Os castigos também foram tema dos livros analisados por António Ferreira (2000). Tanto nas escolas, quanto em casa, nas classes populares e mais ricas, o castigo das crianças 224 De forma breve, podemos entender estereótipos como representações que, em poucos traços, definem as identidades de determinados grupos culturais, fixando sentidos e essencializando-os. 145 era tradicionalmente disseminado em toda a sociedade européia, embora no final do século XVIII o discurso do ensino “como prudência e com amor” (ibidem, p. 318) já estivesse sendo propagado. Um dos livros analisados pelo autor explicava, assim como De Lamare, que a severidade não era incompatível com o amor paterno. Assim como o pediatra o fez, muitos justificavam a necessidade do castigo a partir de trechos da Bíblia. Em outra passagem, De Lamare afirma que: “naturalmente o nível de inteligência e o estado emocional materno são decisivos para a educação” (1963, p. 342). É interessante chamar a atenção para o fato de que contrariamente a muitas campanhas endereçadas às mães que preconizam a informação materna como fundamental para a melhor educação e cuidado da criança, De Lamare ressalta que, além do estado emocional, a “inteligência materna” é decisiva para educação das crianças. O que o especialista considera como “inteligência”? Talvez seja, além de um certo grau de estudo escolar como já citado anteriormente, através da obtenção do diploma, a compreensão das práticas aconselhadas pelo médico e, assim, poderíamos considerar que, entre outros aspectos, a mãe inteligente225 é aquela que age conforme o que o manual designa. Na edição de 2002 de A Vida do Bebê também encontramos, desde a introdução, a inclusão dos pais-homens no texto. Nos itens iniciais, afirma-se que “a criança deverá ter a presença diária da mãe e do pai (que maravilha!)226, pelo menos nos seus dois primeiros anos” (p. 12). Há inclusive um subcapítulo nessa edição justamente sobre o teste de paternidade, que explica como esse é feito227. Um exemplo da visibilidade assumida pelo pai em 2002 é a imagem228 que ilustra o capítulo sobre “O quinto mês”. Nela encontramos um pai que segura sorridente um bebê (essa é a única imagem de pai que aparece no livro229); abaixo lê-se no lead: “O pai é muito importante para o desenvolvimento do bebê, participando ativamente da criação de seu filho 225 O discurso da psicologia acerca da inteligência será mais bem explorado no tópico sobre o desenvolvimento da inteligência nas próximas páginas. 226 A exclamação do autor seria talvez para marcar a inovação e a modernidade de tal comportamento. 227 Também é importante chamar a atenção para a ruptura que tal seção representa dentro do discurso desse manual, pois um dos pressupostos da publicação é que pai e mãe vivam juntos. 228 Como destaca Chartier (1996) é interessante observarmos como autores e editores governam a forma de leitura através das estruturas do próprio livro, tendo em vista a clientela que buscam conquistar, como é o caso aqui da inserção da imagem do pai no capítulo que trata sobre a importância deste na vida do bebê. 229 Além das várias imagens de crianças presentes na edição de 2002, foram encontradas quatro imagens de mães amamentando seus bebês e três de mães segurando ou abraçando crianças, além de duas grávidas, um pai segurando um bebê e uma avó segurando uma criança. 146 desde os primeiros dias de vida” (p. 256). Ao contrário da edição anterior, na de 2002 o pai é nomeado como importante desde o início da vida do bebê e não apenas após o segundo ano230. Assim, ao pai também são atribuídas algumas tarefas, como, por exemplo, fazer o bebê dormir durante a madrugada e ser o instrutor de natação da criança (adotando-se o pressuposto de que todos os pais soubessem nadar...). Todas as tarefas seriam em tom de colaboração, como bem frisa o autor do livro. Nessa edição, “o pai já aos cinco meses é muito importante para brincar e conversar com o bebê. Ficará mais receptivo e fortalecerá seu desenvolvimento, melhor do que se ele permanecesse sempre com sua mãe” (p. 257). A importância da função paterna é explicada da seguinte forma: “é dividir a atenção da criança, desenvolvendo a individualidade de cada um. No caso da função paterna falhar, o filho não consegue se separar de sua mãe, prejudicando toda sua personalidade, tornando-se confuso” (p. 257). Outra representação recorrente de pai atualmente é a do pai brincalhão 231. Na edição de 2002 de A Vida do Bebê, recomenda-se que o pai brinque com o bebê na hora do banho e à tarde, quando aquele volta para casa do trabalho. Já na descrição do comportamento emocional do bebê de quatro meses, afirma-se que o bebê “é mais tranquilo com a mãe e mais agitado e brincalhão com o pai” (p. 242). Nesse sentido, cabe citar, aqui, a pesquisa empreendida por Ana Paula Sefton (2006), que teve por objetivo problematizar as diferentes representações de paternidade e de masculinidade na literatura infanto-juvenil. Para tanto, a autora reuniu 30 livros publicados entre 1988 e 2004 cujas temáticas envolvessem a paternidade e as relações familiares. Nas análises realizadas por Sefton, a partir dos livros de literatura infanto-juvenil, também foi recorrente a presença dos personagens pais-homens nos momentos de diversão e brincadeiras. Já a alusão à presença desses nas demais atividades diárias dos filhos e das filhas foi encontrada em um número bem menor de obras. Apesar da menção ao afeto e ao cuidado ser menor em se tratando da paternidade, a autora do estudo procura dar ênfase a essas narrativas, ressaltando que, em algumas delas, o pai que possui tais características é nomeado como “o pai que é mãe”, reafirmando que tais práticas sejam “naturalmente” destinadas às mulheres. Além disso, a autora observa que o personagem paterno só se tornava central nas tramas ou quando o casal se separava, ou quando não havia a 230 Marques (1945), já inseria o pai nas tarefas de cuidado e de educação das crianças, embora não de forma central e sistemática, pois para o médico a pessoa que lida com a criança inquieta e nervosa deve ter o “temperamento” calmo e descansado, posto esse que pode ser ocupado pelo pai em alguns momentos. Da mesma forma, Balbach (1967) afirma que “os progenitores têm o sagrado dever de zelar pela saúde de sua prole” (p. 132). 231 Em um dos capítulos de minha Dissertação também pude encontrar diversas referências a essa representação paterna (ver SANTOS, 2004). 147 figura materna. Outra pesquisa que reafirma tais achados foi desenvolvida por Burman (1998), que aponta que, ao final dos anos 1980, as revistas sobre cuidados infantis na Europa começaram a incluir artigos dedicados aos pais, mas, com tal escassez, acabavam por confirmar o papel periférico dos homens nos cuidados e na educação das crianças. A partir da mudança na forma como o pai é nomeado e descrito nas duas edições de A Vida do Bebê, percebe-se uma reconfiguração da figura paterna na cultura contemporânea. Esse redimensionamento na produção dessas identidades, segundo autores como Conell (2003), se deve a uma mudança nas relações entre homens e mulheres nas últimas décadas, em decorrência de dois movimentos. Primeiro, o movimento feminista que, a partir de suas conquistas, teria provocado uma modificação nas relações entre homens e mulheres; segundo, os movimentos de gays e lésbicas, que ocasionaram uma crise nas relações entre os homens. A masculinidade hegemônica, a partir de tais movimentos, tem sido questionada, ensejando a produção de outras formas de ser homem e pai. Para Miguel Almeida (1996, p. 164) “é a lenta degradação e contestação do patriarcado que tem permitido pensá-lo – ou seja, estamos a viver um período de transição histórica, de transformação da hegemonia, em que os conflitos, „ruídos‟ e disputas que sempre existiram se tornam mais audíveis e perturbadores”. No entanto, esse movimento não é linear, nem contínuo, como pudemos e poderemos ver nas análises feitas. Por outro lado, o consumo e a mídia aparecem contemporaneamente como instâncias que têm investido na produção interessada de outras masculinidades e paternidades. Neste sentido, vale considerar o que afirma Almeida (1996): “a masculinidade não é mera formulação cultural de um dado natural; e [...] sua definição, aquisição e manutenção constitui um processo social, vigiado, autovigiado e disputado” (p. 163). Já para Burman (1998) a nova preocupação com a função do pai está relacionada ao impacto do movimento das mulheres, que em resposta à redistribuição dos papéis de gênero, tem produzido uma mudança geral nas concepções das mulheres no que diz respeito os cuidados infantis e os trabalhos domésticos. [...] Por um lado, se assegura que se trata de um gesto progressista no sentido de que os homens estão adotando uma participação mais equitativa; por outro lado, este desenvolvimento poderá ser visto como reacionário, no sentido de que os homens estão encarregando-se de um setor no qual as mulheres têm mantido um certo limitado poder e uma reconhecida habilidade (ainda que com a „ajuda‟ dos profissionais) (p. 130-131). Como afirma Kincheloe (2001), no seu artigo sobre a série de filmes Esqueceram de mim, as mães da cultura ocidental tem sido vistas como as grandes responsáveis por filhas e filhos, enquanto os pais são figuras apagadas, descompromissadas com a educação dos mesmos. Dessa forma, reforçando o já dito anteriormente, o não questionamento 148 (naturalização) das funções maternas e a não discussão do caráter construído das tarefas “só para mulheres”, demonstra aquilo que alguns autores como John Peters e Eric Rothenbuhler (1997) designaram de “tradições inventadas”, dentro de um contexto que compreende todas as práticas (ou tradições) como fabricadas. Na pesquisa realizada por Klein (2003), a autora ressalta que as mães de classe popular, através dos programas governamentais sociais, também são largamente responsabilizadas por suas/seus filhas/filhos; observa a autora que, em nossa cultura, as mães são responsabilizadas pelo cuidado e formação dos/as filhos/as, e, na maioria das vezes, não são levados em conta os arranjos culturais produzidos nas diferentes comunidades, principalmente nos segmentos considerados populares ou pobres. Ignora-se, quase sempre, uma possível presença do pai e de outras pessoas que possam fazer parte dessas relações, as atribuições que possam também corresponder a ele ou a elas, bem como a presença (ou ausência) de algumas condições sociais, políticas e econômicas importantes que, em nosso país, contribuem para que essas crianças estejam vivendo em „situação de risco‟ (p. 113). Um exemplo disso encontramos no subcapítulo intitulado “Para as mães que não podem ficar em casa”232(DE LAMARE, 2002), no qual é indicado que, nesse caso, a mãe procure uma pessoa de confiança, como, por exemplo, a avó ou a creche para deixar a criança. Não se cogita a hipótese de o pai ficar em casa para a esposa trabalhar fora, pois se supõe que o mesmo exerça uma atividade renumerada. Em outro subcapítulo, “A mãe que trabalha fora”, são apresentadas as razões que levariam a mulher de então a trabalhar fora: “pela necessidade de melhorar o orçamento do casal, entretenimento (o que os americanos chamam de hobby), por crescimento pessoal e profissional, ou então as que se dedicam a obras sociais, movidas pelo elevado impulso de solidariedade humana” (DE LAMARE, 2002, p. 235). No entanto, o “padrão atual de civilização admite como condição normal o trabalho da mulher fora do lar” desde que “o marido concorde com isto e, em certas famílias, até pais ou sogros também”, pois, argumenta o pediatra, “a nosso ver o mais importante é que a própria mãe também esteja de acordo, porque se ela se julga infeliz ou contrariada por ter de trabalhar fora do lar, ficará mal-humorada, irritada com os filhos” (ibidem, p. 235). Embora o autor saliente as mudanças ocorridas no tal “padrão atual de civilização”, entendo que o discurso desse especialista encontra-se um tanto deslocado, pois grande parte das mulheres na sociedade contemporânea não trabalha por “escolha”. Além disso, o autor não considera as diferentes configurações familiares que o trabalho promove na contemporaneidade, já que muitos familiares estão 232 A menção do trabalho feminino fora do lar encontra-se feita apenas na edição de 2002, pois, em 1963, a maternidade em grande parte significava cuidar das crianças e da casa. 149 assumindo a educação e o cuidado das crianças para que outros adultos, como a mãe, possam trabalhar. Como muitas análises feministas já apontaram, as “boas mães”, no discurso predominante, são as mulheres heterossexuais, casadas, brancas, de classe média e alta e que se dedicam ao cuidado das crianças em tempo integral, abandonando estudos e trabalho para a realização plena dessa tarefa. Já Marques (1945), no seu manual, não se opõe ao trabalho das mulheres como professoras, funcionárias públicas e operárias. O único conselho dado pelo pediatra, nesse caso, é que as mães deveriam adaptar a alimentação do bebê com a redução da amamentação. Hobsbawn (1995) chama a atenção, em seu livro A era dos extremos, para o fato de que uma das grandes transformações ocorridas durante o século XX se deu no papel da mulher na sociedade e na economia. Para o autor “[...] o que mudou na revolução social não foi apenas a natureza das atividades da mulher na sociedade, mas também os papéis desempenhados por elas ou as expectativas convencionais do que devem ser esses papéis, e em particular as suposições sobre os papéis públicos das mulheres, e sua proeminência pública” (ibidem, p. 306-307). No caso das mães que trabalham fora233, De Lamare sugere que as crianças sejam cuidadas por avós ou tias, por instituições como creches ou por empregadas234 de absoluta confiança da mãe e do pai. No caso das avós, elas são citadas como aquelas que podem dar a melhor assistência235 (aliás, uma visão diferente das avós retratadas na edição de 1963). Para aquelas mães que não podem contar com as avós ou parentes próximas para cuidar do bebê, o pediatra sugere a creche, ao invés de deixá-lo em casa com estranhos ou pessoas inexperientes. Novamente De Lamare sugere que a mãe tenha um emprego de meio turno, pelo menos até a criança completar dois anos de idade, para que aquela possa acompanhar o desenvolvimento desta. A “creche ideal” deveria ter uma atendente para três ou quatro 233 Embora De Lamare afirme que a mulher tem direito a licença maternidade, Forna (1999) nos alerta que as mães não têm sido vistas como um grupo merecedor de direitos, como, por exemplo, o da existência de espaços educativos para deixar as crianças enquanto trabalham. Para a autora, isso ocorre porque as crianças são vistas como responsabilidade individual, já que ter o bebê teria sido uma escolha da mãe. Uma das consequências dessa responsabilização das mães é a feminização da pobreza, uma vez que grande parcela das famílias hoje é sustentada por mulheres (no Brasil, o dado fornecido pelo IBGE, em 2000, é de 24,9%). Dado disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/perfildamulher/tabela022000.shtm. Acesso em: 08 maio de 2007. 234 Balbach (1967), em seu manual, afirma que as mulheres “já não atuam nas esferas onde o Criador as colocou” (p. 370), concorrendo com o homem no mercado de trabalho e “os filhos , pràticamente abandonados, criam-se sem carinho, o cuidado e a influência benfazeja de uma sábia e piedosa mãe” (p. 371). 235 Para justificar a importância das avós, De Lamare cita pesquisas estadunidenses, que avaliam que, apesar de as avós “passarem a mão pela cabeça” dos netos e das netas, não interferem negativamente na educação dada pelos pais. 150 crianças, ter fraldários, ter isolamento para bebês doentes, ter assistência médica, ter funcionários que sigam as normas de higiene (como, por exemplo, lavar as mãos depois de atender cada criança), dentre outros conselhos para garantir o “bom desenvolvimento de cada criança” (DE LAMARE, 2002, p. 235). Já na edição de 1963, o “jardim de infância” é recomendado não como opção para a mãe que trabalha, mas como espaço de contribuição para a educação da criança. Para o pediatra, esse tipo de instituição é importante para que a criança conviva com outras da mesma idade (principalmente se for filho único), para correr, para conviver com outros adultos, além de sentir a “influência benéfica da disciplina coletiva” (DE LAMARE, 1963, p. 223). Como aponta Burman (1998), na sua pesquisa sobre a psicologia evolutiva, a educação infantil é considerada para as classes média e alta como uma “assistência externa a família, como um recurso extra para o desenvolvimento infantil, não para a comodidade das mães” (p. 110). No caso da mãe trabalhadora, Forna (1999) chama a atenção para o fato que é da mãe que se espera o sacrifício de se afastar do trabalho com o nascimento dos filhos, uma vez que se supõe que o seu papel seja insubstituível. O que vemos atualmente é a dupla jornada das mulheres, que, além de continuarem a cuidar da casa e das crianças, também trabalham fora. O marido ou companheiro, como já dissemos, apenas “ajuda” a mulher, sem necessariamente alterar sua rotina para isso. A seguir poderemos ver qual o modelo de casamento e família é prescrito às mães. O casamento e a família modelo Na edição de 1963 de A Vida do Bebê, o casamento é apresentado como o caminho para a regulação e a normalização das relações heterossexuais, ao mesmo tempo em que se assume a perspectiva católica do sacramento236. Nas palavras de De Lamare: O casamento é a solução que a Igreja e a Sociedade encontram para a conservação da espécie. [...] A consequência biológica e sagrada do mesmo é concretizada nos filhos (ibidem, p. 1). 