PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL/UCS Área de concentração: Leitura e Linguagens MARTHA COSTA GUTERRES PAZ A PAISAGEM SONORA EM AVALOVARA, DE OSMAN LINS PORTO ALEGRE 2015 MARTHA COSTA GUTERRES PAZ A PAISAGEM SONORA EM AVALOVARA, DE OSMAN LINS Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Letras – PPGL, Associação AMPLA UCS/UniRitter, para a obtenção do título de Doutor. Orientador: Prof.ª Dr.ª Leny da Silva Gomes PORTO ALEGRE 2015 UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Reitor: Evaldo Antonio Kuiava Vice-Reitor: Odacir Deonisio Graciolli CENTRO UNIVERSITÁRIO RITTER DOS REIS/UNIRITTER Reitor: Telmo Rudi Frantz Chanceler : Flávio D’Almeida Reis PROGRAMA DE DOUTORADO EM LETRAS (PDLET UCS/UNIRITTER) Coordenação: João Claudio Arendt (UCS) Coordenação: Rejane Pivetta de Oliveira (UniRitter) P348p Paz, Martha Costa Guterres. A paisagem sonora em Avalovara, de Osman Lins / Martha Costa Guterres Paz – 2015 245 f. Tese (Doutorado) - Universidade de Caxias do Sul; Centro Universitário Ritter dos Reis, Programa de Doutorado em Letras (PDLET UCS/UniRitter), 2015. Orientadora: Leny da Silva Gomes. Osman Lins. Avalovara. Linguagem musical. Paisagem sonora 1. Osman Lins. 2. Avalovara. 3. Linguagem Musical. 4. Paisagem Sonora. I. Título CDU 78:869.0(81) Catalogação na publicaçãoo: Bruna Dalmaso Junqueira – CRB10/2103 Programa de Doutorado em Letras (PDLet UCS/UniRitter) Avenida Manoel Elias, 2001 Campus FAPA Bairro Passo das Pedras Porto Alegre-RS CEP: 91240 261 Tel: (51) 3230 3333 MARTHA COSTA GUTERRES PAZ A PAISAGEM SONORA EM AVALOVARA, DE OSMAN LINS Tese defendida e aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras pela banca examinadora constituída por: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Centro Universitário Ritter dos Reis Porto Alegre 2015 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à Dr.ª Leny da Silva Gomes, minha professora e orientadora no Mestrado e no Doutorado, por sua cumplicidade e responsabilidade direta na construção desta Tese. AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos: - à Banca Examinadora constituída pelos professores Dr.ª Cecil Jeanine Alberto Zinani (UCS), Dr. Michel Peterson (McGill University, Canadá), Dr.ª Regina Zilberman (UFRGS/UniRitter) e Dr. Reginaldo Gil Braga (UFRGS); - à banca de qualificação constituída pelos professores Dr.ª Regina Zilberman (UFRGS/UniRitter), Dr.ª Beatriz Weigert (ÉVORA) e Dr. João Cláudio Arendt (UCS); - às professoras Dr.a Maria do Carmo Campos e Dr.a Gláucia Regina Raposa de Souza que, quando participaram da minha banca de mestrado, incentivaram-me a continuar os estudos de doutorado e compartilharam comigo suas experiências no campo da cultura literária; - aos professores do programa da Pós-graduação em Letras UCS/UniRitter, que me apresentaram, com tanta competência, um mundo de novos saberes; - à Ângela Lins, filha do escritor Osman Lins, pelo seu apoio, pela sua disponibilidade e pela sua amizade; - ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP); em especial, à Elisabete Marin Ribas por disponibilizar o arquivo de Osman Lins e enviar-me material on-line para a minha pesquisa; - ao amigo osmaniano Éder Rodrigues Pereira, que me disponibilizou sua dissertação e sua tese, além de enviar-me e-mails que colaboraram com a minha pesquisa; - aos colegas estudiosos da obra de Osman Lins, que sempre me incentivaram em minhas pesquisas: Dr.ª Ana Luiza Andrade, Dr.ª Darcy Attanasio, Dr.ª Elizabeth Hazin, Dr.ª Odalice de Castro e Silva e Dr.ª Sandra Nitrini; - aos colegas do grupo de estudos e pesquisa "Ecocrítica: movimentos de leituras da obra de Osman Lins": Osmando de Jesus Brasileiro, Roberto Medina e Margot Caruccio; - ao funcionário da Rádio da UFRGS, Juliano Dupont, e à organista brasileira Anne Schneider, cuja disponibilidade e ajuda contribuíram, em muito, para o meu trabalho; - ao Colégio de Aplicação/UFRGS, por ter-me concedido licença para estudos de doutorado; - ao meu esposo, Agis, por ser o que ele é e pelo incentivo aos meus estudos; - ao meu pai (in memoriam) e à minha mãe, pela dignidade com que embalaram a nossa vida familiar, introjetando em mim a capacidade de enfrentar obstáculos; à Dr.ª Leny da Silva Gomes pelo incentivo, orientação e por acreditar na realização deste trabalho; - a todos que de alguma forma ajudaram-me e que, por ventura, não tenham sido mencionados. EPÍGRAFE Existe um tempo para todas as coisas. Há um tempo para a luz e um tempo para a escuridão, um tempo para a atividade e um tempo para o repouso, um tempo para o som e um tempo para a ausência de som. É aqui que a paisagem sonora natural proporciona um indício porque, se pudéssemos registrar todos os períodos de descanso e atividade entre os sons naturais, observaríamos séries infinitamente complexas de oscilação à medida que cada atividade aumenta e diminui, do esforço ao cochilo, da vida à morte. Raymond Murray Schafer RESUMO Uma incursão pelo romance Avalovara, de Osman Lins, abre possibilidades para a descoberta de um universo acústico repleto de simbolismos, permeando as cenas da narrativa. O presente trabalho fundamenta-se nas pesquisas do compositor e educador canadense Raymond Murray Schafer sobre a paisagem sonora mundial. Propõe-se a investigar a relação entre a obra literária Avalovara e a linguagem sonora a partir das expressões acústicas do romance, identificando os possíveis significados de tais conexões. Fez-se necessária a transposição para o mundo ficcional de Avalovara da metodologia de análise e classificação dos sons utilizada por Schafer, tendo sido elaborada uma tabela de categorização contendo os cenários mais significativos com as sonoridades identificadas em cada um deles. Uma passagem pelos caminhos da ecocrítica e da ecologia sonora possibilitam, com base na visão de Schafer sobre ruído associada a diversas expressões de sons estridentes presentes na narrativa, vislumbrar uma proximidade do pensamento de Osman Lins com o ideário da ecologia acústica. Sons naturais, música, ruídos e silêncio se mesclam em uma sinfonia de oposições sonoras em que o ir e o vir dá vida e ritmo à narrativa, estabelecendo uma ligação da linguagem literária com a linguagem musical. Inter-relacionam-se, também, a estrutura do romance e a organização formal de peças musicais relevantes, tais como, a cantata Catulli Carmina, de Carl Orff, e os fragmentos da introdução da Sonata em fá menor (K462) para cravo, de Scarlatti. Quatro músicas de caráter contrastante, aqui denominadas de eixos musicais, revelam o percurso dos protagonistas em suas buscas, seus anseios e suas frustrações. O pássaro Avalovara com seus cantos, gritos e movimentos em espiral, traz à tona um mundo de mistérios que permite fazer associações e interpretar os diversos simbolismos relacionados à ave guia. As palavras no corpo da remetem a um processo de iniciação para o conhecimento, quando o pássaro mítico a introduz no mundo dos sons. Alguns aspectos da filosofia tântrica são aqui abordados em razão da profunda similaridade dos processos de ascensão espiritual com a trajetória de Abel e a , em sua obstinada busca pelo conhecimento absoluto a partir do domínio dos mistérios das palavras que perpassam o corpo da mulher tríplice. O silêncio no romance é analisado sob várias perspectivas, relacionando-o com a filosofia tântrica e com as concepções de Schafer e de John Cage. O romance foi considerado como uma única paisagem sonora e seus fragmentos cênicos denominados, neste trabalho, de cenários sonoros. Palavras-chave: Osman Lins. Avalovara. Linguagem musical. Paisagem sonora. ABSTRACT A foray into romance Avalovara, Osman Lins, opens up possibilities for the discovery of an acoustic universe full of symbolism permeating the scenes of the narrative. This paper is based on the researches of the Canadian composer and educator Raymond Murray Schafer about the global soundscape. It propose to investigate the relationship between the literary work Avalovara and a sound language from the novel acustic expressions, identifying the possible meanings of such connections. Was necessary a transposition to the fictional world of Avalovara of the analysis methodology and classification of sounds used by Schafer, having been developed a categorization table containing the most significant scenarios with the sounds identified in each of them. A passage along the paths of ecocriticism and sound ecology allow, based on Schafer's view of noise associated with various expressions of strident sounds present in the narrative, to glimpse a proximity of the thought of Osman Lins with the ideas of acoustic ecology. Natural sounds, music, noise and silence blend themselves in a symphony of sound oppositions where the going and coming give life and rhythm to the narrative, connecting the literary language with the musical language. Interrelate also the structure of the novel and the formal organization of relevant musical pieces such as the Catulli Carmina cantata, of Carl Orff, and the fragments of the introduction of the Sonata in F minor (K462) for harpsichord, of Scarlatti. Four musics of contrasting character, here called of musical axis, shows the route of the protagonists in their searches, their anxieties and their frustrations. The Avalovara bird with their chants, shouts and spiral movements brings up a world of mysteries that allows associations and interpret the various symbolisms related to refer to a process of initiation into the knowledge, bird guide. The words in the body of when the mythical bird introduces her in the world of sounds. Some aspects of tantric philosophy are addressed here because of the profound similarity of spiritual ascension , in his dogged pursuit of absolute knowledge from process with the trajectory of Abel and the control of the mysteries of words that permeate the body of the triple woman. The silence in the novel is analyzed from various perspectives, relating it with the tantrik philosophy and the thought of Schafer and John Cage. The novel was regarded as a unique soundscape and its scenic fragments called, in this work, of sound scenarios. Keywords: Osman Lins. Avalovara. Musical language. Soundscape. LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Categorização de sons ......................................................................................... 62 Tabela 2 – Resumo da classificação de sons por categorias ................................................. 69 Tabela 3 – Classificação em ordem decrescente de frequência dos marcos sonoros ............ 71 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – A Máquina Chilreante de Paul Klee ..................................................................... 45 Figura 2 – Sky and Water I, de Maurits Cornelis Escher ..................................................... 46 Figura 3 – Marcos sonoros, eixos sonoros e eixos musicais ..................................................58 Figura 4 – Partitura da introdução da sonata em fá menor (K462), de Scarlatti com a identificação dos fragmentos.............................................................................. 109 Figura 5 – Primeira página da partitura manuscrita da Cantata Catulli Carmina, de Carl Orff...................................................................................................................... 110 SUMÁRIO 1 2 2.1 2.2 2.3 2.4 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 13 ECOLOGIA ACÚSTICA E ECOCRÍTICA .................................................................. 33 THE WORLD SOUDSCAPE PROJECT E SUA EVOLUÇÃO .................................................................. 33 A ECOLOGIA ACÚSTICA DE MURRAY SCHAFER EM AVALOVARA .............................................. 37 A ECOCRÍTICA COMO LEITURA LITERÁRIA .................................................................................... 39 A ECOLOGIA ACÚSTICA NA REPRESENTAÇÃO PICTÓRICA ......................................................... 43 3 3.1 3.2 3.3 3.4 CLASSIFICAÇÃO DOS SONS EM AVALOVARA ...................................................... 50 PEÇAS MUSICAIS RELEVANTES E SEUS SIGNIFICADOS ............................................................... 50 CONCEITOS ............................................................................................................................................... 51 CATEGORIZAÇÃO .................................................................................................................................... 54 INTERPRETAÇÕES E SIMBOLISMOS ................................................................................................... 73 4 4.1 4.2 4.3 4.4 AVALOVARA: UMA PAISAGEM SONORA ................................................................ 78 MARCOS SONOROS E EIXOS SONOROS ............................................................................................. 78 AVALOKITESHVARA E AVALOVARA .................................................................................................... 88 CANTO DE TRABALHO E RUÍDOS ....................................................................................................... 98 SILÊNCIO ................................................................................................................................................. 115 5 5.1 5.2 5.3 5.4 EIXOS MUSICAIS E OS INSTRUMENTOS MUSICAIS ........................................ 140 OS QUATRO EIXOS MUSICAIS COMO REPRESENTAÇÃO DE ROOS, CECÍLIA E ............. 140 O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN E A MÁQUINA CHILREADORA DE PAUL KLEE .......... 156 OS INSTRUMENTOS DE TECLADO E SEUS ASPECTOS SIMBÓLICOS ........................................ 162 O BANDOLIM E SEU SIMBOLISMO MITOLÓGICO EM AVALOVARA ........................................... 174 6 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 179 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 185 GLOSSÁRIO ........................................................................................................................ 194 APÊNDICE – Seleção de cenários sonoros para cada tipo de som .................................. 198 ANEXO I – Figura com os cakras encontrada junto aos manuscritos de Avalovara.....227 ANEXO II – Partitura do Salmo In Convertendo Dominus, de André Campra.............228 ANEXO III – Partitura da Cantata Catulli Carmina, de Carl Orff.................................242 1 13 INTRODUÇÃO O romance Avalovara1, de Osman Lins, tem sua ordem estrutural cuidadosamente elaborada a partir das palavras da frase perfeitamente simétrica do palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS criado pelo personagem Loreius, o escravo frígio que viveu em Pompeia, na Roma antiga, por volta de 200 a.C, segundo se lê no tema S: um dos oito que compõem o romance. As palavras do palíndromo são dispostas em um quadrado composto por cinco quadrados na direção horizontal e cinco na direção vertical, resultando em vinte e cinco quadrados menores, dentro dos quais repousa cada uma das letras do palíndromo. Esse, por sua vez, é absolutamente simétrico e bidirecional de forma que pode ser lido da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Isto é possível porque cada letra da primeira palavra, a partir da segunda, é a inicial das palavras seguintes. A frase carrega um significado dúplice que incorpora, simultaneamente, os aspectos profano e sagrado inerentes às tendências e aspirações da natureza humana: “o lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos”, e também, “o Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”. Esta ambiguidade vem a ser um dos elementos mais importantes da obra de Osman Lins, em que a tensão dos contrários permeia a quase totalidade da narrativa. Sobre este quadrado mágico, Lins sobrepõe uma espiral com treze voltas, cujas linhas perpassam as oito letras do palíndromo (AEONPRST) estabelecendo, assim, a sequência de capítulos do romance. O relógio construído pelo personagem músico Julius Heckethorn (J.H.) foi concebido a partir da fragmentação em treze partes da introdução da Sonata em fá menor (K 462) para cravo, de Scarlatti, cuja ordenação em três grupos promove o soar das horas cheias. Também se compõe de treze partes a cantata Catulli Carmina, de Carl Orff, as quais se agrupam em três atos e em um prelúdio que se repete na conclusão. Tais convergências numéricas com a espiral possibilitam visualizar uma analogia estrutural com a organização do romance em temas baseada nas treze voltas da espiral sobre as letras do palíndromo, além de estarem associadas a uma das personagens mais importantes da narrativa. Além dos elementos musicais, a leitura de Avalovara revela um universo de variadas sonoridades repletas de significados e de vínculos com os personagens e com as situações por eles vividas. 1 Avalovara é composto por oito temas, identificados pelas letras R, S, A, O, T, P, E e N, os quais se subdividem em partes ou capítulos numerados, de modo que A 11, por exemplo, corresponde ao décimo primeiro capítulo do tema A. As citações seguirão LINS, Osman. Avalovara. 5. ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995, com a indicação da letra do tema e do número do capítulo, seguida do número da página. 14 Em carta ao diretor da Editora Globo, questionando a recusa do parecerista à publicação, por aquela editora, do romance Avalovara, Lins destaca a organização esrutural de sua obra, com o ir e vir de capítulos que lembram temas de uma composição musical: O que, ao apressado parecerista, pareceu redundância, deve ter sido – certamente foi – a volta ritmicamente calculada de determinados motivos, que são lançados e depois desenvolvidos, como sucede numa peça musical, coisa afinal de contas normal e, por assim dizer, canônica. Além do mais, é este livro construído de modo tão preciso e calculado, que um corte, mesmo de cinco (5) linhas, é INTEIRAMENTE IMPOSSÍVEL. Não se trata, asseguro-lhe, de um livro qualquer. É um artefato delicado, minuciosamente concebido e composto ao logo de mais de três anos de trabalho diário. Os seus capítulos, todos os capítulos, são calculados mediante uma progressão aritmética inflexível. E esta progressão, esta ordem, este cálculo, de modo algum são gratuitos, a estrutura do meu livro, simbólica, pretende evocar a ordem do Universo. (LINS apud PEREIRA, 2015, p. 479). Nas afirmativas de Osman Lins, percebe-se uma sincronia entre a organização do romance e a organização matemática dos fragmentos da introdução da Sonata em fá menor para cravo (K 462), de Scarlatti, em que ambos procuram representar a ordem do universo e, ao mesmo tempo, as imponderabilidades da vida humana. A partir de uma troca de e-mails com Ângela Lins, filha do escritor Osman Lins, no dia 15/12/2013, foi abordado o envolvimento dele com os sons que ouvia e que transpunha para a escrita. Segundo relato de Ângela, o pai não gostava do latido do cachorro de um vizinho, para o qual ligava reclamando toda vez que o animal ladrava. Em outro momento, quando um vizinho começou a realizar obras no apartamento dele, sentindo-se perturbado, o escritor se mudou para a garagem do prédio levando consigo a máquina de escrever para concluir o Avalovara com mais tranquilidade. Ângela descreve sua fascinação pelos fenômenos da natureza e pelos mecanismos de relógios; numa ocasião, ficou impressionada com a reação do pai em uma visita ao Museu do Relógio, na Floresta Negra, quando ele permaneceu por um longo tempo de olhos fechados ouvindo os incontáveis tic-tacs dos relógios mecânicos como se estivesse apreciando um concerto de uma orquestra. Acredita, com convicção que, nessa ocasião, teria surgido a ideia de escrever o romance Avalovara. Gostava de escutar discos com música de câmara. Em algumas, havia um instrumento chamado de sacabuxa2, palavra que achava engraçada e com a qual brincava atribuindo as 2 De acordo com o Dicionário Grove de Música (1994, p. 811, 963) Sacabuxa (do francês, sacqueboute, e do inglês, sackbut) era o nome dado ao trombone primitivo. Surgiu pela primeira vez no séc. XV consolidando-se como instrumento das bandas municipais e das cortes a partir do séc. XVI. Foi adotado especialmente por Schutz e G. Gabrieli em suas composições religiosas. Durante o século XVII foi usado com frequência para este tipo de música, passando a fazer parte da orquestra já no final desse século. Esteve durante muito tempo associado aos mistérios religiosos ou ao sobrenatural como na cena do cemitério em Don Giovanni, de Mozart. Berlioz empregou-o para acrescentar volume e brilho à massa sonora orquestral e para a execução de temas que 15 formas mais estranhas para esse instrumento musical. Falava em tom baixo e gostava que os outros assim se expressassem. Também ouvia música com volume bastante baixo e, apesar desse hábito, segundo descreve Ângela, estava sempre aberto a todas as formas de sons assim como aos demais estímulos dos sentidos, os quais transpunha para o papel sempre que podia. Isso se revela também nas aulas complementares de História da Arte que Osman Lins ministrou aos alunos de Literatura Brasileira em Marília e que se transformaram em fonte de pesquisa da dissertação de mestrado de Elisabete Marin Ribas (2011). O gosto do autor pela música refinada de todas as épocas se faz sentir quando se ouve as suas sessões do curso sobre a história da arte, nas quais diferentes estilos de música erudita aparecem como trilhas sonoras de suas exposições de audiovisual. Este material, arquivado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), foi transcrito e analisado por Ribas (2011) e mostra a abrangência do pensamento de Lins sobre o papel da arte na história da humanidade. O curso é constituído por sessões que abordam a evolução das artes desde a Antiguidade remota, passando pela arte do Classicismo e do helenismo na Grécia antiga, pela arte de Bizâncio e românica, pela pintura românica, pelo gótico até o Renascimento italiano. Em algumas de suas aulas, a abordagem histórica de períodos antigos e a presença de músicas dissonantes e atonais, do século XX, revelam a sua atração pelo convívio das dualidades antagônicas, que não somente são expressas no conteúdo de sua criação literária mas também em outras atividades do cotidiano do escritor. Isto fica evidente na primeira apresentação sobre a arte pré-histórica, na qual são reproduzidas obras de Stockhausen, Ivan Parick e Miroslav Baslic, em que a inovação de peças de vanguarda, com suas dissonâncias e ritmos não usuais, contrasta com o extremamente antigo, provavelmente com a intenção de caracterizar o inusitado de uma arte tão distante de nossa civilização moderna, com a qual temos pouca ou nenhuma familiaridade. Na fala do então professor, no final da exposição em multimídia, quando identifica as peças musicais utilizadas, fica clara a sua intenção em explicitar tais oposições: “O fundo musical constou de três peças modernas fazendo um contraste com as épocas vistas” (LINS apud RIBAS, 2011, p. 131). As músicas utilizadas por Osman Lins nas apresentações citadas foram (LINS apud RIBAS, 2011): a) aula sobre a arte na antiguidade remota: − Ciclos, peça para um percussionista, do compositor alemão Karlhein Stockhausen, para marimba, pedaços de madeira, sinos indianos, símbalos, triângulos, vibrafone, gongo, tantã, piano, seresta, símbalos antigos, etc.; deveriam se destacar dos demais naipes de instrumentos. Tornou-se popular nas bandas do jazz e obrigatório nas bandas militares. 16 − Refrain, para três executantes de Stockhausen; − Sonata para flauta desacompanhada, do compositor tcheco Ivan Parick; − na parte final, canções para auto, flauta, celo e piano de Miroslav Basic. b) aula sobre a arte do período clássico e helenístico da Grécia antiga: − trio para piano violino e violoncelo de Jean Maria Oliveira, executado pelo trio da Universidade da Bahia (sic); − trio para piano violino e violoncelo de Linderberg Cardoso, executado pelo trio da Universidade da Bahia (sic). c) aula sobre a arte bizâncio-românica: − música litúrgica russa, com ofício da semana santa, executada pelo coro da catedral ortodoxa de Paris. d) aula sobre a arte românica: − canto gregoriano para música de Páscoa, executada pelos monges beneditinos do mosteiro de Saint Morris e da abadia de Saint Mor Clevoau. e) aula sobre a arte gótica: − música litúrgica russa, com ofício da semana santa, pelo coro da catedral ortodoxa de Paris. f) aula sobre a período renascentista: − música dos trovadores e troveiros.3 Nitrini (2011), em seu artigo A pintura na poética de Osman Lins, faz referência a esse material sonoro salientando o quanto Osman Lins se valia da pintura, da escultura, da música para relacionar a literatura com as outras artes e, desse modo, valorizar as várias possibilidades de percepção estética pelos sentidos. 3 De acordo com GROUT & PALISCA (2007), os trovadores e troveiros (descobridores e/ou inventores) surgiram por volta do décimo primeiro século na região do sul da França atualmente conhecida como Provença, quando se cultivava a langue d’oc. Eram músicos e poetas amadores que, normalmente, cantavam suas próprias canções, inicialmente inspiradas na cultura hispano-mourisca da vizinha Península Ibérica. Em sua maioria, eram provenientes da nobreza mas havia casos de artistas que conseguiam ascender socialmente em virtude de seus talentos. Posteriormente, poetas pertencentes à classe burguesa também passaram a compor música trovadoresca. Compunham canções de cunho profano e suas músicas eram usualmente acompanhadas por um ou mais instrumentos musicais medievais. Propagou-se, posteriormente, para o norte da França, onde os músicos que adotaram esse estilo, passaram a ser chamados de troveiros. Ali adotavam a langue d’oil, um dialeto das províncias de Champagne e Artésia e que foi a base para a formação da língua francesa moderna. A música dos trovadores irradiou-se por toda a Europa, principalmente pela Espanha, Portugal, Itália, Inglaterra e Alemanha até aproximadamente o século XIV, quando, no final desse, começa a ganhar força um novo movimento musical, o da música renascentista. Ainda que o trovadorismo tenha tido o seu auge no período medieval, sua influência se estendeu durante a música renascentista, principalmente na profana de cantigas e danças mais populares. Algumas dessas canções foram absorvidas pela música polifônica. 