236 Inicialmente, a moral cristã hostitlizava o casamento por este permitir a “manifestação do desejo e o desfrute da carne” (VAINFLAS, 1992, p. 21), mas nos séculos seguintes passou até mesmo a ser defendido com um “mal menor”. No entanto, até o século X aproximadamente a Igreja mantinha-se à margem do casamento e somente no século XII este foi incluído no rol dos sete sacramentos, tornando-se uma união sagrada entre um homem e uma mulher. Não obstante, “o amor conjugal não se imporia como valor ideal do casamento antes do século XIX, ou talvez, do XX” (ibidem, p. 49). Antes disso, o amor era visto “[...] como ascese, entrega mútua, sentimento entre iguais. Sensível e sexualizado, o amor era privilégio dos homens e excluía o casamento” (ibidem, p. 49). 151 Apesar de, em muitos aspectos medicina, e Igreja Católica divergirem com relação a temas como infância, casamento e família, no excerto acima não há divergência. No caso do casamento, De Lamare consegue fazer essa articulação, pois para grande parte dos médicos o que importava era uma família sadia a ser produzida através do controle dos casamentos237, da gravidez e do ensino às mães sobre os cuidados das crianças, principalmente em termos higiênicos. A respeito da família, Burman (1998) ressalta que muitos discursos presentes em revistas sobre cuidados infantis, por exemplo, “apresentam uma imagem asséptica do lar como terreno livre de conflitos, ignorando assim as relações de poder entre os membros da família, e supõem que todos os membros compartilhem dos mesmos interesses” (p. 92). Concordo com a autora acima referida, quanto a que “cada vez mais se reconhece que o modelo da família nuclear, que consta de casais heterossexuais com seus filhos concebidos de forma genética e „natural‟ com um homem trazendo para casa o salário e a mulher mantendo o lar, é uma ficção” (p. 92), embora tal modelo de família seja encontrado com facilidade em muitas publicações destinadas às grávidas ou mulheres-mães (como, por exemplo, as revistas Pais & Filhos, Crescer em Família e Meu Nenê e Família, já analisadas em outra pesquisa SANTOS, 2004). De Lamare também aborda os casais que “não convivem bem” e o quanto é importante a felicidade do casal238 para a felicidade das crianças, já que o foco dessa relação é o bom desenvolvimento da criança. Nesse sentido: Os filhos não devem vir como recurso para remediar a situação de casais cuja falta de compreensão entre ambos estaria desatando os laços matrimoniais. Os filhos não devem vir também como impedimento para liberdade materna, nem para prender mais o pai ao lar. Os filhos não devem vir também como motivo de herança ou garantia de qualquer natureza (1963, p. 2). Tudo dependerá da educação dos pais e do grau de felicidade que os une. Casais em desagregação, rixentos, incompreendidos constituem o maior veneno que, certamente, intoxicará a educação e a mentalidade do filho (1963, p. 318). Os casais que se separam são, antes de tudo egoístas, pois pensam só neles, arriscando o futuro dos filhos (1963, p. 320). 237 O casamento dentro da tradição católica foi aceito como forma de regular as relações sexuais entre homens e mulheres e teria como fim a apenas procriação. 238 No mesmo sentido, Balbach (1967) explica que um lar feliz é um lar no qual não há discórdia entre os pais. 152 Os discursos sobre os pais responsáveis por um “ambiente moral e emocionalmente equilibrado” já estavam presentes nos livros portugueses do Antigo Regime analisados por António Ferreira (2000). Os membros de um casal eram, então, apontados “como responsáveis por discussões, distúrbios e escândalos que obviamente repercutiam negativamente sobre a vivência moral e emocional dos diversos membros da família e em especial sobre a educação das crianças” (p. 391). A abnegação é sempre ressaltada como virtude que toda mulher e mãe deveria possuir para cumprir seus deveres domésticos. À mulher cabia o governo da casa e a educação das crianças; mais especificamente explica António Ferreira: Ela tinha a seu cargo aquilo que se entendia como mais adequado à sua natureza e como mais próximo da sua formação anátomo-fisiológica: os cuidados iniciais para com os recém-nascidos e as rotinas higiênicas posteriores, o acompanhamento vigilante dos filhos de poucos anos, as primeiras aprendizagens e, claro está, a educação das filhas (ibidem, p. 408). Já aos pais-homens “competia assegurar as condições para que a criação das crianças decorresse conforme dispunha o costume e exigia a sua condição social, mas sem intervir propriamente na condução dos pequenos afazeres que se repetiam dia após dia” (ibidem, p. 408-409). Na edição mais recente do manual (2002) De Lamare não apresenta os argumentos anteriormente citados sobre o casamento, limitando-se apenas a afirmar que o casal “antes de planejar uma gravidez, deverá observar a personalidade de cada um” (p. 12). Além disso, o autor reafirma que “será uma sorte o bebê ter seus pais felizes, transmitindo-lhe alegria, boas condições de saúde e segurança” (p. 12). O que será que o pediatra quer dizer com a palavra sorte nesse trecho citado? Será que esses casais ideais são tão “irreais” que chegam a constituir um “lance de sorte” para os filhos que os têm? Devo ressaltar que, em nenhum momento, as duas edições de A Vida do Bebê e os demais manuais analisados tratam das relações homossexuais e da adoção de filhas e filhos por esses casais, ou mesmo das mães e pais que assumem identidades homoeróticas após o nascimento das suas filhas e dos seus filhos. Assim, nessas publicações a heterossexualidade é tida como norma invisível sob a qual as relações entre homens e mulheres são naturalizadas e tidas como dentro da normalidade, sendo que as demais relações não encontram nenhum espaço. Com relação à heteronormatividade, Sampaio (2000) expõe a relação que a mídia (no caso de sua pesquisa, a televisiva e a publicidade) estabelece com a mesma: 153 A consideração do modo pelo qual a tematização das preferências sexuais é promovida na publicidade televisiva indica, claramente, que a opção heterossexual dos atores é apresentada como uma obviedade, uma banalidade. Ao promover publicamente a figura de casais heterossexuais em situações românticas e glamourosas, a propaganda parece não ir além da reprodução fiel da realidade, de exposição do padrão „normal‟ de relações entre os sexos. O que não fica claro, em tais casos, é que a promoção de imagens de casais heterossexuais é fruto da escolha de um padrão de representação em detrimento de outro (p. 281). Ao longo de A Vida do Bebê podemos visualizar várias passagens que representam esse ideal de família heterossexual. Um exemplo disso é a descrição de como a falta de apetite do bebê afeta a “vida familiar”, em que novamente percebemos que o foco da família é o desenvolvimento do bebê. Depois da febre, nada entristece mais os pais, os avós, a família inteira, do que a falta de apetite do bebê. Todos ficam transtornados; daí em diante, a alegria, a felicidade da família dependerá do apetite do bebê. O marido chega a telefonar do trabalho, interrompendo suas funções, para perguntar à esposa se o bebê aceitou a mamadeira das três horas da tarde ou qualquer outra; por sua vez, a mãe depois de ele rejeitar a refeição, telefona desesperadamente à avó da criança, ou interrompe o trabalho do marido, para ela transmitir que o bebê não quis comer. Entretanto, o bebê é o único que se mantém feliz e absolutamente ignorante de ser o motivo desta tragédia doméstica (2002, p. 738-739). A pretensa naturalidade com que nos é colocada a questão da heterossexualidade nos levaria ao seguinte questionamento de Louro (1997, p. 81): “se a identidade heterossexual fosse, efetivamente, natural (e, em contrapartida, a identidade homossexual fosse ilegítima, artificial, não natural), por que haveria a necessidade de tanto empenho para garanti-la?”. Também, nesse sentido, Deborah Britzman (1996, p. 74) afirma: Nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa – é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada. Seguindo a temática do casamento, dentre os recém-nascidos descritos de alto risco239 (edição de 2002 de A Vida do Bebê), encontram-se os filhos e filhas de mães solteiras, pelo simples fato de serem bebês sem pais(!). Para Burman (1998), esse tipo de pensamento também reflete uma preocupação homofóbica, segundo a perspectiva de que meninos criados 239 Também são citadas “grávida menor de dezesseis anos; com primeiro filho acima de 35 anos; mães obesas, ou com altura inferior a 1, 50 m; nova gravidez antes de decorridos três meses do último parto; mãe desnutrida” (DE LAMARE, 2002, p. 57). 154 por mães solteiras poderiam ser menos masculinos ou até homossexuais, por não terem um modelo de masculinidade a seguir. Bowlby (segundo BURMAN, 1998) recomendava, em meados do século XX, que as mães não casadas deveriam dar seus bebês para adoção para assegurar-lhes uma vida estável. Mesmo naqueles casos nos quais não tenha sido possível manter o casamento, Rinaldo De Lamare aconselha o casal em “desquite”240 da seguinte forma: 1.º - Devem sempre se esforçar por efetuarem uma separação amigável. No caso de separação „litigiosa‟, temos a impressão de que um, ou os dois, são psicopatas e egoístas, pois não pensam sequer um minuto nos seus filhos. 2.º - Não deixar parecer aos seus filhos que um é „bom‟ e outro é „mau‟. 3.º - Dar a impressão aos filhos que pertencem a ambos, que os pais tomaram uma decisão por incompatibilidade de gênio, „gostam de fazer coisas diferentes‟, não combinam. Nada de mistérios nem ódios. 4.º - A prática de passar 6 meses com um e 6 meses com o outro é péssima. O melhor é o ano escolar com um e férias, ou então, fins de semana com o outro (1963, p. 221-222). Além dos pais desquitados há também recomendações para os pais viúvos que devem pensar acima de tudo em seus filhos. “O pai deverá procurar a segunda espôsa, pensando um pouco nos seus filhos. [...] O casamento entre cunhados, se possível, é o que tem dado, a nosso ver, os melhores resultados... para a felicidade das crianças...” (1963, p. 222). Já na edição de 2002 de A Vida do Bebê, não há nenhuma menção ao tema da separação, embora esteja subentendido em muitas passagens que o pai e a mãe do bebê vivam juntos. Na próxima seção, poderemos analisar as proposições para os pais e para as mães sobre como educar as crianças. A educação da criança ideal Gondra (2000), a partir de sua pesquisa sobre o processo de constituição da ordem médica no Brasil, ressalta que, ao longo do século XIX, os médicos, através da Higiene241, prestaram especial atenção aos problemas de ordem social, dentre eles o da educação. Esse 240 Sobre a temática dos pais desquitados cabe destacar uma pesquisa citada por Balbach (1967) em seu manual. “Por meio de testes cientìficamente organizados, Lewis Terman selecionou, dentre os alunos das escolas da costa do Pacífico, nos EEUU, 1500 crianças, classificadas como possuidoras de inteligência nìtidamente superior, e lhes acompanhou a vida” (p. 167). O resultado dessa pesquisa indicou que uma parte desse grupo de crianças, cujos pais se divorciaram ou viviam em constante “desarmonia”, desenvolveram-se muito menos do que aqueles que “[...] provinham de lares sadios. Grande é, como se vê, a responsabilidade dos pais no que diz respeito ao futuro dos filhos” (p. 167). 241 Gondra (2000) destaca a tese do Dr. Guimarães, de 1858, que discutia a higiene como ciência da infância. Para esse médico, três agentes deveriam estar presentes na educação da criança: mãe, pai e higiene. 155 interesse pela educação pela Medicina estava vinculado à crença Iluminista na razão e no conhecimento como promotores de uma sociedade mais justa, ordenada, igualitária e também, no caso, higiênica e saudável. A educação da criança na edição de 1963 de A Vida do Bebê é discutida em capítulo à parte, ao final do manual (capítulo 27). Para o pediatra, É justamente na 1.ª infância que são lançadas as bases definitivas da personalidade, quando o ser humano é essencialmente moldável [...]. A educação é o objetivo de conseguir o aperfeiçoamento progressivo das capacidades normais e desejáveis, e o contrôle das más tendências, inatas e instintivas. A instrução pode pertencer a professôra, mas a educação é tarefa dos pais, e esta se estabelece desde o 1.º dia de vida (DE LAMARE, 1963, p. 318). A edição de 1963, diferentemente da edição publicada em 2002, apresentava a educação como a inculcação de hábitos e comportamentos. Nessa perspectiva, a criança é vista como uma tábula rasa, com uma essência moldável, como descreve John Locke (já referido no segundo capítulo desta Tese), sendo a educação o meio pelo qual a má natureza242 da criança seria aperfeiçoada. No mesmo sentido, Balbach (1967) acredita que cabia à mãe a tarefa de educar a criança durante a primeira infância, quando essa era dotada de uma “plasticidade natural”, o que possibilitava “imprimir-lhe bons hábitos” (p. 184); no entanto, a mãe não deveria abusar de tal condição da criança para impor-lhe um “governo indevido”, pois acabaria por prejudicar-lhe o desenvolvimento. Na citação acima de A Vida do Bebê, De Lamare parece se contrapor às correntes pedagógicas que afirmam que a educação apenas tem por dever fazer “desabrochar” as habilidades inatas que as crianças possuem, explicando que “nem tudo está fixado para sempre, ao nascer a criança, devido à hereditariedade. Boas possibilidades podem ser desenvolvidas em uma criança que tem bom ambiente, educação conveniente e higiene mental adequada” (idem, 1963, p. 319). Nessa relação entre hereditariedade e ambiente, De Lamare também reafirma discursos ainda hoje comumente encontrados243, de que: Aos 3 anos, segundo a opinião de estudiosos do assunto, já está formada a base da vida sentimental, e as suas emoções já estão fixadas. A educação até essa data já determinou se essa criança será um adolescente feliz, bem humorado ou um neuropata, angustiado, vingativo ou arrebatado, 242 Balbach (1967) também considerava que as crianças possuíam uma tendência para o mal e a disciplina seria o meio mudá-las. 243 Como no Programa Primeira Infância Melhor (referido no terceiro capítulo dessa Tese), que o justifica a partir do discurso da Neurologia. 156 comprometendo desastradamente o seu comportamento futuro, pessoal e social (idem, 1963, p. 324). Nesse discurso temos claramente delineada a relação causa e efeito já problematizada anteriormente. Se a criança até os 3 anos244 tivesse sido estimulada corretamente, tivesse sido amada suficientemente e tivesse sido disciplinada e cuidada eficazmente seria um adulto feliz, sadio e equilibrado; do contrário, seria um adulto marcado por uma série de problemas psicológicos e emocionais245. Na edição de 1963 de A Vida do Bebê, a educação, para De Lamare, é dividida em: 1) formação de bons hábitos; 2) treinamento do controle das emoções; 3) orientação do comportamento pessoal e social; e 4) emprego de técnicas disciplinares246. A palavra “disciplina” para De Lamare (1963) significa “ordem”, “o cumprimento exato e constante de todos os cuidados adequados ao bebê” (p. 349) e são sugeridas três formas de empregá-la, através: 1) do exemplo dos pais e das mães247; 2) da utilização de prêmios e recompensas; e 3) quando as outras técnicas falham, do uso do castigo. Para De Lamare (1963), o castigo deveria ser “[...] bem manejado e inteligentemente aplicado”, além de “ser imediato à falta para que a relação entre castigo e ela não escape a percepção infantil” (p. 349). Ademais, aquele que a executa deveria ser enérgico e coerente. O castigo físico não é recomendado, com a exceção de tapas nas mãos dos bebês, sendo recomendadas outras técnicas como isolamento, reparação do dano, privação dos privilégios, dentre outros. Na edição de 2002 de A Vida do Bebê, mantêm-se os mesmos princípios, mas estes são esclarecidos de forma mais sucinta do que na edição anterior. De Lamare escreve que aos nove meses o bebê começa a “revelar” o seu tipo de personalidade e cita que “para alguns puericultores, é a ocasião de dar algumas palmadinhas... 244 Balbach (1967) compartilha da mesma tese de que os dois primeiro anos são os mais importantes, pois “dos 3 anos, já se lançam as bases da vida da criança e suas emoções já se fixaram” (p. 178). 245 No mesmo sentido, Balbach (1967) afirma que “a mente juvenil é um terreno que possui em estado latente as sementes do bem e do mal, e podem germinar estas ou aquelas, conforme a educação que a criança recebe desde o berço” (p. 179). No entanto, o mesmo manual assume que o sentimento de amor é inato na “criatura humana”. 246 Relembro que, ao contrário do que poderia parecer, como escreve Foucault (2003a), para gerir a população, a disciplina torna-se ainda mais importante, pois para governá-la é preciso produzi-la no detalhe, como podemos ver em ambas as edições através da presença desse tema. 247 Para Balbach (1967) a criança aprende pela experiência, pelas perguntas que faz, pela imitação dos pais e pela sugestão. Nessas aprendizagens, a mãe é o modelo da menina (como ser uma boa dona de casa, por exemplo) e o pai é o do menino. Como as crianças aprendem pela sugestão, conforme aponta o autor, a mãe deve realizar afirmações enfáticas. Um exemplo de uma instrução que deve ser repetidamente feita para os meninos é Homens não choram, pois, logo, o menino “procurará conter-se” (p. 193). Tal instrução, tão contestada nos dias de hoje pelos Estudos de Gênero e pelos Estudos Feministas, alia-se a outras pronunciadas por esse autor com relação a mulher como o sexo fraco que se deixa levar facilmente pela vaidades. Segundo Oliveira (2007), na Idade Média, a instrução de meninas era mais rígida do que a dos meninos. A elas deveriam ser proibidos os passeios, as brincadeiras fora da casa e as conversas privadas com outras meninas para garantir a castidade, além de não se investir na educação letrada delas, como já referido no segundo capítulo. 157 para conseguir obediência, a fim de evitar atos perigosos ou nocivos, mas com certa ternura para não revoltá-los” (2002, p. 313). Os pais, para o pediatra, não devem abusar da palavra “não”, buscando desviar os interesses da criança para outras atividades. De Lamare ressalta ainda que, frente a quaisquer comportamentos “estranhos”, as mães e os pais devem relatar o caso ao pediatra, como, por exemplo, “se o bebê tiver o hábito de bater a cabeça nas coisas ou puxar os cabelos” (ibidem, p. 298). A correção, como explica o autor, deve ser aplicada imediatamente ao ato cometido pela criança, para que esta compreenda o motivo da repreensão. Castigar, para o manual, constitui parte da disciplina e deve ser iniciado desde o primeiro ano de vida da criança, para ensiná-la sobre os limites, já que sua “finalidade não é tirar a liberdade, e sim dar à criança autonomia e segurança dentre de suas possibilidades” (DE LAMARE, 2002, p. 400). No entanto, ressalta o pediatra, o melhor caminho para educar o bebê é através de um bom relacionamento entre mães (lembrem-se de que quem educa, disciplina e castiga é a mãe) e filhas/filhos, pois “mais tarde [as crianças] serão mais amigas de suas mães” (ibidem, p. 342). Por fim, o autor ressalta que a “imitação continua sendo o grande fator na educação” (ibidem, p. 342). Ao longo do texto do manual, chama a atenção o uso de expressões tão caras hoje ao campo educacional, como a promoção de um ambiente que não estimule a indisciplina, a demarcação de limites e o incentivo da autonomia desde cedo, assim como a boa relação da professora e alunos e alunas como vital para o sucesso no processo educacional. É a articulação entre os discursos da área psi, da área médica e da pedagógica, que, ao meu ver, em parte, contribuiu para o sucesso editorial de A Vida do Bebê. Ainda sobre o uso do castigo, para Balbach (1967), que, recordamos, escreveu na mesma época de De Lamare, a punição é necessária, mas os pais devem agir com calma e ponderação, pesando a proporção entre o erro cometido pela criança e o castigo a ser aplicado. Nesse sentido, o autor acena com a possibilidade do castigo físico, “como tapas e sovas”, mas este deve ser empregado raramente. Assim, para o pastor, “[...] a punição deve ser aplicada com justiça e coerência e a criança deve saber os motivos exatos da pena” (p. 247). Retomando a divisão da educação em tópicos feita por De Lamare, os hábitos, no início, precisam ser impostos, através da disciplina e de mecanismos de repetição. Para obter êxito na formação de bons hábitos os pais devem aproveitar o “impulso natural” da criança para aprender. Para o autor seriam 10 os hábitos fundamentais: 1) hábito de comer (com horários e alimentos definidos); 2) hábito do repouso; 3) hábito do asseio; 4) hábito de brincar; 5) hábito de ler; 6) hábito do trabalho (como, por exemplo, guardar os brinquedos); 7) hábito do esporte; 8) hábito da delicadeza (ensinando as crianças, desde cedo a serem gentis); 158 9) hábito de prestar atenção; 10) hábito da religião (transmitindo valores espirituais e morais da sociedade)248. A noção de educar através de hábitos nas crianças, utilizando-se da disciplina, remonta a Locke249, principalmente no texto Some Thoughts Concerning Education250, de 1693. Este texto na verdade é composto de cartas escritas para o amigo Edward Clarke, nas quais Locke defende o hábito e a disciplina como princípios básicos da educação. Além disso, dirige-se às mães, em diferentes momentos, ministrando conselhos sobre como cuidar da criança e educála de uma forma menos carinhosa (assim como De Lamare defende que as mães não “papariquem” tanto as crianças). Para o filósofo inglês, o “espírito” deveria ser formado desde cedo, pois, se o sujeito é tabula rasa ao nascer, a formação do indivíduo é fundamental e deve ser realizada através do treino (repetições até tornar-se habitual e natural, utilizando também punições e recompensas) e da disciplina do corpo e da mente. Para Locke, “a grande coisa a ser refletida em educação é quais hábitos estabeleceis. Portanto, nisto como em todas as outras coisas, não comeceis a tornar costumeira qualquer prática que não continuaríeis, e intensificaríeis” (1999, p. 164, grifos do autor). Dessa forma, deve-se educar através do exemplo, do raciocínio com a criança, do respeito mútuo, da liberdade, da tolerância e da flexibilidade, evitando-se os castigos físicos. A partir disso, segundo Locke, o sujeito habituase ao autocontrole e diria não aos desejos naturais. Além da formação de bons hábitos, há prescrições em A Vida do Bebê de como os pais e as mães devem lidar com os “maus hábitos”, como, por exemplo, chupar o dedo. Muitos desses maus hábitos são explicados a partir de distúrbios na relação pai-filho/a ou mãe-filho/a e da presença de pais “neuróticos” que acabam por produzirem crianças angustiadas. Para outro autor de manuais (BALBACH, 1967), a educação deve ocorrer através do entendimento dos pais, da coerência, da veracidade, da consideração pelos mais velhos, da diferença entre o que é de uma pessoa e o que é da outra, da distinção dos valores (em termos de dinheiro), do “despertar” dos sentimentos nobres, do cultivo da coragem (ao invés do 248 Oliveira (2007), em sua pesquisa sobre a criança portuguesa na sociedade tradicional, ressalta que grande parte dos tratados da época medieval consideravam as mães “depositárias dos valores e das tradições familiares, [nos quais] consagravam-se inteira e convictamente à sua defesa a transmissão junto das novas tradições” (p. 142) e o ensino da fé cristã era uma das suas principais funções educativas, além de vigiar as filhas. Já para Balbach (1967), a formação cristã cabia à mãe em primeiro lugar dar, ao pai em segundo e, por fim, ao professor. 249 John Locke também foi grande defensor do empirismo (segundo o qual o conhecimento nasce da experiência e não de ideias inatas) e tido como “mentor” da Revolução Burguesa de 1688 na Inglaterra (OLIVEIRA e GHIGGI, 1995). 250 Este texto foi traduzido por Avelino da Rosa Oliveira e Gomercindo Ghiggi, em partes, e publicado no periódico Cadernos de Educação, entre 1999 e 2005. O texto de Locke inicialmente discute os cuidados com o corpo da criança para, depois, deter-se nos cuidados com a educação e a “formação da mente”. É preciso chamar atenção para o fato de que o filósofo fala de uma educação dada em casa, sob olhar dos pais. 159 medo), da promoção do afeto entre irmãos, da sensação de proteção e do desenvolvimento da liberdade. É importante relembrar que grande parte do discurso desse manual constitui-se a partir de um registro religioso, o que explica vários dos tópicos salientados, à exceção dos valores em dinheiro. De Lamare (1963) também articula educação e saúde, afirmando que “a educação e a disciplina do bebê influirão decisivamente sobre a saúde do mesmo” (p. 42). Dessa forma, as mães leitoras e os pais leitores são conduzidos a seguir os preceitos médicos, a fim de que seu bebê não apresente nenhum comportamento “anormal”. Comportamentos como “pegar o pequerrucho nos braços, acariciá-lo e beijá-lo” (p. 42) devem ser evitados, já que tais práticas seriam condenáveis, pois desde cedo a criança precisa ser disciplinada e aprender a controlar suas emoções. Para o autor, mães que cedem ao choro do bebê facilmente acabam por criar um indivíduo com problemas de disciplina e intolerante às frustrações. Até mesmo na hora do banho ou do passeio, “será permitido distraí-lo por meio de pequenos agrados, sem exagero251, porém, a fim de não o tornar excitado” (p. 103). Assim, pais e mães devem controlar a afetividade em relação às crianças, principalmente, com a criança “nervosa”. “Nestes casos é preciso muita disciplina e método de vida, horário, silêncio e quarto escuro” (DE LAMARE, 1963, p. 66). É importante ressaltar que, na edição mais recente, desaparece esse tipo de recomendação. No entanto, parece que houve um deslocamento dos cuidados que pais e mães deveriam ter para evitar crianças com “excesso de mimos” para o discurso atual da necessidade de impor limites às crianças desde cedo, como já descrito anteriormente. Os demais autores de manuais de puericultura da metade do século XX compartilham de tal pressuposto. Para Balbach (1967) o mimo retira a autoridade materna, além de ter como consequência um adulto dependente e fracassado, que desenvolverá diferentes patologias. No mesmo sentido, os pais devem evitar estimular a vaidade das crianças para não promover as mesmas faltas. Da mesma forma, afirma Marques (1945), os pais devem evitar o excesso de zelo, as concessões e a “compra” da criança (chantagem) para que ela faça determinadas coisas (como se alimentar, ir ao banheiro, dormir), pois esses são atos nocivos à educação da criança e, assim, se faria necessária a intervenção do médico para reeducá-la. Assim, um dos momentos mais focalizados na edição de 1963 de A Vida do Bebê é o da alimentação252 (como já referendado em diversos momentos ao longo da Tese) e como 251 É interessante chamar a atenção para a constante exigência de De Lamare para “justa medida” das ações maternas, que estaria entre o exagero e a falta – ambas aparecem exemplificadas, às vezes, de forma caricata. 252 Em 1963, a criança canhota também era vista como possuindo um “distúrbio da educação motora”, sendo a fase em que a criança começa a usar a colher a única ocasião para corrigir o distúrbio (p. 220). 160 deve ser a educação desse momento: “[...] a mãe ou pessoa responsável pela alimentação, deve se vestir com uma couraça de paciência e resignação, a fim de habituá-la a comer. Deve ficar em quarto fechado a sós com ela e, vagarosamente, introduzir a comida na boca, sorrindo e conversando, com energia branda, mas firme” (p. 170, grifos do autor). Outro item que merece disciplinamento, como já citado no quarto capítulo, é o controle das evacuações e das micções. Dessa forma, nessa edição, muitas prescrições serão enunciadas no imperativo, demonstrando as já citadas posições de sujeito implicadas nessas publicações: a do médico que prescreve e a da mãe que executa. É na primeira página de A Vida do Bebê (1963) que encontramos a concepção mais ampla sobre como deve ser a postura dos pais frente a educação da criança, a partir do momento que o bebê nasce. Não se trata da Educação no sentido comum: a dos gestos e palavras, e sim, da Educação Superior, espiritual, de hábitos, sentimentos, instruções, sobretudo de caráter. Um filho significa maior sacrifício do que qualquer outro, e os pais devem convencer-se de que, quando ganharam o filho, perderam a sua liberdade, o confôrto das noites bem dormidas, as diversões inesperadas, e adquiriram o dever de sopitar as paixões e inclinações íntimas... Enfim, no meio de todo prazer e alegria, de preocupações e aflições, devem compreender a exata finalidade da sua missão exteriorizada, na forma sublime da abnegação. Entretanto nada é exigido para ser pai ou mãe. [...] Temos a certeza de que, se maiores providências fôssem tomadas neste sentido, estariam muito mais vazias as Penitenciárias e os Cemitérios... (p. 1, grifos do autor). Como já referido no capítulo anterior, a abnegação torna-se a característica mais desejável que mães (principalmente) e pais deveriam possuir para educar um filho ou uma filha. E é por grande parte dos pais e das mães não a possuírem é que penitenciárias e cemitérios encontram-se lotados, segundo De Lamare. Ao contrário da edição de 1963, na edição de 2002 não há esta explanação inicial e a educação é discutida ao longo dos capítulos, através dos quais os pais “aprendem” sobre como é a criança daquela idade e como podem educá-la melhor nesse período. Além disso, encontramos nessa última edição, um “método de ensino” sugerido pelo professor Kenneth, considerando que “desde que o bebê está se tornando um indivíduo, o modo como ele faz e resolve as coisas necessita de ajuda” (idem, 2002, p. 313). O professor citado, então aconselha três “métodos de ensino”, com enunciados que remetem a testes realizados pela psicologia do desenvolvimento: 1. mostrando como fazer as coisas; 2. guiando suas mãos; 161 3. induzindo a tarefa. Este terceiro método é usado quando se percebe que ele tem iniciativa, mas é incapaz de terminar a tarefa; por exemplo, colocar um brinquedo atrás de uma cortina de plástico ou tecido transparente, solicitando que ele vá apanhá-lo por conta própria (idem, 2002, p. 314). Na edição mais recente analisada, o pediatra aconselha que a criança tenha um quarto, no qual possa brincar e engatinhar à vontade, assim como se deveria estimular o bebê com brinquedos que não oferecessem riscos. Além disso, a autonomia deve ser exercitada desde pequeno, como, por exemplo, para segurar a mamadeira, assim como “a educação do paladar do bebê para aceitar alimentos diferentes deverá ser um dos objetivos da mãe” (ibidem, p. 315). A alimentação, nesse caso, também deve ser disciplinada e na edição de 2002 de A Vida do Bebê encontramos um novo tópico que demonstra a atualidade dessa questão: “Três questões: as frituras, os refrigerantes e o chocolate”. Nesse tópico o pediatra instrui as mães a controlarem os alimentos citados - limitando-se a oferecê-los no máximo uma a duas vezes por semana no caso do primeiro, evitar o máximo o segundo e somente depois dos dezoito meses o terceiro - para que as crianças não se tornem obesas ou enfrentem determinados problemas de saúde no futuro (tema esse abundantemente disseminado na atualidade). O tema “a criança e a televisão” também é alvo de atenção do pediatra em ambas as edições analisadas, embora haja contrastes entre as abordagens. Assim, na edição de 1963, De Lamare explica que “a idade em que a criança começa a se interessar pela TV varia de criança para criança, sobretudo de acordo com o nível de quociente de inteligência, temperamento, hábitos e ambiente da casa. Meninos assistem mais que meninas” (p. 224). É interessante destacar desse excerto que o grau de interesse da criança pela televisão é visto como dependendo, em parte, do quociente de inteligência (QI) desta, mas o pediatra não ilustra em que direção se dá tal correlação. Seria um baixo ou alto QI que definiria o telespectador? Daí a conclusão de que os meninos vêem mais TV que as meninas (talvez por eles terem um QI mais elevado que as meninas?). Após essa breve explicação sobre os interesses da criança pela TV, De Lamare (1963) recomendava que os pais não deixassem as crianças assistirem mais que duas horas diárias, além de terem muito cuidado ao escolherem os programas a que aquelas tivessem acesso, recomendando teatros de histórias e desaconselhando os “dramas”, os “crimes” e as novelas. Nessa edição o pediatra centra-se nos efeitos físicos prejudiciais à criança, como, por exemplo, torcicolo, torsão tibial e perturbações da digestão e do sono e não em outras consequências, tão citadas hoje, como o aumento da violência devido aos filmes e desenhos animados assistidos. O autor também ressalta o quanto a televisão, o cinema e o rádio 162 ensinam às crianças e, por isso, deveriam ser alvo de atenção dos pais (aproximando-se, sua concepção, que, dentro dos Estudos Culturais chamamos de pedagogia cultural, já discutido no primeiro capítulo desta Tese). Já na edição de 2002, o tema televisão é tratado como “um sério e inevitável problema para os pais” (DE LAMARE, 2002, p. 373) e o autor desabafa: “a influência dos meios de comunicação na sociedade moderna chega a ser tão poderosa que tem maior poder do que a opinião dos médicos” (ibidem, p. 432). O ideal, para o pediatra, é regular horários e a programação assistida pelas crianças, embora os pais não estejam com elas o tempo todo para conseguir isto. Também se queixa dos Governos do nosso país, que estaria permitindo programas e anúncios inaceitáveis para serem veiculados durante o dia. No entanto, ressalta a qualidade da TV Educativa, de alguns vídeos de desenhos infantis e dos canais infantis presentes na TV por assinatura. Num tom mais moralista e de caráter religioso, Balbach (1967) afirma que a televisão “[...] que poderia abençoar a humanidade se fôsse bem aproveitada [...] , tornou-se, infelizmente, mais do que a imprensa e o rádio, um instrumento nas mãos do diabo” (p. 353). Assim, a TV é acusada de formar “uma geração de debilóides” por ser capaz de formar padrões para sociedade (são exemplos disso os programas estrelados por heróis e bandas como The Beatles que “[...] têm o poder de cativar, fanatizar e deteriorar as débeis mentes juvenis, de modo especial entre os espécimes do sexo feminino”, p. 354). Além disso, Balbach também credita à TV vários inconvenientes físicos resultantes da má postura frente ao aparelho e, até mesmo, taquicardias, dispnéias253, flebites254, dores de cabeça, lacrimação, nervosismo, neuroses orgânicas, asma, cólica, perturbações do crescimento, câncer e epilepsia. E, por fim, o pesquisador chama atenção para sintomas ainda hoje atribuídos (no caso atual, aos jogos de vídeo games): “[...] vocabulário reduzido ao extremo, dificuldades de locução, falta de imaginação e incapacidade de sentimentos mais fortes e profundos” (p. 358). A partir das análises aqui esboçadas de como devem agir os pais e as mães que lêem A Vida do Bebê com relação à educação da criança, na próxima seção poderemos discutir como o pediatra representa as crianças ideais no manual aqui analisado. 