17 A visão de que a relação com a pintura e outras artes é imprescindível para a literatura se expressa ainda de modo explícito na primeira aula de um curso sobre história da arte que o professor Osman Lins ofereceu a seus alunos de Literatura Brasileira do curso de Letras do antigo Instituto Isolado do Estado de São Paulo, em Marília, nos anos de 1970.4 (NITRINI, 2011, p. 253). O próprio autor inicia sua primeira aula fazendo um comentário acerca da integração histórico-cultural entre as diferentes formas de expressão artísticas e como elas se manifestaram ao longo da história da civilização humana: Achamos que as artes se relacionam e que uma certa familiaridade com a escultura e a pintura nos oferecem mais alguns instrumentos para abordarmos com segurança maior o problema literário. A primeira coisa que nos chama a atenção, quando nos ocupamos das artes é a insistência, dizemos melhor, a persistência com que elas têm acompanhado desde a mais remota antiguidade a aventura humana. Outra que consideramos da maior importância para nossos estudos é a frequência com que os artistas, tanto os primitivos como os civilizados, tendem a modificar a natureza, a criar formas e imagens que não constituem apenas uma cópia, uma repetição das formas existentes. A arte busca sempre uma transfiguração, uma visão rebelde e se possível nova do real. (LINS apud RIBAS, 2011, p. 117). A preocupação em remeter aos estímulos dos sentidos redundou, em Avalovara, na representação de mais de um tipo de percepção sensorial. O modo como Lins se posiciona em relação à expressão literária encontra paralelo no pensamento de Schafer (2001, p. 297), ao considerar que “[...] o ser humano sensível sabe que o ambiente não é meramente o que se vê ou o que se possui. Um bom turista [da paisagem sonora] inspeciona o ambiente total, crítica e esteticamente. Ele nunca se limita a ver: ele ouve, sente cheiro, saboreia e toca”. Sobre estas múltiplas leituras é pertinente mencionar a percepção que Hermelinda Ferreira (2005) faz dos textos osmanianos: Os textos osmanianos apresentam-se ao leitor como objetos artesanais que trazem em si características: embora configurando-se como narrativas, impressionam os olhos com sua serenidade de pintura medieval, os ouvidos com os seus acordes de antiga caixinha de música e, sobretudo, as mãos, como se as asperezas e suavidades das palavras neles impressas fossem coisas palpáveis, como se os dedos pudessem correr lentamente pelas bordas da página e sentir as ranhuras de uma velha moldura, ou tocar as saliências e reentrâncias das camadas de delicadas tintas sobre a superfície de uma tela de grosseiro tecido. São como corpos artísticos, dotados de características femininas. Porque escrever, para Osman Lins, sempre foi um ato de amor. (FERREIRA, 2005, p. 14). Ficheiros de 200 MB sobre as aulas de História da Arte com música do escritor Osman Lins na Universidade de Marília, em São Paulo, na década de 1970, encontram-se no Fundo Osman Lins do IEB/USP. IEB. OL. LIT. REG: Ft2A; Ft2B; Ft3A; Ft3B; Ft4A; Ft4B. 4 18 Essas relações, acrescidas de minha experiência na atividade profissional como professora de música, servem de subsídios para esta investigação que tem como foco os sons representados no romance Avalovara, com ênfase nos aspectos musicais, visando a uma análise mais detalhada daquilo que passaremos a denominar de “paisagem sonora”, a qual se mostra indissociável dos aspectos sociopolíticos, históricos e culturais. Tal expressão foi cunhada pelo músico canadense Murray Schafer e faz referência à combinação de temporalidade acústica com a espacialidade cênica (tempo/música mais cena/espaço). No âmbito das análises dos capítulos, com ênfase na linguagem musical, é possível identificar pontos comuns entre a pesquisa de Schafer e o ornamentalismo acústico do romance Avalovara, especialmente no que concerne à simultaneidade de sons naturais e de artificiais da sociedade moderna, presentes em diferentes cenários do cotidiano da civilização pósindustrial e também nas múltiplas cenas que compõem a narrativa. As pesquisas do músico, compositor e educador Raymond Murray Schafer, estabeleceram um marco para os estudiosos da poluição acústica. Até pouco tempo atrás, o foco dos estudiosos e legisladores estava voltado para a identificação dos limites de suportabilidade do ouvido humano à crescente intensidade e variedade de sons e ruídos produzidos pela sociedade tecnológica do século XX. Schafer enveredou por um caminho diferente em seu projeto intitulado The World Soundscape Project (WSP), realizado na Simon Fraser University, no Canadá (1969). O termo por ele criado, soundscape (paisagem sonora), foi inspirado na palavra landscape, cujo significado diz respeito unicamente à paisagem visual. A partir de suas investigações, elaborou um procedimento de classificação de sons, buscando identificar todos os tipos de sonoridades percebidos pelo homem desde os tempos anteriores à revolução industrial. Pelas dificuldades inerentes à inexistência de recursos tecnológicos para registrar os sons dos ambientes antes da invenção do gravador, valeu-se – para a caracterização destes sons – de relatos em obras literárias. Seus estudos servirão de aporte teórico para a análise da paisagem sonora ao longo desta pesquisa. Apoiando-me nas definições de Schafer, passo a entender a expressão “paisagem sonora” como uma parte qualquer de um ambiente sonoro, percebida como um campo de estudos. Pode ser uma elaboração real, ficcional ou abstrata, tal como uma cena do cotidiano, uma obra literária, ou parte dela, ou uma composição musical. Assim, o conceito de paisagem sonora pode ser transposto para a narrativa de uma obra literária, a partir da qual é possível segregar todas as sonoridades que compõem a totalidade da paisagem sonora romanesca, o que requer o uso de parâmetros diferenciados para a categorização desses sons. O estabelecimento de categorias poderá, por exemplo, 19 mencionar as fontes das emissões sonoras como também referir-se aos atributos sonoros desses sons, tais como intensidade, duração, altura, timbre, características ao longo do tempo de permanência, se o detalhamento descritivo assim o permitir. A depender do plano e da circunstância em que os sons se inserem no contexto da narrativa, eles podem ser considerados como sons destacados (figura) ou como sons de preenchimento (fundo). Podem, alguns, conter significados diferenciados em relação aos demais, o que lhes confere um caráter profundamente simbólico, transformando-os em representativos de cenas ou de personagens importantes. Todas essas peculiaridades devem ser levadas em consideração para a montagem de um sistema de classificação que, no caso da narrativa romanesca, pode assumir feições bastante complexas, quando comparadas às pesquisas de representação da realidade. Acompanhar o desenvolvimento de uma sociedade por meio de imagens pictóricas de qualquer tipo possibilita uma análise mais rápida e facilitada dos eventos visuais que envolvem a evolução histórica desta mesma sociedade, ao contrário da análise da evolução da linguagem sonora, para a qual a ausência tecnológica de meios de registro das sonoridades do mundo impediu a formação de arquivos que permitissem a audição dos diferentes espaços sonoros ao longo do tempo. Antes da invenção do gravador, a linguagem sonora representada verbalmente em obras literárias dava uma ideia do universo sonoro gerado em cada comunidade ao redor do mundo. A notação musical atualmente utilizada foi criada pelo monge italiano Guido d’Arezzo, por volta do ano 1000. Assim, possibilitou-se o registro em partituras do acervo sonoro musical a partir da Idade Média, tornando-se uma exceção à falta de arquivos sonoros que documentassem a história da evolução dos sons. Qualquer investigador da paisagem sonora mundial se beneficiaria com o conhecimento da história da música. Ela nos equipa com um grande repertório de sons – de fato, o maior repertório de sons do passado (não se excluindo os sons da fala e da literatura – que são menos fidedignos em razão dos caprichos da ortografia e das mudanças fonéticas na linguagem). O estudo de estilos musicais contrastantes poderia ajudar a indicar como, em diferentes períodos ou diferentes cultura musicais, as pessoas realmente ouviam de modo diferente. Pois a experiência da música nos mostra que diferentes procedimentos ou parâmetros parecem caracterizar cada época ou escola; assim, a música, se árabe, sobressai pelo ritmo e melodia, enquanto a da Europa ocidental – pelo menos nos últimos 350 anos – tem enfatizado a harmonia e a dinâmica. Ter um bom ouvido, ter musicalidade em qualquer cultura significa, então, ter proficiência em áreas seletas, e os exercícios de treinamento auditivo de qualquer cultura musical determinam o que elas serão. (SCHAFER, 2001, p. 218219). 20 O interesse pela pesquisa sobre o tema A Paisagem Sonora em Avalovara surgiu da leitura musical de Avalovara, realizada para a minha dissertação de mestrado. Surpreendeume, na época, a riqueza de sons que fazem parte da narrativa o que me fez constar, em nota de rodapé uma observação sobre a ambientação sonora, pois meu enfoque era outro. A minha incursão no mundo da música em Avalovara justifica-se não somente pela abundância de referências sonoras e musicais ao longo do romance, mas também, e principalmente, pelo profundo simbolismo que tais expressões acústicas têm no enredo e na organização estrutural da obra. Alguns princípios de construção do romance ficam claros quando se leem os ensaios e entrevistas de Osman Lins. O autor instiga seus leitores a empreenderem uma investigação profunda de todas as implicações inerentes à sua criação ficcional, e a música é uma das partes importantes deste intrincado jogo de representações literárias. Na dissertação do mestrado, optei por chamar de ambientação sonora algumas passagens, para não entrar no tema de paisagem sonora, já que era tão abrangente e envolveria uma pesquisa meticulosa. Ao ler o artigo de Ermelinda Ferreira (2010), Ecologia acústica e ecologia literária, notei que alguns tópicos por ela abordados iam ao encontro das ideias manifestadas na minha dissertação. O artigo motivou a ampliação dos estudos e a busca por escritores mencionados em seu referencial, principalmente aqueles voltados para a ecocrítica, como Greg Garrard e Cherull Glotfelty. Da mesma forma que na linguagem cinematográfica, a linguagem sonora desempenha um papel fundamental para dar vida à sucessão de cenas; com isto, criar uma conexão emocional com o público. A música, na narrativa literária, serve como trilha sonora para construir a identidade psicológica dos personagens e a identidade temática do enredo ficcional. Em Avalovara, a música assume um papel funcional ao estabelecer-se como elo entre o desenrolar da trama e a estrutura da obra, e de elemento simbólico revelador de significados não mostrados diretamente ao leitor. Devido à minha formação em bacharelado em piano e licenciatura em música, a leitura desse romance propiciou a compreensão de seu conteúdo com um olhar musical, para trazer à tona a intensa simbiose entre narrativa literária e paisagem sonora. Em minha função de professora de música, tive um primeiro contato com a obra de R. Murray Schafer em 1992, quando ele veio lançar, em Porto Alegre, o livro O Ouvido Pensante e ministrou oficinas para os professores de música interessados no assunto. Desde então, realizo, com os meus alunos, a prática de observação, pesquisa, composição e construção de instrumentos musicais com materiais de sucata. Favoreceu-me a localização do local de minhas atividades profissionais que, até 1995, era junto ao Parque Farroupilha, no 21 Campus Central da UFRGS, tendo mudado, em 1996, para o Campus Agronomia da UFRGS, próximo ao Morro Santana. Em decorrência de todas as experiências mencionadas, foi elaborada a ideia central para este trabalho com foco na investigação das diferentes representações de sonoridades associadas aos cenários construídos na narrativa, a partir dos conceitos e das pesquisas envolvendo a paisagem sonora, de Murray Schafer. Como um dos objetivos mais relevantes, propõe-se a verificar de que forma as expressões acústicas, contendo manifestações musicais, sons da natureza e ruídos artificiais da sociedade tecnológica, desvelam as relações entre a obra literária Avalovara e a linguagem sonora, bem como o significado de tais conexões. A categorização dos sons que permeiam o romance permitiu visualizar, de forma mais clara, os seus significados e estabelecer relações com os personagens e com as suas trajetórias. Em alguns trechos da narrativa, a conjugação entre som e silêncio, seja de forma simultânea seja de forma sequencial, sublinha aspectos emocionais da evolução da vida desses mesmos personagens. Em outros momentos, o silêncio aparece como cortina de fundo para as expressões sonoras individualizadas. São de particular importância os sons anunciadores dos momentos cruciais do romance em algumas cenas em que as descrições de ruídos no nível de linguagem verbal se revestem de sonoridades reforçadoras do significado da trama. Este trabalho aborda também as possíveis sonoridades imaginadas pelo leitor ao se defrontar com descrições minuciosas associadas à natureza e seus movimentos. A pesquisa aqui desenvolvida teve, como ponto de partida, o universo sonoro que permeia o romance, sendo constituído pela variedade de sons naturais oriundos da geografia, do clima e de animais; de sons humanos percebidos internamente ou projetados externamente; de sons gerados nos agrupamentos sociais com seus sons mais representativos; de trechos de música executados por instrumentos convencionais ou reproduzidos pelos meios eletrônicos do século XX; de ruídos artificiais oriundos da sociedade industrializada; de sons mitológicos e do silêncio. As reflexões e interpretações, constantes neste trabalho, fundamentaram-se nas conceituações sobre paisagem sonora; em alguns aspectos, nos textos consagrados sobre ecocrítica. Faz parte do percurso metodológico: a construção do referencial teórico a leitura da obra ficcional de Osman Lins, a leitura da produção ensaística de Osman Lins, as discussões sobre a obra de Osman Lins por meio da participação no grupo de estudos e de pesquisa “Ecocrítica: movimentos de leituras da obra de Osman Lins”. 22 A partir da classificação de Schafer para os diferentes sons da paisagem sonora mundial, foi feita uma adaptação para a categorização dos sons do romance Avalovara, tendo em vista a necessidade de focar o universo sonoro contido no âmbito da narrativa romanesca. Um aspecto importante da pesquisa de Schafer que tem relação direta com a exigência crescente de uma maior privacidade sonora é o que ele chamou de espaço acústico, que pode ser entendido como um volume imaginário dentro do qual um objeto sonoro pode ser ouvido até o limite da superfície também imaginária desse volume. As dimensões de um espaço acústico podem variar de acordo com a quantidade, o volume e as características dos sons e dos ruídos dentro dele produzidos. A superposição de espaços acústicos pode alterar as dimensões dos volumes de audibilidade. A redução do espaço acústico ficcional ocorre em um trecho de Avalovara (A8), em que Abel, para poder ouvir a sua própria voz em meio aos ruídos da rua em Chambord, desfere um grito com o nome de Roos. Deve-se distinguir “espaço acústico” de “paisagem sonora”: enquanto o primeiro refere-se ao alcance audível de um som, a segunda é delimitada para fins de análise de um conjunto de sonoridades de um determinado ambiente. Cada som tem seu próprio espaço acústico, e uma paisagem sonora pode ter uma infinidade de sons; portanto, de espaços acústicos, que podem se interpenetrar e também ultrapassar os limites para ela estabelecidos arbitrariamente. No contexto narrativo, o autor estabelece o perfil de sua paisagem sonora pelo detalhamento de suas descrições e pelo alcance que ele mesmo confere aos sons criados no espaço romanesco. Schafer afirma que caracterizar com plenitude todos os sons audíveis de uma paisagem sonora requer habilidade e paciência, sendo necessária a realização de milhares de medições e de gravações pormenorizadas, associadas a uma nova maneira de descrição e de classificação. Somam-se a isto as dificuldades inerentes à ausência de um histórico de sons que permita conhecer, com maior precisão, a evolução das paisagens sonoras desde o período que antecedeu à revolução industrial até os dias atuais. Algumas considerações adicionais se fazem necessárias para uma compreensão mais precisa sobre o tema central deste trabalho; portanto, apoiando-me na pesquisa de Schafer, passo a entender objeto sonoro como o menor elemento possível de ser identificado em uma paisagem sonora. Objeto sonoro é um som que pode ser individualizado e cujas características horizontais de invólucro (ataque, corpo e queda) e verticais (altura, intensidade e timbre) são possíveis de serem analisadas em laboratório. Como tal, não é relevante a fonte que o origina, pois esta pode gerar inúmeros objetos sonoros, mesmo que os sons produzidos possam parecer iguais ou semelhantes ao ouvido humano. Já um evento sonoro, apesar de também ser 23 a menor partícula possível de ser segregada em uma paisagem sonora, designa sons individuais levando-se em conta seus significados simbólicos e seus aspectos associativos. Essa caracterização somente pode ser atribuída aos sons quando são consideradas as fontes que os originam e a inserção destas na cultura e no ambiente natural de determinada comunidade. Da mesma forma que, na paisagem visual, é possível separar figura de fundo, no campo dos estudos de eventos sonoros podem ser identificados três grupos de sons: fundamentais, sinais e marcos sonoros. Sons fundamentais referem-se àqueles ouvidos continuamente por uma comunidade e que se transformam em um fundo sobre o qual os sons denominados de “sinais” são ouvidos conscientemente; portanto, claramente identificados. Marcos sonoros ou símbolos são sons com um significado muito especial para uma comunidade, para uma região, para um país. Fazem emergir na psique da coletividade sentimentos ligados à história ou à cultura daquele local. Como exemplos de marcos sonoros pode-se citar o sino de uma igreja, o som de um tipo especial de sirene ou o soar das horas do Big Ben de Londres. O som de um sino pode ser levado para estudos em um laboratório de acústica o que o tornaria um objeto sonoro. Para ser classificado como evento sonoro, ele deve ser analisado sob o aspecto subjetivo de seu significado para as pessoas da comunidade em que se localiza. Adicionalmente os sons podem ser classificados de acordo com suas qualidades estéticas, o que depende das impressões psicológicas e da sensibilidade que o observador terá ao ouvir um som real. No mundo ficcional, a esteticidade dos sons tem valores e gradações diversas que dependem das nuanças da narrativa. Os sons presentes na paisagem sonora de Avalovara serão analisados como eventos sonoros, identificando seus aspectos referenciais, tendo em vista a impossibilidade de caracterizar, no âmbito da narrativa, as propriedades físicas dos sons. O projeto de Schafer sobre paisagem sonora abrange uma investigação da evolução histórica dos sons reais do planeta, com ênfase no advento da revolução industrial e em toda a poluição sonora advinda do processo de evolução tecnológica de nossa sociedade. As análises apresentadas neste trabalho contemplam a representação verbal das sonoridades e do silêncio no mundo ficcional romanesco de Osman Lins. É muito difícil definir o significado de silêncio, haja vista a sua inexistência no mundo real. Em qualquer lugar deste planeta sempre haverá sons, mesmo nos lugares mais inóspitos. Nos desertos ouviremos os sons do vento movimentando as areias; nos campos nevados, ouviremos o estalar do gelo e os sons de pássaros. Se conseguirmos nos abstrair das 24 percepções sonoras externas pela audição, ouviremos nossos sons internos oriundos do sistema nervoso, da pulsação e da respiração ou então presentes em nossa memória, em nossa imaginação ou em nossas experiências místicas. Seria mais apropriado falar em ambientes ou paisagens silenciosas, em que a ausência de sons artificiais, ou mesmo a sua presença quase imperceptível, associada à manifestação de sons da natureza, tornaria mais próxima a percepção de silêncio. Cabe lembrar que a ideia de som sob o aspecto da transmissão de energia vibratória de átomos ou moléculas existe somente na esfera da percepção sensorial codificada, psiquicamente, a partir dessas vibrações que nos rodeiam e que nos atingem a todo o instante. Assim, considerando que tais ondas físicas resultam da energia cinética originada de um vai e vem de moléculas ou átomos que se deslocam no tempo e no espaço, o som existiria independentemente da presença do ser humano, que simplesmente as recepcionam e as interpretam no mundo subjetivo de suas telas mentais associadas à consciência existencial. No entanto, para percebê-las, suas portas sensoriais e seus centros cerebrais específicos para esta finalidade necessitam estar aptos para esse processo. Ou seja, os conceitos aqui expostos segundo a pesquisa de Schafer estão associados aos aspectos receptivo e sensorial do indivíduo, de modo que a surdez manifestada por defeitos nos órgãos auditivos ou por defeitos de ordem neurológica pode resultar em uma barreira instransponível para a percepção auditiva. Portanto, afora as percepções internas associadas a processos de imaginação, de memória e de experiências psíquicas, ao se falar em sons e na recepção destes pelo ouvido humano, está se levando em conta uma média de alcance de percepção sonora de indivíduos com ouvidos e cérebros saudáveis. Já sob a perspectiva da narrativa ficcional, os sons representados ao longo da paisagem sonora têm que passar pelo imaginário dos leitores que os codificam em suas mentes e os “ouvem” em suas construções imagéticas comparando com os sons identificados a partir do sentido da audição A classificação de Schafer (2001) utilizada em seu projeto enfatiza os sons naturais, humanos, sons e sociedade, mecânicos, quietude e silêncio e sons indicadores. Menciona que outras categorias podem ser consideradas, a depender da abrangência da pesquisa a ser feita, tais como sons mitológicos, das utopias, psicogênicos das alucinações e dos sonhos, últimos sons ouvidos antes de dormir, primeiros sons ouvidos ao despertar e experiências acústicas que se ligam a outros sentidos (sinestesia). Com o objetivo de catalogar os sons de Avalovara, partiu-se da organização orientada por Schafer; entretanto, levando em consideração as sonoridades efetivamente criadas por Osman Lins ao longo de seu romance. 