253 254 Falta de ar sem causa aparente, segundo ao autor. Inflamações nas veias, segundo o autor. 163 Bebês perfeitos Esta última seção de análise contemplará as temáticas referentes ao “bebê perfeito” e, consequentemente, aos bebês-problema255 (crianças que possuem determinadas doenças ou não possuem um desenvolvimento físico, cognitivo e emocional desejável). Nos manuais, pais e mães podem verificar se o seu bebê é normal através de testes a serem realizados mês a mês; provas essas relacionadas à formação da personalidade e ao desenvolvimento da inteligência. Conforme já marquei ao longo dessa Tese a produção de uma infância saudável, normal, inteligente e emocionalmente equilibrada são os objetivos de manuais como A Vida do Bebê, pois como escreve De Lamare: “ao nascer o bebê, a primeira e maior preocupação dos pais e do médico é de verificar se é uma CRIANÇA PERFEITA, externa e internamente” (1963, p. 14, grifos do autor). Da mesma forma, na edição de 2002, a mesma preocupação da mãe, do pai e do pediatra é referida, sendo que tal questão é complementada com a afirmação de que “somente após completar o terceiro mês é possível ser feito o diagnóstico de um bebê normal” (DE LAMARE, 2002, p. 45). Assim, ao longo dessas publicações a preocupação com a normalidade é uma constante, como poderemos ver explicitada no caso da alimentação: “êste livro estuda e ensina a criar o bebê normal, „a criança ideal‟, que tôdas as mães desejam ter como filho. E, por tal, as fórmulas e os regimes alimentares indicados são para crianças absolutamente normais”256 (DE LAMARE, 1963, p. 53). No tópico intitulado “o bebê normal”, presente nas duas edições de A Vida do Bebê257, é apresentada uma série de números e proporções que visam mostrar quais os padrões que uma criança deveria ter para ser considerada normal, tais como: peso258; comprimento; 255 A questão do bebê perfeito e dos bebês-problema no contexto brasileiro pode ser ligada ao campo da eugenia, como já descrito no segundo capítulo. Queiroga (2005) explica que no Brasil a eugenia teve muitos adeptos, dentre eles, Arthur Ramos, que produziu estudos no campo da psicologia experimental e da psicanálise e propôs a mudança do conceito de criança anormal para criança problema, “ou seja, um deslocamento das questões das diferenças de personalidade do campo discursivo da hereditariedade para o „meio‟ – significado por ele como „ambiente familiar‟” (p. 191-192). No caso de A Vida do Bebê, De Lamare usa o termo bebês-problema para um amplo espectro de doenças e comportamentos considerados não-normais, alguns deles claramente relacionados à interação organismo-meio, como, por exemplo, a alergia. 256 A mesma ressalva encontra-se na edição de 2002. 257 Esse tema (assim como a centralidade dele e os aspectos avaliados), com o título “Desenvolvimento da criança” também está presente em Marques (1945). Ao final desse manual há espaços para completar sobre os dados do bebê como peso e “progresso das funções intelectuais e de locomoção do bebê nos casos normais”. Abaixo dessa e na página seguinte há informações de quando essas ações devem ocorrer e qual o peso ideal que o bebê deve apresentar mês a mês até os 2 anos de idade (sendo o peso diferenciado entre meninos e meninas). Já em Oliveira (1956) e Balbach (1967) o tema encontra-se ao longo do manual, mas não com a importância dada por Marques e De Lamare. Para Oliveira (1956), o peso, a estatura, o perímetro torácico e a fontanela eram as medidas mais importantes que acompanhavam o desenvolvimento do bebê. 258 Deve-se destacar que entre as duas edições há diferenças significativas no que tange a alguns números e proporções sobre o recém-nascido, demonstrando, talvez, a elasticidade do conceito de normalidade. O peso 164 perímetros; tamanho da cabeça; condição da moleira; formato da coluna vertebral, tórax, membros, pernas e pés; coloração e textura da pele e da boca; atitudes; fisionomia259; temperatura; tipo de respiração; pulso; característica e frequência com que urina e evacua; condições do sono; formato dos órgãos genitais; e cor dos olhos, sendo a avaliação denominada de Apgar260, considerado a grande síntese desse intuito de classificação no momento do nascimento. Vale ressaltar o quanto essa avaliação adquire importância ainda hoje, pois a nota dada ao recém-nascido vai acompanhá-lo em muitos momentos de avaliação na infância, de tal forma que, ainda hoje, muitas escolas de educação infantil buscam e registram essa informação na entrevista com os pais para matrícula da criança. Com relação aos números e proporções referentes ao recém-nascido e o quanto isso irá marcá-la como normal ou anormal, Foucault (2001) assevera que o “normal” é uma média, que é retirada do grupo social no qual aquele sujeito está inserido. Nesse sentido, Santos (2000, p. 16) explica que “[...] os números tratam da população. Os números são anônimos, eles podem se referir a qualquer um... Os números são um jeito de transformar as coisas e pessoas em pontos em curva, em um gráfico, em um projeto...”. Apesar de as medidas serem apresentadas como média para todos os bebês261, De Lamare explica que os recém-nascidos são diferentes uns dos outros, devido à hereditariedade, às condições da gravidez e do parto e ao estado emocional da mãe (dessa forma, muitos problemas apresentados pelo bebê nos meses seguintes serão explicados a partir dessas condições). Apesar de tais diferenças, segundo o pediatra, a mãe deve estar deste, por exemplo, na edição de 1963, é descrito como de 3.350 a 3.500g, já na edição de 2002, é de 2.500 a 3.500g., o que provavelmente está vinculado ao discurso médico de que hoje as mulheres não devem engordar mais do que 12 quilos durante a gravidez, ao contrário do que ocorria em décadas anteriores, quando muitas mulheres engordavam vinte quilos ou mais, o que resultava em recém-nascidos maiores e mais pesados. Também encontramos, na edição de 2002, mais informações sobre a moleira, a “língua presa”, a boca e a cor dos olhos, assim como alteração no uso de expressões em algumas informações, em comparação à edição de 1963. 259 Chamo a atenção para a forma como o pediatra se refere à fisionomia do recém-nascido, que lembraria “a expressão fisionômica dos selvagens” (DE LAMARE, 2002, p. 40). A mesma comparação também existe na edição de 1963. 260 Avaliação feita em escala de 0 a 10 que “traduzem” as condições do recém nascido. Tal avaliação é feita 60 segundos após o nascimento, sendo repetida a cada cinco minutos até ser obtida a nota 8, no caso de ela não ser anteriormente atingida, quando o bebê é considerado fora de perigo. A avaliação classifica o bebê de 0 a 2 com relação a cada um dos cinco sinais vitais: aparência ou coloração, pulso, irritabilidade reflexa, atividade e respiração (APGAR e BECK, 1980). Na edição de 1963, não há referência a avaliação Apgar, embora o teste tenha sido divulgado em 1953 pela médica estadunidense Virgínia Apgar. 261 Além disso, gostaria de salientar que as medidas apresentadas mês a mês referentes a peso, estatura, perímetro cefálico e torácico e ganho de peso mensal são diferentes entre meninos e meninas e entre as edições de 1963 e 2002. Ao final do segundo ano, entre as duas edições analisadas, percebeu-se que houve uma diminuição na indicação do peso dos bebês, um aumento do perímetro cefálico (0,5 cm) para ambos os gêneros e um aumento do perímetro torácico (0.5 cm) dos meninos na edição de 2002, em comparação com a edição de 1963. 165 atenta a todo comportamento que lhe parecer estranho ou anormal262, como, por exemplo, a permanência dos reflexos (de preensão, de Moro263 e de sucção) presentes no recém-nascido após o quarto mês. Relembro, conforme já foi citado no começo dessa Tese, em pesquisa anterior (SANTOS, 2004), o quanto palavras como “correto” e “normal” são recorrentes nos discursos que falam sobre a infância, indicando um padrão, um modelo a ser seguido para se evitar os “desvios” do caminho na “difícil arte de educar”. Nesse sentido, a mãe deveria comunicar ao médico responsável pelo bebê: 1. Quando o bebê não sorri espontaneamente aos cinco meses de idade. 2. Quando não revela qualquer afeto à sua mãe ou à babá. 3. Quando não toma conhecimento das pessoas à sua volta. 4. Quando não demonstra interesse em brincar com seus brinquedos ou com um móbile, por exemplo. 5. Quando se apresenta com os músculos das pernas e dos braços muito rígidos ou muito relaxados. 6. Quando fica sentado e a sua cabeça cai constantemente para trás. 7. Quando usa somente uma das mãos. 8. Quando não segura brinquedos colocados ao seu alcance, depois de sete meses. 9. Quando há lacrimejamento persistente ou quando evita a luz. 10. Quando apresenta movimentos desordenados, transitórios, do globo ocular (DE LAMARE, 2002, p. 281). Avaliações como essas são recorrentes ao longo de A Vida do Bebê e demonstram a aliança proposta entre medicina e maternidade, na qual a mãe torna-se, como já dito, fiscal do desenvolvimento do bebê. A busca pelo bebê normal mostra-se um tema recorrente em outro tópico: “o bebê adotado”. Na edição de 1963, o manual indica como o melhor período para adotar uma criança a fase “entre 3 e 6 meses de idade. Antes dos 3 meses, não é possível assegurar-se o estado mental e motor da criança. Não se pode saber se é surda, cega ou muda”264 (ibidem, p. 13). No caso referido acima, o pressuposto é de que o casal não adote uma criança “defeituosa” e sim uma criança considerada normal e sadia. Ressalto que não estou contestando as eventuais atenções e cuidados de que tais crianças necessitam; o que questiono são as formas utilizadas para nomeá-las, ou seja, como normais ou anormais, e as 262 Conforme já descrito anteriormente, segundo Foucault (2001), o estranho, ao contrário do anormal, não é capturado por nenhum campo de saber; ele não pode ser explicado a partir dos discursos existentes. Já o anormal está sob o abrigo da norma, pois é previsto por ela e, por isso, precisa ser recuperado através de práticas de normalização. Um exemplo de práticas de normalização são as crianças com Síndrome de Down, que devem ser submetidas a estimulação precoce, fisioterapia, fonoaudiologia, dentre outras. 263 O bebê “quando é submetido a um ruído muito forte, ou bruscamente movimentado, joga os braços e as pernas para frente” (DE LAMARE, 2002, p. 177). 264 Essa recomendação (e tais deficiências) está presente também em De Lamare e Cabral (1992). O termo “muda” não é mais utilizado no campo educacional. 166 consequências disso na constituição do sujeito, que pode carregar o estigma de ser nomeado como anormal. Em contrapartida, na edição de 2002, há uma mudança na abordagem do tema. Já não há referência aos motivos da adoção, como existia na edição de 1963, e não se menciona o período ideal para fazê-lo, apenas conselhos sobre como revelar à criança sua condição de adotada265. No capítulo sobre “doenças comuns na criança” (DE LAMARE, 2002, capítulo 30), gostaria de ressaltar o discurso sobre a síndrome de Down, a paralisia cerebral e as crianças que “custam” a andar e a falar. A Síndrome de Down266, segundo o pediatra, “é conhecida como idiotia mongolóide. É, sem dúvida, uma das principais causas de atraso mental da infância. O coeficiente de inteligência é, em média, 50, quando analisado aos cinco anos de idade” (ibidem, p. 707). A partir dessa introdução, De Lamare caracteriza a criança com a síndrome, ressaltando que não há tratamento específico para a doença; não obstante, “o paciente com Síndrome de Down tem grande possibilidade de se desenvolver como pessoa, desde que apoiada e estimulada pela família e pelos seus amigos” (ibidem, p. 708). No mesmo sentido, a paralisia cerebral também é mostrada como trazendo grandes comprometimentos e, como a síndrome anterior, “o tratamento, antes de tudo, é fisioterápico, educacional e ocupacional”. Além disso, De Lamare, seguindo a tendência contemporânea no mundo ocidental, recomenda a chamada “inclusão”, já que “as escolas deveriam ser especiais para acolherem, de forma global, as crianças excepcionais267, devendo trabalhar a psicomotricidade e desenvolver as terapias ocupacionais” (ibidem, p. 709). Seguindo tal racionalidade, que se preocupa com os padrões de normalidade relativos a ações e comportamentos, no tópico “crianças que custam a andar e falar”, o pediatra explica que: Alguns pais ficam bastante apreensivos quando o seu bebê não consegue sustentar a própria cabeça aos três meses de idade, não consegue se sentar aos seis, não consegue ficar de pé aos nove e não ensaia os primeiros passos 265 Neste mês de agosto de 2009, foi sancionada a nova lei de adoção (Lei n. 12010/09) que visa agilizar o processo de adoção no Brasil, que, atualmente pode levar anos. Segundo os dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) existem hoje no país 80 mil crianças vivendo em abrigos, mas apenas 8 mil dessas em condições de serem legalmente adotadas. Assim a nova lei prevê que crianças que fiquem dois anos em abrigos já possam ser adotadas. Além disso, pretende criar o Cadastro Nacional de Adoção tanto para as crianças em condições de serem adotadas, quanto para as pessoas que pretendem adotar. No entanto, a lei permanece omissa nos casos de casais homossexuais poderem adotar. 266 Na edição de 1963, a síndrome é denominada de Mongolismo e, segundo De Lamare, não se conhecia sua causa. 267 Termo não mais utilizado atualmente no campo educacional, sendo substituído por portadores de necessidades educativas especiais e/ou portador de deficiências. 167 aos doze, o que é natural. [...] Se esta hipotonia muscular vem acompanhada de atraso mental, o bebê não realiza os testes deste livro, nos diferentes capítulos; está, então, caracterizado o retardo na evolução psicomotora, que traduz incapacidade dos centros nervosos. Existem casos em que o problema é apenas muscular, e não-mental; embora lerdos, eles têm sua inteligência normal (DE LAMARE, 2002, p. 710). Como nos casos citados acima, De Lamare explicita não ser fácil “para os pais, criar e educar um filho com qualquer anormalidade física ou mental”; dessa forma: É preciso ser forte para que os problemas da criança não atinjam a todos [da família]. O auxílio e os conselhos do pediatra, psicólogo ou psiquiatra são indispensáveis para que os pais resistam à adversidade e cumpram um plano integral, no dia-a-dia, no lar ou fora dele, para a proteção de seu filho e dos seus irmãos (2002, p. 724). Da mesma forma como no caso da adoção, não nego as dificuldades enfrentadas pelos pais e pelas mães de crianças com Síndrome de Down e paralisia cerebral; no entanto, gostaria de chamar atenção para a forma como o discurso médico aborda essas crianças. O que me parece estar em questão na discussão dessas temáticas (crianças anormais) é que elas, em termos biopolíticos, são vidas que não valem o investimento do Estado. Como escreve Agamben (2002) na biopolítica moderna vemos a integração entre a medicina e a política e “isto implica que a decisão soberana sobre a vida se desloque, de motivações e âmbitos estritamente políticos, para um terreno mais ambíguo, no qual o médico e o soberano parecem trocar seus papéis” (p. 150). Para o pediatra em questão (1963), são considerados “bebês-problema” (último capítulo do livro, presente em todas as edições de A Vida do Bebê) as crianças alérgicas, atrasadas268, hipotróficas269, hipoplásticas270, linfáticas271, nervosas, prematuras e pósmaturas. Nesse sentido, o autor considera que: Existem bebês que apresentam certas condições que os afastam da normalidade. Até agora estudamos, nas páginas dêsse livro, o bebê normal, o tipo padrão, que tôda mãe deseja ter como filho... o que, infelizmente, nem sempre acontece. Às vêzes, os bebês apresentam certos problemas, alguns sem maior importância, solucionados (felizmente, na maioria das vêzes), satisfatoriamente, pelo médico, com auxílio dos pais. Em poucas eventualidades, porém, os problemas são de natureza mais séria e de solução 268 269 Aquelas que “demoram” para sustentar a cabeça e se sentar. Aquelas que têm dificuldade em engordar. Em ambas as edições, De Lamare afirma que os bebês magros e subnutridos adquirem a “fisionomia e o aspecto de macaco, ou então de velhinho” (2002, p. 736). 270 Aquelas que não crescem como o desejado. De Lamare explica que esse bebê “é chamado de „menino miniatura‟, como o filho do japonês” (1963, p. 315). Tal comparação não foi encontrada na edição mais recente. 271 Aquelas que facilmente produzem ínguas. 168 mais demorada, ou de resultados desanimadores272 (DE LAMARE, 1963, p. 317). Nessa última passagem, percebemos o quanto os padrões de normalidade regem os comportamentos, a saúde, o desenvolvimento e o quanto certos “desvios” dessa rota de mão única podem marcar o bebê como um indivíduo diferente, ou, ainda, como um anormal. Para Silva (2000a) “a normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença” (p. 83). Assim, a identidade normal deve ser vista como natural, positiva, única e desejável, como se depreende do excerto acima, no qual o autor afirma que o bebê normal, o tipo padrão, é o desejo de toda mãe. O uso pelo pediatra de advérbios valorativos como “infelizmente”, “felizmente” e “satisfatoriamente” fogem do vocabulário médico científico, expressando claramente um julgamento. Nesse capítulo sobre os bebês-problema, especificamente sobre o bebê magro, o autor reafirma a necessidade “de levar o bebê, no primeiro ano de vida, todo o mês ao médico, vigiando a curva do peso, altura e outros sinais de saúde, é a melhor maneira de se fazer a prevenção. Mantê-lo dentro da disciplina dos horários, das dietas prescritas e evitar visitas são medidas úteis” (DE LAMARE, 2002, p. 736). Nesse excerto o especialista chama a atenção das mães para que fiquem atentas à saúde do bebê e periodicamente recorram ao médico para que esse possa acompanhá-lo, demonstrando o que Ripoll (2005), em sua tese sobre o aconselhamento genético, escreve: [...] [os especialistas] são centrais à governamentalidade e à constituição/formação de certos tipos de sujeito, fornecendo as normas, as diretrizes e as recomendações pelas quais as populações são vigiadas, comparadas às normas, treinadas para se conformarem a essas normas e tornadas produtivas. O risco, nessa lógica, pode ser entendido como uma estratégia de governamento pela qual as populações e os indivíduos são monitorados e manejados (p. 238). A partir da leitura das edições, percebeu-se uma proliferação de tipos de crianças disfuncionais (talvez, numa estratégia de capturar a maioria das crianças e acompanhar o seu desenvolvimento mais de perto), que não correspondem ao ideal, como explicado pelo pediatra. Na primeira edição analisada (1963) encontramos oito tipos de bebês-problema; já na última edição (2002), são catorze os sujeitos nomeados como problemáticos273. 272 273 Esta mesma explicação encontra-se na edição de 2002. Balbach (1967) fala dos tipos de crianças, mas não vinculados a patologias, mas sim a personalidades diferentes. 169 Acrescentam-se à lista anterior as crianças diatésicas274, excepcionais275, febris, hidrolábeis276, inapetentes e exsudativas277. Dentre os bebês-problema, o bebê nervoso é a figura mais recorrente em ambas as edições analisadas e nos demais manuais. Vários problemas apresentados pelo bebê são explicados porque a criança “é nervosa”. Um exemplo disso podemos localizar nas causas para o choro no bebê de menos de um mês. Dentre as causas, está o “nervosismo”, ou seja: Quando a criança chora, sem, entretanto, conseguir-se identificar uma causa aparente podemos estar diante de um distúrbio de comportamento (temperamento nervoso). Neste caso é preciso ter muita disciplina, método, horário, silêncio e penumbra. Na maioria das vezes até a chupeta resolve a situação. A administração de sedativos leves pode ser necessária (DE LAMARE, 2002, p. 151-152). O pediatra ressalta que “a natureza inquieta dos pais e avós” (2002, p. 741) é um dos fatores, dentre outros, que levam uma criança a se tornar “nervosa”. Para ele, “em primeiro lugar, os pais é que deveriam procurar se tratar, diminuindo sua neurose, permitindo um ambiente próprio à criação do filho” (ibidem, p. 741). Marques (1945) se manifesta no mesmo sentido, ao aconselhar rigoroso disciplinamento do ambiente que possui uma criança nervosa. Para esse pediatra, desde pequena ela é marcada pelo estado de “excitabilidade”, no qual a facilidade de vômitos é marca. Esta criança, como disse anteriormente De Lamare, não deve ser embalada, carregada no colo, ter seus horários alterados, além de dever manter-se em “[...] aposento bem arejado e semi-escuro e em ambiente tranquilo” (MARQUES, 1945, p. 24). Já para Balbach (1967), a criança278 nervosa é fruto de erros educacionais na família e na escola, sendo a intimidação da criança pelo adulto a mais comum. Como já referido em outras passagens, principalmente nesse capítulo e no anterior, pais e mães também são responsabilizados pelo mau desenvolvimento do bebê. Assim, De Lamare atribui os problemas do desenvolvimento à [...] deficiência de estímulos emocionais e sociais. O bebê precisa da companhia de seus pais, principalmente da mãe em quantidade e qualidade. Isto é, ficando em sua companhia, como também brincando com ele, tornando seu tempo alegre, agradável e não sendo indiferente à presença do bebê (DE LAMARE, 2002, p. 737). 274 275 Denominadas de “bebê catarral”, com tosse crônica. Marques (1945) também utilizava tal expressão. Aquelas em que o desenvolvimento não corresponde à idade. 276 Aquelas que se desidratam facilmente. 277 Aquelas que apresentam manifestações úmidas na pele e na mucosa. Marques (1945) também utilizava tal expressão. 278 Em diversas passagens esse autor refere-se à criança como “menor”. 170 Tendo em vista o desenvolvimento “normal” da criança, o pediatra explica o que implicaria uma criança atrasada: [...] significa que a criança precisa, apesar das condições normais, de um período mais longo para realizar as etapas do seu desenvolvimento. Ele fará tudo, porém com atraso de meses, o que não se verifica no caso da criança excepcional [...], em que as possibilidades de atingir todas as faculdades motoras e mentais são problemáticas (2002, p. 731). Nesse sentido, Fonseca propõe, a partir dos cursos proferidos por Foucault, “que pensemos naquilo que a sociedade moderna faz com o „outro‟ [...] o outro a que designamos como anormal, como diferente, como desviante da norma” (2002, p. 253). A questão de ser diferente, como explica Veiga-Neto (2000a), é que as diferenças são sempre tomadas como diferenças de valor, ou seja, “ser diferente equivale a ser desigual, de modo que aqueles que são iguais [...] são vistos [...] como melhores do que aqueles que são diferentes” (p. 220, grifos do autor). Por fim, gostaria de chamar a atenção para as diferenças entre as edições no que tange à temática do bebê prematuro. Na edição de 1963 de A Vida do Bebê, o conceito de prematuro estava vinculado ao peso (menos de 2.500g.) do bebê, independente do tempo de gestação. Já na edição de 2002, a partir da padronização da Organização Mundial de Saúde (OMS), considera-se prematuro o bebê nascido antes de 37 semanas; tais mudanças, assim como outras já comentadas, apontam para a contingência histórica das práticas e conceitos, inclusive aquelas que se autodenominam “científicas”. Além disso, na edição de 1963, no caso dos pais de um bebê prematuro, estes deveriam “estar, desde o princípio, preparados para o pior” (DE LAMARE, 1963, p. 311), recomendando-se inclusive, como primeiro cuidado, batizá-lo, já que o Brasil é um “país eminentemente católico” (ibidem, p. 312). O pediatra também destaca a ideia de que “a gravidez da mulher de raça prêta é mais rápida do que a da raça branca e a tendência moderna é admitir os prematuros sòmente de 2.300 para baixo, na raça negra” (idem, 1963, p. 311). Não obstante, na edição de 2002, tal “tendência moderna” não encontra espaço, assim como a sugestão de batismo de prematuros, pois, como explica o pediatra, “o avanço da medicina, o uso de novas drogas e tecnologias cada vez mais modernas e específicas tem possibilitado na área neonatal resultados excepcionais”279 (DE LAMARE, 2002, p. 743). 279 Segundo os dados fornecidos por De Lamare (2002) a chance de um bebê que pese entre 500 a 750g sobreviver é de 50% e de bebês com menos de 500g é de menos de 30%. Já na edição de 1963, um bebê que nascesse com menos de 600 g. era considerado um “aborto”. 171 A partir dessas considerações, chamo a atenção mais uma vez para o caráter histórico das chamadas asserções de verdade da ciência, uma vez que o que foi enunciado como verdade no mesmo manual quarenta anos atrás (no caso da diferença de tempo das edições aqui objeto de análise) pode ser hoje tido como “falso” ou “crendice” (como pôde ser mais bem discutido no quarto capítulo dessa Tese). O desenvolvimento do bebê normal Os capítulos que acompanham mês a mês o desenvolvimento do bebê280, na edição de 2002 de A Vida do Bebê, iniciam com um resumo de como seria o bebê com aquela idade, acompanhado de dicas sobre o que fazer frente a determinados problemas típicos do período, assim como de prescrições de estímulos que “devem” ser propiciados à criança. Assim, além de enfermeira responsável pela saúde e fiscal do desenvolvimento do bebê, a mãe também deve ser pedagoga, ao promover determinados hábitos, atitudes e aprendizagens nas crianças. Descrições como as citadas anteriormente são apresentadas como universais281, como por exemplo, “no primeiro mês de vida, o bebê já conhece a voz e o cheiro da mãe” (DE LAMARE, 2002, p. 186). Nesse sentido, a faixa etária dos 0 a 2 anos é descrita a partir de supostas características cognitivas, afetivas e psicomotoras, e divididas em etapas definidas por graus de complexidade crescente. As crianças, dessa forma, são seres em desenvolvimento que devem percorrer as diversas etapas pré-determinadas, naturalizadas pelo discurso da psicologia e da biologia. Sobre a divisão do desenvolvimento em fases e seus possíveis efeitos de sentido, Goulart (2000, p. 38) afirma, a existência humana assim colocada em etapas parciais leva a uma representação de nós próprios feita à base de saltos e fronteiras explícitas e em função de alguns parâmetros socialmente estabelecidos e aceitos. Indicanos, de forma categórica, quem e como podemos ser, o que podemos fazer e o que não nos é permitido nesta ou naquela idade [...] Nessa linearidade em 280 Outra diferença de A Vida do Bebê em relação aos três manuais também citados nessa Tese, é que estes não são divididos por faixas etárias. Maques (1945) embora não divida seu manual por faixas etárias, chama atenção para a importância do “[...] estudo das etapas sucessivas que atravessa o petiz nas fases iniciais da evolução intelectual” (p. 57). Para Balbach (1967) o desenvolvimento físico “[...] têm correlação com o desenvolvimento mental”, sendo “[...] a nutrição correta um dos principais fatôres do desenvolvimento mental” (p. 329). Tal discurso, parece-me filiar-se àqueles que atribuíam as dificuldades de aprendizagem e “baixo” desenvolvimento intelectual à deficiências alimentares, tal como hoje comumente encontramos discursos que relacionam o fraco desempenho escolar com as escassas sinapses realizadas pelas crianças até os três anos de idade. 281 No entanto, o pediatra também afirma que “cada criança levará o tempo que necessitar para sua adaptação” (DE LAMARE, 2002, p. 187), referindo-se a horários de mamadas e ao ritmo diferenciado entre o dia e a noite. Em outra passagem, aconselha a mãe que “não compare o desenvolvimento dos movimentos do seu filho com o de outros bebês [...] cada bebê tem um ritmo próprio de crescimento e desenvolvimento” (2002, p. 271). 172 que é colocado o desenvolvimento da criança, a trajetória é de mão única. Nela não é possível o retorno a uma etapa anterior nem a intersecção entre características e etapas próximas ou distantes. A criança é concebida como um bloco monolítico e avançar em linha reta é a única possibilidade do desenvolvimento „saudável‟, „normal‟. Posicionando-se no mesmo sentido das afirmações de Goulart, Popkewitz (2002) questiona o fato de que “os estágios universais de desenvolvimento, de categorias psicológicas do „eu‟ e de medidas racionais de rendimento [...] [sejam] intemporais e universais, sem nenhuma base aparente em qualquer localidade particular ou relação concreta de tempo e espaço” (p. 178-179). Assim, a biologia e a psicologia do desenvolvimento nas últimas décadas têm procurado dividir e subdividir cronologicamente a vida humana “de modo a criar faixas etárias pelas quais cada ser humano „deve‟ passar ao longo da sua vida, para ser considerado normal” (ibidem, p. 222). No entanto, o autor ressalta que tudo isso pouco nos diz sobre os muitos sentidos que atribuímos às idades, pois o que de fato importa é como são inventadas essas diferentes idades do corpo e quais os efeitos que essas diferentes idades produzem no nosso mundo contemporâneo. No mesmo sentido, Veiga (2004) enfatiza que [...] a grande revolução dos saberes da biologia e da psicologia foi a de qualificar as idades como leis gerais de caracterização da infância, valendose de estudos relativos à evolução física e mental da criança, estabelecendo os padrões e os modelos de crescimento físico e das habilidades mentais de acordo com os anos de vida (p. 75-76). Rogoff (2005) relata, na pesquisa já citada anteriormente sobre as diferentes concepções de desenvolvimento infantil em diferentes culturas, que “uma abordagem cultural observa que comunidades distintas podem esperar que as crianças desenvolvam atividades em momentos muito diferentes durante a infância” (p. 16) e acrescenta que muitos de nós se surpreenderiam com os “calendários” (sic) de desenvolvimento de outras comunidades e até poderíamos “considerá-los perigosos” (ibidem, p. 16). Retornando A Vida do Bebê, podemos visualizar como o pediatra se utiliza por vezes de estratégias generalizantes para falar das diferenças entre bebês, através de explicações dicotômicas, ou seja, ou se é um ou outro. Assim, aos dois meses, De Lamare define os dois tipos clássicos de bebê: “o primeiro é agitado, com sono leve, mamando sem prazer, tenso, apreciando qualquer companhia; o segundo é quieto, come bem, tem sono, não gosta de estranhos” (2002, p. 203). Embora o pediatra afirme que cada bebê tem seu tempo, parece que há um limite para esse tempo. No caso da linguagem, a idade limite “normal” para a criança começar seu 173 desenvolvimento na linguagem é aos dezoito meses. Depois disso, o pediatra recorrerá aos especialistas. “[...] Em primeiro lugar, uma fonoaudióloga. Entretanto, não poderá esquecer outros especialistas se houver necessidade, como um neurologista, psicólogo, psiquiatra, otorrinolaringologista” (2002, p. 416). Em outro trecho, o autor ressalta que é melhor ter um bebê que quer se movimentar e ir a todo lugar, mas que precisa ser constantemente vigiado, do que criar bebês muito quietos. No desenvolvimento da criança, como já dito nos capítulos anteriores, a mãe é sempre apresentada como a figura central para o seu bom progresso cognitivo, emocional e físico. Assim, o bebê, aos três meses, já “reconhece a mãe e responde com todo o corpo à alegria de sua presença, balbucia e sorri diferente para ela” (2002, p. 219). Asserções como estas me fazem pensar se realmente todo bebê reage assim frente à presença materna, tendo em vista as diferentes composições familiares. Referindo-se ao desenvolvimento do bebê, De Lamare (2002) explica que, aos três meses, os reflexos presentes no recém-nascido começam a desaparecer e o “controle cerebral” começa a se “revelar”. Dessa forma, estímulos visuais, sonoros e táteis são tidos como importantes para que o bebê aprenda, pois “todo desenvolvimento neuromuscular do bebê nos seis primeiros meses de vida deve ser feito por meio da diversão, estimulados pelo ambiente, pelas solicitações dos adultos ou pela presença de brinquedos (ibidem, p. 257). O passeio, por exemplo, também é citado como necessário, pois “quanto mais ele vê, mais ele aprende” (ibidem, p. 219). Diante de tantas informações, De Lamare recomenda que a “mãe não deve transformá-lo [o bebê] em campo de experiência” (ibidem, p. 242), pois deve seguir os preceitos médicos e não os seus. Nos excertos acima podemos visualizar a figura da mãe como a primeira pedagoga do bebê que se utilizará de diferentes estratégias de estimulação precoce para promover aprendizagens diversas no seu bebê. Além disso, é interessante chamar atenção para o discurso da estimulação precoce282, segundo o qual as experiências dos primeiros anos de vida são fundamentais para as futuras aprendizagens e para o desenvolvimento da criança, sendo que tais experiências se devem dar através da brincadeira. No caso das crianças que apresentam deficiências ou atrasos, estes precisam ser estimulados tão logo que se detectem tais “problemas”, se não há o risco de “perdas irreparáveis”. Para evitar isso, as pessoas que lidam com o bebê precisam observá-lo e conhecer as etapas do desenvolvimento infantil para vigiar e estimular adequadamente, como tão bem manuais como A Vida do Bebê ensinam. 