25 Cabe ressaltar que o estudo de paisagens em narrativas literárias não é uma abordagem comumente encontrada em pesquisas como a que está aqui sendo desenvolvida, razão pela qual se fez necessária a leitura de trabalhos de Murray Schafer, de John Cage, Ermelinda Ferreira, Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, Arnoldo Guimarães de Almeida Neto, James Seay Dean e de registro de entrevista com Barry Truax, autores estes que abordam aspectos musicais relevantes relacionados a paisagens sonoras e que foram utilizados como sustentação para o desenvolvimento desta tese. Os livros O Ouvido Pensante (1991) e A Afinação do Mundo (2001) de Raymond Murray Schafer se constituem nos referenciais teóricos mais relevantes para a elaboração desta pesquisa. O Ouvido Pensante é um relato das atividades práticas do autor; propõe um trabalho multidisciplinar, visando a preparar o aluno para ouvir – com mais cuidado – os sons que o cercam. Parte da realização de vivências que levem à reflexão e à formulação de conceitos básicos sobre o significado de música, ruído, silêncio, som, timbre, ritmo, melodia, entre outros. O livro contém seis capítulos práticos e teóricos, os quais abordam diferentes atividades envolvendo uma constante troca professor/aluno: o compositor em sala de aula; limpeza de ouvidos; a nova paisagem sonora; quando as palavras cantam; o rinoceronte em sala de aula; além da música. Explora a sensibilidade e a percepção do aluno para que ele desenvolva a capacidade de ouvir os próprios sons e os do ambiente, e desenvolva também a capacidade de criar sons, levando-o a fazer música. Relata, também, sua atuação como músico e professor de música. A Afinação do Mundo é um livro que reúne as pesquisas de Murray Schafer sobre a Ecologia Acústica. Trata da evolução dos sons de nosso planeta, desde os puros – da natureza – alguns em extinção, até os sons e ruídos da nossa sociedade industrializada, que compõem infindáveis paisagens sonoras onde, em muitas delas, as sonoridades naturais e artificiais se mesclam em um universo acústico, podendo, em muitos casos, conter sons indesejáveis e prejudiciais para o homem e para a vida do planeta. Descreve a sequência histórica da evolução sonora de diferentes sociedades, desde a identidade cultural com os sons da natureza, passando pelos sinos medievais e pelos primeiros sons produzidos pelas ruidosas máquinas construídas para os sistemas de produção capitalistas, até chegar nas invenções tecnológicas da década de 1970. No mundo real, a evolução da sociedade tem-se caracterizado pela crescente complexidade das organizações sociais com inúmeras modificações no universo sonoro que se apresenta como um importante identificador de suas feições culturais e de seus estágios de 26 desenvolvimento, tanto na esfera humanística, quanto na do desenvolvimento das técnicas de produção. Com a revolução industrial e o advento das máquinas, surgem ruídos contínuos, a maior parte de baixa frequência, muitos de grande intensidade e que passam a ser um dos principais causadores de surdez entre os operários das novas unidades fabris que começam a povoar os países desenvolvidos. Segundo Schafer (2001), com a revolução industrial, no final do século XVIII e início do século XIX na Inglaterra, a máquina a vapor e os teares tornam-se os pilares de uma nova era da humanidade, tendo como sustentáculo a ciência, as invenções e o desenvolvimento da tecnologia de produção em série. A perda da capacidade de ouvir e de discriminar os diferentes tipos de sons da natureza deveu-se ao surgimento de uma gama de sons contínuos que trouxeram a homogeneidade sonora dos ambientes em que vivemos, tanto na cidade como no campo. O surgimento de novos sons estranhos à natureza do ser humano e o aumento de suas intensidades tiveram origem na industrialização das sociedades modernas. As principais mudanças tecnológicas que afetaram a paisagem sonora incluíam o uso de novos metais, como o ferro e o estanho fundidos, bem como novas fontes de energia, como o carvão e o vapor. (SCHAFER, 2001, p. 107). O aumento da intensidade da potência do som é característica mais marcante da paisagem sonora industrializada. A indústria precisa crescer: portanto, seus sons precisam crescer com ela. Esse é o tema estabelecido nos últimos 200 anos. (Ibidem, p. 115). Schafer tem sido um defensor da natureza e da manutenção de sua pureza original o que se reflete nas temáticas de suas composições, nos instrumentos utilizados e nos métodos de apresentação e de divulgação de suas obras. Pode-se afirmar que ele já se inseria em um movimento formalmente não declarado e em vertiginosa expansão envolvendo artistas e escritores comprometidos com a ecologia e que, no caso da literatura, evoluiu para a vertente atualmente conhecida como ecocrítica. Tanto é que, mesmo antes da consolidação deste pensamento, ele já definia o conceito de ecologia acústica. A esse respeito, vale ressaltar a influência de Paul Klee, um simpatizante da natureza e de sua integridade, nas obras de Murray Schafer, “[...] tanto em seu conceito de design da “paisagem sonora” e de “jardins de sons” quanto em muitas de suas composições.” (FONTERRADA, 2004, p. 35). Schafer questiona os conceitos tradicionais sobre música, vindo a ser um compositor experimentalista e participante de uma vanguarda artística defensora da confluência das artes. Vislumbra, nas representações artísticas, uma manifestação do sagrado e da ancestralidade e insiste na necessidade de educar o ouvido para os sons que nos cercam, de modo a tornar-nos 27 agentes de transformação do ambiente sonoro em que vivemos. Em suas pesquisas, elaborou um detalhado sistema de classificação de sons, parte do qual veio a ser utilizado no desenvolvimento desta pesquisa. Também o conceito de paisagem sonora foi a base para as análises dos sons que envolvem os personagens nos diferentes cenários do romance Avalovara. Schafer enfatiza o silêncio como meio de percepção dos sons mais refinados da natureza. Também aborda a importância de silenciar os sentidos para ouvir os sons do universo e de seu sublime silêncio não perceptíveis pelo ouvidos normais. Converge com o pensamento de Cage sobre a importância do silêncio para poder ouvir os sons ambientes e, com isto, integrar-se com a natureza. O livro Silence, de John Cage (1973), constitui-se em uma coletânea de artigos com suas reflexões sobre som, música, composição e a sua percepção sobre o significado do silêncio. Cage expõe o seu pensamento sobre som e composição musical, reafirmando a importância de pensar no som como ente independente de qualquer subjetividade do compositor e dos sistemas musicais tradicionais. Ressalta o valor do ruído como matéria prima essencial para o método compositivo sugerindo um novo termo, “organização musical”, em substituição ao termo “música”. Considera-se um experimentalista e em vários momentos cita o Zen Budismo e o Dadaísmo como fontes de inspiração para suas elaborações musicais. A partir da experiência com a câmara anecóica, na universidade de Harvard, afirma, categoricamente, que o silêncio absoluto não pode existir em lugar algum, mas que o vazio de sons na música possibilitaria a percepção dos sons do ambiente, promovendo uma integração do homem com a natureza. Compara o silêncio às telas brancas de Robert Rauschenberg que teriam naquela cor a mistura de todas as frequências visíveis, da mesma forma que o silêncio seria constituído por todas as frequências sonoras audíveis. Quer dizer, com isto, que simbolicamente o silêncio contém o todo, sendo que ele seria a fonte da unidade. Esse pensamento deriva de suas associações com a filosofia Zen, que considera o silêncio e a meditação no nada a ponte para se atingir o Nirvana. O artigo de Ermelinda Ferreira (2010), Ecologia acústica e ecologia literária: as propostas de R. Murray Schafer e Osman Lins, faz considerações sobre a ecocrítica relacionando-a com a paisagem sonora e a ecologia acústica de Murray Schafer. Trata da necessidade de ampliar os conceitos de Adorno sobre música, tendo em vista as novas concepções de música de John Cage. Traz o conceito de ambientação narrativa desenvolvido por Osman Lins em sua tese de doutorado Lima Barreto e o Espaço Romanesco (1976), por meio do qual a autora faz uma análise da convivência da modernidade das cidades europeias 28 com a ancestralidade nelas presente. Para ela, o silêncio das cidades corporificadas em Roos estabelece uma barreira quase intransponível para o cortejo de Abel. As afirmativas de Ermelinda Ferreira foram relevantes para o estabelecimento de conexões mais sólidas entre as ideias de Murray Schafer sobre paisagem sonora e ecologia acústica, abrindo um leque de possibilidades para uma investigação mais minuciosa dos significados da paisagem sonora em Avalovara. A tese de doutorado de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, defendida em 1996 e lançada em livro em 2004 com o título O Lobo no Labirinto: uma incursão à obra de R. Murray Schafer, contribuiu para uma compreensão mais aprofundada das concepções teóricas e do trabalho prático do autor canadense. Fonterrada fez parte do projeto Lobo, criado por Schafer e músicos a ele ligados, o qual revive a cada verão, durante nove dias do mês de agosto, em uma floresta particular junto a um lago em Haliburton, na província de Ontário, no Canadá, a peça teatro-musical do ciclo Pátria da qual fazem parte o prólogo, The Princess of the Stars (A princesa das Estrelas) , e um epílogo, And Wolf Shall Inherit the Moon (E o Lobo Herdará a Lua). O evento se reveste de um significado mitológico que lembra os rituais totêmicos dos indígenas norte-americanos e tem o objetivo de estabelecer uma conexão simbólica entre o homem e a natureza por meio de um diálogo sonoro-musical. A divisão entre músicos e plateia desaparece para dar lugar a um processo coletivo de interação contínua entre todos os participantes em que os sons da natureza, especialmente o canto dos pássaros ao amanhecer, integram a representação musical. Fonterrada traduziu para o português os livros do músico e educador canadense, O Ouvido Pensante, em 1991, e A Afinação do Mundo, em 2001: ambos para a editora UNESP. Após uma descrição sucinta da vida e da trajetória artística de Schafer, realiza uma análise minuciosa e extensa de toda a sua obra, destacando os princípios norteadores de sua filosofia de vida, voltada para a produção de uma arte em harmonia com a natureza, com o homem e a sua ancestralidade. Os escritos de Fonterrada conduziram a um entendimento mais amplo do acervo de Schafer e possibilitaram o estabelecimento de relações entre as concepções do músico e as ideias de Osman Lins sobre o sagrado e o profano. Permitiram-me visualizar uma similaridade entre o pensamento de ambos acerca da representação da natureza através da música, da literatura e das artes cênicas. A dissertação de mestrado de Arnoldo Guimarães de Almeida Neto – Música das Formas: a melopoética no romance Avalovara, de Osman Lins (2008) – realiza uma análise intersemiótica entre literatura e música, tendo como foco o romance Avalovara, de Osman Lins. Para este propósito, três aspectos principais foram considerados: 1) a citação da cantata 29 Catulli Carmina de Carl Orff, e da Sonata em fá menor (K462) para cravo, de Domenico Scarlatti, essa referindo-se à construção do metafórico relógio do personagem músico e construtor de relógios Julius Heckethorn; 2) a comparação da trajetória do personagem Julius Heckethorn com as trajetórias do personagem Adrian Leverkühn, do romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, e do indivíduo real, o músico e compositor Anton Webern; 3) a análise da utilização do Quadrado Sator, originado do palíndromo de Loreius, para a estruturação do romance de Osman Lins e para a composição do Concerto para nove instrumentos op.24, de Anton Webern. Almeida Neto estabelece uma conexão entre os personagens e Adrian Leverkühn sob o argumento de que ambos firmaram um pacto com o demônio, no romance Avalovara representado pelo Iólipo. O rompimento deste pacto pela traição da com Abel fez com que o Iólipo cobrasse a dívida com a morte dos amantes. As análises no âmbito da tese focaram o aspecto da similaridade entre os fatos que marcaram a vida de Anton Webern e aqueles relacionados à vida do personagem Julius Heckethorn, bem como na possível utilização do serialismo5 praticado por Webern para a definição da lei de encadeamento dos fragmentos da introdução da sonata de Scarlatti. Almeida Neto justifica suas suspeitas de que Osman Lins possuía conhecimento dos métodos dodecafônicos de composição utilizados por Webern, a partir de uma carta enviada pelo poeta pernambucano Montez Magno, em janeiro de 1977, pela qual solicitara a Lins a compra de partituras de Schoenberg, de Webern, de Stockhausen, de Erik Satie e de Jonh Cage, fazendo-se supor que Webern e sua vida não eram desconhecidos do autor de Avalovara. Em entrevista concedida a Almeida Neto, em 2007, Montez Magno afirmou que “seu interesse por essas partituras residia na pesquisa que desenvolvia, na época, sobre a estrutura gráfica e as propriedades visuais dessas composições, e que resultou na publicação de um livro de arte intitulado Notassons: Escrita musical aleatória. Interessava-lhe o apelo espacial da música de Webern, que não perdia a especificidade musical, ao contrário do que ocorria com as obras de Stockhausen ou de John Cage, por exemplo, cujas partituras, muitas vezes, se constituíam verdadeiras obras de arte visual.” (MAGNO apud ALMEIDA NETO, 2008, p. 49). O serialismo na música iniciou com o dodecafonismo de Arnold Schoenberg, que defendia o distanciamento total do sistema tonal por meio do uso de um tema melódico elaborado a partir de uma série melódica formada pelas doze notas musicais (sete notas diatônicas e cinco cromáticas), cuja sequência não trouxesse qualquer ideia de tonalidade. Nenhuma nota poderia ser repetida até que a última fosse tocada. A série poderia ser repetida com inversão horizontal e vertical e com a combinação dos dois tipos. A construção harmônica também não deveria trazer traços de tonalidade. Dentre seus discípulos mais próximo cabe citar o compositor Anton Webern. 5 30 Montez Magno considerou o grafismo praticado por Cage e Stockhausen uma espécie de exigência para a prática da música do tipo aleatória ou casual. O artigo Musical Analogs in Osman Lins’ Avalovara, de James Seay Dean (1983), aborda os aspectos musicais do romance Avalovara, com ênfase na Sonata em fá menor (K462) para cravo, de Domenico Scarlatti e na cantata Catulli Carmina, de Carl Orff. Dean discorre sobre questões relacionadas ao estilo, à estrutura, à linha melódica e ao ritmo destas peças musicais e de sua significância no contexto construtivo e filosófico do romance de Lins. Ele expõe, de forma clara, a presença constante da dialética entre os contrários, tese e antítese, convivendo em um rito permanente e necessário para a manutenção do equilíbrio em todas as esferas. Esta dialética se manifesta na forma dual e contrastante da sonata de Scarlatti e no conflito de percepções sobre o amor entre jovens e anciãos presente no texto da cantata de Carl Orff. Consegue individualizar fragmento por fragmento da introdução da sonata a partir das mudanças de padrões harmônicos, em que se sucedem os graus I, IV e V da escala de fá menor, que é a tonalidade da peça musical. Essa forma de identificação de cada fragmento da sonata de Scarlatti foi utilizada na minha dissertação, Avalovara: leituras musicais (PAZ, 2010), a partir de uma visão numérico-pitagórica. Em entrevista com Barry Truax, em 1991, no departamento de comunicação da Simon Fraser University, o compositor e continuador do projeto de Murray Schafer no WSP fala sobre a suas primeiras experiências no campo da música eletroacústica e sobre a evolução do projeto de seu predecessor e que derivou para uma vertente composicional denominada de Soudscape Composition. Truax diferencia seus trabalhos e os de músicos afins à sua linha de criação musical pela ênfase na elaboração de temas voltados para a ecologia, em que sons coletados do meio ambiente são manipulados por meio de softwares de síntese granular sonora6, tendo ele próprio desenvolvido uma ferramenta computacional para essa finalidade. SOUZA e MAIA JR. (2011) ressaltam que a partir dos estudos do físico e engenheiro húngaro Dennis Gabor (1900-1979) sobre o quanta acústico foi possível avançar na teoria da percepção sonora pelo cérebro humano, que consegue distinguir as qualidades de um som em partículas sonoras com duração superior a aproximadamente 60 ms. Assim, Gabor, ao invés de analisar determinado som apenas sob a perspectiva do espectro de frequências que o compõe (série de Fourier), passou a analisá-lo considerando os fragmentos, ou quantas, que o constituem, distinguindo o tempo de duração de tais fragmentos, a duração, a frequência e a envoltória caracterizadora da variação da intensidade dos mesmos. Com base nessas decobertas, Xenaquis postulou o caminho inverso em que um som musical ou não poderia ser construído com o encadeamento de tais partículas, ou grãos, surgindo daí os primórdios da síntese granular. Foi com o advento da tecnologia de conversão sonora para o formato digital que as possibilidades de manipulação de grãos acústicos ganharam grande impulso. Células sonoras com duração menor do que 60 ms são percebidas pelo ouvido como cliques, entretanto, quando combinadas em sequências com densidade superior a 20 grãos por segundo, passam a ser ouvidas como sons com intensidade, frequência e timbre. Tais possibilidades passaram a ser exploradas com a manipulação das formas das envoltórias, da frequência e da duração de microcélulas acústicas (de 2 a 50 ms) por meio de softwares e de instrumentos de sintetização granular para uso em processos compositivos ou de criação de sonoridades instrumentais. A reconstituição de novas sonoridades pode ser feita com o sequenciamento de 6 31 Truax afastou-se dos propósitos iniciais do WSP que, sob a condução de Schafer, pretendia treinar profissionais de diferentes áreas (músicos, psicólogos, educadores, engenheiros acústicos, arquitetos e outros) para os problemas sonoros ambientais, de modo a criar um movimento de conscientização da sociedade para os problemas da poluição sonora, bem como instrumentos legais e tecnológicos para mitigá-los. Barry Truax envereda pelo caminho da composição de música eletrônica a partir da coleta de sons do meio ambiente com um viés ecológico. Esta tese foi estruturada em cinco capítulos que abordam, de forma gradativa, tópicos relacionados com a paisagem sonora no mundo e, principalmente, no espaço narrativo de Avalovara. Os capítulos 2°, 3°, 4° e 5° foram subdivididos em quatro subcapítulos. O capítulo 2 discorre sobre a ecologia acústica na música, na literatura e na pintura e a possíveis relações com a criação literária de Osman Lins. No capítulo 3, constrói-se a categorização dos sons identificados em Avalovara a partir do método utilizado por Schafer para a organização de sons coletados em seu WSP. Nele é apresentada uma tabela com três níveis de categorias e subcategorias totalizando sete categorias gerais, trinta e seis categorias específicas e duzentos e oito tipos de sons. No mesmo capítulo, são feitas as primeiras interpretações das sonoridades assim classificadas com a finalidade de desvendar seus significados e simbolismos. Pela relevância que adquirem no decorrer da narrativa, são destacados os sons considerados como marcos sonoros, em número de vinte e cinco, dos quais se extraíram os eixos sonoros, em número de nove, e musicais, em número de quatro, que se tornaram o objeto principal da pesquisa aqui desenvolvida. No capítulo 4, é contextualizada a paisagem sonora no Avalovara, com ênfase nos marcos e nos eixos sonoros. Ao pássaro Avalovara, um dos eixos sonoros do romance, são feitas possíveis associações com a lenda da Fênix e do Pássaro de Fogo. Sons sugeridos ao leitor e percebidos pelos personagens em suas lembranças e imaginações são aqui abordados. São sublinhados os sons míticos experimentados pelos protagonistas quando em seus estágios de transcendência. O silêncio ganha importância como meio de caracterização de opressão, dor, desagregação ou de estados de bem-aventurança. O capítulo 5° trata dos quatro eixos musicais e da relação desses com as três protagonistas femininas (Roos, Cecília e ). O relógio de J.H. é destacado por estar associado a uma das peças musicas mais importantes da narrativa, a Sonata em fá menor (K 462), de Domênico Scarlatti. Ao relógio também é feita uma associação com o quadro de Paul Klee, A Máquina Chilreadora, pelos múltiplos significados que se entrelaçam formando um tecido de grãos e com nuvens granulares em que várias microcélulas sonoras podem se sobrepor. 32 simbologias convergentes. Aborda os instrumentos de teclado e o bandolim e seus simbolismos enquanto representação de momentos contrastantes da vida dos personagens. Procurou-se desenvolver durante a construção desta pesquisa um conteúdo que contemplasse as expressões sonoras e suas possíveis interpretações e correlações, buscando-se desvendar uma conexão entre música e silêncio com as artes plásticas e literatura, e também decifrar a forma como Osman Lins codifica tais correlações. 2 33 ECOLOGIA ACÚSTICA E ECOCRÍTICA 2.1 THE WORLD SOUDSCAPE PROJECT E SUA EVOLUÇÃO Quando iniciou o The World Soudscape Project (WSP), em 1969, Schafer idealizava a realização de uma pesquisa com a maior abrangência possível e que pudesse catalogar, da forma mais fidedigna, os sons atuais até aqueles provenientes de um passado possível a ser alcançado por meio de memórias registradas em obras literárias, jornais, revistas, cinema, enfim, qualquer meio que trouxesse à tona o histórico dos sons da humanidade, sua importância coletiva e seus significados. Vislumbrava o redescobrimento de sons extintos e o registro de sons em vias de extinção. A partir de uma concepção ecológica, imaginava a criação de um profissional multidisciplinar, um designer de sons, que teria a capacidade de distinguir os diferentes sons ambientes com clareza e seus impactos sobre as pessoas e sobre o ambiente circundante com o objetivo de contribuir para o surgimento de uma conscientização coletiva sobre a importância da busca constante de um equilíbrio possível entre o ser humano e a natureza. Estando ciente da inevitabilidade do permanente desenvolvimento tecnológico e de suas implicações negativas para o meio ambiente, tencionava trazer uma nova perspectiva educacional no sentido de apurar a percepção sonora das pessoas para que elas pudessem ouvir conscientemente e discriminar sons naturais de ruídos prejudiciais, habilitando-as a atuar em seus núcleos sociais para a promoção de um ajuste permanente e concreto; portanto, de um mundo melhor. Mesmo sendo um compositor de vanguarda, não se percebe em seus escritos a intenção de utilizar os sons coletados no transcorrer do WSP, ou mesmo de incentivar o uso de tais sons para propósitos composicionais. Ainda que tivéssemos muitos músicos em nossos cursos sobre soundscape, eu sabia desde o início que nós não estávamos treinando compositores, mas estávamos tentando definir uma nova profissão que ainda não existia e ainda hoje não existe na medida do desejável. Eu imaginava um especialista em som combinando habilidades técnicas e preocupações sociais com a sensibilidade estética de um compositor.7 (SCHAFER, 1993, p. 108-109, tradução nossa). Em 1973, Schafer convidou Barry Truax, um músico canadense com formação em física e que acabara de retornar de seus estudos em música eletrônica na Holanda, para “While we had many musicians in our soundscape courses, I knew from the beginning that we were not training composers but were trying to define a new profession that did not yet exist and even today does not exist to the extent desirable. I imagined a sound specialist combining technical skils and social concerns with the aesthetic sensitivity of a composer.” (SCHAFER, 1993, p. 108-109). 7 34 trabalhar em seu projeto. Sobre a concepção do WSP, em um artigo publicado em Organised Sound, 13(2), 103-109, 2008, sob o título Soudscape Composition as Global Music: Eletroacustic Music as Soundscape, Truax sintetiza os propósitos inicias do grupo liderado por Schafer. No final dos anos 60, R. Murray Schafer (1969, 1977) sugeriu um conceito radicalmente diferente: a paisagem sonora como a composição “universal” na qual nós somos todos compositores. Este novo conceito, construído não como uma alternativa musical mas com foco no ruído, levou à formação do World Soudscape Project (WSP) na Simon Fraser University.8 (TRUAX, 2008, tradução nossa). Em uma entrevista realizada em 7 de agosto de 1991, no Departamento de Comunicação da Simon Fraser University, Truax relata sobre seus primeiros movimentos de vulto no campo da música eletrônica quando de sua passagem pelo estúdio de música eletrônica em Estocolmo em 1971 e 1972 e pelo Instituto de Sonologia de Utrecht em 1973. Movido pelas excitantes experiências com o compositor John Chowning na Holanda e com Knut Wiggen na Suécia, Truax e os demais compositores do projeto, à exceção de Schafer, criam uma nova vertente a partir da utilização de material sonoro coletado: a Soundscape Composition. Apesar de um aparente conflito com as ideias inicialmente formuladas por Schafer e que possam ter sido a causa da renúncia deste a condução do projeto, é possível vislumbrar duas formas diferenciadas de se chegar a um mesmo objetivo: por um lado, Schafer almejava um processo de educação coletiva voltada para a escuta inteligente e consciente dos sons circundantes, enquanto que Truax visualizava esta mesma finalidade, valendo-se da composição musical como instrumento de alerta para os problemas da poluição sonora ambiental. Posteriormente, em seu ciclo de composições denominado Pátria, Schafer utiliza os sons da natureza como parte de uma grande composição teatro-musical em que músicos e plateia representam, cantam e tocam ao ar livre, integrando-se, em uma atividade mítica espiritual e que evoca a ancestralidade indígena, com o canto dos pássaros e com os sons da água, dos ventos e das árvores. Como incentivador e mestre, Schafer influenciou a trajetória artística de Barry Truax que, após receber o diploma de física e uma bolsa de estudos para cursar radioastronomia, viu-se em uma virada de rumo em sua vida ao escolher o que sempre sonhara: dedicar-se à música, especificamente à composição voltada para a música eletrônica. Nos primeiros anos 8 “In the late 1960s, R. Murray Schafer (1969, 1977) suggested a radically different concept: the soundscape as the ‘universal’ composition of which we are all composers. This bold concept, intended as an alternative not to music but to the problems of noise, led to the formation of the World Soundscape Project (WSP) at Simon Fraser University in the early 1970s.” (TRUAX, 2008). 35 de sua carreira musical, pode desfrutar das possibilidades oferecidas pelo laboratório de música eletrônica da University of British Columbia (UBC). Logo em seguida, esteve em Estocolmo e por mais tempo em Utrecht onde atuou na produção de música eletrônica analógica. Em seu retorno ao Canadá, fazendo então parte do WSP de Murray Schafer, experimentou uma nova visão acerca do ruído e da possibilidade do uso de sons ambientais em composições musicais. O início de uma síntese real e duradoura entre soundscape e música eletrônica ocorreu no início dos anos 90 com o surgimento de ferramentas de conversão de sons gravados em sistemas analógicos para formato digital. Os novos computadores e softwares tornavam possível a síntese perfeita entre sons colhidos do meio circundante com sons registrados em pistas de gravação e sons sintetizados. Tais evoluções levaram ao desenvolvimento, por parte de Barry Truax, de um software próprio para manipulação de sons para fins composicionais. Utilizando a síntese granular de amostras sonoras com tempos em torno de 50 milisegundos ou menores, pode enfim analisar e trabalhar os sons externos coletados e gravados no computador, espichando-os e manipulando parâmetros tais como envoltórios, espectro de frequência, intensidade e duração. Barry Truax faz parte de uma geração de músicos que presenciou o surgimento do computador e de sua fenomenal evolução, para o qual passaram a ser criados programas específicos voltados para a edição de partituras e, principalmente, para a geração de sons sintetizados e a manipulação de sons gravados. Cabe aqui fazer um breve retrospecto das intensas transformações sofridas pela música erudita a partir do final do século XIX e início do século XX em relação as quais o músico grego radicado na França, Makis Solomis, em seu livro De la Musique au Son: L’émergence du son dans la musique ses XXe – XXIèmes siècles (2013), faz uma análise da evolução ocorrida com as mudanças de paradigmas da música do século XX e XXI e que levaram a valorização do som como elemento central do processo compositivo. Ressalta o processo de ruptura com a consonância centrada na tonalidade, praticada desde o período renascentista, iniciado ousadamente pelos compositores do início do século XX. Desde as composições dos impressionistas franceses, em especial, Debussy e Ravel, em que o timbre assume notável importância como colorido orquestral, passando pelas dissonâncias polirrítmicas de Stravinsky, Bela Bartok e Prokofiev e pelo serialismo de Schoenberg e Webern, percebe-se na nova música uma eruptiva dissociação do sistema tonal fundamentado nas escalas maiores e menores e das formas e modelos musicais tradicionais. Na música concreta de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, ruído e som se misturam. Sonoridades gravadas em fita magnética oriundas de máquinas, veículos, locomotivas, dentre outras, são processadas em novas configurações e adicionadas a partituras musicais. Posteriormente, 36 Schaeffer retorna com composições de caráter contemplativo, nas quais utiliza sinos hemisféricos chineses, libertando-se, segundo afirmou o compositor francês Olivier Messiaen, da angústia surrealista e do descritivismo literário. Paralelamente, John Cage utiliza o silêncio em 4:33 para que a plateia possa perceber os sons da rua, do rangido das poltronas e do arfar das respirações, como parte de uma grande composição educativa. Cage também pratica experimentalismos inovadores ao introduzir peças metálicas e outros objetos no meio das cordas do piano para executar algumas de suas peças musicais. Similarmente às produções de Schaeffer, promove a mistura de sons e ruídos em suas obras, ou simplesmente de silêncio e ruídos, dando destaque ao som em detrimento da tonalidade organizada. Compôs música aleatória em que a técnica de execução, a clave, os acidentes, as partes e outros elementos musicais podem ser determinados a partir do lançamento de moedas ou de escolhas derivadas do uso dos hexagramas do livro chinês I Ching. Continuando as incursões em uma nova estética musical, merecem destaque as primeiras pesquisas em música eletrônica feitas pelo Dr. Herbert Eimert, e depois por seu colega Karlheinz Stockhausen no estúdio da rádio de Colônia, a partir de 1951, quando se chega ao ápice da celebração da soberania do som e da aproximação cada vez maior entre som e ruído nos processos de composição musical. Iannis Xenaquis, músico, engenheiro e arquiteto grego radicado na França, foi um destacado aluno do mestre francês Olivier Messiaen juntamente com Stockhausen. Dedicou-se também à música eletroacústica tendo transposto para suas obras temas inspirados em suas criações arquitetônicas. Com o desenvolvimento de ferramentas computacionais cada vez mais sofisticadas voltadas para a síntese sonora e a granulação, obteve-se um enriquecimento do som como matéria prima fundamental nos processos de criação musical. Em paralelo ao movimento da ecocrítica na literatura, a ecologia sonora irrompe nas ideias de Murray Schafer materializadas no WSP e se consolida nas obras musicais de Barry Truax e na música ubíqua9 de Damián Keller, Marcelo Villena, dentre outros, promovendo uma síntese com finalidade conscientizadora, além de uma fruição puramente estética. 