282 Segundo o Ministério da Educação (1998, p. 26), considera-se estimulação precoce “[...] criar condições facilitadoras para o desenvolvimento do bebê e da criança [entre 0 e 3 anos de idade]”. 174 As diferenças de gênero entre os bebês também estão presentes ao longo do manual analisado. Já foram citadas as diferenças de peso, estatura e perímetro, assim como o suposto fato de que meninos assistem a mais televisão do que as meninas. Na edição de 2002, De Lamare apresenta uma explicação para as diferenças de gênero aceita por diversos puericultores (que não são nomeados), segundo a qual “as mães estimulam mais os bebês masculinos do que os femininos nos primeiros meses de vida. Possivelmente porque os meninos dormem menos, exigem e gritam mais do que as meninas; em compensação, os pais parecem ser mais carinhosos com as meninas” (p. 219). A diferença de gênero também está presente na aquisição da fala, pois, segundo De Lamare (2002), as meninas reconhecem palavras mais cedo do que os meninos. Além disso, “os pesquisadores admitem que eles [os bebês] sentem mais medo das mulheres do que dos homens, porque talvez elas sejam mais barulhentas, querem agarrá-lo e usam perfume” (DE LAMARE, 2002, p. 257). Nessas descrições feitas por este pediatra as relações de gênero são cristalizadas “homens são isso, mulheres são aquilo” não permitindo que essas categorias sejam vistas de outra forma, como atualmente os Estudos de Gênero e Estudos Feministas problematizam. Também é interessante notar que, quando bebês, os meninos seriam mais barulhentos; já na fase adulta seriam as mulheres... Ademais, gostaria de ressaltar que, tendo em vista que, em muitas passagens, os textos escritos se referem genericamente às crianças, aos bebês e aos filhos, torna difícil a tarefa de verificar a quais indivíduos se referem tais propostas. Dessa forma, procurei analisar os diferentes contextos em que tais expressões são utilizadas e percebi o que Álvaro García Meseguer (apud MORENO, 1999) denominou de salto semântico, isto é: um texto inicialmente utiliza o gênero gramatical masculino no sentido genérico/abrangente, e, às vezes, fala especificamente de meninos ou meninas. Lembro que, segundo Louro, (1997, p. 67), a linguagem institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pelo ocultamento do feminino e, sim, também pelas diferenciadas adjetivações que são atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo, pela escolha de verbos, pelas associações e pelas analogias feitas entre determinadas qualidades, atributos ou comportamentos. Um exemplo disso são os testes e provas sobre o desenvolvimento da inteligência e a formação da personalidade, na edição de 1963. Nesses, De Lamare só se refere aos “meninos”, não ficando claro se ele se refere especificamente a eles, ou se é uma forma de se referir às meninas também. No entanto, em várias passagens, o pediatra cita “as meninas”, 175 quando essas apresentariam posturas e comportamentos diferentes dos meninos, como, por exemplo, no tópico sobre “televisão” já citado na seção anterior. No caso do manual analisado, o uso do gênero masculino pode não ser genérico. Nas obras do século XIX analisadas por Martins (2004), para muitos autores o sexo masculino era o “objeto de todas as atenções maternais [...], [já que] falar de filhos ou crianças significava falar de futuros homens, pois as atividades associadas à grandeza da pátria eram eminentemente públicas, políticas e, portanto, masculinas” (p. 231). É importante frisar que, na edição de 2002, o uso da expressão “meninos” para os testes, foi substituído pela utilização de “crianças” ou “bebês”, não generificando o sujeito descrito nas avaliações. Entre as edições analisadas, há diferenças também nas recomendações sobre o que os pais e as mães devem fazer quando o bebê descobre os próprios órgãos genitais. Na edição de 1963, os bebês devem ter suas mãos ocupadas impedindo-se de que eles os toquem na hora do banho e da troca de fraldas, diferentemente da edição de 2002, na qual “os pais [...] não devem interromper [o toque], pois esta é uma fase muito importante para o desenvolvimento da criança” (p. 285). Nesse tópico chamamos a atenção para a diferença do discurso ao qual o pediatra parece aderir, primeiramente negando ao bebê o toque ao próprio corpo, para, posteriormente, passar às explicações psi que desaconselham a interdição sobre as questões sexuais (seja sobre o corpo, seja sobre a sexualidade). Por fim, gostaria de citar o maior destaque dado, na edição de 2002, às questões referentes à educação, linguagem e à importância dos brinquedos para o desenvolvimento. Além dos testes sobre a formação da personalidade e do desenvolvimento da inteligência, que serão tratados a seguir, chamo a atenção para um teste que não existia na edição de 1963, a ser realizado aos 24 meses, intitulado “Educando-a para prestar atenção” (p. 427). Neste, são citadas três provas para verificar a “capacidade de escutar com atenção”, utilizando-se objetos que emitem som, com o propósito de a criança investigar a origem e o tipo de som produzido. Ao final do teste, o pediatra explica que crianças que nasceram de partos difíceis “só responderão certo entre os três e os cinco anos” (2002, p. 427), reafirmando a já referida relação de causa e efeito recorrente no manual e o quanto o parto é destacado como um momento decisivo para o desenvolvimento posterior do bebê. A formação da personalidade Na edição de 1963, De Lamare define a personalidade como “o conjunto de particularidades próprias a cada indivíduo e que determina o seu comportamento nas 176 diferentes ocasiões” (ibidem, p. 83). Para o pediatra, “cada bebê tem sua personalidade desde o primeiro dia de vida e, aos sete meses, já começa a „mostrar o gênio‟” (2002, p. 286). Dessa forma, as mães devem ficar atentas, pois “as primeiras semanas de intimidade podem influenciar todo o seu futuro, e cada mãe tem de encontrar a melhor maneira de se relacionar com seu filho” (2002, p. 187). Nesse enunciado encontramos a fixidez e determinação do discurso promovido pelo especialista em questão. A formação da personalidade é dividida em cinco tópicos, nos quais são descritos comportamentos que o bebê deve realizar ou apresentar quando solicitado, sendo eles: 1.º - Evolução motora: A evolução motora se revela pelo progresso e modo dos movimentos musculares: sustentar a cabeça, sentar, ficar de pé, andar, maneira de agarrar objetos para comer, brincar e escrever. 2.º - Comportamento emocional: A tonalidade emocional da criança se revela nas suas reações ao mêdo, alegria, sustos, aborrecimentos, manhas, carinho e amor. A intensidade dessas reações se estendem desde as considerações normais até as patológicas (anormais). Os diversos graus emocionais estão em grande parte relacionados com a natureza da criança pela constituição hereditária. E é evidente que o ambiente, isto é, o meio que envolve a criança através da educação e exemplos recebidos, de seus pais, parentes, amigos e empregados, tem grande influência na determinação das características emocionais. 3.º - Capacidade de adaptação: Capacidade de adaptação é o grau de coordenação do uso combinado dos sentidos (visão e audição) e dos movimentos (mãos, braços e pernas) para realizar os diferentes atos de vida diária! Comer, beber, desenhar, empurrar carrinhos, etc. 4.º - Progresso da linguagem: Entende-se por progresso de linguagem a aquisição progressiva de sons e palavras e a maneira motora de pronunciá-las com os diferentes modo de expressão. 5.º - Comportamento pessoal e social: O comportamento pessoal se refere ao grau de receptividade e utilização por parte da criança das instruções recebidas para os atos essenciais da vida diária (alimentação, contrôle das evacuações e micções etc). O comportamento social se refere ao modo de a criança agir e se conduzir em relação às pessoas que a rodeiam, tanto da família quanto estranhos (DE LAMARE, 1963, p. 83-84). A formação da personalidade283 abrange, como exposto acima, diferentes aspectos, como, por exemplo, coordenação motora, sentimentos, memória e linguagem. Não obstante, é interessante destacar a relação entre o que seria inato e o que seria adquirido no ambiente. De Lamare parece creditar tanto ao meio quanto a hereditariedade as potencialidades ou não do 283 As descrições da formação da personalidade do bebê são as mesmas nas edições de 1963 e 2002; apenas encontramos mais detalhes nessa última edição. 177 desenvolvimento da criança. No entanto, para a perspectiva teórica pela qual estou avaliando tais manuais, a forma como nos constituímos como sujeito é organizada pelo mundo que nos rodeia e, como já dito anteriormente, a subjetividade é fabricada no contexto social e histórico no qual estamos inseridos. Ao longo de A Vida do Bebê percebe-se, além da noção de desenvolvimento, o emprego da palavra progresso, pela qual se compreende o avanço das capacidades em direção a uma condição no qual o sujeito seja pleno, se complete – nesse caso, o adulto normal. Nesse sentido, Fonseca (2002, p. 246) explora a concepção de desenvolvimento, conceituando-a como [...] uma espécie de norma através da qual é possível situar alguém. Face a tal noção, desenha-se uma dupla normatividade: uma normatividade que será aquela do adulto (aparece como o fim ideal do término do processo de desenvolvimento) e uma outra normatividade que seria uma certa média para as crianças (a média no seu desenvolvimento). Assim, é dentro dessa segunda normatividade, que podemos situar várias passagens de De Lamare. Na formação da personalidade encontramos descrições do que a criança já deve fazer naquela idade específica, sendo o desenvolvimento infantil regulado a partir dessas avaliações mensais propostas pelo pediatra. Por exemplo, aos oito meses o bebê “deverá estar engatinhando” (2002, p. 300). As crianças que não correspondem a esse padrão, como descrito anteriormente, são encaminhadas para especialistas para avaliação das causa e para prescrição de práticas para promover tais habilidades. Além disso, na edição de 2002, Piaget284, mais conhecido autor no campo da educação brasileira sobre as questões do desenvolvimento cognitivo da criança, é citado para explicar o comportamento pessoal e social. Para o autor suíço, “[...] no primeiro mês de vida as coisas aparecem e desaparecem como quem olha pela janela de um trem em movimento” ( p. 189), analogia utilizada por Piaget para explicar que os bebês dessa idade não se fixam ainda a nenhum objeto. Outro exemplo da presença da teoria do desenvolvimento proposta por Piaget, que pode ser encontrada em A Vida do Bebê em diferentes momentos, está na “classificação de brinquedos”. Embora De Lamare (1963) não cite Piaget, os brinquedos e brincadeiras descritas entre os 0 e 2 anos acompanham os estágios descritos por Piaget e Inhelder (1998). Assim, De Lamare explica que a primeira fase é denominada de “funcional” e tem “expressão 284 Especialista em psicologia evolutiva e epistemologia genética, filósofo e educador. Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça, em 09 de agosto de 1886 e morreu em Genebra a 16 de setembro de 1980. 178 sensitiva e motora” (1963, p.115), na qual “de 1 a 3 meses o bebê se distrai com olhos e ouvido. [...] De 5 a 6 meses brinquedos de manipulação, usando as mãos e a bôca. De 6 a 12 meses, de adestramento motor: carrinhos, bolas e etc”. Já na segunda fase, temos a “representação”, que acompanha as crianças de 12 a 18 meses e constitui-se da imitação de ações, como, por exemplo, subir escadas. Por fim, a terceira etapa é denominada de “construção”, sobre a qual o pediatra escreve: “[...] 18 a 24 meses: brincar de mãe, imitar o médico, etc. Fazer blocos” (ibidem, p. 115). Tais “descrições” do que supostamente uma criança é (ou deve ser) capaz de fazer (que não passam de invenções e que acabam por produzir o próprio sujeito descrito), feitas pela pediatria, psicologia do desenvolvimento e pela pedagogia, são tomadas como normas, sendo que os comportamentos que se afastam deste modelo são patologizados. Em relação a isso, Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 53) afirmam que a psicologia do desenvolvimento pode ser vista como um discurso que, além de contribuir para a construção de nossas imagens das crianças e para o nosso entendimento das suas necessidades, contribui para a construção e para a constituição de toda a paisagem da infância. Buscando questionar a suposta universalidade, no caso, da psicologia, Woollett e Phoenix (1999, p. 87) afirmam que tradicionalmente, a psicologia evolutiva tem procurado compreender como se desenvolvem as crianças e qual é o melhor meio de favorecer esse desenvolvimento. De forma geral, não se têm questionado os valores e as premissas que fundamentam a aceitabilidade dos „dados‟ do desenvolvimento infantil nem o contexto cultural e histórico no qual se realizaram as investigações. O tema dos brinquedos, na edição de 1963, estava incluído no capítulo destinado a formação da personalidade do bebê. Já na edição de 2002, na maior parte das vezes, o tema do brinquedo constitui um tema tratado à parte, embora em alguns meses esteja incluído na parte da formação da personalidade. 6.º - Interêsse e preferência pelos brinquedos: Brincar para criança é mais do que divertir-se ou distrair-se. É também exercitar movimentos, aprender imitando os adultos. Estimular as suas capacidades de iniciativa, de imaginação e realização. É através das preferências e do modo de brincar que as crianças exprimem seus sentimentos, seus afetos, seus temores e seus conflitos (DE LAMARE, 1963, p. 84). 