9 O termo ubíquo significa algo que é onipresente. De acordo com Villena (2014), a expressão “música ubíqua” derivou da expressão “computação ubíqua”, em que dispositivos eletrônicos móveis de comunicação, tais como tablets, smartphones e computadores, ao estarem integrados à rede mundial da internet, podem acessar de qualquer lugar ou transmitir para qualquer lugar do planeta informações de qualquer natureza. No campo da música o termo foi utilizado para fazer referência às amplas possibilidades que esses recursos tecnológicos propiciam para o desenvolvimento de práticas compositivas, educacionais e interpretativas com o uso da interatividade entre equipamento e usuário, e do compartilhamento de processos criativos entre usuários. 37 2.2 A ECOLOGIA ACÚSTICA DE MURRAY SCHAFER EM AVALOVARA Um dos pilares do pensamento de Schafer é a sua concepção de arte baseada no Teatro de Confluência, segundo o qual as diversas formas de arte devem conviver – simultaneamente e de forma igualitária – sem que uma delas sobressaia sobre as demais. Esta ideia tem a ver com o culto ao ritualismo artístico relacionado à ancestralidade em razão da necessidade do retorno às origens para o encontro de si mesmo, dentro de uma visão de arte como manifestação do sagrado. As ideias de Schafer e de Cage a respeito da importância dos sons e do silêncio para a melhoria do mundo em que vivemos guardam proximidade com os princípios da ecocrítica no sentido de explorar a interdisciplinaridade e restabelecer uma unidade entre o homem e seus entornos. Percebe-se, em ambos os músicos, a intenção de alargar a abrangência do conceito de música, envolvendo também os sons do cotidiano do ambiente urbano e da natureza. Segundo uma definição de ecocrítica, entre outras, constante no livro The Ecocriticism Reader: A ecocrítica é o estudo da relação entre a literatura e o ambiente físico. Assim como a crítica feminista examina a língua e a literatura de um ponto de vista consciente dos gêneros, e a crítica marxista traz para sua interpretação dos textos uma consciência dos modos de produção e das classes econômicas, a ecocrítica adota uma abordagem dos estudos literários centrada na Terra. (GLOTFELTY, 1996, p. xix apud GARRARD, 2006, p. 14). Particularizando para os aspectos sonoros, Schafer, alargando a definição de ecologia, conceitua a ecologia acústica conforme segue: Ecologia é o estudo da relação entre os organismos vivos e seu ambiente. A ecologia acústica é, assim, o estudo dos sons em relação à vida e à sociedade. Isso não pode ser realizado em laboratório. Só poderá ser desenvolvido se forem considerados, no próprio local, os efeitos do ambiente acústico sobre as criaturas que ali vivem. (SCHAFER, 2001, p. 287). As reflexões oriundas das concepções presentes na vertente literária da ecocrítica podem ser encontradas, em Avalovara, na ideia de fusão de entidades humanas e não humanas, o que leva a perceber, no texto, o propósito de promover a integração do homem com a natureza. Trata-se do caminho oposto ao da segmentação artificial das partes do todo impregnada no subconsciente coletivo da civilização ocidental, buscando a síntese total, 38 concretizada na união entre o ser humano e o tapete10 repleto de animais e de uma natureza intocada. Essa ideia de integração do homem com o todo que o cerca pode ser vista na entrevista de Osman Lins para a revista Escrita, ano II, n.13, 1976, e que consta no livro Evangelho na Taba (LINS, 1979). [...] todo o romance é construído minuciosamente para nos remeter à ordem cósmica. Agora, esta preocupação com o cosmos nasceu em mim, escritor, Osman Lins, por acaso, simplesmente porque estou no mundo? Não. Nasceu por duas razões. Nasceu porque minha convivência com a narrativa me levou a isso. E a narrativa para mim é uma cosmogonia. Eu penso assim: existe o mundo, existem as palavras, existe a nossa experiência do mundo e a nossa experiência das palavras. E tudo isso está ordenado, é um cosmos. [...] Outro aspecto é que estou também convencido (em vários sentidos, em matéria de arte sou um reacionário total) de que uma grande parte da arte contemporânea está inteiramente equivocada pelo fato de voltar as costas para o universo, de voltar as costas para o cosmos. E toda a arte despojada de nossa época, a arte que recusa o ornamento, a meu ver é uma arte a caminho da morte. Porque eu penso que é o fato de nos voltarmos para o cosmos que enriquece o que estamos fazendo, tanto nas nossas criações como nas nossas relações humanas. (LINS, 1979, p. 223). Reforça esta visão do autor o trecho que segue: [...] me contempla de outra clave do tempo, açulando minha inclinação por tudo que gravita, como os textos, entre a dualidade e o ambíguo. Presidem este encontro o signo da escuridão - símile de insciência e do caos - e o signo da confluência: germe do cosmos e evocador da ordenação mental. Terra, espaço, Lua, movimento, Sol e tempo preparam a conjunção da simetria e das trevas. (R 7, p. 33). Aqui o narrador revela, explicitamente, sua convicção da inevitabilidade do fluxo cíclico do cosmos que se move em um permanente ritmo de surgimento e retração, o eterno ir e vir que procura traduzir em enredos narrativos e do qual ele entende que o homem é parte inseparável. Em Avalovara, a mescla de ser humano e animal em Cecília, o segundo amor de Abel, em cujo corpo habitam leões, encontra eco na mitologia grega quando centauros, sátiros e sereias possuíam corpos meio homem e meio animal. Esta confluência em Cecília faz parte da composição metafórica da personagem no romance: “A língua de Cecília: leão lascivo. [...] Zumbem leões negros e velozes nos olhos de Cecília.” (T 6, p. 100) . Chevalier e Gheerbrant (2008), no Dicionário de Símbolos, citam os leões na mitologia egípcia, os quais aparecem aos pares, um de costas para o outro, olhando o leste e o oeste. Vigiavam o percurso do sol e tinham o poder da visão do ontem e do amanhã, portanto, do passado e do futuro, da mesma forma que o deus Jano que, com suas duas faces 10 As referências ao tapete aparecem nos temas O, R, E e N de Avalovara. 39 incrustadas simetricamente em uma mesma cabeça, podia ver o passado e decifrar o futuro. Esta duplicidade está, na narrativa, representada pela androginia de Cecília, e, pela eternidade do tempo, associada ao duplo movimento da espiral, evidenciando uma confluência de polos em oposição. Não representa a espiral, igual a Jano, um simultâneo ir e vir, não transita simultaneamente do Amanhã para o Ontem e do Ontem para o Amanhã? Não se conciliam, em seu desenho, o Sempre e o Nunca? Também não se deve esquecer que um dos símbolos preferidos pelos alquimistas era o do matrimônio entre o Sol e a Lua, representados como um hermafrodita, um corpo dúplice, apodrecendo num esquife. O pensamento que dominava esta representação - onde se viam, num corpo, duas cabeças, como as de Jano - era o da morte seguida da ressurreição. Tanto a espiral como a frase que temos sob os olhos parecem tensas dessas fusões de contrários. (S 8, p. 49). A coexistência entre animais e seres humanos no corpo de Cecília traz à tona uma possível interpretação de afastamento, por parte do autor, da concepção antropocêntrica na construção de seus personagens e de suas trajetórias. 2.3 A ECOCRÍTICA COMO LEITURA LITERÁRIA A consolidação do antropocentrismo na Renascença e o posterior surgimento do Iluminismo no século XVIII abriram caminhos para o desenvolvimento da ciência e para a preponderância da razão. Sucedeu daí a revolução industrial no final do século XVIII e início do século XIX; posteriormente, a revolução elétrica e tecnológica no século XX. Paralelamente ao acelerado desenvolvimento científico e dos meios de produção industrial ocorreu um processo de deterioração da natureza, intensificado pelo rápido crescimento industrial durante a segunda metade do século XIX. Em decorrência dos problemas ambientais surgidos com a poluição ambiental oriunda do crescimento das cidades e dos despejos e emissões industriais, com a desenfreada exploração dos recursos naturais, com a extinção ou ameaça de extinção de espécies animais e vegetais e com o desmatamento resultante da expansão das fronteiras agrícolas, já na segunda metade do século XX, verificase o crescimento de um movimento ecológico que – posteriormente – se expande para a área da literatura, resultando na vertente da ecocrítica. As dramáticas mudanças climáticas decorrentes da destruição acelerada dos recursos naturais e da poluição do planeta estão produzindo uma mudança gradativa na mentalidade dos indivíduos de nossa sociedade moderna, que passam a se dar conta de que os seres humanos fazem parte de um contexto como elementos de um elo em que todos são 40 importantes. Ao se colocar como um simples instrumento de manipulação da natureza, o homem torna-se um agente de destruição de seu próprio ecosistema. A adoção de uma postura de alinhamento consciente com as concepções da ecocrítica faz crescer o sentimento de identidade com o todo; por conseguinte, da necessidade de interagir na natureza e não simplesmente com a natureza. Engajada nesse propósito, a ecocrítica contribui para o deslocamento do homem do centro do universo para tornar-se parte de um todo em que cada componente tem seu papel e importância para a existência da vida e do habitat que a abriga. Esta interação deve expandir-se para o universo das percepções de todos os sentidos humanos, de forma a abranger não só o espaço físico, preenchido pelo raio de alcance da visão, mas, também, o espaço que engloba as múltiplas emissões sonoras do mundo industrializado, muitas das quais podem se constituir em um tipo de lixo. Os primeiros trabalhos sobre ecocrítica surgiram isoladamente nas décadas de 1970 e 1980. Entretanto, consolidou-se como uma vertente literária no início dos anos 90 nos EUA, quando surgiram associações literárias e jornais voltados para a ecologia na literatura, bem como foram organizados simpósios com a participação de estudiosos sobre o assunto. A partir daí verificou-se um crescimento desse movimento ecológico-literário, adquirindo um caráter interdisciplinar ao qual aderiram, além de escritores romancistas, historiadores, antropólogos, psicólogos, filósofos, teólogos, dentre outros. A ecocrítica concretizou uma abordagem centrada na Terra e nas relações entre cultura e natureza. Conforme afirma a autora, Cheryll Glotfelty (1996), “Como uma instância crítica, ela tem um pé na literatura e outro na terra; como um discurso teórico, ela estabelece uma mediação entre o humano e o não humano.”11 (GLOTFELTY, 1996, p. xix, tradução nossa). O termo “ecocrítica” ganhou força como meio de fortalecimento dessa tendência literária pela faculdade aglutinadora que ele exerce sobre estudiosos e escritores. A escolha da raiz “eco” (oikos) ao invés de “ambiente” justifica-se por explicitar uma conotação de “[...] fortes conexões entre partes constituintes”12 (Ibidem, p. xx, tradução nossa), em contraposição ao termo “ambiente” que coloca o homem como centro ao redor do qual gira a natureza. Nos conceitos da ecocrítica bem como da ecologia acústica, fica evidenciado o papel que deve assumir o ser humano face à catástrofe ambiental que se avizinha, papel este que o coloca como um ente integrante da natureza e responsável pela sua restauração. 11 “As a critical stance, it has one foot in literature and the other on land, as a theoretical discourse, it negotiates between the human and the nonhuman.” (GLOTFELTY, 1996, p. xix). 12 “[…] strong connections among constituent parts.” (GLOTFELTY, 1996, p. xx). 41 Os conceitos delineados a partir da ecologia acústica servem de fundamentação para a análise da paisagem sonora construída ao longo do romance Avalovara, em que a fusão de elementos humanos e não humanos realça a importância não somente do homem, mas do todo. Hermelinda vara o círculo de leões que ameaça Cecília e beija-a no rosto. [...] Cecília, com um sorriso, faz os leões subirem nos telhados balançando a cauda. O que conversam, Hermenilda e Cecília, não escuto. [...] O silêncio de Cecília é atravessado por leões. (T 6, p. 99). O texto sugere a presença de leões em Cecília que se manifestam pelos seus olhos e sua língua, em uma síntese homem-natureza. Mesclam-se, também, seres humanos com a natureza e seus infindáveis seres abrigados pelo tapete mágico, como no final do romance, quando Abel e a se fundem após a morte de ambos por Olavo Hayano. Olhando-se o tapete, não se vê entre as flores e pássaros o crocodilo. Este, dissimulado na profusão de motivos, mais facilmente pode ser descoberto no reverso, no lado sempre oculto da trama, onde se cortam os fios e dão-se os nós. Liberto dos hábeis artifícios que o escondem, fazendo-o a um só tempo presente e invisível, o crocodilo (absorvido como os motivos evidentes do tapete) passeia no tronco estendido de Abel. O gamo rubro, de pé entre os nossos corpos abraçados, olha o mostrador do relógio como se olhasse para o Sol, cauda e patas traseiras no flanco de Abel, a cabeça e o peito no meu flanco. O crocodilo, escurecendo o torso de Abel, tem a boca à altura do seu sexo e pressiona-me a coxa. Morde o bico do meu peito o coelho, morde de leve, como se mordesse um talo tenro de capim. (O 7, p. 41). A união do homem com a mulher e com a natureza finaliza um ciclo de busca e de aprendizado, atingindo-se o ápice de uma trajetória rumo ao conhecimento pleno das palavras, portanto, do verbo e da essência da criação do cosmos. Ao mesmo tempo que Lins recheia o romance Avalovara com elementos contrastantes em permanente fricção, apresenta, também, uma solução ficcional para essas mesmas dualidades, antecipando-se às ideias que moldaram e formalizaram o pensamento dos estudiosos da ecocrítica. Greg Garrard, em seu livro intitulado Ecocrítica, explora os modos como são concebidas as relações entre o meio ambiente e os seres humanos na esfera da produção cultural, abrangendo filmes e documentários sobre a natureza. Ainda que inspirado nos movimentos ecologistas, sustenta uma postura crítica das posições adotadas pelos seus integrantes. Félix Guattari (1989) criou a expressão As Três Ecologias em um livro com o mesmo título, no qual faz emergir uma reflexão sobre as novas formas de dominação do capitalismo, que se reinventa a cada instante para manter seu status quo. Segundo o autor, desapareceu o 42 conflito leste-oeste e acirraram-se as divergências entre hemisférios norte e sul. Para ele, os métodos tradicionais de luta social baseados em engajamentos religiosos, sindicais e políticos perderam a eficácia. A manipulação do subjetivismo humano, por meio do controle midiático da publicidade e das sondagens, dá sobrevida aos métodos de dominação do que ele chama de Capitalismo Mundial Integrado (CMI), cujo êxito decorreria do emprego de quatro regimes semióticos: econômico, jurídico, técnico-científico e de subjetivação. Alerta sobre a estratégia de dominação do CMI: os meios produtivos, os sistemas econômicos e a manipulação da subjetividade humana. As preocupações de Guattari repousam nas rápidas alterações que o Planeta vem sofrendo nos últimos tempos, envolvendo a sociedade, a natureza, as relações coletivas e individuais e a sensibilidade. Propõe, como alternativa de melhoria para essas questões, que seja propiciada “[...] uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) – a que chamo ecosofia.” (GUATTARI, 1989, p. 8). Para acabar com a crise ambiental, sugere uma revolução política, social e cultural, reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais, sem que se pense em uma economia de lucro e de relações de poder. À medida que a ecocrítica ganha contornos mais definidos, altera-se a análise das formas de representação da natureza. A crítica à destruição do meio ambiente por conta da expansão desmedida do capitalismo inescrupuloso toma corpo na consciência de muitos escritores, representando uma expansão positiva para o mundo das artes e da ação humana em prol de um planeta mais harmonioso. A dualidade homem/natureza é citada por Garrard como relevante concepção judaicocristã, baseada nos escritos bíblicos, que colocou a natureza a serviço do homem e como um universo vivo que a ele deveria se submeter. Esta cultura milenar arraigada na civilização ocidental, colonizadora da maior parte dos continentes do planeta, seguramente contribuiu para uma destruição avassaladora da natureza e de seu ecossistema. Sobre isto, Garrard (2006) expõe: “Ao mesmo tempo a sucessão de pactos entre Deus e o homem oferece a possibilidade da graça atual, como, por exemplo, depois do dilúvio, quando Deus promete a continuação da natureza como parte de um pacto renovado”. (GARRARD, 2006, p. 60). Garrard também pondera que [...] isso deve ser levado em conta juntamente com a afirmação de Lynn White Jr., baseada principalmente no Gênesis, de que: o cristianismo, em contraste absoluto com o antigo paganismo e com as religiões da Ásia (talvez com exceção do zoroastrismo), não apenas criou um dualismo do homem e da natureza, como insistiu também em que é vontade de Deus que o homem explore a natureza para seus próprios fins. 43 [...] e com sua conclusão de que “continuaremos a ter uma crise ecológica cada vez pior, enquanto não rejeitarmos o axioma cristão de que a natureza não tem outra razão de ser senão servir ao homem.” (WHITE, Lynn, Jr., 1996, p. 10,14 apud GARRARD, 2006, p. 60). É na Renascença que Deus deixa de ser unicamente o verbo, o som primordial, tornando-se um ser retratável. A mitologia judaico-cristã da criação, presente no primeiro capítulo do primeiro livro do Velho Testamento intitulado Gênesis (versículos 26 e 27), refere-se ao homem como um ser criado à imagem e semelhança de um deus e, admitindo-se que tal afirmação bíblica tenha também uma conotação de semelhança física, nada melhor do que representar a divindade como um ser humano velho e de barba, entretanto altivo e poderoso. O surgimento do período renascentista coincide com o advento do antropocentrismo, em contraposição ao teocentrismo medieval. O foco no homem, certamente, encontra amparo no retorno à cultura grega, com sua mitologia recheada de deuses com características humanas. Tal idealização antropocêntrica contrasta com o pensamento central dos adeptos da ecocrítica para os quais a crítica à supremacia do homem pressupõe a necessidade do retorno a uma convivência harmônica, perfeitamente integrada e destituída de hierarquia entre o indivíduo e o seu meio ambiente. 2.4 A ECOLOGIA ACÚSTICA NA REPRESENTAÇÃO PICTÓRICA Ecologia acústica e ecocrítica são abordagens teórico-metodológicas que se filiam a concepções artísticas associadas a momentos históricos e que sistematizam um pensamento transcendente à produção individual isolada, convertendo-se em movimentos coletivos organizados e consolidados. Mesmo antes da ecocrítica se consolidar como vertente literária, muitos artistas do século XX já evocavam a necessidade de uma mediação com a natureza para evitar a sua destruição total. Alude Schafer (2001, p. 162), que “Marshall McLuhan diz em algum lugar que o homem só descobriu a natureza depois de tê-la destruído”. Na direção contrária à deterioração da paisagem sonora mundial decorrente do processo de industrialização, compositores como Debussy, Charles Ives e Olivier Messiaen conseguem incorporar com maestria a exaltação à natureza em suas composições. Na obra La Mer, o impressionista Claude Debussy, que era fascinado pela grandiosidade do mar, mais do que descrevê-lo musicalmente, tenciona provocar no ouvinte as sensações, ou “impressões”, que ele teria ao se defrontar com a imensidão do oceano e de seus sons. Bela Bartók, em suas peças inspiradas 44 em temas folclóricos, consegue incorporar com extrema habilidade e de forma minuciosa elementos da natureza. O microfone, à semelhança do microscópio, possibilitou a percepção de nuanças sonoras antes impossíveis de serem alcançadas pelo ouvido humano, tendo sido este um fator tecnológico importante para as compilações folclóricas de Bartók. Dessa forma, unem-se os avanços tecnológicos ao talento criativo de renomados compositores do século XX para promover uma aproximação maior entre a arte e a natureza. Sobre o compositor americano Charles Ives, Schafer (2001) ressalta seu apreço pela preservação da natureza e de seus ícones: Charles Ives “glorificou a América ao mesmo tempo que a via ir para o inferno” (Henry Brant), também refletiu bastante a respeito do dilema da natureza em via de extinção. Observe suas canções no fonógrafo e na estrada de ferro: sons muito feios. Sua canção sobre os índios prossegue: “Infelizmente para eles, seus dias terminaram ... a lâmina do machado do homem ressoa em suas florestas”. O coração de Ives estava junto à paisagem e nos vilarejos, e sua inacabada Sinfonia do Universo foi planejada para ser executada ao ar livre, nas montanhas e vales. (SCHAFER, 2001, p. 162). Também Oliver Messiaen, com sua Sinfonia Turangalila, repleta de pássaros e de florestas, Richard Strauss, com sua composição Ein Heldenleben (Vida de herói), Respighi, com sua obra denominada Pinheiros de Roma, acompanhada de gravação de cantos de pássaros, podem ser considerados compositores ecológicos e autênticos precursores da vertente da ecologia nas artes. O compositor Gustav Mahler já se afastara do convívio com os barulhos da cidade para, no ambiente bucólico, compor suas canções, o que deve ter contribuído para a sua posterior alienação social. Na mesma época, Paul Klee13 tornava pública a sua pintura A Máquina Chilreadora na qual satirizava a submissão destrutiva da natureza ao desenvolvimento da sociedade industrial. A singela pintura traz em seus matizes um simbolismo apropriado aos novos tempos que se delineavam para a sociedade capitalista em consolidação: quatro pássaros em um desenho bidimensional de contornos quase infantis, em que os bicos se confundem com a cabeça dos animais, cantam com as patas presas a uma manivela movida pela mão humana. A beleza que transborda de uma expressão da natureza na forma de pássaros cheios de vitalidade se contrapõe ao mecanicismo de uma sociedade exultante com a proliferação de máquinas cada vez mais eficientes e precisas. A paisagem industrial se ergue tal qual um templo em 13 Em A Afinação do Mundo, Schafer (2001, p.163) traz o exemplo da pintura Paul Klee para representar a intervenção da máquina na natureza. 45 homenagem à ciência, ao tecnicismo e aos ganhos do capital em detrimento do esplendor da natureza e de toda a vida que abriga. Paul Klee também era músico e conhecia muito bem as técnicas de composição, as quais aplicou com maestria em suas obras. As concepções de polifonia serviram de sustentação para muitos de seus trabalhos, nos quais a repetição de temas em cores contrastantes e sequenciais possibilita uma percepção de movimento; portanto, de ritmo e de repetição de vozes em paralelo. Buscava transpor para a pintura a ideia da composição musical que, segundo ele, era uma superposição de ritmo, equilíbrio e harmonia. No quadro a Máquina Chilreadora, Klee coloca cores azuis suaves e frias no centro da tela circundadas por cores quentes levemente avermelhadas nas bordas, dando a sensação de movimento centrífugo associado ao deslocamento dos pássaros que cantam. O tema de sua obra, repleto de significados que vão muito além da simples visualização de um conjunto de traços, retrata, na tela, uma realidade em transformação e que vai ao encontro, em um tempo posterior, das ideias da ecocrítica. Para ele, o traço do artista evolui da mesma forma que a vida em uma planta, que nasce, cresce e se estabelece. Afirmava que a contemplação da natureza, no atelier de Deus, é uma revelação. Ir até ela não é como ir até o motivo da obra de arte, mas como um meio para descobrir a sua essência. Figura 1 - A Máquina Chilreante de Paul Klee14 KLEE, Paul. Metamorfoses: Paul Klee e a Máquina Chilreante. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2014. 