179 Balbach (1967) também se rende ao discurso da psicologia sobre “o valor da recreação” em seu manual. Apoiando-se no também suíço Claparède, o pastor afirma que “[...] a infância tem por função brincar e imitar” (p. 284), assumindo que essa função é biológica. Também esse autor convida os pais e as mães a brincarem com os filhos e as filhas, a fim de lhes “[...] observar o nível intelectual e as vocações, bem como verificar se tais folguedos estão de acôrdo com a sua idade e capacidade” (p. 289). O brincar na cultura ocidental tem sido idealizado e encontra, nos discursos da biologia e na psicologia do desenvolvimento, explicações que o naturalizam, tornando-o um “suporte essencial, positivo, espontâneo e natural do seu desenvolvimento” (FERREIRA, 2004, p. 82), transformando-se em uma das características da infância. Na edição de 1963, De Lamare recomenda que se dê o primeiro brinquedo, aos três meses, de preferência, guizos e anéis coloridos a serem pendurados no berço para estimular o bebê. Na edição de 2002, aos quatro meses “a educação começa pelos brinquedos, que podem estimular sua inteligência com exercícios mentais. Os brinquedos além de distrair ou ocupar os bebês, os ensinam a perceber sua consistência [...], a diferença de cores e o espaço” (DE LAMARE, 2002, p. 242). Os brinquedos devem ser, segundo o pediatra (1963 e 2002), resistentes, leves, com cores vivas, redondos, de consistência variável (para produzir diferentes informações), laváveis e grandes (para que os bebês não os engulam ao serem colocados na boca). Outros discursos oriundos da psicologia encontram espaço em A Vida do Bebê. Um exemplo disso está na referência aos “objetos transitórios” (brinquedos, fraldas, travesseiros, dentre outros) que acompanham a criança a todo lugar que ela vá e que realizam “a passagem da dependência total para independência parcial de sua mãe. É uma substituição que também o conforta e o torna feliz” (DE LAMARE, 2002, p. 251). Através da atividade lúdica também podemos, segundo De Lamare (2002), verificar sintomas de distúrbios de comportamento, ecoando, assim, discursos oriundos do campo psi. Como descreve Rose (1998), é a partir da Modernidade que as ciências psi passam a exercer a função de conhecer o sujeito para melhor governá-lo. Dessa forma, os “engenheiros da alma” (aqui descritos como psicólogas/os, psiquiatras, psicanalistas e médicas/os em geral) agem de forma indireta sobre as nossas escolhas através de suas verdades, legitimadas pela ciência e socialmente valorizadas. A esse respeito, Silva (1995, p.191) nos explica que as modernas formas de governo da conduta humana dependem, assim, de formas de saber que definem e determinam quais condutas podem e devem 180 ser governadas, que circunscrevem aquilo que pode ser pensado sobre essas condutas e que prescrevem os melhores meios para torná-las governável. Comparando-se as edições de 1963 e 2002, percebe-se que discursos provenientes do campo da psicologia ganharam mais espaço no manual, seja nos temas envolvendo o desenvolvimento e a educação, seja na referência à importância da relação mãe-bebê. Em subcapítulo denominado “a importância das frustrações (fracassos, decepções) na formação da personalidade da criança285” (2002), o pediatra explica que “privar [...] a criança do desprazer durante o primeiro ano de vida é, para os puericultores modernos, tão nocivo quanto privá-la de afeto” (ibidem, p. 299). De Lamare também expõe que as frustrações inevitáveis, como, por exemplo, as que aconteceriam no desmame e nas aprendizagens de sentar, engatinhar ou andar funcionam como “verdadeiras „vacinas‟ psíquicas, fazendo com que a criança as suporte melhor no futuro” (ibidem, p. 300). Nesse mesmo assunto o pediatra destaca aquilo que os psicólogos denominam de “angústia do oitavo mês”, ou seja, “medidas restritivas ou desagradáveis [que] levam o bebê nesta idade a um estado de ansiedade, de aflição” (ibidem, p. 300). Além disso, crianças com dificuldade de tolerar as frustrações podem apresentar a síncope infantil (popularmente conhecida como “tomar o choro”). Nesses casos um pediatra e um psicólogo são “indispensáveis” para o tratamento, pois muitas famílias “com medo de que o acesso se repita, resolvem não mais contrariar a criança, sendo então o começo da entronização de um pequeno tirano” (2002, p. 336). O discurso psicanalítico também encontra espaço nas páginas de A Vida do Bebê. No tópico “as meninas têm inveja do pênis do irmãozinho?” (2002), De Lamare aponta que pesquisas sobre comportamento têm “comprovado” “que algumas meninas podem apresentar problemas emocionais ocasionados pela ausência do pênis, com sentimentos de decepção e frustração” (p. 394). Para explicar isso, o pediatra chama a atenção para a “doutrina” de Freud, na qual existe uma parte inconsciente na mente humana e cujo núcleo se desenvolve na primeira infância. Esta foi uma das maiores descobertas da Ciência; os sentimentos e as fantasias deixam suas marcas, que nunca desaparecerão, permanecendo ativas e exercendo poderosa influência no comportamento emocional, intelectual do indivíduo (ibidem, p. 395). 285 O discurso sobre a importância dos limites na educação na edição mais recente de A Vida do Bebê já foi comentado na seção sobre a educação da criança. 181 Devemos destacar a força da Ciência no manual em questão, assim como a ênfase a determinados discursos, como os da área psi, e o silenciamento de outros, como o feminista, que questiona o tipo de asserção acima, que coloca a superioridade do pênis como algo natural. Assim, as crianças em A Vida do Bebê devem ser constantemente testadas, descritas e analisadas no detalhe por suas mães – a partir das provas realizadas mês a mês. Através da vigilância permanente do seu bebê e do acompanhamento do que a criança já é capaz de fazer, a mãe torna-se fiscal do desenvolvimento da criança, devendo recorrer aos experts, caso ela observe algo anormal nesta. Além disso, a mãe extrai “verdades” sobre aquele sujeito objeto de vigilância, verdades essas que serão retranscritas à criança a partir dos discursos286 da pedagogia e da psicologia, dependendo da posição que ela ocupa na curva de normalidade. Assim, este exame da criança começa antes mesmo de ela estar inserida numa instituição, como, por exemplo, a escola, e inicia em casa, a partir do olhar materno. Dessa forma, o manual ao intervir na família através desses exames mensais visa prevenir futuros problemas e normalizar aqueles encontrados. O exame, no sentido foucaultiano, realizado pelas mães, a partir do proposto pelo manual, articula vigilância e sanção normalizadora, ou seja, “é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 2002b, p. 154). Na prática do exame podemos analisar as relações de poder obtendo e constituindo saber, através da visibilidade contínua, do registro intenso (que permitirá também a constituição de um sistema que abrangerá fenômenos globais e sua distribuição numa população) e da transformação de cada criança em um caso, o que nos leva a concordar com Edgardo Castro (2009, p. 310), quando o autor afirma que “[...] uma sociedade de normalização é uma sociedade fundamentalmente medicalizada287”. O desenvolvimento da inteligência Como explicita De Lamare, desde o primeiro mês, pode-se verificar “se o desenvolvimento da inteligência do bebê está se processando normalmente” (2002, p. 189). 286 Como explica Foucault (1995), os discursos serão tanto mais eficazes (ou seja, mais produtivos) quanto mais esse conhecimento é assumido como verdadeiro. 287 O autor citado compreende o termo medicalização “[...] como processo que se caracteriza pela função política da medicina e pela extensão indefinida e sem limites da intervenção do saber médico” (p. 299). 182 Por isso, o bebê deveria responder positivamente às provas elaboradas por Charlotte Bühler e Hildegard Hetzer288. Desde o primeiro mês são apresentadas cinco provas ou testes (são usadas ambas as designações ao longo de A Vida do Bebê) que avaliam as respostas do bebê a reflexos, sons, estímulos visuais, além de monitorar a coordenação motora e acompanhar seu comportamento em relação às pessoas, pois, já aos seis meses, “a inteligência, ou raciocínio, e o relacionamento social do bebê tornam-se evidentes” (DE LAMARE, 2002, p. 271). Nas provas são apresentadas determinadas situações e qual a resposta “normal” do bebê àquelas situações, como, por exemplo, na testagem289 feita aos seis meses, em que uma fralda é colocada sobre o rosto do bebê e ele deve retirá-la. Nessas avaliações são privilegiadas ações de causa/efeito e de caráter investigativo. Outro exemplo é o teste já citado sobre a localização de determinados sons, ou, então, o fato de as crianças procurarem resolver as situações por meio de instrumentos, como puxar um objeto com a ajuda de outro. Embora o autor utilize os mesmos testes desde a edição de 1963, De Lamare salienta que “pelo fato de as crianças hoje serem muito mais estimuladas do que as de antigamente290, temos de ter cuidado na interpretação de alguns testes clássicos aplicados sem adaptá-los” (2002, p. 205). Apesar dessa ressalva, todas as provas, com mínimas alterações, seguem há quarenta anos os mesmos preceitos, o que nos poderia levar a dizer, que, segundo De Lamare, a formação da personalidade e o desenvolvimento da inteligência são a-históricos. Burman (1998), em sua pesquisa sobre as prescrições da psicologia evolutiva às mães, questiona os testes, de maneira geral, por suas pretensões de abranger a todos, assim como questiona “até que ponto a categorização de condutas reflete ou se refere a determinadas práticas culturais” (p. 246). Para De Lamare (2002, p. 732), a inteligência não é resultado de simples processo mental, mas se compõe de um grupo de diferentes aptidões, incluindo pensamento abstrato, memória visual e auditiva, raciocínio causal, expressão verbal, capacidade de usar as mãos e compreensão do espaço. Todas as particularidades poderão ser avaliadas por testes, para verificar se a idade mental corresponde à idade cronológica, com apresentação expressiva através do quociente de inteligência (QI). 288 Charlotte Bühler (psicóloga alemã, nascida em 1893 e falecida em 1974) e Hildegard Hetzer (psicóloga alemã, nascida em 1899 e falecida em 1991) escreveram juntas o livro “O Desenvolvimento da criança do primeiro ao sexto ano de vida – testes: aplicação e interpretação”. 289 Na edição de 1963, a pessoa que realiza as provas era denominada de examinador. 290 Marques (1945), contrariamente a essa postura de De Lamare de estimulação da criança desde cedo, recriminava os estabelecimentos de “jardim de infância” que “ministravam ensinamentos escolares aos petizes”, pois estes não se achavam ainda em condições intelectuais de recebê-los, sendo tal prática “[...] verdadeiro atentado ao sistema nervoso da criança”, ao mesmo tempo em que lhe “rouba a meninice” (p. 206). 183 A partir disso, De Lamare (2002) nos explica, a partir de discursos muito professados em décadas anteriores, o QI das crianças com “retardo mental”. Segundo ele, as crianças com QI entre 50 e 75 são “educáveis”, por serem “ligeiramente retardadas”, podendo, inclusive “aprender um ofício simples, que não exija muita abstração” (p. 732). Já as crianças com QI entre 35 e 50 só poderiam ser “treinadas”, enquanto aquelas com quociente abaixo de 35 são totalmente dependentes de outras pessoas. O uso do teste de QI para determinar o grau de normalidade de um sujeito pode ser visualizado no caso do bebê “excepcional” (que, como já mostramos, compreende crianças que possuem retardo mental, autismo, esquizofrenia, fenilcetonúria291 ou galactosenia292). De Lamare o define como um bebê que tem dificuldade em desenvolver habilidades musculares, que não consegue sentar, andar ou treinar seus hábitos higiênicos, como aquele que tem dificuldade no que se refere à inteligência, não realizando os testes correspondentes às diversas idades relatadas nos capítulos deste livro, é considerado um bebê excepcional. É excepcional porque necessita de cuidados e educação especiais – diferentes das normas habituais; precisa de auxílio e métodos diferentes para ser recuperado e educado (DE LAMARE, 2002, p. 731). Em testes como o de QI, a diferença é vista como falta, déficit, incapacidade. Como explica Kincheloe (2004293), a psicologia somente busca “um conjunto culturalmente específico de indicadores de aptidão. Desta maneira são recusadas tanto inteligências quanto indivíduos de culturas diferentes” (p. 19), porque são procurados determinados traços de inteligência com os quais ela está familiarizada, privilegiando um determinado tipo de inteligência, principalmente aquela vinculada a funções mentais requeridas pela maioria dos testes de inteligência. Esse mesmo autor também postula que a inteligência não é um fenômeno individual, mas social e histórico, considerando a noção de desenvolvimento infantil como uma invenção cultural, e as fases do desenvolvimento, como uma estratégia de monitoramento e vigilância sobre aqueles considerados anormais – aqueles que não correspondem ao padrão. Os especialistas, nessa lógica, assumem a posição de fiscais e “recuperadores” daqueles que se desviam. 291 Segundo o pediatra essa doença ocorre “devido a um defeito congênito de uma enzima que toma parte na decomposição da fenilalanina, um aminoácido. A criança nasce perfeita, mas com os primeiros meses inicia um processo de deterioração cerebral com tendência à idiotia” (DE LAMARE, 2002, p. 733). 292 De Lamare a define como uma “doença metabólica. No caso, o defeito congênito é a ausência de uma enzima que toma parte de decomposição da galactose, um açúcar encontrado no leite materno e no de vaca. O acúmulo de galactose no organismo leva a retardo mental, icterícia, catarata, etc” (2002, p. 733). 293 Todas as traduções desse texto são de minha responsabilidade e revisadas pela orientadora. 184 Assim, a partir dos estudos foucaultianos, a norma fabrica os normais e os anormais, sendo estes últimos necessários para afirmar a “normalidade” da maioria. No mesmo sentido, Inês Araújo (2007) explica que, na sociedade da norma na qual estamos inseridos, “a pedagogia e as ciências humanas produzem o indivíduo mensurável, adaptado, „psicologizado‟, enfim, o normal” (p. 33). Nessa sociedade, o que não é normal deve ser corrigido, “normalizado” como já citado anteriormente. É interessante chamar a atenção para articulação que o especialista De Lamare faz entre a psicometria (testes de QI) e a psicologia do desenvolvimento. A psicometria inicia no século XIX com os estudos de Galton, Spencer e Cattell e influenciaram grande parte da psicologia da primeira metade do século XX. Para esses estudiosos da inteligência esta seria resultado “[...] de um processo associativo progressivamente elaborado. [Dessa concepção surgiram] [...] testes sensoriais, perceptivos e motores, onde tais aspectos eram considerados básicos na investigação das capacidades intelectuais” (ALMEIDA, ROAZZI e SPINILLO, 1989, p. 218). Binet, na primeira década do século XX, criticou os testes sensoriais criados pelos autores citados anteriormente e elaborou uma escala para avaliar a inteligência das crianças com dificuldade de aprendizagem. O primeiro teste continha 30 problemas, em ordem crescente de dificuldade, nos quais considerava a inteligência com algo mais global e produto de diferentes aptidões (ALMEIDA, 1983). Nos anos seguintes, esse teste seria revisto e modificado em alguns aspectos, abrangendo inclusive os adultos. O resultado apresentava a Idade Mental do indivíduo. Em 1916, o teste foi reformulado e chamado de Stanford-Binet e o conceito de QI foi utilizado pela primeira vez. Esses testes para obterem legitimidade, necessitavam de algumas condições como: padronização, precisão, validade e normas. O teste de QI segue a seguinte fórmula: QI=IM X 100, sendo IM e IC reduzida a meses. IC A partir dessa fórmula seria obtido um número que seria visto dentro de uma tabela que corresponderia à posição do indivíduo dentro dela. Se a Idade Mental equivalesse a Idade Cronológica, o QI corresponderia à média da população (verificada através do uso da estatística). A quantificação das capacidades intelectuais significava objetividade e estava de acordo com os preceitos científicos da época e o modelo das ciências exatas. Para essa matriz de pensamento, as aptidões intelectuais são constantes ao longo da vida, possuem uma base genética, podem ser avaliadas por meio de testes que podem a priori determinar e rotular os 185 indivíduos. Assim, ela quantifica para constatar. Dessa forma, os testes visavam enfatizar as diferenças entre os indivíduos dentro de um grupo, não havendo diferenças entre áreas de conhecimento, pois os testes eram iguais para todos. Nas décadas seguintes, surgiram diferentes autores que ampliaram e diversificaram os testes de inteligência, incluindo outros fatores (análise fatorial) para medir diferentes aspectos da inteligência. É interessante ressaltar que as diferentes culturas e o seu peso nos testes foram alvo de discussões por muitos psicólogos, embora a maioria considerasse que essas não teriam peso significativo no resultado das testagens. Já nos anos 1950 a psicologia do desenvolvimento de Piaget muda o enfoque acerca da inteligência, preocupando-se com a gênese dessa, estabelecendo os estágios sequenciais e invariantes de desenvolvimento mental desde o nascimento até a adolescência, num modelo mais próximo das ciências naturais. Para essa corrente, as operações mentais são processos de busca e processamento de informações, que podem ser avaliadas por provas que permitam ao examinador perceber como o indivíduo responde a determinadas situações. Ao contrário da psicometria, de acordo com área a ser testada, há diferentes abordagens. Assim, o que se busca nas provas na psicologia do desenvolvimento é verificar se o sujeito é capaz ou não de fazer tal ação, descrevendo-o para intervir. No entanto, ambas abordagens acreditam em elementos universais, dando pouco (ou nenhum) peso as questões históricas e culturais sobre o sujeito, diferentemente de outras abordagens, como a Escola Soviética, que ficou conhecida no Brasil através dos trabalhos de Vygotsky. Além disso, psicometria e psicologia do desenvolvimento acreditam na determinação genética e na maturação da inteligência, assim como o uso de uma determinada racionalidade como definição de inteligência (ALMEIDA, 1983). Ademais tais testes, a partir de algumas abordagens, estão medindo outras variáveis, como classe social, raça/etnia, gênero, dentre outras, como muitas pesquisas do começo do século XX disseminaram que pessoas negras ou mulheres possuem uma inteligência inferior a dos homens brancos de classe média e alta. Retornado a A Vida do Bebê, no final da edição de 2002, De Lamare despede-se da leitora e do leitor, reafirmando a importância do manual: Com este último capítulo, terminou a 1ª infância da criança. Se os pais seguirem as instruções deste livro, os dois primeiros anos poderão ser os mais felizes de toda a vida deste bebê. A mãe que tem A Vida do Bebê nunca estará só, pois terá sempre ao seu lado um amigo auxiliando a criar o seu filho (ibidem, p. 756). 186 No encerramento do manual, o pediatra passa à mãe (sujeito a que é endereçado A Vida do Bebê) a ideia de ter no livro um companheiro nas horas alegres e difíceis, nas quais ela não estará sozinha. Além disso, A Vida do Bebê apresenta-se como a “receita da felicidade” para as mães que o acompanham passo a passo até os dois anos do bebê, quando terminaria a consulta ao livro. Concluindo esse capítulo, que procurou analisar a representação de criança ideal, a partir dos discursos sobre o desenvolvimento do bebê nos manuais, passo, no próximo capítulo, a considerar os principais achados da pesquisa, concluindo-a. 187 APONTAMENTOS DA PESQUISA Este é o valor principal de uma experiência de escrita: não contribuir para constatar uma pressuposta verdade, mas sim transformar a relação que temos conosco mesmos, ao transformar a relação que mantemos com uma verdade na qual estávamos comodamente instalados antes de começar a escrever (KOHAN, 2003, p. 17). Foi buscando transformar minha relação com os manuais de Puericultura que realizei essa pesquisa, a qual os mostrou como muito produtivos ao colocarem em marcha discursos, saberes, condutas, subjetividades e práticas. Para melhor compreender tal pedagogia materna procurei olhar para as recorrências, mas também para os deslocamentos, as rupturas dos discursos, buscando realizar aquilo que Veiga-Neto denominou de hipercrítica, ou seja, realizar “uma permanente reflexão e desconfiança radical frente a qualquer verdade dita, ou estabelecida” (2000b, p. 47), ou “uma crítica cética e incômoda: ela mais pergunta – até mesmo sobre si mesma – do que explica” (2003b, p. 28). Dessa forma, inclusive o próprio discurso proferido nessa Tese é colocado em dúvida ou, como enfatiza Foucault, procuro, através da breve escrita aqui realizada, restituir à verdade sua condição de “coisa deste mundo”. A leitura realizada por grande parte das mães que consultam A Vida do Bebê não pode ser tomada como a leitura de formação proposta por Larrosa (2002b), pois essa exigiria escuta, continuidade, atribuição de sentido em relação a nós mesmos e não apropriação de algo que não era conhecido antes. A proposta de um livro como A Vida do Bebê, no meu entendimento, é dizer a verdade sobre as coisas ali expostas e não uma leitura que seja aceita e acolhida “de uma forma sempre plural em uma vida humana sempre particular e concreta” (ibidem, p. 144). No caso do manual citado, parece-me que o tipo de leitura suscitada é de ordem utilitária – para algum fim específico – e seletiva – de tópicos específicos. Ressalto, porém, que o que se pretendeu analisar nas duas edições do livro A Vida do Bebê foram os discursos e as práticas promovidas, assim como o confronto desses discursos com outros provenientes de outras instâncias da cultura, e não a validade ou a atualização das prescrições do livro, pois tais discussões não se afinam com o referencial em que me inspiro. Ademais, devo salientar a importância que tais artefatos culturais assumem para mães que não possuem experiência com bebês, ou mesmo para aquelas que não têm outros indivíduos que possam auxiliá-las na tarefa de educar crianças. 188 A partir das análises feitas, não pretendi apontar como seria possível, então, um manual que fosse condizente com os referenciais e as concepções aqui apresentadas, ou mesmo se a realidade do público-leitor dessa publicação se vê representada, pois, como afirma Peters (2000, p. 37), a perspectiva e a pesquisa pós-estruturalista apresentam-se como “uma posição epistemológica que se recusa a ver o conhecimento como uma representação precisa da realidade e se nega a conceber a verdade em termos de uma correspondência exata com a realidade”. Em síntese, a Tese de Doutorado aqui apresentada, ao analisar o manual A Vida do Bebê, do pediatra Rinaldo De Lamare, através de duas edições, a saber, 1963 e 2002, procurou enfatizar a análise das estratégias de governamento da maternidade e da paternidade para promoção de biopolíticas que buscassem assegurar bebês “normais”. No caso desse manual, arrisco-me a dizer que A Vida do Bebê faz parte de um dispositivo que visa, através de mães bem instruídas, promover biopolíticas que buscam a constituição de crianças saudáveis, disciplinadas, inteligentes e normais, assegurando através da medicalização das crianças e das famílias controle social pela Medicina. Dentre as estratégias analisadas chamo a atenção para o discurso da psicologia, a exaltação da amamentação, a educação da criança e o desenvolvimento normal infantil. Na análise realizada, percebeu-se que, entre as edições de 1963 e 2002, houve um abandono de certos conselhos da ordem higiênica em favor de questões psicológicas e comportamentais. Acredito que tal fato se deva a que o risco de as crianças morrerem cedo tenha diminuído significativamente nas camadas sociais alvo da publicação no intervalo referido, sendo agora o investimento dirigido para a formação psicológica e da inteligência do indivíduo. Na edição de 1963, De Lamare aventura-se a aconselhar sobre diferentes campos, entre eles, o casamento. Já na edição de 2002, o pediatra restringe-se mais a alguns campos temáticos, como, por exemplo, puericultura, pediatria, psicologia e educação, ao mesmo tempo em que há um maior grau de detalhamento de doenças e informações sobre as crianças dadas às mães. Ao longo das análises percebeu-se a recorrência à psicologia através dos discursos sobre a importância da mãe, com o intuito de regulá-las, homogeneizando seus comportamentos e patologizando eventuais diferenças entre eles. Embora, na edição de 1963, fosse só a mãe que cuidasse do bebê (pois ela não trabalhava fora do lar), na edição de 2002, a mãe se tornou ainda mais central na vida do bebê (apesar da alusão a outros atores – pai, avó, por exemplo), dependendo muito mais dela o desenvolvimento da criança. Ademais, 189 percebeu-se uma grande exaltação da amamentação294 entre as duas edições de A Vida do Bebê, o que reforça a tese de que houve centralização maior da figura da mãe na vida do bebê, sendo essa responsável pelo estado de saúde e educação da criança, inclusive antes mesmo do parto. Nesse sentido, o manual privilegia a maternidade da mulher casada proveniente da classe média ou alta urbana, naturalizando cuidados e atenções difíceis de serem promovidos pelas mães solteiras, de classe popular e de área rural. Se ser boa mãe for instintivo e natural, como por vezes é sugerido, por que bombardearmos as mães com informações tão minuciosas, através de manuais, revistas, programas, televisivos, filmes, etc, como podemos perceber hoje? É nesse sentido que, ao abordar tais temáticas, Louro questiona: “existe um domínio biológico que possa ser compreendido fora do social? É possível separar cultura e biologia?” (1997, p. 44). Da mesma forma, no decorrer da leitura de A Vida do Bebê a palavra mulher apareceu atrelada continuamente à palavra mãe. Segundo Tubert (1996)295 “a equação mulher = mãe não responde a nenhuma essência, mas, longe disso, é uma representação – ou conjunto de representações – produzida pela cultura” (p. 7). Além das questões acima expostas gostaria de chamar atenção para o silenciamento sobre temas como aborto296, casais e relações homossexuais e pais e mães que não têm acesso a serviços médicos. Como foi possível verificar nos diferentes manuais analisados e nas duas edições de A Vida do Bebê, a mãe é responsabilizada por grande parte dos problemas de saúde e da educação das suas filhas e dos seus filhos, desconsiderando a realidade que vive essa mãe e a rede de proteção social a que ela tem acesso, além de outras dimensões e peculiaridades que podem intervir. Com a análise aqui esboçada procurei questionar verdades arraigadas, tendo como objetivo possibilitar a emergência do novo, sem, no entanto apontar, prescrever como devem ser essas outras verdades, já que, como enfatiza como Kohan (2003, p. 250) “ninguém está habilitado a pensar por ninguém”. Essa nova forma de pensar a pesquisa em Educação e a própria educação possibilita a “afirmação de uma política que se recusa a aceitar o que é, mas não postula um dever ser. Uma política que assevera o valor de manter aberto o sentido das transformações” (ibidem, p. 250). 294 Também é interessante relembrar que na edição de 1963 não há imagens de mães e pais, só bebês e uma enfermeira. Já na edição de 2002 há muitas imagens de mães amamentando, além de uma avó e um pai, conforme consta em anexo. 295 As traduções dessa autora são de minha responsabilidade e revisadas pela orientadora. 296 Com exceção dos casos em que o feto possui doença grave, como já descrito anteriormente. 190 Além disso, chamo a atenção para o fato de que, ao longo das edições, pode-se perceber o crescimento do investimento na paternidade, talvez no intuito de fazer com que os pais se envolvam mais com os filhos e as filhas, numa tendência que vem crescendo. Reitero, ao final desse trabalho, que os conceitos de masculinidade, feminilidade, paternidade e maternidade são construtos sociais e históricos, devendo ser colocados sob o caráter da provisoriedade e da contingência [o que] pode significar a alteração de algumas crenças do projeto de construção da sociedade moderna, dos processos que constituem desigualdades e hierarquias em relação a gênero – isto é, de modelos sociais que em diferentes momentos e circunstâncias investem nas mulheres a partir de uma suposta essência universal e biológica que as posiciona como provedoras, protetoras, cuidadoras e educadoras „naturais‟ das crianças (KLEIN, 2003, p. 15). Outro elemento que pode ser citado como relevante para essa análise foi a representação da infância - proposta pela publicação - como uma fase do desenvolvimento humano que remete à brincadeira, ao ser saudável e feliz, sendo que as crianças “utilizadas” para a construção dessa representação são, na maioria dos casos, brancas 297. Assim, talvez a melhor definição da forma como a infância é representada na publicação ora analisada seja a proposta por Sampaio (2000), embora, no caso de sua pesquisa, o foco tenha sido a propaganda. Sobre essa criança representada, a autora afirma que, além das roupas bonitas e brinquedos, ela tem, muitas vezes, o seu próprio quarto, o direito a uma boa alimentação, à escola, ao lazer. Ela também é perfeita do ponto de vista de seu desenvolvimento físico e intelectual e vive com uma família que a ama, cercando-a de cuidados e proteção [...] tal imagem deixa transparecer de imediato duas tendências marcantes da comunicação de propaganda: 1) a promoção de imagens e situações positivas, frequentemente, idealizadas ao nível de gênero; 2) a reprodução de estereótipos (padrões de beleza e preconceitos) socialmente estabelecidos (p. 258). Embora na edição de 2002 de A Vida do Bebê a noção de hábito não tenha tanta força na argumentação sobre a educação da criança como na edição de 1963, a disciplina continua sendo central desde o primeiro dia de vida do bebê. Para Locke - filósofo que, de certa forma, inspira De Lamare - “a educação intelectual é, pois, a formação de hábitos de pensar pelo exercício e pela disciplina” (1999, p. 151). Para esse filósofo, a diferença entre os homens é dada pela educação que receberam do pai e da mãe; por isso, governar a conduta de mães e pais torna-se tão importante para o pediatra. 297 Ao longo de todo o manual de 2002 só foram encontradas duas imagens do mesmo menino negro. 191 Já quanto à última estratégia citada – a referência ao desenvolvimento infantil – vê-se que ao longo das edições continua sendo ele organizado em sequências temporais, com complexidade crescente, dividido em níveis a serem verificados por uma prova, promovendose a concepção de desenvolvimento progressivo. Os discursos utilizados como suporte para tais provas - da psicologia do desenvolvimento e da psicologia evolutiva, por exemplo acabam por controlar e colonizar os processos de formação das subjetividades, no caso, infantis. Após relembrar os principais aspectos desenvolvidos ao longo dessa Tese, gostaria de retomar um dos questionamentos feito pela banca de qualificação no momento do Projeto de Tese. Estes versavam sobre qual seria o “segredo de sucesso” de A Vida do Bebê. Várias hipóteses foram levantadas durante a escrita desse trabalho; ou seja, o que teria tornado este manual tão famoso e não tantos outros publicados no mesmo período, “[...] o que ele oferece de diferente, o que o torna mais atraente do que os outros: a quantidade de informações? A maneira de se dirigir às mães? A forma de descrever o bebê? O teor das orientações? Será que este manual, por alguma razão, parece mais „confiável‟ do que os outros? Ou parecerá mais „indulgente‟ com as mães? Terá sido, por alguma razão, mais acessível?” (LIMA, 2007, p. 2). Inicialmente, responderia sim às perguntas citadas anteriormente. Não obstante, acredito que várias outras condições de possibilidade fizeram com que A Vida do Bebê fosse considerado a “bíblia” das mães. Primeiramente, poderia citar a didaticidade do manual – a organização do livro por faixas etárias - que facilita a leitura das mães e permite acompanhar o desenvolvimento do bebê mês a mês (tal disposição não era utilizada nos demais manuais), além da forma carinhosa como o autor se dirigia às mães, o que, com certeza, facilitava a adesão materna aos ensinamentos do especialista. É necessário chamar a atenção para a incorporação dos discursos da psicologia (em suas diferentes vertentes) no manual, fato que também o diferencia dos outros livros escritos para mães e pela forma interessante como articula (e concilia) religião e ciência. E, finalmente, destacaria outros dois importantes fatores: sua publicação pela editora Bloch, o que permitiu uma grande divulgação do livro nas suas revistas (como, por exemplo, Manchete e Pais & Filhos) e em livrarias por todo país; e o envolvimento político de De Lamare em diferentes governos, como de Getúlio Vargas e dos militares pós-64, que lhe deu grande legitimidade no campo. Dessa forma, reafirmo a dimensão pedagógica do manual ao ensinar mães e pais como cuidarem e educarem seus bebês, ao mesmo tempo que atendia aos anseios maternos nas horas de aflição; ensinamentos estes que passaram de geração para geração em muitas famílias, através da doação do manual às novas grávidas. 192 Compreendo que o trabalho aqui empreendido poderia ser multiplicado em diversas outras temáticas e olhares, uma vez que os manuais sobre a infância são “poderosos” instituidores/constituidores de formas de ser criança, de ser mãe, de ser pai, de ser mulher, de ser homem, pelas formas sedutoras com que subjetivam pais e mães através de um discurso científico/especializado sobre a temática da infância. Por fim, após mais de quatro anos de estudo, concluo essa parte da pesquisa sabendo que outras possibilidades poderiam ter sido traçadas, a partir de buscas em outros espaços, como, por exemplo, bibliotecas e associações médicas em outras cidades e Estados, mas a condição de professora em exercício concomitantemente ao Curso de Doutorado não me permitiu realizar. Acredito, conforme nos lembra Meyer (1999, p. 227), na “provisoriedade dos nossos projetos de vida e de trabalho” e termino esse texto, mas não o estudo dessa temática, uma vez que pretendo analisar os demais livros do autor e entrevistar as “mães De Lamare” em futuras pesquisas, buscando através de algumas perguntas levantadas ao longo desse estudo encontrar novas respostas. 193 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer:o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: editora da UFMG, 2002. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Michel Foucault e a Mona Lisa ou como escrever a história com um sorriso nos lábios. 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