14 46 O artigo Nove, Novena Novidade (1966), de João Alexandre Barbosa, ressalta que a novidade na construção literária de Osman Lins em Nove, Novena, não estaria na reconstituição da realidade, mas no esforço de torná-la perceptível a partir da elaboração poética. Dentro dessa perspectiva, Barbosa compara Osman Lins a Paul Klee, para o qual a arte não deve ser um meio de reprodução da realidade, mas uma forma de expressão “possibilitadora do visível”. Menciona o personagem Mendonça do conto Noivado, de Nove, Novena que transita em três tempos diferenciados porém unificados em torno de uma personalidade construída sobre o perfil de um funcionário público medíocre. Essa forma de elaboração narrativa encontra paralelo em algumas técnicas de composição musical em que a simultaneidade é trabalhada para dar vida ao dissonante e atonal. Nesse domínio, a personagem feminina Giselda, da narrativa, comporta-se como se estivesse percebendo os acordes desagradáveis emitidos por linhas melódicas desarmônicas. Ainda segundo Barbosa, mesmo expressando figuras pictóricas ou construindo linhas narrativas à semelhança de composições atonais, o desenho literário não é entregue ao leitor gratuitamente, mas se estabelece como uma teia que o enreda e o faz deslizar por suas malhas fechadas, tal qual um tecido envolvente e complexo. Em diversos momentos, percebe-se que a dinâmica e a montagem tipicamente pictórica de algumas cenas sugerem que Osman Lins teria se inspirado em quadros famosos, como no caso da representação dos peixes que saltam e são devorados pelos pássaros. Ao ver o quadro Sky and Water I, de Maurits Cornelis Escher (1898-1972) é inevitável a associação com os peixes que, em um trecho de Avalovara, saltam do mar escuro e misterioso para o céu, podendo ser devorados pelos pássaros. O quadro apresentado ao público, no ano de 1938 tornou-se uma das obras mais famosas da produção artística do pintor holandês. Figura 2 - Sky and Water I, de Maurits Cornelis Escher15 15 ESCHER, Maurits C. Sky and Water I. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2014. 47 À medida que peixes brancos sobem das águas escuras do mar para um céu branco, seus detalhes se desvanecem, sendo que a parte preta da água que preenche os espaços entre os peixes gradativamente é percebida na forma de pássaros pretos em um céu branco. Da mesma forma que os pássaros não são distinguíveis dentro das águas escuras do oceano, também os peixes gradativamente perdem seus detalhes e se desvanecem no céu branco entre os pássaros pretos. Na dinamicidade revelada no movimento de peixes que desaparecem dando lugar a pássaros transparece, o entremear dos opostos que se complementam ao mesmo tempo que dão equilíbrio e fluidez à obra de arte: céu e mar, branco e preto, peixes e pássaros. Essa ideia de polos contrários orbitando ao redor de um centro de gravidade temática é desenvolvido por Osman Lins em suas linhas narrativas. Salta o peixe das vastidões do mar, salta o peixe e este salto nem sempre ocorre no momento propício, nem sempre advém próximo à terra, às ilhas, aos arrecifes, nem sempre há luz nessa hora, pode o peixe encontrar um céu negro e sem ventos, ou uma tempestade noturna sem relâmpagos, ou uma tempestade de raios e relâmpagos, assim o salto, o instante do salto, esse rápido instante pode coincidir com a treva e o silêncio, pode coincidir com o mundo ensolarado, enluarado, o peixe no seu salto pode nada ver, pode ver muito, pode ser visto no seu brilho de escamas e de barbatanas, pode não ser visto, pode ser cego e também pode no salto, no salto, no salto, encontrar no salto, exatamente no salto, uma nuvem de pássaros vorazes, ter os olhos vazados no momento de ver, ser estraçalhado, convertido em nada, devorado, e o espantoso é que esses pássaros famintos representam a única e remota possibilidade, a única, concedida ao peixe, de prolongar o salto, de não voltar às guelras negras do mar. Mas não serão essas aves, seus bicos de espada, uma outra espécie de mar, sem nome de mar? (O 8, p. 44). No trecho acima, o autor, a semelhança do quadro de Escher, retrata peixes que saltam do escuro envolvente para uma atmosfera incerta, que pode estar oculta pela noite, revolta por temporais e raios ou aquietada por um dia ensolarado e calmo que, não obstante, pode trazer o perigo de ataque de um bando de pássaros, os quais poderão comer-lhes os olhos e devorá-los. 48 Só assim teriam a oportunidade de sair definitivamente da escuridão e permanecer por mais tempo no ar transparente do céu. A atmosfera sobre o oceano pode ser associada ao mundo dos homens, incerto e imprevisível tal qual o soar integral dos fragmentos da introdução da sonata de Scarlatti. As diversas possibilidades que esperam o peixe que salta, desde a noite escura até o dia ensolarado e calmo, remetem a tudo que envolve as imponderabilidades da vida humana. A morte dos peixes quando devorados pelos pássaros carrega um simbolismo associado aos aspectos místicos da iniciação, o renascimento para uma nova vida que ocorreria em um momento de transição da escuridão para o voo na luz do conhecimento, à semelhança do voo do Avalovara que, em determinado momento, envolto pelas luzes dos raios que lhe trespassam o corpo, introduz na renascimento para luz. Este fragmento narrativo em Avalovara retrata o pulo do peixe, deixando a imaginação do leitor perceber o som desse salto envolto no som portentoso do mar, um som que se diferencia pela sua singularidade, conformado pela água que se descola da superfície e que dá vida a esse salto impetuoso para a visão do infinito e do desconhecido. A atração de Osman Lins pela transformação de quadros famosos em contextos narrativos se verifica, também, em Avalovara, na representação do caminhar fictício de um grupo de militares que surgem do chão e marcham pela rua em que estão parados Abel e Roos, em Amsterdã. Neste cenário, o barulho do rataplã das botas remete Abel ao devaneio de uma Olinda distante no tempo e no espaço. A mulher iluminada que acompanha o grupo de homens armados com lanças e tambores reconstitui no imaginário dos personagens o quadro de Rembrandt, A Ronda da Noite16, revitalizado na narrativa pela movimentação da guarda e pela reprodução detalhada dos sons das botas batendo no chão, dos tecidos, das risadas, das vozes, das línguas, das lanças se entrechocando, dos colares e dos tambores. A respeito da atração de Osman pela pintura, Nitrini (2004), em seu artigo O tempo na arte, a arte no tempo (Uma leitura de Marinheiro de primeira viagem), avalia a “perenidade da arte” nas escritas de escritor. a sabedoria das palavras: a morte e o subsequente Suas obras anteriores têm um forte apelo visual, no entanto, é a partir do próprio Marinheiro de primeira viagem que a literatura de Osman Lins passa a manter laços mais estreitos com a linguagem da pintura. No caso desse livro, as referencias não se limitam aos vitrais da Idade Média e à arte românica em geral, apesar da forte 16 A menção ao quadro de Rembrandt associada à Ronda da Noite foi baseada na pesquisa realizada por Leny da Silva Gomes. (GOMES, 1998). 49 impressão que causaram ao escritor viajante. Os ecos da pintura na linguagem literária de Marinheiro de primeira viagem consolidam-se também por meio de analogias com quadros e específicos da pintura moderna nas descrições de espaços e personagens. Desse modo Matisse, Seurat, Dufy, Van Gogh e Renoir tornaram-se presentes nesse livro de Osman Lins. (NITRINI, 2004, p. 41). Nitrini reafirma o modo como Osman Lins elabora a narrativa. Muito mais do que uma simples transposição descritiva de quadros famosos, Lins transmuta-os dando vida aos seres e aos personagens neles retratados, que saem misturando-se com o enredo ficcional do romance e com seus protagonistas como se dele fizessem parte. 3 50 CLASSIFICAÇÃO DOS SONS EM AVALOVARA 3.1 PEÇAS MUSICAIS RELEVANTES E SEUS SIGNIFICADOS Ao longo do romance ganham destaque quatro peças musicais, as quais se consolidam como referências para as personagens femininas Roos, Cecília e em suas trajetórias amorosas com o escritor Abel: Salmo In Convertendo Dominus, Pastoril, Sonata em fá menor (K 462) e Cantata Catulli Carmina. Abel e Roos submergem nos sons religiosos do Salmo In Convertendo Dominus, de André Campra, durante um passeio pelas proximidades da Catedral de Notre-Dame em Paris. Esta música barroca traz à tona um passado que delineia a sólida bagagem musical do velho continente e que se identifica com as origens de Roos, a mulher europeia, cujos passos sincronizam com os ritmos da batida dos sinos da igreja de sua cidade natal, a pequena Eltville. Com a assistente social Cecília, Abel vivencia a dança do Pastoril, na praia dos Milagres. A tradição folclórica religiosa encontra paralelo na personalidade e na profissão da mulher do povo, que com ele se identifica, cujo corpo abriga inúmeros seres oprimidos e silenciados pela opressão política e pela discriminação social. A discreta introdução da sonata para cravo de Scarlatti, fragmentada no relógio de J.H., contrasta com os ritmos frenéticos da cantata do século XX, Catulli Carmina, de Carl Orff. O soar das batidas do relógio em meio à reprodução dos trechos da cantata constrói, no universo musical do romance, um convívio necessário e inevitável entre os contrastes, sugerindo, pela natureza das peças musicais, a representação do sacro e do profano, associado à união carnal dos amantes Abel e a . Com o intuito de catalogar as sonoridades presentes nos diferentes cenários acústicos de Avalovara, foi elaborada uma tabela contendo a classificação desses sons a partir dos estudos de Murray Schafer, bem como identificando trechos com os sons, com as músicas e com os momentos de silêncio que compõem a complexa paisagem sonora do romance. Para cada tipo de som, selecionou-se um trecho significativo com a finalidade de segregar as sonoridades inseridas em cada um deles e ressaltar a importância atribuída à expressão sonora no âmbito da narrativa. Tais citações estão dispostas no Apêndice. Cabe citar que a minha dissertação de mestrado, Avalovara: leituras musicais, tratou das referidas peças musicais enfatizando os aspectos numéricos a elas relacionados e a relação da segmentação e da estrutura formal dessas composições com a organização construtiva do romance. Tal associação, apesar de indireta, denota a unicidade estrutural de Avalovara, quando a introdução da Sonata K462 para cravo, de Domenico Scarlatti, foi dividida por J.H. 51 em treze partes, o mesmo número de circunvoluções da espiral sobre o quadrado mágico do palíndromo do escravo frígio Loreius. Sabe-se que a espiral é um componente indispensável de relógios mecânicos, sendo percebida, no romance, como uma representação do tempo, da mesma forma que os fragmentos da sonata de Scarlatti fazem parte do relógio de J.H. A cantata de Carl Orff, por sua vez, também é constituída de treze partes demonstrando a existência de uma rede de intersecções entre as estruturas de músicas importantes com a organização estrutural de Avalovara. De fato, os identificadores dos temas formados por letras (A, E, N, O, P, R, S, T) e por um número que os seguem originam-se, respectivamente, da passagem das curvas da espiral sobre qualquer um dos vinte e cinco quadrados menores do palíndromo e da sequência com que o traçado passa pelo pequeno quadrado. As quatro peças musicais acima referidas sobressaem-se em meio a um conjunto de sons característicos e significativos identificados na narrativa, sendo caracterizadas, no âmbito deste trabalho, como constituintes da paisagem sonora de Avalovara, em sintonia com as definições de Murray Schafer sobre o tema. Percebe-se que o compositor e educador canadense expandiu a abrangência da ecologia para o universo sonoro a partir de suas pesquisas sobre a evolução das paisagens sonoras, especialmente quando disseca os sons artificiais provenientes da sociedade industrial e, posteriormente, da sociedade tecnológica, descrevendo com detalhes os ruídos oriundos de dispositivos mecânicos, elétricos e eletrônicos, em relação a muitos dos quais o ouvido humano não estaria apto a conviver. Criou alguns conceitos importantes com a finalidade de melhor estruturar o resultado de seus estudos e de promover um sistema para a classificação dos sons. 3.2 CONCEITOS Schafer conceitua a expressão “paisagem sonora” como [...] qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente. (SCHAFER, 2001, p. 366). Com o objetivo de estabelecer uma caracterização mais apropriada para o referido termo, Schafer faz algumas considerações: A paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de 52 estudo, do mesmo modo que podemos estudar as características de uma determinada paisagem. Todavia, formular uma impressão exata de uma paisagem sonora é mais difícil do que a de uma paisagem visual. Não existe nada em sonografia que corresponda à impressão instantânea que a fotografia consegue criar. (SCHAFER, 2001, p. 23). Relacionados às paisagens sonoras, os termos objeto sonoro e evento sonoro apresentam distinções relevantes para este estudo: Objeto sonoro pode ser definido como a menor partícula autocontida de uma paisagem sonora. O ouvido pode ser treinado para ouvir suas características, definidas como ataque, meio e fim. Não existe uma preocupação primordial com a fonte sonora, mas com as características do som que ela emite. (Ibidem, p. 183). [...] Quando se focalizam sons individuais de modo a considerar seus significados associativos como sinais, símbolos, sons fundamentais ou marcos sonoros, proponho chamá-lo de eventos sonoros, para evitar confusão com objeto sonoro, que são espécimes de laboratório. (Ibidem, p. 183). [...] Assim, o mesmo som - por exemplo, um sino de igreja, poderia ser considerado objeto sonoro se fosse gravado e analisado em laboratório, ou como evento sonoro, se fosse identificado e estudado na comunidade. (Ibidem, p. 185). [...] Determinar o modo pelo qual os sons se afetam e se modificam (e a nós mesmos) em situação de campo é tarefa infinitamente mais difícil do que separar sons individuais em um laboratório [...]. (Ibidem, p. 185). Em capítulo posterior, Schafer conceituou o que ele denominou de “espaço acústico”: “O espaço acústico de um objeto sonoro é o volume de espaço no qual o som pode ser ouvido. O máximo espaço acústico habitado pelo homem será a área dentro da qual se pode ouvir a sua voz.” (SCHAFER, 2001, p. 299). Menciona a grande dificuldade ou até a impossibilidade de se estabelecer limites para esse espaço devido ao alto poder de penetração do som, o que tem provocado grandes desconfortos à medida que os ruídos tecnológicos vem aumentando de intensidade e de diversidade. Um terreno ou uma área geográfica podem ter seus limites estabelecidos com bastante facilidade quando há a necessidade da delimitação da privacidade espacial de uma propriedade privada ou de uma comunidade. Entretanto, a privacidade sonora só pode ser obtida quando se está fora de determinado espaço acústico indesejado. A solução encontrada para este problema, segundo Schafer, foi o recrudescimento das cláusulas limitadoras da legislação anti-ruído. Outras soluções tem sido adotadas como, por exemplo, o uso de isolamento acústico em salas de concerto, o que restringe o espaço acústico à região espacial delimitada pelas paredes do teatro, ou então a fixação de horários de funcionamento de atividades barulhentas, como é o caso de aeroportos ou obras em área urbanas que exijam 53 equipamentos ruidosos. Também tem-se feito uso do ruído branco como barreira acústica aos sons externos ao espaço privado. No campo da tecnologia da comunicação, o rádio, a televisão e mais atualmente os equipamentos de comunicação digital (smartphones, computadores, tablets, smart TVs) globalizaram a paisagem sonora mundial, reproduzindo, por meio de ondas eletromagnéticas, em pontos bem mais distanciados dos limites do espaço acústico original, os sons gerados dentro desses espaços. Já o fone de ouvido foi uma invenção que reduziu drasticamente o espaço acústico aos limites do canal auditivo de quem o ouve. Fones mais modernos produzem, por meio de software específico ondas negativas de som que anulam os ruídos externos que chegariam ao ouvido naturalmente, produzindo a sensação de silêncio quase absoluto. Existem pesquisas em andamento para fabricar alto-falantes especiais que, ao invés de espraiar radialmente os sons por eles gerados, os direcionará para uma região desejada. Schafer relata que, na Idade Média, o espaço acústico era determinado pelo alcance do som do sino da igreja. Quando se analisam os sons como objetos sonoros, 17 o foco se volta para suas características físicas desconsiderando, portanto, a origem desses sons, pois uma mesma fonte pode emitir sonoridades com diferentes características. Para estudar os sons como objetos sonoros, Schafer desenvolveu uma tabela onde nas linhas horizontais constam as características, algumas delas expressas graficamente, referentes a ataque, corpo e queda18 associadas aos parâmetros, dispostos nas linhas verticais, de duração, frequência e dinâmica (intensidade). Segundo Pierre Schaeffer (apud SCHAFER, 2001), o som também pode ser classificado de acordo com o que ele denominou de massa, que indica a presença de uma única frequência (som musical) ou de várias frequências (ruídos), e de grão, que avalia a presença de modulações regulares de amplitude (trêmulos) ou de frequência (vibratos). Para a análise referencial dos sons, portanto como eventos sonoros, Schafer atribui relevância para a fonte geradora, separando-os em diversas categorias que abrangem sons Este termo foi criado pelo engenheiro mecânico francês Pierre Schaeffer, cujos estudos sobre acústica estavam voltados para a psicoacústica, ou seja, para a forma como o ser humano percebe os sons e não somente para a análise física de suas características. 18 Nesta forma de classificação do objeto sonoro, é avaliado o invólucro das ondas sonoras segmentado em três fases: durante o período em que ele é produzido (ataque), nos instantes seguintes em que ele permanece soando (corpo) e no período de decaimento. No ataque, o som vem acompanhado de diversas frequências assumindo características próximas a ruídos. Durante o período chamado de corpo, os sons permanecem estacionários, ou seja, aproximadamente com a mesma intensidade. A queda consiste no período em que a intensidade sonora declina até atingir o limite de audibilidade do ouvido humano. Sons de piano, de sinos e de instrumentos de percussão, por exemplo, não tem corpo, somente ataque e queda. Já os sons de flauta e de violino, tem ataque, corpo e queda porque é possível manter o som com o sopro, no caso da flauta, ou com o movimento do arco do executante, no caso do violino. 17 54 naturais, sons artificiais e o silêncio. A escolha da palavra “evento” decorreu de seu significado que envolve um contexto espaço-temporal, tornando-a compatível com a identificação de sons presentes no ambiente sociocultural de uma comunidade para fins de estudo. Schafer menciona a possibilidade de exploração das qualidades estéticas dos sons; advertindo, entretanto, sobre as dificuldades inerentes a esta forma de classificação em virtude da necessidade de avaliação de aspectos subjetivos, envolvendo percepções psicológicas. Sobre este tema afirma: “Os sons afetam os indivíduos de modo diferente e, com frequência um único som pode estimular variedades de reações tão amplas que facilmente o pesquisador poderá tornar-se confuso ou desalentado.” (SCHAFER, 2001, p. 205). Por se tratar de linguagem verbal ficcional é impossível destacar os sons de Avalovara individualmente e analisar suas características relacionadas a objetos sonoros, o que somente poderia ocorrer com sons reais gravados para serem levados a um laboratório. Isto porque a representação de sonoridades no contexto da narrativa literária fica limitada à expressão verbal. Cabe ao leitor reproduzir em sua imaginação as inúmeras nuanças de cada som representado pelo autor, associadas ao espaço cênico. Assim, neste trabalho, a classificação dos diferentes sons presentes na paisagem sonora do romance deverá ater-se às fontes que os originam (eventos sonoros), devendo ser analisados seus aspectos associativos e simbólicos. Entretanto, uma certa proximidade com a realidade da experiência da percepção sonora ocorre em algumas passagens em que são descritas características como a dinâmica (fortes ou fracos) e a altura (frequência) dos sons. “Soa o telefone, na mesa do Chefe. O som da campainha, estridente, agita os dois andares em silêncio.” (T 10, p. 148). Aqui são caracterizados os atributos intensidade e timbre do som da campainha do telefone quando menciona o som estridente que se propaga por dois andares do prédio em que Abel trabalha. “Passa o trem do cais, devagar. Seu apito, nasal e poderoso, o mugir de um grande boi de ferro.” (T 9, p. 138). Nesta citação, o apito de trem é mostrado como um som de grande intensidade, associando seu timbre ao de um som emitido por um animal. 3.3 CATEGORIZAÇÃO Deve-se ter em mente que as pesquisas de Schafer tiveram o propósito de compreender com mais profundidade e também de catalogar a evolução sonora de nossa sociedade desde os tempos anteriores à revolução industrial. Focou suas investigações nos contextos sócio-históricos concretos, ainda que muitos dos sons apresentados tenham sido 55 obtidos de narrativas dos clássicos da literatura. Descreve com detalhes a classificação para eventos sonoros utilizada em seu projeto que inclui doze categorias com suas subcategorias. (SCHAFER, 2001) Sons naturais: a) Sons da criação; b) Sons do apocalipse; c) Sons da água: 1) oceanos, mares e lagos; 2) rios e riachos; 3) chuva; 4) gelo e neve; 5) vapor; 6) fontes; etc.; d) Sons do ar: 1) vento; 2) tempestades e furacões; 3) brisas; 4) trovão e relâmpago; etc.; e) Sons da terra: 1) terremotos; 2) deslizamentos; 3) minas; 4) cavernas e túneis; 5) rochas e pedras; 6) outras vibrações subterrâneas; 7) árvores; 8) outras vegetações; f) Sons do fogo: 1) grandes conflagrações; 2) vulcões; 3) lareiras e fogueiras; 4) fósforos e isqueiros; 5) velas; 6) lampiões a gás; 7) lamparinas; 8) tochas; 9) festivais ou rituais do fogo; g) Sons de pássaros: 1) pardal; 2) pombo; 3) maçarico; 4) galinha; 5) coruja; 6) cotovia; etc.; h) Sons de animais: 1) cavalos; 2) gado; 3) carneiro; 4) cachorro; 5) gatos; 6) lobos; 7) esquilos; etc.; i) Sons de insetos: 1) moscas; 2) mosquitos; 3) abelhas; 4) grilos; 5) cigarras; etc.; j) Sons de peixes e criaturas do mar: 1) baleias; 2) botos; 3) tartarugas; etc. k) Sons das estações do ano: 1) primavera; 2) verão; 3) outono; 4) inverno. I Sons humanos: a) Sons da voz: 1) fala; 2) chamado; 3) sussurro; 4) choro; 5) grito; 6) canto; 7) boca chiusa; 8) risada; 9) tosse; 10) ronco; 11) gemido; etc.; b) Sons do corpo: 1) batimento cardíaco; 2) respiração; 3) passos; 4) mãos (batendo, arranhando, etc.); 5) comer; 6) beber; 7) evacuar; 8) fazer amor; 9) sistema nervoso; 10) sons do sonho; etc.; c) Sons do vestuário: 1) roupas; 2) cachimbo; 3) joias; etc. II Sons e sociedade: 56 a) Descrições gerais de paisagens sonoras rurais: 1) Grã-Bretanha; 2) América do Norte; 3) América Latina; 4) Oriente Médio; 5) África; 6) Ásia Central; 7) Extremo Oriente; b) Paisagens sonoras dos vilarejos: 1) Grã-Bretanha e Europa; etc.; c) Paisagens sonoras da cidade: 1) Grã-Bretanha e Europa; etc.; d) Paisagens sonoras marítimas: 1) navios; 2) botes; 3) portos; 4) praia; etc.; e) Paisagens sonoras domésticas: 1) cozinha; 2) sala de estar e lareira; 3) sala de jantar; 4) quarto; 5) banheiro; 6) portas; 7) janelas e venezianas; etc.; f) Sons do comércio e de profissões: 1) ferreiro; 2) moleiro; 3) carpinteiro; 4) funileiro; etc.; g) Sons das fábricas e escritórios: 1) estaleiro; 2) serraria; 3) banco; 4) jornal; h) Sons de entretenimento: 1) eventos esportivos; 2) rádio e televisão; 3) teatro; 4) ópera; etc.; i) Música: 1) instrumentos musicais; 2) música de rua; 3) música doméstica; 4) bandas e orquestras; etc.; j) Cerimônias e festivais: 1) música; 2) fogos de artifício; 3) paradas; etc.; k) Parques e jardins: 1) fontes; 2) concertos; 3) pássaros; etc.; l) Festivais religiosos: 1) grego antigo; 2) bizantino; 3) católico romano; 4) tibetano; etc.. III Sons mecânicos: a) Máquinas (descrições gerais); b) Equipamentos industriais e de fábrica (descrições gerais); c) Máquinas de transporte; d) Máquinas de guerra; e) Trens e bondes elétricos: 1) locomotivas a vapor; 2) locomotivas elétricas; 3) locomotivas a diesel; 4) sons dos desvios e pátios de manobras; 5) sons de vagões; 6) ônibus elétricos; etc.; f) Máquinas a combustão interna: 1) automóveis: 2) motocicletas; etc.; g) Aeronaves: 1) aviões a propulsão; 2) helicópteros; 3) jatos; 4) foguetes; etc.; h) Equipamentos de construção e de demolição: 1) compressores; 2) martelos; 3) furadeiras; 4) máquinas de terraplanagem; 5) bate-estacas; etc.; i) Ferramentas mecânicas: 1) serras; 2) plainas; 3) lixadeiras; etc.; j) Ventiladores e aparelhos de ar-condicionado; caminhões; 3) 57 k) Instrumentos de guerra e destruição; l) Maquinaria de fazenda: 1) debulhadoras; 2) enfardadeiras; 3) tratores; máquinas de ceifar e debulhar; etc.. IV V Quietude e silêncio. Sons indicadores: a) Sinos e gongos: 1) igreja; 2) relógio; 3) animais; etc.; b) Buzinas e apitos: 1) tráfego; 2) botes; 3) trens; 4) fábricas; etc.; c) Sons de tempo: 1) relógios; 2) relógios de pulso; 3) toque de recolher; 4) guardas noturnos, etc.; d) Telefones; e) Sistemas de alarme; f) Sinais de prazer; g) Indicadores de ocorrências futuras. VI VII VIII IX X XI Sons mitológicos. Sons das utopias. Sons psicogênicos das alucinações e dos sonhos. Últimos sons ouvidos antes de dormir. Primeiros sons ouvidos ao despertar. Experiências acústicas que se ligam a outros sentidos (sinestesia). Diferentemente do projeto de Schafer, a análise proposta neste trabalho se insere no âmbito da representação verbal e requer uma incursão pelos sons ficcionais criados nos cenários sonoros construídos em Avalovara. As tipologias elaboradas por Murray Schafer, em suas pesquisas sobre paisagens sonoras, serviram de base para a classificação das sonoridades do romance que deverá, além de propor uma caracterização dos sons de Avalovara, conduzir à interpretação da interação entre música e literatura. Deve-se levar em consideração que, no decorrer desta análise, foi necessário transpor uma metodologia aplicada ao mundo real para o mundo ficcional, de forma coerente, o que possibilitou classificar os sons do romance para melhor desvendar os seus significados e as suas relevâncias para a compreensão da narrativa. Cabe ressaltar que, em virtude dos diferentes contextos narrativos de Avalovara convergirem para a unificação legível no tema N, convencionou-se caracterizar essa obra como uma única paisagem sonora; por conseguinte, designar os agrupamentos de sons identificados na narrativa, associados a cenas e situações bem delimitadas, como cenários 58 sonoros. Foi necessário também segregar os variados sons de todos esses cenários para então, com base no minucioso arranjo elaborado por Schafer, definir uma estrutura classificatória que envolvesse todos os sons do levantamento efetivado nessa obra literária. A pesquisa de Schafer constrói uma categorização de sons com uma riqueza de detalhes voltada para a identificação dos incontáveis tipos de sons naturais e artificiais que atingiram e atingem nossos ouvidos, cujo resultado se apresenta, não como uma pesquisa acabada e definitiva, mas como um ponto de partida para futuros desenvolvimentos e ampliações da classificação por ele proposta, o que fica evidenciado pelos “etc” adicionados à maioria das listas de tipos de sons. Schafer associou os títulos mais genéricos de sua lista de sons ao termo “categoria”, de modo que, para tornar o conteúdo aqui exposto mais claro e sistemático, serão usados, por convenção, os termos “categoria geral”, “categoria específica” e “tipo” para definir os diferentes níveis de organização dos sons identificados em Avalovara. Assim, tendo em vista a opção de análise dos eventos sonoros, a classificação aqui proposta reuniu os sons levantados no romance em sete categorias gerais: I II III IV V VI VII Sons naturais; Sons humanos; Sons e sociedade; Sons eletromecânicos; Sons indicadores; Sons da mitologia; Quietude e silêncio. Para cada categoria geral foram estabelecidas categorias específicas que, por sua vez, desdobraram-se em diversos tipos. Cada categoria geral com as respectivas categorias específicas procuram aglutinar os inúmeros sons em itens que possibilitam uma visão sistematizada sem perder de vista a riqueza dos detalhes das expressões sonoras levantadas pela pesquisa. Assim, ainda que as categorias gerais tenham sido obtidas da sistemática de classificação elaborada por Schafer, a definição das categorias específicas e dos tipos emergiu, principalmente, do material sonoro identificado no romance, de modo que foi possível inserir os sons pesquisados em Avalovara nos tipos enumerados na tabela. De todos os tipos pesquisados, foi dado ênfase a um conjunto de sons os quais revestem-se, no contexto da linha narrativa, de aspectos simbólicos especiais e de 59 características associativas aos personagens e às situações vividas por estes sendo, por esta razão, caracterizados, nesta tese, como marcos sonoros. Tais tipos de sons estão diferenciados na tabela abaixo por meio das cores azul e rosa. Dentre os tipos de sons selecionados, destaca-se um conjunto de sonoridades musicais e de sonoridades relacionadas ao canto do Avalovara e ao despertar da , que revelam momentos de intensa significância e dramaticidade no âmbito do enredo narrativo e que, por convenção, serão aqui denominados de eixos sonoros. A pesquisa desenvolvida terá como foco principal essa gama de sons e os contextos ficcionais a eles associados, abrangendo as três peças musicais eruditas (Salmo de André Campra, Sonata de Scarlatti e Cantata de Carl Orff), o popular representado pelo Pastoril, o grito e o canto do Avalovara e os sons internos relacionados ao despertar da cônica sobre o corpo da (sons do cálice vibrante, do giro e do zumbido da máquina , e das palavras e vozes integrantes de seu corpo). A partir das descrições de sonoridades, contextualizando os inúmeros cenários registrados na tabela de categorias de sons, foi possível vislumbrar a importância das peças musicais acima referidas e abordadas no início deste capítulo e que passarão a ser denominadas, nesta tese, de eixos musicais, em relação as quais serão trazidos os aspectos associativos e simbólicos. Essas quatro composições musicais constituídas por três peças eruditas e uma do folclore religioso popular, mais do que trilhas sonoras, se apresentam como matrizes acústicas ornamentais das ideias centrais da narrativa que formam o enredo em torno da trajetória de Abel com seus amores. Preenchem os protagonistas de vitalidade e de movimento e fazem parte dos momentos cruciais de suas histórias de vida. A título de ilustração, a figura que segue mostra o agrupamento dos eixos sonoros e musicais dentro do conjunto de sons definidos como marcos sonoros, demonstrando que os eixos musicais são também eixos sonoros e marcos sonoros e que os eixos sonoros são também marcos sonoros. Figura 3 – Marcos sonoros, eixos sonoros e eixos musicais Marcos sonoros Eixos sonoros Eixos musicais 60 Até aqui foram individualizadas as sonoridades do romance com a finalidade de identificá-las e categorizá-las. No entanto, em observância ao conceito estabelecido por Schafer para eventos sonoros e que se firmou como referência teórica para a categorização desenvolvida neste trabalho, tais sonoridades foram abordadas no âmbito da inter-relação entre os inúmeros sons de Avalovara no contexto da paisagem sonora ficcional. Portanto, nos diversos cenários que se sucedem na narrativa, os sons caracterizados como eixos sonoros se misturam com vários outros sons, formando um rico caleidoscópio acústico que engloba sonoridades de diferentes naturezas. Encontrou-se um cenário sonoro com quatorze tipos diferentes de sons, o que sugere a intenção do autor em construir uma linha narrativa dinâmica e ornamentada com ritmo musical, em que também as percepções sensoriais do leitor são aguçadas em sua imaginação. Ao todo foram selecionados quatrocentos e cinquenta e dois cenários sonoros, os quais abarcam os sons inseridos no romance. A construção da estrutura classificatória adotou como critério único os sons referenciados pela fonte que os originam, em decorrência da impossibilidade de se analisar os aspectos físicos dos sons ficcionais, de modo que este critério foi observado quando da construção dos três níveis de categorização. Em sua classificação, Schafer enfatiza que alguns tipos de sons podem aparecer em categorias diferentes pelo fato de estarem associados a contextos diferentes, razão pela qual, durante o processo de categorização aqui desenvolvido, as características associativas de tais sons fazem com que naturalmente eles sejam inseridos em mais de uma categoria específica. Como os sons podem atuar em contextos muitos variados, todas as fichas descritivas indexadas nesse sistema constituem, no mais das vezes, referências cruzadas. Assim, qualquer som dado pode aparecer em vários lugares, concedendo-nos a oportunidade de vê-lo a partir de diferentes ângulos ou compará-los a outros de uma determinada categoria. (SCHAFER, 2001, p. 203). Isto ocorre pela própria natureza dos sons referenciais como, por exemplo, para os sons de veículos automotivos que aparecem em duas categorias específicas. Em uma delas, são descritos de forma não individualizada e misturados aos demais sons da cidade sendo, portanto, classificados dentro do tipo sons urbanos, vinculada à categoria específica sons da cidade. 61 [...] quatro horas e trinta e três minutos, meus peitos de mulher e seu membro de homem, ocupamos uma esfera de caprichos e decifrações, rodeiam-nos as máquinas, as vozes e os miasmas da cidade, o Portador, pousamos sobre a lã ordenada do tapete. (E 14, p. 341). Em outros cenários, os mesmos sons são descritos isoladamente e com algum detalhamento; por esta razão, foram inseridos na categoria específica sons de veículos automotivos, vinculada à categoria geral sons eletromecânicos: “Ônibus chegam e partem fazendo curvas fechadas, carregadores atropelam os passageiros e mendigos enrolados em jornais, os pés casquentos protegidos com restos de sapatos, ressonam junto às paredes.” (R 17, p. 276). Dentro da categoria geral sons e sociedade, alguns sons musicais aparecem na categoria específica sons de celebração e de festivais, como é caso do Pastoril, As pastoras, vibrando os pandeirinhos enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Seus pés e o grande laço vermelho e azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto. Modesto Canabarro, a barba branca, ginga à frente da orquestra que vem pelo alpendre. (T 17, p. 267). e de músicas nupciais. Um casal almoça no meio de um trigal ainda verde, a mulher sentada e o homem reclinado. Aparece em meio à plantação, de braços dados, um casal de noivos, os acompanhantes dançam, alguém toca uma rabeca cujo som não chega ao ônibus. O casal que almoça acena para os noivos. (A 5, p. 36). Outros são enquadrados na categoria específica música, quando se trata da Sonata K462, de Scarlatti, “Voltar a ouvir, íntegra, a frase de Scarlatti, será como testemunhar um eclipse”(P 8, p. 299-300), da cantada de Catulli Carmina, de Carl Orff, “[...] Abel em mim, dentro de mim seu cabeço, seu punho, seu braço, dentro de mim as gargantas dos cantores, suas vozes longínquas, eis aiona! (O 22, p. 215) e do Salmo In Convertendo Dominus, de André Campra, “Conheço o que agora cantam: o Salmo “ln Convertendo Dominus”, de Campra.” (A14, p. 111). Cabe relembrar a origem da categorização desenvolvida neste trabalho, que remete à segregação de sons feita por Schafer, tendo sido modificada para atender às especificidades da paisagem sonora ficcional de Avalovara. Ao enquadrar os sons em categorias bem diferenciadas, buscou-se agrupá-los dentro de limites bem caracterizados de forma a dar 62 maior consistência à estrutura classificatória, tendo como ponto de partida a amplitude e a solidez da pesquisa desenvolvida pelo músico canadense. A imaginação dos personagens e também suas lembranças materializam-se no romance por meio da representação dos sons elaborados a partir de suas vivências internas. É no decorrer da narrativa ficcional que tais sons se destacam para o leitor que ouve o interior imaginativo desses personagens, sons esses que no mundo real permaneceriam indecifráveis. Os diálogos não são considerados na classificação porque fazem parte da estrutura narrativa. As quantidades de categorias gerais, de categorias específicas, de tipos, de marcos sonoros, de eixos sonoros e de eixos musicais são as seguintes: • • • • • • categorias gerais: 7; categorias específicas: 36; tipos: 207; marcos sonoros: 25; eixos sonoros: 9; eixos musicais: 4. A tabela que segue mostra a classificação adotada e as quantidades de expressões sonoras encontradas para cada tipo. Como cada tipo de som é considerado somente uma vez em cada cenário sonoro, as quantidades de som mostradas na tabela indicam, também, a quantidade de cenários sonoros nos quais os tipos aparecem. 63 Tabela 1 - Categorização de sons CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA 1 2 3 4 A) Sons da água, do ar e do fogo 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 I - SONS NATURAIS 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 TIPO Mara Água do lago em Paris Gorgolejar das águas pluviais Som de pedra ou de mergulho de rãs na água Jato de água de torneira Ventoa Trovãoa Chuvaa Labaredas de fogo Chama de lamparina Canto dos pássaros de Hermenilda/Hermelinda Grito ou canto de pássaros em geral Ruflo das asas de pássaros Pássaros movendo-se nos galhos de árvores Pavão Urubus Gansos Galos Batráquios Salto de peixe Abelhas Moscas Cigarras Grilos Mariposas Besouro Barata Carneiros / Cordeiros Cães Gatos Bezerros Bois Cavalo Leões QUANTI DADE 50 1 1 1 2 50 20 24 2 1 3 18 10 1 1 1 1 5 1 6 4 3 2 1 2 1 1 10 8 2 1 1 8 5 B) Sons de animais a Marcos sonoros 64 Tabela 1 - Categorização de sons (continuação) CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 TIPO Passos de andar ou de correr Marcha compassada Tropel Passos de dança Ossos rangendo Pigarro Gesticular Respiração Suspiro Circulação sanguínea Batimento cardíaco Assovio Bater palmas entre si ou palmas contra o corpo Pancadas no corpo (espancamento) Aplausos Beijo Ranger de dentes Estalo de juntas Estalo de dedos Estalo de ossos da Natividade Rosto contra rosto Conjunto de sons do ato sexual Conversas ao telefone Primeiras falas da Leitura em voz alta Canto Vozes de muitas pessoas Declamação Reza Sussurro Risada Trava língua Chamado Grito Eco de grito Choro Gemido Murmúrio Imprecação Exclamação Vaia Tosse Canto individual Coro Imitação de pássaros Pregão QUANTI DADE 29 1 3 5 1 1 2 12 2 5 7 3 6 2 1 7 2 1 1 1 2 9 2 8 1 8 33 2 1 13 9 1 12 35 1 7 3 1 1 2 1 6 4 2 1 1 A) Sons do corpo II - SONS HUMANOS B) Sons da voz 65 Tabela 1 - Categorização de sons (continuação) CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA C) Sons de vestuário 81 82 83 84 85 TIPO Vestimentas Costuras de roupa estalando QUANTI DADE 1 1 36 4 2 1 2 3 1 4 2 2 1 21 2 D) Sons transcendentes, palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e b Palavras e vozes no corpo da Vozes de Cecília dúplice, andróginaa Vozes dos corpos em Cecíliaa Som representativo da unidade entre 86 Cecília e Roos Cálice vibrante no centro do corpo 87 b da Som da máquina cônica sobre a 88 b II - SONS HUMANOS E) Sons imaginados 89 Sons do grifo do fular de Roos 90 Sons de tecidos sendo rasgados Representação de sons imaginários a 91 partir da visão do quadro de Rembrandt A Ronda da Noite 92 Sons ou vozes internos Sons de traças roendo fotografias 93 sugeridos ao leitor 94 Lembranças 95 Voz interna da Natividade na transição entre a vida e a morte F) Sons de lembranças G) Sons da mente na passagem para morte a+b b Marcos sonoros a+b Eixos sonoros refere-se ao conjunto de sonoridades classificadas como marcos sonoros, das A indicação quais foram segregados os tipos de sons identificados pela cor azul (b), denominados de eixos sonoros neste trabalho, para fins de uma análise mais pormenorizada. 66 Tabela 1 - Categorização de sons (continuação) CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA A) Sons da cidade TIPO 96 Sons urbanos Sons domésticos: chaves na porta, portas batendo, abrir janelas, campainha, louças, talheres, panelas, 97 móveis batendo, móveis caindo, móveis se movimentando, descarga de banheiro. 98 Arranhar de folhas em edificações 99 Vidros de janelas estremecendo 100 Pingentes de lustro de cristal Sons de portas batendo, de dobradiças 101 e de fechaduras rangendo Murros ou batida em portas 102 domésticas e de elevadores 103 Urinóis 104 Ranger de paredes Xïcaras, máquina de datilografia, 105 campainhas, carimbos, chamada de telefone, guichês 106 Fogos de artifício, rojões 107 Festivais religiosos 108 Música nupcial 109 Pastorilb Tremular de bandeiras em eventos 110 públicos 111 Jogo de tênis 112 Carrinho de lomba 113 Roda gigante Protestos de rua e bombas de efeito 114 moral 115 Canto de trabalho da Natividade 116 Bilros 117 Amolador de tesouras 118 Forno Controles, roletas, rádios, ligações 119 telefônicas QUANTI DADE 7 13 B) Sons domésticos 2 1 3 6 2 1 2 4 3 1 2 2 1 1 1 1 4 4 3 1 1 1 III - SONS E SOCIEDADE C) Sons de escritório D) Sons de celebração e de festivais E) Sons de entretenimento F) Sons de protestos e de repressão G) Canto de trabalho e sons de instrumentos de trabalho H) Sons diversos de estação de trem b Eixos sonoros 67 Tabela 1 - Categorização de sons (continuação) CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO 120 Música folclórica 121 Música popular de rua Salmo "In convertendo dominus" de 122 Andre Camprab 123 Cantata Catulli Carmina de Carl Orffb Fragmentos da introdução da Sonata K 124 462 para cravo de Scarlatti no relógio de J.H.b 125 Tambores 126 Pandeiros 127 Chocalhos 128 Órgão 129 Pianoa 130 Bandolim 131 Clarinete 132 Instrumentos musicais em geral 133 Flauta transversa e viola 134 Corneta 135 Rabeca 136 Realejo 137 Conjunto instrumental Sons do cabriolé batendo nas pedras 138 com Cecília 139 Metais rangendo e estalando 140 Portão de ferro batendo e/ou rangendo 141 Ferros rolando sobre lajedos 142 Metais se chocando 143 Madeiras batendo entre si 144 Ranger de madeiras 145 Corrupios 146 Garrafas 147 Vidros quebrando 148 Pedras sendo jogadas 149 Rascar da pena no papel 150 Sons de rede de pescar QUANTI DADE 2 5 1 19 6 5 3 2 2 2 7 2 4 1 1 2 1 7 1 10 2 2 4 1 8 1 2 1 1 1 1 I) Música J) Sons de Instrumentos musicais III - SONS E SOCIEDADE K) Sons diversos de metais, madeiras vidros e outros a+b b Marcos sonoros Eixos sonoros 68 Tabela 1 - Categorização de sons (continuação) CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA 151 152 153 154 155 156 157 158 159 160 161 162 163 164 165 166 167 F) Sons de equipamentos de construção e demolição 168 169 170 171 172 173 174 175 176 177 TIPO Motor de veículos automotivos Freio de veículo Molas de veículos automotivos Porta de automóvel Motocicletas Caminhões Ônibus Barcos Trem Bonde Elevador Foguetes Avião a jato Carro de bois Cabriolé Misturador de concreto Perfuratrizes de rua e geradores de energia Escavadeiras Bate-estacas Martelo Serra mecânicaa Obturador de máquina de fotografia LP arranhado Alto-falante Vitrola Rádio Sons de tiro, de gatilho e de inclusão de pente de balas TIPO 178 179 180 181 182 183 184 185 186 187 188 189 190 Sinos da igreja de Eltvillea Outros sinos de igreja Sinos pequenos domésticos Guizos do carneiroa Guizo da roda de metal de oito raiosa Tilintar de pulseiras metálicasa Buzinas de veículos automotivos Apitos de boca Apitos de trens Sirene de ambulâncias Tic Tac do relógio de pênduloa Sons de carrilhõesa Tiros de canhões QUANTI DADE 29 1 1 1 3 1 2 3 7 1 6 1 1 2 2 2 1 1 1 1 10 1 1 1 1 2 5 QUANTI DADE 1 4 2 7 2 7 7 3 2 2 16 6 2 4 A) Sons de veículos automotivos B) Sons de transporte náutico C) Sons de tração eletromecânica D) Sons de aeronaves IV - SONS ELETROMECÂNICOS E) Sons de tração animal G) Sons de equipamentos fotográficos e eletrônicos de som H) Sons de armas de fogo CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA A) Sinos, gongos e guizos V - SONS INDICADORES B) Buzinas, apitos, sirenes C) Sons do tempo D) Canhões E) Sinais produzidos eletricamente a 191 Telefones e campainhas Marcos sonoros 69 Tabela 1 - Categorização de sons (continuação) CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA 192 193 194 195 196 197 B) Sons da mitologia grega C) Sons do tapete 198 199 TIPO Sons do pulsar do coração do Avalovara Arfar do Avalovara Grito do Avalovarab Canto suave do Avalovarab Rumor das asas do Avalovaraa Vento produzido pelo ruflo das asas do Avalovara Sereias Sons de animais e da natureza no tapete paradisíacoa TIPO 200 Silêncio da Silêncios dos seres que habitam 201 Cecília 202 Silêncio de Roos VII - SILÊNCIO 203 Silêncio dos instrumentos musicais 204 205 206 207 a+b b QUANTI DADE 3 2 8 5 10 1 1 3 QUANTI DADE 4 1 1 6 17 1 6 2 A) Sons do Avalovara VI - SONS DA MITOLOGIA CATEGORIA GERAL Silêncio de fundo Silêncio das cidades em Roos Silêncio da opressão Silêncio pesaroso Marcos sonoros Eixos sonoros 70 A tabela que segue mostra um resumo com as frequências das ocorrências de sons por categorias gerais e específicas. Tabela 2 - Resumo da classificação de sons por categorias CATEGORIA GERAL I - SONS NATURAIS CATEGORIA ESPECÍFICA A) Sons da água, do ar e do fogo B) Sons de animais A) Sons do corpo B) Sons da voz C) Sons de vestuário D) Sons transcendentes, palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e E) Sons imaginados F) Sons de lembranças G) Sons da mente na passagem para morte A) Sons da cidade B) Sons domésticos C) Sons de escritório D) Sons de celebração e de festivais E) Sons de entretenimento F) Sons de protestos e de repressão G) Canto de trabalho e sons de instrumentos de trabalho H) Sons diversos de estação de trem I) Música J) Sons de Instrumentos musicais K) Sons diversos de metais, madeiras vidros e outros A) Sons de veículos automotivos B) Sons de transporte náutico C) Sons de tração eletromecânica D) Sons de aeronaves E) Sons de tração animal F) Sons de equipamentos de construção e demolição G) Sons de equipamentos fotográficos e eletrônicos de som H) Sons de armas de fogo A) Sinos, gongos e guizos B) Buzinas, apitos, sirenes C) Sons do tempo D) Canhões E) Sinais produzidos eletricamente A) Sons do Avalovara B) Sons da mitologia grega C) Sons do tapete TOTAL POR CATEGORIA ESPECÍFICA 152 96 103 155 2 48 10 21 2 7 30 4 9 3 4 9 1 33 39 35 38 3 14 2 4 17 6 5 23 14 22 2 4 29 1 3 38 174 TOTAL POR CATEGORIA GERAL 248 II - SONS HUMANOS 341 III - SONS E SOCIEDADE IV - SONS ELETROMECÂNICOS 88 V - SONS INDICADORES 65 VI - SONS DA MITOLOGIA VII - SILÊNCIO 33 38 71 A prevalência de sons humanos (341 ocorrências) e de sons da natureza (248 ocorrências) sobre as demais categorias sonoras encontradas no romance, permite supor que Osman Lins atribuía significativa importância à integração entre o homem e a natureza que o circunda, o que é reforçado pelos momentos finais do enredo em que Abel e morrem e renascem unificados a um tapete habitado por aves, peixes, jacarés, rios, jardins, um céu repleto de mariposas brancas. Ao ordenar os tipos de sons em ordem decrescente pela frequência de ocorrências por tipo tem-se a tabela que segue, considerando somente os marcos sonoros. 72 Tabela 3 - Classificação em ordem decrescente de frequência dos marcos sonoros QUANT IDADE 50 50 36 24 20 19 16 10 10 8 7 7 6 6 5 4 3 3 2 2 2 2 2 1 1 CATEGORIA GERAL I - SONS NATURAIS I - SONS NATURAIS II - SONS HUMANOS I - SONS NATURAIS I - SONS NATURAIS III - SONS E SOCIEDADE V - SONS INDICADORES IV - SONS ELETROMECÂNICOS VI - SONS DA MITOLOGIA VI - SONS DA MITOLOGIA V - SONS INDICADORES V - SONS INDICADORES III - SONS E SOCIEDADE V - SONS INDICADORES VI - SONS DA MITOLOGIA II - SONS HUMANOS II - SONS HUMANOS VI - SONS DA MITOLOGIA II - SONS HUMANOS III - SONS E SOCIEDADE II - SONS HUMANOS III - SONS E SOCIEDADE V - SONS INDICADORES III - SONS E SOCIEDADE V - SONS INDICADORES CATEGORIA ESPECÍFICA A) Sons da água, do ar e do fogo A) Sons da água, do ar e do fogo C) Sons de vestuário A) Sons da água, do ar e do fogo A) Sons da água, do ar e do fogo I) Música C) Sons do tempo F) Sons de equipamentos de construção e demolição A) Sons do Avalovara A) Sons do Avalovara A) Sinos, gongos e guizos A) Sinos, gongos e guizos I) Música C) Sons do tempo A) Sons do Avalovara C) Sons de vestuário C) Sons de vestuário C) Sons do tapete C) Sons de vestuário D) Sons de celebração e de festivais C) Sons de vestuário J) Sons de Instrumentos musicais A) Sinos, gongos e guizos I) Música A) Sinos, gongos e guizos TIPO (Somente marcos sonoros) Mar Vento Palavras e vozes no corpo da Chuva Trovão Cantata Catulli Carmina, de Carl Orff Tic Tac do relógio de pêndulo Serra mecânica Rumor das asas do Avalovara Grito do Avalovara Guizos do carneiro Tilintar de pulseiras metálicas Fragmentos da introdução da Sonata K 462 para cravo, de Scarlatti no relógio de J.H. Sons de carrilhões Canto suave do Avalovara Vozes de Cecília dúplice, andrógina Som da máquina cônica sobre a Sons de animais e da natureza no tapete paradisíaco Vozes dos corpos em Cecília Pastoril Cálice vibrante no centro do corpo da I Piano Guizo da roda de metal de oito raios Salmo "In convertendo dominus", de Andre Campra Sinos da igreja de Eltville O gráfico seguinte resulta dos dados mostrados na tabela acima. 73 Gráfico 1 - Gráfico com a classificação em ordem decrescente de frequência dos marcos sonoros Cabe mencionar que, no levantamento geral, foram identificados novecentos e oitenta e sete sons associados aos cenários sonoros de Avalovara. 3.4 INTERPRETAÇÕES E SIMBOLISMOS No romance, ganham destaque, pela frequência com que aparecem, os sons do mar e dos ventos, podendo-se associá-los à fluidez, à potência e à grandiosidade dessas forças da natureza e de seu aspecto mítico associado ao culto pelos nossos antepassados. Schafer os inclui no conjunto de sons caracterizados como marcos sonoros e os denomina de sons 74 arquetípicos por estarem associados ao inconsciente coletivo da humanidade em suas percepções e simbolismos primordiais, muito além do significado imediato de tais sonoridades e das diferenças culturais entre as diferentes civilizações. Remete às abordagens de Carl Gustav Jung sobre os símbolos que se constituem em arquétipos, por estarem impregnados na psiquê da civilização humana por milhares de anos. Em seu livro Tipos Psicológicos, Jung fala de certos tipos de “símbolos que podem surgir de forma autóctone em qualquer canto do mundo e apesar disso são idênticos, porque gerados pelo mesmo inconsciente humano, difundido em toda parte, e cujos conteúdos são infinitamente menos diferentes do que raças e os indivíduos”. A esses símbolos de “primeira forma” Jung deu o nome de “arquétipos”. Eles são padrões de experiência primordiais herdados e remontam ao início dos tempos. Não têm extensões sensíveis por sí próprios, mas podem ser expressos em sonhos, nas obras de arte e na fantasia. (SCHAFER, 2001, p. 239). O mar é um pano de fundo para as três mulheres de Abel. Mesmo que nos momentos mais importantes do relacionamento entre Abel e a o encontro amoroso tivesse ocorrido no apartamento da Avenida Angélica – centro de São Paulo – eles se conheceram durante o eclipse do sol na praia de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, quando do lançamento dos três foguetes norte-americanos destinados a fotografar o evento em uma atmosfera mais limpa. O contraste entre céu e mar, ou entre céu e terra, fazem parte de muitos cenários do romance, em que o barulho dos ventos e dos trovões misturam-se com o ruído interminável das ondas do mar, ou com o som do farfalhar das folhas de árvores e de canaviais, ou com o som da chuva batendo nas janelas e paredes de edifícios. As ventanias aparecem junto com trovões e chuvas torrenciais, novamente os elementos alquímicos constituídos pela terra, pela água, pelo fogo e pelo ar. Perpassado pelo vento e pela chuva e iluminado pela luz dos trovões voa o pássaro mítico Avalovara, aquele que tudo observa e controla. A narrativa destaca o voo do pássaro misterioso entre os elementos fluídicos da natureza como se a ele se submetessem. Não é por acaso que permeia a linha narrativa as várias menções a pássaros com seus cantos e gritos e o som do ruflar de suas asas. O pássaro Avalovara aparece junto à Roos, à Cecília e principalmente à que traz também a máquina suspensa em espiral, faz o centro do corpo da . A ave, vibrar, tal qual um cálice ressonante, concedendo-lhe finalmente o dom da fala: “Desse modo, fica claro que o pássaro que divisa as nuvens, e que nela aciona o processo de outro nascimento, tem inequívoca ligação com a Palavra (e se revelerá mais adiante na narrativa, ser o Avalovara que lhe dá título).” (HAZIN, 2010, p. 49). A partir desse momento, as palavras passam a 75 circular pelo corpo da , representadas pelas vozes que dele emanam como fonte da sabedoria concedida pelo pássaro guia. No final apoteótico, as criaturas do ar convivem com as criaturas da terra e da água perpassados, no universo paralelo e mítico do tapete, pela luz do sol, como que iluminados pela luz da sabedoria trazida e resguardada pelo pássaro Avalovara, que acompanha os amantes em sua morte e liberação rumo ao conhecimento. Destacam-se as descrições dos sons musicais da cantata Catulli Carmina, de Carl Orff, cuja quantidade de citações denota a relevância que o autor atribui a essa trilha sonora em seu aspecto profano do enlace amoroso entre Abel e a . Alguns dos sons musicais, tais como o Salmo de André Campra e o Pastoril, ainda que tenham poucas menções ao longo do romance, ganham relevância pela representatividade e pelo simbolismo adquirido a partir da associação com as duas mulheres de Abel, Roos e Cecília, e com a cultura e o perfil psicológico dessas protagonistas. A narrativa traz, em vários momentos, as sonoridades estridentes de uma serra mecânica que trespassam as grossas cortinas do apartamento em que Abel e a se encontram. Tais sons ruidosos se sobrepõem ao rumor de veículos, às buzinas de automóveis, ao barulho de bate-estacas e de caminhões descarregando ferro e madeira, ao som das falas indistinguíveis de operários, às batidas de portas e de descargas no edifício. Compõem um envoltório acústico que contrasta com o tic-tac do pêndulo do relógio de J.H., com os sons musicais produzidos pelos carrilhões deste aparato mecânico de medição das horas e que tocam os fragmentos da Sonata K 462, de Scarlatti, e com as envolventes melodias e acordes ritmados da cantata de Carl Orff. Os sons de guizos no pescoço de carneiros, de metais das pulseiras de Cecília, de guizos na roda de metal da praia dos Milagres e dos sinos de Eltville apresentam-se como sonoridades anunciadoras de presenças, do tempo, de fatos e do advento de algo extraordinário. Os sons das pulseiras de Cecília marcam a sua feminilidade, que contrasta com sua duplicidade andrógina. Os guizos no pescoço dos carneiros ou dos cordeiros anunciam as suas presenças dóceis. A fita vermelha sobre seus corpos brancos sugere o contraste entre a representação do sangue e do fogo sacrificial e a transcendência da vida mundana pela trânsito da vida para a morte e vice-versa, tal qual o ocaso do sol no oeste e seu ressurgimento no leste. Esses animais surgem nos primeiros momentos da trajetória de Abel com suas três mulheres em busca do conhecimento. Como símbolo da fertilidade, o carneiro representa o ímpeto procriador do macho que leva ao ressurgimento da primavera; portanto, da vida. Tais qualificações – comuns a diversos cultos religiosos de civilizações antigas – 76 permitem associar, no romance Avalovara, o carneiro ao profano que, na contraparte musical, tem na cantata de Orff o seu equivalente. Com seus guizos, recepcionam e acompanham Abel ea em suas revelações, transitando entre o universo mundano e o universo paradisíaco do tapete. Como símbolo da vida, remetem à fertilidade em seu aspecto profano associado à relação voluptuosa entre os dois amantes e ao mesmo tempo à imortalidade desvelada pela morte e ressureição dos amantes, agora reunidos no tapete da eternidade. Para Cecília, os carneiros surgem das areias da praia e das espumas das ondas do mar como oriundos dos elemento alquímicos terra e água. Da mesma forma que o pássaro Avalovara faz pelo ar, iluminado pelos clarões dos relâmpagos, os carneiros acompanham Abel e seus amores por terra em suas jornadas irreversíveis. Aqui, complementam-se os elementos ar e fogo com os elementos água e terra, da mesma forma que se superpõem os trechos da introdução da sonata para cravo de Scarlatti com o soar da exuberante cantata de Orff, num contraponto entre o sagrado e o profano. Os guizos que enfeitam e sonorizam a roda de oito aros em seu ir e vir, para o mar e dele retornando, podem ser entendidos como sinalizadores de alguma coisa fora do comum que está para acontecer. A roda misteriosa é também a roda da vida, tão cíclica e pulsante como o fluxo e refluxo do mar. A passagem enigmática da roda ocorre pouco antes do acidente fatal de Cecília com o cabriolé, como se a morte fosse a própria roda e seu movimento estivesse a anunciar a sua lúgubre presença. Tão marcantes são os sinos de Eltville que estabelecem o ritmo da vida e das pessoas na cidade, impregnando, também, o ritmo do andar, dos gestos e do falar de Roos. Sinos e guizos são percebidos por Schafer como sons indicadores, sendo os mesmos representativos da consolidação de um passado cultural de povos e de grupos sociais. Um exemplo da importância de tais sons na expressão cultural de alguns povos encontra-se na música clássica indiana, na qual dançarinas usam pulseiras e tornozeleiras adornadas com guizos para, com seus delicados tilintar de seus movimentos, enfatizar a marcação rítmica feita pelos instrumentos de percussão do conjunto instrumental que as acompanha em seus passos rápidos e leves. A duplicidade da assistente social Cecília tem a sua expressão verbal no diálogo entre dois entes que compõe a sua personalidade. Habitam o seu corpo homens e mulheres oprimidos e excluídos socialmente por um regime militar, uma multidão sem voz e sem direitos que murmuram e que sentem na mulher do povo o abrigo para a mitigação de seus sofrimentos. 77 A narrativa em Avalovara transcorre ao longo de segmentos espaço-temporais, produzindo cenários sonoros diversificados e ao mesmo tempo harmônicos, à semelhança dos trechos seccionados da introdução da sonata para cravo de Scarlatti. Os personagens transitam no passado e no presente com uma dinamicidade e fluidez imprevisíveis, repassando a ideia de indissociabilidade entre o que aconteceu e o que está ocorrendo. Aglutinam-se diferentes e aparentemente desconexas ornamentações visuais e acústicas em um mesmo cenário sonoro, formando um todo coeso e recheado de multiplicidades. O autor consegue explorar com maestria a simultaneidade entre processos analíticos e sintéticos, possibilitando ao leitor visualizar diferentes cenas visuais e sonoras que se apresentam como um todo inseparável. 4 78 AVALOVARA: UMA PAISAGEM SONORA 4.1 MARCOS SONOROS E EIXOS SONOROS Em Avalovara, na maior parte dos cenários narrativos, os marcos sonoros estão associados ao ir e vir e à coexistência de oposições em equilíbrio. Os tipos de sons caracterizados como eixos sonoros integram o conjunto de sons conceituados como marcos sonoros, destacando-se pela importância e pelo simbolismo que assumem ao longo do romance. Os marcos sonoros estão descritos a seguir: • • sons do mar, do vento, do trovão e da chuva (sons naturais); o soar das peças musicais eruditas Salmo In Convertendo Dominus, de André Campra, a introdução da Sonata K462 para cravo fragmentada no relógio de J.H., de Domenico Scarlatti e a cantata Catulli Carmina, de Carl Orff (sons e sociedade); • • Abel e da • • folclore religioso e popular nordestino representado pelos cânticos dançados do Pastoril (sons e sociedade); sons do piano e também o seu silêncio nas cenas que envolvem as famílias de (sons e sociedade); som estridente da serra mecânica (sons eletromecânicos); sons dos sinos de Eltville, dos guizos no pescoço do carneiro, dos guizos na roda de metal que gira pela areia da praia dos Milagres, do tic-tac e dos carrilhões dos relógios de pêndulo e do tilintar de metais nas pulseiras de Cecília e da • • (sons indicadores); sons do Avalovara compreendendo seus gritos (Raah), seu canto suave e o ruflo das asas (sons da mitologia); palavras e vozes no corpo da , vozes de Cecília dúplice, vozes dos corpos em e sons da máquina cônica sobre a Cecília, cálice vibrante e zumbidos internos à (sons humanos); • sons de animais e da natureza no tapete mágico (sons da mitologia). Alguns desses sons são, intrigantemente, repetitivos ao longo da narrativa, aparecendo como indicativos de personagens, situações e objetos, tal qual leitmotivs de uma peça musical. Constituem-se em motivos condutores que dão equilíbrio, coesão e expressividade no desenrolar do texto ficcional. Sobre o leitmotiv na música, Grout & Palisca (2007) definem: 79 [...] o Leitmotiv é uma espécie de etiqueta musical - mas é mais do que isso: vai acumulando relevância à medida que se repete em novos contextos; pode servir para recordar a ideia do objeto em situações em que este não está presente; pode ser sujeito a variações, desenvolvido ou transformado de acordo com a evolução da intriga; a semelhança de motivos pode sugerir uma ligação profunda entre os objetos a que esses motivos se referem; os diversos motivos podem combinar-se contrapontisticamente; finalmente, a repetição de motivos é uma forma eficaz de dar unidade musical ao conjunto da obra, tal como a repetição de temas numa sinfonia. (GROUT; PALISCA, 2007, p. 647). Nos diversos contextos das linhas narrativas, tais sons, naturais e artificiais, anunciam o acontecimento de fatos concretos e imaginativos e o ressurgimento de lembranças, associados aos personagens envolvidos e às suas vivências e traumas. Dentre os marcos sonoros, destacam-se pela frequência com que aparecem: a Sonata em Fá Menor (K462), de Scarlatti; a cantata Catulli Carmina, de Carl Orff; os diferentes ruídos e cantos do pássaro Avalovara; palavras e vozes no corpo da ; sons das ondas na Praia dos Milagres; sons da chuva, do trovão e do vento; sons de tic-tac do relógio de J.H. e de carrilhões; som estridente da serra mecânica; sons de guizos e do tilintar de pulseiras metálicas. No que se refere ao aspecto estrutural do romance, é possível relacionar o conceito de leitmotiv ao retorno dos temas identificadores de capítulos, na forma das letras do palíndromo, cuja ordenação sequencial se subordina à passagem da espiral pelas letras do quadrado simétrico. Leny da Silva Gomes (1998) mostra as treze voltas que a espiral percorre até chegar ao tema central e final, o tema N, formando sequências de letras que são os subtemas da estrutura do romance. RSRS RSRS OROASAOROASA OROASAOROASA TOROTASATOROTASA TOROTARATOOTAA TOPOTARATOPOTARA TOPOTRTOPOTARTE PEREPERE PEREPERE PEREPERE ENEEE N A ordenação dos temas, conforme mostrado acima, transpõe para a estrutura de Avalovara o movimento cíclico, o ritmo do ir e vir da espiral das letras indicativas dos capítulos. O ir e o vir também se reproduz no vai e vem dos sinos das igrejas, movimento necessário para que a esfera na ponta do badalo possa percutir no corpo de bronze. No 80 romance Avalovara, a menção ao sino e seu som emblemático aparece em meio ao diálogo truncado entre Abel e Roos em Paris. A cena demonstra uma interação entre a cultura de origem da personagem e os sons característicos da comunidade em que viveu: “O ritmo da vida e dos sinos de Eltville (aí nasce Anneliese Roos e aí vivem os seus) repercute em tudo que faz: no andar, nos gestos, no falar.” (A 4, p. 29). Outro trecho, reforça essa influência sobre Roos: O diálogo prossegue com hiatos e, sem que nada importante tenha sido dito ou sugerido, ela se distancia no seu andar vagaroso, tão pouco parisiense, o andar de uma provinciana habituada a horas que se desdobram lentas, marcadas pelo sino de um velho campanário, anos e anos, sobre os tetos tranquilos. Eltville. (A 4, p. 187). Schafer ressalta a importância dos sinos das igrejas para a vida comunitária nos tempos mais antigos. Pode-se dizer que os sinos herdaram o poder de comunicação dos tambores primitivos. Os ruídos fortes evocavam o temor e o respeito e representavam a expressão do poder divino, o ruído sagrado. Esse poder foi transferido dos sons naturais (trovão, vulcões, tempestades) para os sinos das igrejas e para o órgão de tubo. Para toda a cristandade, o divino era sinalizado pelo sino da igreja. É um desenvolvimento tardio da mesma necessidade de clamor que antes havia sido expressa pelo canto e pelo estrondo. O interior da igreja também reverbera com os mais espetaculares eventos acústicos, pois o homem trouxe para esse lugar não somente as vozes que se ouviam nos cânticos, mas também a mais ruidosa máquina que até então ele havia produzido – o órgão. E ele foi planejado para fazer a divindade ouvir. (SCHAFER, 2001, p. 83). Ao sino sucede o relógio como instrumento mais sofisticado para anunciar as horas cheias, cujas batidas procuram imitar o som daqueles emblemáticos instrumentos de comunicação à distância que, além de marcar as horas, convidavam para os cultos, para as festividades religiosas especiais, para as reuniões comunitárias, bem como alertavam para o início de uma batalha. Durante o século XVI, o relógio mecânico juntamente com o sino passaram a ser imprescindíveis para a paisagem sonora da civilização europeia. São as batidas daquele que mediam a passagem do tempo de forma audível, remetendo os sons do tempo à cidade, com seu poder absoluto e arbitrário. A associação entre os relógios e sinos da igreja não foi absolutamente fortuita, pois o cristianismo desenvolveu a ideia retilínea do tempo como progresso, ainda que progresso espiritual, com um ponto inicial (a Criação), um indicador (Cristo) e uma profética conclusão (o Apocalipse). Já no século VII foi decretado em uma bula do papa Sabiniano que os sinos dos monastérios deveriam ser tangidos sete vezes por dia, e essas pontuações eram conhecidas como horas canônicas. O tempo está 81 sempre se esgotando no sistema cristão, e a batida do relógio pontua esse fato. Seus carrilhões são sinais acústicos, mas mesmo em nível subliminar o ritmo incessante de seu tique-taque forma uma tônica de significado inevitável na vida do homem ocidental. Os relógios penetram o recesso da noite para lembrar ao homem a sua mortalidade. (SCHAFER, 2001, p. 89). Uma interessante conexão entre sino, relógio e música encontra-se na composição para órgão Carillon de Westminster, do compositor francês Louis Vierne. A obra adota como tema principal o famoso trecho musical tocado pelos carrilhões do relógio da torre de Westminster, que soa a cada quinze minutos. O tema do relógio se mistura aos acordes, aos arpejos e aos trêmulos, produzindo dissonâncias que lembram o repicar dos sinos da catedral de Westminster. A composição foi estreada pelo próprio compositor, em 29 de novembro de 1929, na catedral de Notre-Dame, em Paris, alcançando sucesso imediato. É a sexta parte da terceira suíte de um conjunto de vinte e quatro peças de fantasia para órgão publicadas pela primeira vez em 1927. O relógio é um dos pontos referenciais do romance Avalovara, tanto no que se refere à sua intrínseca relação com o palíndromo de Loreius e seu aspecto estrutural da obra literária, quanto no que diz respeito ao seu aspecto simbólico, relacionado à dualidade microcosmos/macrocosmos. O tema P descreve a história do personagem músico, J.H., e sua trajetória de pianista e cravista e também de artesão de relógios mecânicos. Desde a infância, J.H. convive com os carrilhões na oficina de relógios de seu avô, os quais assumem um simbolismo significante para a sua vida: Assim, os primeiros anos de Julius Heckethorn passam-se entre carrilhões que soam dia e noite. Pode-se imaginar que os seus sonhos sejam atravessados por um contínuo bater de horas. Com a guerra de 14, dois imprevistos abatem esta criança frágil e propensa a quietude: uma viagem para a Inglaterra e o silêncio dos dias. Adoece, mas não devido a ausência dos pais: anseia pela presença dos carrilhões. O avô, buscando compensar esse desejo, contrata um professor de música. (P 3, p. 211). Um detalhamento mais abrangente sobre o tema do relógio é objeto do subtítulo O Relógio de Julius Heckethorn e a máquina chilreadora, de Paul Klee. Fazendo parte dos marcos sonoros, os eixos sonoros compõem o conjunto de sons que contribuem significativamente para consolidar o simbolismo dos protagonistas e de suas jornadas, de fatos a eles associados e do pássaro Avalovara. Para uma melhor compreensão da importância da presença desses eixos sonoros no romance, são transcritos alguns trechos contendo cenários sonoros identificados ao longo da narrativa. 82 a) Pastoril (Categoria específica D - Sons de celebração e de festivais, inserida na categoria geral III - Sons e sociedade): Antes que mergulhem os pássaros, novo rumor se inicia, este em Cecília: soalhas de pandeiros. Respondem logo ao rumor, à direita, com um pouco mais de intensidade, outros tantos pandeiros, tangidos por meninas entre dez e treze anos. Eis-nos escoltados pelos dois cordões do pastoril, sete figuras de um lado, com longas saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis, algumas desbotadas. Entre os dois cordões e de tal modo que parte do seu corpo trespassa o de Cecília, vai a Diana, vestida de azul e vermelho, sinal de que pertence as duas alas. No pandeiro redondo, maior que os das pastoras e que ela faz soar com os braços levantados, também esvoaçam fitas vermelhas e azuis. Das mesmas cores é o grande laço que prende os seus cabelos crespos. As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira, andando as da segunda, trançam-se. Nem todas as meninas trazem pandeiros. Duas conduzem uma cesta com jambos, laranjas e mangas-rosas; duas sobraçam dálias, lírios e açucenas. A Diana, cessando de tocar, ergue ainda mais os braços, faz-se silêncio e todos nós paramos. Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes. As pastoras, de repente, iniciam uma loa, marcando o compasso da música com os pés e os pandeiros, estes enfeitados de fitas como a grande roda desaparecida: “Vinde, vinde, moços e velhos, vinde todos apreciar, como isto é bom, como isto é belo, como isto é bom e bom demais”. A noite vem chegando. Entre os dois cordões, um homem já idoso, de barba e cartola, metido num fraque sovado, grita agitando as mãos: “Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Sou conhecido nestas paragens. Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro!” Berra o carneiro, Cecília sorri, meu pai nos segue calado. Digo a Cecília (em redor de nós as vozes infantis, o bater de pés na areia, o ruído festivo dos pandeiros, o quebrar das ondas, o cheiro da salsugem e do suor de Modesto Canabarro) que desejaria estar inaugurando o mundo na sua companhia e em paz com todos os bichos. Cecília, de cabeça baixa, lembra que não mais existe e não será reencontrada a harmonia do tempo em que a onça lambe as unhas do homem. Aperta a minha mão e com a outra protege a saia batida pelo vento. Seu corpo continua povoando a praia. Com as pastorinhas, segue-nos, acompanhando a loa uma pequena orquestra: clarinete, pistão, bombardino, bombo e um trombone rouco. No bombo está escrito “DEIXA FALAR”, seu portador, desdentado, ri com alegria, dançando ao compasso da jornada. Os músicos, de cor escura e vestidos pobremente, não têm sapatos. Tilinta o chocalho do carneiro e o velho barbudo continua: “Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro!” (T 12, p. 183, grifos nossos)19. Aqui, a representação do Pastoril traz características da vida rural, projetando a natureza. Denota o teatro popular, a música, a tradição, a cultura popular nordestina, contrastando o caráter profano com a motivação religiosa associada à Natividade. Na construção desse contexto, percebe-se que Lins procura valorizar a educação e buscar a identidade nacional, sem perder de vista o universal. Os sons detectados nesta citação do Pastoril foram classificados em onze tipos: mar, vento, carneiros/cordeiros, leões, passos de dança, grito, Pastoril, música folclórica20, pandeiros, chocalhos, conjunto instrumental. A representação completa do Pastoril faz-se necessária para demonstrar a contextulização do evento popular e os onze tipos de sons deste cenário. 20 A palavra folclore vem da palavra inglesa folklore, em que folk significa “povo” e lore, “saber”. Surgiu na Inglaterra no século XIX com a intenção de estabelecer a identidade do saber tradicional mantido entre os 19 83 b) Salmo In convertendo dominus de André Campra (Categoria específica I-Música, inserida na categoria geral III - Sons e sociedade): Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. [...] Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. [...] A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de Notre-Dame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. [...] As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre Notre-Dame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. [...] Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? Notre-Dame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite. (T 12, p. 183, grifos nossos).21 Confluem num mesmo local o antigo e o novo e, também, o sagrado e o profano representados respectivamente pelo Salmo de André Campra e pelos ruídos das rua de Paris nos arredores da catedral de Notre-Dame. Roos carrega consigo a ancestralidade das cidades nela incorporadas, introduzindo Abel no conhecimento do eruditismo da cultura europeia. Os sons deste cenário sonoro foram classificados em seis tipos: coro, forno, o Salmo de Campra, órgão de tubos, conjunto instrumental, motor de veículos automotivos. c) Cantata Catulli Carmina de Carl Orff (Categoria específica I - Música, inserida na categoria geral III - Sons e sociedade): Bate o relógio algumas pancadas, trecho incompleto da frase musical que dizem só de tempos em tempos pode ser ouvida. Ponho um disco na vitrola: Catulli Carmina. A penumbra da sala parece iluminar-se com a entrada imediata do coro. Eis aiona! Eis aiona! tui sum Nos pés descalços sinto os fios dos tapetes, os fios, poderia dizer que sinto os seus desenhos, cores, flores, motivos geométricos. Eis aiona! (Sempre) eternamente, sempre, a ti pertenço. Tui sum. (O 6, p. 35, grifos nossos). camponeses pela propagação oral. A cultura e suas crenças são transmitidas de geração em geração, algumas vezes passando por modificações. 21 A representação completa do Salmo faz-se necessária para demonstrar a contextualização do concerto e os seis tipos de sons deste cenário. 84 Nesta citação, trechos da cantata de Orff se misturam às batidas musicais do relógio de J.H., explicitando a confluência entre o sagrado e o profano que acompanham Abel e a durante o tempo de sua jornada na busca pelo conhecimento. Os sons deste cenário sonoro foram classificados em dois tipos: cantata de Orff, fragmentos da introdução da Sonata K 462 para cravo de Scarlatti no relógio de J.H. d) Fragmentos da Sonata em fá menor (K 462) para cravo, de Scarlatti no relógio de J.H. (Categoria específica I - Música, inserida na categoria III - Sons e sociedade): [...] o relógio de J.H. [...] À primeira vista, nada, nessa máquina, desperta atenção; a não ser, talvez, certa majestade que emana do seu porte, o movimento compassado do pêndulo — um segundo para ir, um para voltar — e a limpidez com que estão desenhados, em algarismos romanos, os números do quadrante. No mais, é um relógio como os outros e só um pouco mais alto, em seu gênero, que a média. Entretanto, soam as horas (um número incôngruo de notas) e então passamos a vê-lo com olhos novos: os sons diversos dos que ouvimos em geral, surpreendemnos. Cresce nossa estranheza ao percebermos que não se repetem, antes variam nas horas seguintes, sem que possamos alcançar a lei — pois há de haver uma – que rege tais mudanças. (P 2, p. 175, grifos nossos). Este cenário sonoro descreve os sons do tic-tac do pêndulo do relógio ocorrendo simultaneamente aos fragmentos aparentemente desconexos da sonata de Scarlatti, em uma referência ao tempo, eterno e implacável, testemunha perene do movimento cíclico do cosmos e das incertezas da vida humana. Os sons deste cenário sonoro foram classificados em dois tipos: fragmentos da introdução da Sonata K 462 para cravo de Scarlatti no relógio de J.H., tic tac do relógio de pêndulo. e) Grito do Avalovara (Categoria específica A - Sons do Avalovara, inserida na categoria geral VI - Sons da mitologia: Um vento move nas trevas os ramos da árvore na praça, inquietando os pássaros, pulsa ao sopro compassado. rítmico. Abano de plumas, rítmico, a cabeleira de Ouço um ruído áspero e vindo de grande altura, como se todas as portas da cidade, arrancadas, boiassem no ar e se abrissem de um só golpe, rhroeirh. A a ideia de vasta nuvem escura, compacta e adejante só evoca em mim e pássaro no momento em que nos sobrevoa com o seu cantar informe. As asas, tão largas que, abertas, apagam muitas estrelas e a brilhante coroa em torno do disco betuminoso da Lua, tornando ainda mais negra a breve noite meridiana, sacodem os tetos das casas quando batem, encurvam os galhos da árvore, levantam o pó das pedras e atiram mariposas contra nós, contra o chão, contra as casas. Curvamo-nos, as mãos à altura dos olhos, fazendo o possível, apesar dos ciscos e das asas nas pestanas, para não perdê-lo de vista (sua plumagem de ébano) e rimos, sufocados, do seu grasnido lastimável, um aleijão: laringe de chifres e de batinas velhas? Sua passagem é rápida, um voo reto, embora dificultoso (as asas, longe de 85 erguê-lo como as dos pássaros diários, arrastam-no, cabeça e asas, vivas, levando um corpo morto, um fardo) na direção sudeste-noroeste, parecendo evoluir de um lugar ensolarado para o centro da escuridão, cruza os céus, grotesco e estúpido, está nos meus braços [...]22 (R 21, p. 320, grifos nossos). desaparece. Neste cenário sonoro o pássaro mostra-se grande, pesado e com um aspecto rude que, com seus gritos ásperos, apresenta-se como um anunciador de maus presságios, os quais sugerem a intenção obsessiva de Olavo Hayano em se vingar da mulher que lhe trai com Abel. Os sons deste cenário sonoro foram classificados em três tipos: grito do Avalovara, rumor das asas do Avalovara, vento produzido pelas asas do Avalovara. f) Canto suave do Avalovara (Categoria específica A - Sons do Avalovara, inserida na categoria geral VI - Sons da mitologia): [...] canta apaziguador o nosso pássaro mais forte o nosso abraço, novo relâmpago na sala e ouvimos irado cheio de dentes irados o ladrar dos cães e cruzamos um limite e nos integramos no tapete somos tecidos no tapete eu e eu margens de um rio claro murmurante povoado de peixes e de vozes nós e as mariposas nós e girassóis nós e o pássaro benévolo mais e mais distantes latidos dos cachorros vem um silêncio novo e luminoso vem a paz e nada nos atinge, nada, passeamos, ditosos, enlaçados, entre os animais e plantas do Jardim. (N 2, p. 357, grifos nossos). Esse é um dos pontos altos do romance, o instante final em que Abel e a , unidos simbolicamente pela morte, alcançam o paraíso da sabedoria guiados pelo pássaro que anuncia a realização dos amantes com seu canto singelo e penetrante. Além do canto do pássaro, a narrativa descreve o som das águas tranquilas de um riacho de um lado e os latidos de cachorros de outro, que se tornam cada vez mais distantes, sugerindo a integração no tapete e o distanciamento de um mundo do qual já não mais fazem parte. Assim, neste cenário são descritos quatro tipos de sons: cães, canto suave do Avalovara, palavras e vozes no corpo da , sons de animais e da natureza no tapete paradisíaco. É mencionado o silêncio beatífico do universo do tapete, classificado como silêncio de fundo. g) Palavras e vozes no corpo da (Categoria específica B – Sons transcendentes, , inserida na categoria geral II - palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e Sons humanos: A representação completa do grito do Avalovara faz-se necessária para demonstrar os três tipos de sons deste cenário. 22 86 Leio em sua testa uma palavra, como se eu a houvesse escrito, e não percebo o que significa: a palavra, em língua estranha ou inexistente, desaparece antes que eu a guarde. Enfio as mãos nos seus cabelos (procuro a palavra não grafada?), ela abraça-me, nossos rostos unidos e rumor de vozes: apressadas, falam em segredo. [...] Ela comprime sobre a parte inferior do ventre a minha fronte (outra vez as vozes segredadas) [...] (E 7, p. 298, grifos nossos). No trecho acima, palavras e vozes afluem da expondo a Abel a sabedoria que preenche a essência da mulher que ama, a mesma sabedoria que, como escritor, nela busca. Mas esta só poderá ser alcançada com a morte e a fusão de ambos com o tapete paradisíaco, com sua rica fauna e flora, símbolo da integração do homem com o espírito da natureza, com o cosmos. Neste cenário sonoro aparece somente o tipo de som classificado como vozes no corpo da . h) Cálice vibrante no centro do corpo da (Categoria específica B – Sons , inserida na transcendentes, palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e categoria geral II - Sons humanos: A ave ainda está longe, posso ver que é negra, a cabeça vermelha, mas não ouço baterem as suas asas e ainda está longe quando sinto, no centro do meu corpo, o ponto. Na cicatriz do ventre. Não é uma dor. É um ponto, sim, um ponto, o início de um ruído, como se ali um pequeno cálice vibrasse. Fecho os olhos, cruzo as mãos sobre o peito, ouço o rumor das asas, asas imensas, sinto deslocar-se o vento em torno do meu corpo, voarem minha saia curta e meus cabelos, sucede-se um silêncio, eu abro os olhos, nenhuma ave me contempla ou voa, nenhum vestígio de vento, nenhum vestígio. (O 6, p. 34, grifos nossos). Após cair no fosso do elevador, a novamente nasce sob a tutela do Avalovara, a ave misteriosa que desce em movimento espiralado, fulgurante pelas luzes dos raios da tempestade que trespassam seu corpo, concendo-lhe a luz do conhecimento das palavras, representada também pelo início do ato da fala. Um som precede a nova habilidade que lhe é conferida, um som sofisticado tal qual o de um cálice que vibra em um ponto no centro do seu corpo, o ponto no símbolo que o autor atribuiu à mulher síntese da trindade feminina. Nesse cenário sonoro, a ouve o som do ruflo das asas do Avalovara e o vento que elas provocam. Aqui, evoca-se a ideia de um ato iniciático, em que um processo interno toma corpo sobrepondo-se às simples percepções sensoriais, revelando o momento simbólico do despertar para um mundo transcendental mais pleno, tal como a simbologia presente na iniciação ao mundo espiritual. Assim, neste cenário sonoro estão descritos três tipos de sons: cálice 87 vibrante e zumbidos internos à , rumor das asas do Avalovara, vento produzido pelo ruflo das asas do Avalovara. Aparece também o silêncio de fundo. i) Som da máquina cônica sobre a (Categoria específica B – Sons transcendentes, inserida na categoria geral II - palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e Sons humanos: A máquina, etérea mas real, seu arcabouço intangível invadido em parte pela estrutura concreta do Martinelli, a máquina, varada por morcegos e tão alta que as últimas peças engolfam-se nas nuvens negras, nas nuvens dessa noite sem estrelas, a máquina se move e pousa delicadamente em mim. Gira e zumbe, assemelha-se a um pião em movimento, gira, giro vagaroso, zumbe e quase inaudível é o rumor que produz. Não tenho dificuldades em compreender que a sua lenta formação é puramente simbólica, que nada a impediria de formar-se mais rapidamente e que mesmo o fenômeno da formação da máquina seria dispensável, uma vez que, na verdade, sua existência é anterior à consciência que eu tenho de sua presença e de sua própria fabricação. A máquina, suavemente, gira sobre mim, a ponteira pousada no meu ventre. Seu giro capta os fastos do mundo, a ressonância dos fastos do mundo, mói em suas rodas as coisas e os eventos, verte-os em mim. Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não, bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua austeridade, processa-se em mim uma mudança de estágio, uma sagração. (O 15, p. 116, grifos nossos). A máquina e o pássaro se confundem como se fossem uma mesma entidade, aquela assumindo a forma cônica cujos contornos são delineados a partir do movimento em espiral e descendente do Avalovara sobre o centro da , o ponto no símbolo. A máquina é o percebe-se como o centro intrumento de iniciação do pássaro mítico e, nesse instante, a do universo, o ponto de confluência do que existe e a conexão entre o passado e o futuro, como se ela e tudo o que a cerca fossem uma única coisa. Esta abordagem do autor converge para o pensamento oriental acerca da experiência espiritual transcedental sobre a fusão do individual com o todo. O som da máquina é o som do despertar de em seu próprio ser, um renascimento para um novo mundo do conhecimento repleto de sons representado simbolicamente pela apropriação da palavra: os sons que brotam no seio do silêncio absoluto. Assim, neste cenário sonoro aparece somente um tipo de som: som da máquina cônica sobre a . Aparece também o silêncio da opressão. Os tipos de sons descritos nas alíneas “e”, “f”, “g”, “h” e “i” estão associados ao pássaro Avalovara por serem por ele produzidos direta ou indiretamente: seus cantos e gritos (raah); as palavras por ele implantadas no corpo da cálice vibrante no centro do corpo da em seu voo iniciático; os sons de um gerados pela pressão do vértice da espiral do voo do pássaro; o som da máquina cônica que gira em espiral e que também se confunde com o 88 pássaro em seu voo sobre a . Percebe-se que a ave guia é um dos pontos centrais do romance e os sons a ela atribuídos traduzem significados herméticos e de extrema relevância para desvendar os enigmas do enredo. As alíneas “a”, “b”, “c” e “d” referem-se aos eixos musicais, sendo tratados no capítulo 5. 4.2 AVALOKITESHVARA E AVALOVARA O Avalovara é um pássaro mítico cujo simbolismo ultrapassa sobremaneira as percepções da história que se desenvolve no romance. Guarda semelhanças com as figuras lendárias da Fênix grega, da Bennou egípcio e do Pássaro de Fogo do folclore russo, cujos mitos estão profundamente enraizados nas culturas dessas nações. Algumas pistas conduzem à compreensão de que o pássaro Avalovara pode ser interpretado como o fio condutor do romance e da sua estruturação. Está associado ao texto literário, à palavra e à exatidão da escrita, ao passado e ao futuro e à representação do amor individual e universal, através de Abel e de suas três mulheres reunidas na . Preenche a narrativa de mistério, evocando aspectos relacionados ao misticismo da realização espiritual representada no enredo pela busca de Abel pelo conhecimento. Os sons do pássaro mítico integram um dos eixos sonoros relevantes da paisagem sonora do romance. Avalovara surge de tempos em tempos como um guardião silencioso e prenunciador de eventos, cuja natureza ele expressa por meio de sua forma, suas cores, seu voo e seu grito ou canto. O nome deriva do ser místico e transcendental denominado Avalokiteshvara. Trata-se de uma divindade budista representativa da compaixão universal, do desprendimento e do amor pela humanidade. A respeito da origem do título “Avalovara” Osman Lins assim discorre em O Evangelho da Taba: Primeiro, o título corresponde ao nome de um pássaro que existe no romance. Um pássaro imaginário. Inventei esse pássaro, não o nome. Pensava guardar para mim o segredo, mas revelo-o. Há uma divindade oriental, um ser cósmico, de cujos olhos nasceram o Sol e a Lua; de sua boca, os ventos; de seus pés, a Terra. Assim por diante. É lâmpada para os cegos, água para os sedentos, pai e mãe dos infelizes. Tem muitos braços, pois não lhe falta trabalho no mundo. Seu nome é Avalokiteçvara. Não foi difícil, aproveitando esse nome, chegar ao nome claro e simétrico de “Avalovara”, que muitas pessoas acham estranho. (LINS, 1979, p. 165). Avalokiteshvara seguramente é o Bodhisattva 23 mais reverenciado do budismo Mahayana do Tibete, da China e do Japão. Também foi adotado com fervor na Coreia, no 23 Aquele cujo ser ou essência é a iluminação. 89 Camboja, no Vietnam, na Mongólia e no Sri Lanka. O nome Avalokiteshvara24, oriundo do sânscrito, divide-se em três partes, sendo composto pelo prefixo verbal Ava, que significa "para baixo", pelo termo lokita, um particípio passado do verbo lok, usado no sentido ativo, que significa "observar", "ver", e finalmente Ishvara, com o significado de “Senhor” ou "Mestre". A junção de lokita com Ishvara faz com que, pelas regras da língua sânscrito de combinação de sons, produza-se o termo lokiteshvara em que as letras “a” e “I” são substituídas pela letra “e”. A combinação das três palavras pode, então, ser assim traduzida de forma literal: “O Senhor que olha para baixo (o mundo)”. O termo loka (mundo) está implícito. Até o século VII adotava-se o nome Avalokitashvara em que shvara (ou śvara) significa “som”, “ruído” o que confirma o significado da palavra chinesa Kwan Yin. Assim o significado literal de Avalokitashvara é: “Aquele que olha para baixo os sons (do mundo)”. Mais uma vez o termo loka está implícito e um significado mais extenso e compatível com o nome até então adotado seria: “Aquele que olha para os clamores do mundo com compaixão”. Chandra (1988) afirma que por volta do século VII, ocorreu uma absorção de vários aspectos do hinduísmo Shivaista pelo Budismo, resultando em uma nova vertente budista que passa a adotar práticas e aspectos filosóficos do hinduísmo tântrico. Com isto, a parte correspondente a Shvara muda para Ishvara, que é uma das referências à Shiva, e o nome do Bodhisattva, passa a ser denominado de Avalokiteshvara, uma indelével modificação mas que associa aquela divindade ao próprio Shiva. Com esta aproximação surge uma nova vertente: o budismo Vajrayana, praticado mais intensamente no Tibete. Essa transformação provavelmente está associada à decadência do budismo na Índia e o consequente fortalecimento do hinduísmo promovido pelo filósofo Shankaracharya, por volta do século VII, após incontáveis vitórias em embates filosóficos contra os adeptos do budismo. Essa religião teve o seu período áureo com o rei Ashoka (274 a 236), que converteu-se ao budismo após uma vitória esmagadora em uma batalha que custou ao inimigo dezenas de milhares de mortos. A compaixão, qualidade muito apreciada e cultivada pelos budistas, é a essência de Avalokiteshvara que, no limiar da iluminação final (nirvana), renuncia ao estado de Buda e retorna com a promessa de somente submergir na paz sublime quando todos os seres tenham se livrado do samsara, ou ciclo de nascimento e morte (reencarnação). Revela-se em forma Cologne Digital Sanskrit Lexicon (from Monier-Williams' 'Sanskrit-English Dictionary'). Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. 24 90 humana com dois braços e em forma sobre-humana, com até mil braços, sendo que em uma de suas mãos esquerdas carrega uma flor de loto25, símbolo da pureza espiritual. Avalokiteshvara é objeto de incontáveis pedidos, desde os mais simples até os de maior envergadura, entretanto, segundo a crença budista ele atravessará todos os umbrais para atender aqueles que humildemente chamarem o seu nome e pedirem a sua ajuda. Para ele são dirigidos os sons dos gongos dos templos tibetanos e as infinitas repetições do mantra Om mani padme hum (A joia está no loto). A simetria se repete na contração feita por Osman Lins ao criar o nome Avalovara, em que os elementos “Ava”, “lo” (de lokita) e “vara” (de ishvara), mantém-se como definidores de qualidades de uma entidade divina possuidora da onipresença, porque em sua imensa compaixão observa e zela (de cima para baixo), com seus mil braços, pelos seres humanos em busca de todo tipo de ajuda, e também da onisciência, simbolizada pelas suas várias cabeças atentas a todos os clamores do mundo. Surge como um observador permanente que carrega consigo as qualidades intrínsecas de uma divindade em seu mais elevado estado de perfeição, dentre elas a de mentor do conhecimento. O pássaro Avalovara revela-se com as mesmas características da divindade Avalokiteshvara, pois de cima, em seus imensos espaços de voo, observa e protege a mesmo tempo que acompanha os amantes em sua trajetória rumo à unidade . De gênero masculino na Índia e no Tibete, Avalokiteshvara26 foi também adotado na China e no Japão representado como deusa de nomes Kwan Yin e Kannon respectivamente em que o significado de “deusa da misericórdia” atraia com mais facilidade a admiração e, por conseguinte, a devoção das mulheres. Este caráter andrógino de muitas divindades tem um caráter simbólico: o ser que transcendeu a dualidade e assim, atingiu o estado de unidade, da perfeição divina em que não existem polos em conflito. O ser que está além dos antagonismos do bem e do mal é aquele que superou o mundo ilusório dos opostos. Metaforicamente ele está dentro da e percebe os mais íntimos sentimentos. É também o mestre, o guru que a , ao inicia nos mistérios dos sons. A flor de loto cresce em águas lodosas, entretanto permanecendo inatingível pela sujeira da água onde se desenvolve. Na mão esquerda de Avalokiteshvara simboliza a condição de quem já não mais pode ser maculado pelo pecado, estando, assim, apto a livrar do pecado os seres humanos que clamam por salvação. 26 YÜ, Chüng-fang. Kuan-Ying: The Chinese Transformatios of Avalokiteshvara. New York: Columbia University Press, 2001. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2015. 25 91 Esta androginia aparece na personagem Cecília, a segunda mulher de Abel, que o conduz, após a compreensão do ambiente de lutas e contrastes sociais, para seu terceiro relacionamento, com a , nascida e nascida, portadora do verbo e, portanto, da chave da Abel realiza o encontro de dois polos, o realização pela incorporação da sabedoria. Com a masculino e o feminino, que se fundem para, ao deixar para trás as dualidades da vida, superar a morte e com isto alcançar a plenitude da paz do tapete e o domínio dos sons. O afastamento da perfeição pela diversidade é representado no conceito cosmogônico de Orfeu segundo o qual a degradação ocorre na medida em que a unidade se divide em múltiplas formas. A esse processo de criação do universo, que se materializa em infinitos contornos e vibrações, corresponde um ciclo inverso de reintegração com o todo. De acordo com esse mito, é na sexta geração, a partir do advento órfico, que surge a raça humana, oriunda das cinzas dos Titãs, fulminados por Zeus em razão de terem despedaçado o corpo de Dionísio, ainda que tenham preservado o seu coração. No mito órfico do Ovo Cosmogônico27 pode-se buscar a origem do universo bem como uma compreensão do sentido de unidade e diversidade: O Princípio, Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, a plenitude de uma totalidade fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide e se desloca para fazer aparecer formas distintas, indivíduos separados. A esse ciclo de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do Todo. Será na sexta geração o advento do Dioniso órfico, cujo reino representa o retorno a Um, a reconquista da Plenitude perdida. (VERNANT, 1992, p. 88). Em Avalovara, a ideia do ovo primordial do mito órfico está representada por um ser totalmente fulgurante e que traz consigo um ovo contendo a luz do universo: [...] Cecília conta-me a fábula concebida na fome e na loucura por uma das internadas: “Há, em algum ponto do mundo, um ovo cujas dimensões é impossível calcular e onde Deus guarda um grão de claridade. Isto para o caso de todos os fogos do universo vierem a apagar-se. Então, com um grito, Deus romperá o ovo e dele sairá voando um pássaro feito de chispas, que crescerá rapidamente, com a velocidade da luz. Mas pode suceder que o mundo recaia ainda nas trevas. Prevendo isto, traz o pássaro um ovo, onde Deus esconde a claridade”. Tomo-a nos braços e levo-a pelas salas, afirmando que ela é esse pássaro. (T 16, p. 253). Da mesma forma que Avalokiteshvara foi provido de onze faces e mil braços, o pássaro Avalovara é uma composição de pássaros menores, uma nuvem de pássaros: 27 De acordo com Brandão (1992), a mitologia grega, vista sob a perspectiva órfica, tem seu princípio no ovo primordial. No início existia a Noite que gerou Crono, ou Tempo, e, posteriormente, Caos e Éter. Crono produz no Éter o ovo primeiro do qual nasceu Fanes, o andrógino criador do mundo das divindades, dentre elas o próprio Zeus 92 O Avalovara, assustado, desce do relógio, sobrevoa um segundo o dorso de Abel e vem pousar no tapete. Duas ou três penas se desprendem, esvoaçam, retornam ao seu corpo. Descubro: é um ser composto, feito de pássaros miúdos como abelhas. Pássaro e nuvem de pássaros. (O 24, p. 245). O pássaro adquire, no romance, o simbolismo do encontro e da unidade dos seres no amor individual, tornando-se a representação do amor universal: Tem um papel simbólico. É um grande pássaro feito de pequenos pássaros. Simboliza este romance e também minha concepção do romance. Suas significações, porém, são ainda mais amplas. Por exemplo: o Avalokiteçvara é uma divindade plena de amor. Tanto que, masculino na Índia, assume na China um caráter feminino, maternal. E Avalovara, na sua aparência, é um romance de amor. O amor, para mim, teve sempre uma grande importância, pelo que tem de exaltante, por envolver o problema da unidade e por repousar sobre o encontro, tão misterioso, de um ser humano com outro. (LINS, 1979, p. 165). A breve relação amorosa entre Inácio Gabriel e a desperta nela um estado de grande alegria e gera um pássaro. Após a morte de Inácio este pássaro se mostra como sendo o Avalovara: Inácio Gabriel sorri e abre uma janela que não há. Fizemos tudo, Inácio? Dissemos tudo? Não. Mas o pássaro, este, o inquieto pássaro que em mim fazes surgir e cujo nome, sei, é Avalovara, não emudece, nem parte, nem morre com a tua morte. [...] mesmo nesse instante sei que o Avalovara me guarda e transmite um pouco da tua condição: das suas plumas vistosas, do seu canto secreto. (O 21, p. 207). O canto e o grito do pássaro revelam a sua presença incansável, entretanto discreta, nos encontros entre Abel e suas três mulheres. Adquire diversas expressões e tamanhos, em alguns momentos se apresentando como um pássaro pequeno e delicado e exibindo uma plumagem multicolorida, como expressão de momentos de satisfação e de serenidade. Ataviado com todas as cores dos pavões, o Avalovara lembra um manuscrito iluminado. Nele, quase é possível ler. A cauda é longa e curva, com reflexos de cobre. As asas, seis, de um tom verde celeste quando repousadas, ostentam na face interna, quando abertas, círculos de muitas cores, dispostos com simetria sobre fundo escarlate. Vejo-as adejando e nada ouço. Ele voa, o pássaro, da mesa para o chão e do chão para cima do relógio, como se fosse oco, um pássaro de ar. Trançadas no seu peito, faixas e fitas roxas. Da delicada cabeça, parecendo ornada com um diadema de pequenas flores e encimada por uma espécie de língua, descem longas plumas muito claras, semelhantes a flâmulas. Rosa brilhante o resto do corpo. Bico rubro e curto, olhos oblíquos. Quando esvoaça, aflante, o mover das seis asas desprende um odor de paina e não parece que voar lhe pese: todo o seu corpo é asas. (O 24, p. 244). 93 Em outros momentos, assume dimensões extraordinárias e cor escura, uma presença prenunciadora de momentos terríveis e simultaneamente protetora: “As asas, tão largas que, abertas, apagam muitas estrelas e a brilhante coroa em torno do disco betuminoso da Lua [...] para não perdê-lo de vista (sua plumagem de ébano) e rimos [...].” (R 21, p. 320). Por diversas vezes, a ave aparece como um ser distante e ao mesmo tempo próximo, tal qual uma entidade onisciente, algumas vezes perceptível apenas nos pensamentos da Integra o corpo da . , percebe seus sofrimentos e se mortifica com sua imobilidade amedrontada frente a presença ameaçadora de Olavo Hayano. Fere-me o sexo de Hayano, duas vezes me rasga, gélido, e então eu sinto o Avalovara, o pássaro, deixado em mim pela passagem de Inácio, dobrar-se sobre si, transido, como se a fria glande de Hayano fosse a vinda de um inverno rigoroso e súbito: a ave perde o bico e a voz, reduz-se a um esqueleto, gravado em mim como na pedra o esqueleto de um fóssil - sem a voz, sem a plumagem. (O 23, p. 238). Em uma cena do romance, manifesta sua luminosidade e leveza quando, sobrevoa o céu: “[...] o pássaro, tento ainda descer mas o último lance da descida é íngreme, desisto, brilha no ar o Avalovara como se fosse oco e os raios fulgissem dentro dele, sento-me no alto da falésia, descalça [...].” (O 24, p. 247). À semelhança do Avalokiteshvara, Avalovara está comprometido com a busca de Abel e a , mostra-lhes o caminho correto em contraposição à degradação que assola muitos dos demais personagens. Surge em vários momentos da narrativa como um ente observador, uma presença serena durante toda a trajetória dos amantes. A integração de ambos ao tapete explicita o aspecto mundano, expresso pela fusão do feminino com o masculino, inseparável do aspecto sagrado que se manifesta na união do individual com o todo, conduzindo Abel à aquisição do conhecimento pela absorção do mundo das palavras, as quais guardam, na narrativa, um sentido de sabedoria universal. O pássaro sagrado perpassa os corpos dos amantes ao mesmo tempo que voa fora deles, sugerindo a sua onisciência e, portanto, a sua infinitude. O espírito de compaixão de Avalokiteshvara é o mesmo impulso que move o pássaro Avalovara em seu zelo pela .A multiplicidade de pássaros que compõem o seu corpo remete aos mil braços da divindade budista com seu incomparável sentimento de compaixão.. [...] alteia-se ainda o Avalovara entre relâmpagos, e de súbito percebo que um pássaro igual — o mesmo? —, quase legível e também feito de pássaros, voa em nossos corpos unidos, leve, entre as ramagens, as mariposas, o crocodilo, o coelho e os animais de gargantas ruidosas. Voa em nós e canta. Estranho: canta em duo, com voz humana e repassada de misericórdia. (O 24, p. 247). 94 Enquanto separados, Abel e a transitavam no mundo fenomênico, mas a apoteose é atingida no momento da morte dos amantes pela arma de Olavo Hayano, morte simbólica que precede a união de Abel com a , a fusão de ambos com o tapete e seus seres míticos. se Neste momento deixa de existir a dualidade, o feminino e o masculino e Abel e a apropriam das palavras e de sua ordenação. Os instantes derradeiros de sua cópula traz a presença do Avalovara que os acompanha com seus movimentos suaves. “O Avalovara (as asas bem abertas, os pequenos saltos ondulantes) move-se em torno de mim e de Abel” (O 24, p. 246). Avalovara também está associado à espiral como símbolo do passado e do futuro e como instrumento de estruturação do romance: “A ave solitária cresce e cada vez perco-a menos de vista. Custo a perceber que as suas evoluções são rigorosas. Voa com disciplina, traça uma espiral descendente, que se reduz em direção a um vértice”(O 6, p. 34). O voo em espiral confunde-se com o movimento da máquina cônica, a mesma que pressiona o centro do corpo da , a ela concedendo o dom da fala. Pelo fato de estarem no céu e também na terra, os pássaros são considerados, em muitas escolas esotéricas e religiões, intermediários entre os deuses e os homens. Simbolizam a elevação espiritual da alma humana. Pode-se estabelecer um paralelismo entre o pássaro Avalovara e a ave Fênix, que morre queimada e renasce de suas próprias cinzas. Relatos de Heródoto e Plutarco (CHEVALIER, 2008) mostram que a Fênix é um pássaro mítico originário da Etiópia. Era caracterizada com penas brilhantes, de cores dourada e vermelho-arroxeada e teria um tamanho pouco maior do que uma águia. Durava em torno de 500 anos, mas alguns diziam que poderia chegar a 97.200 anos. Ao pressentir a morte, construía um ninho com vergônteas perfumadas que incendiava com o seu próprio calor, deixando-se consumir pelas chamas. Das cinzas nascia uma nova Fênix que piedosamente as recolhia colocando-as em um ovo de mirra, que era carregado até o altar solar de Hielópolis, no Egito. Na descrição da Fênix no dicionário de Chevalier fica evidente a relação com o princípio órfico da organização do universo: Esse pássaro magnífico e fabuloso levanta-se com a aurora sobre as águas do Nilo, como um sol; a lenda fez com que ele ardesse e se apagasse com o Sol, nas trevas da noite, e depois renascesse das cinzas. A fênix evoca o fogo criador e destruidor, no qual o mundo tem a sua origem e ao qual deverá o seu fim; ela é como que um substituto de Xiva e de Orfeu. (CHEVALIER, 2008, p. 422). 95 O místico sufi Al-Jili adotou a Fênix como um símbolo daquilo que somente existe se puder ser chamado pelo nome que lhe foi atribuído. Segundo ele, a ideia de Fênix só poderá ser alcançada pela invocação do seu nome, da mesma forma que a essência da divindade somente poderá ser apreendida por intermédio de seus nomes e qualidades. Assim como a Fênix morre e renasce, Abel e a morrem para renascer no paraíso do tapete, plenos de sabedoria. Acompanha-os o pássaro enigmático, detentor da ambiguidade de Avalokiteshvara por transitar livremente do mundo das dualidades para o mundo da unicidade do tapete. A Fênix egípcia, denominada de Bennou, estava associada ao ciclo diário solar e às cheias do Nilo, assumindo com isto um significado de regeneração, de renascimento, portanto, relacionado à vida. Simbolizava a imortalidade da alma e seu retorno cíclico. Por isto foi adotada pelos cristãos primitivos como representação da ressureição de Cristo, concepção esta que se estendeu pela Idade Média. No Egito antigo, Bennou era identificada na garça real purpúrea. O macho é o símbolo da felicidade e a fêmea representa a rainha, em oposição ao dragão imperial. O macho e a fêmea juntos representam a união perfeita, o casamento feliz. Bennou também é associada à adoração ao deus sol, ou Rá. Ra, ou Amon-Ra, também é representado por um pássaro, um ser alado que se eleva acima dos homens simbolizando uma entidade superior, o criador do universo e da luz, sendo ele a própria luz, ou seja, o sol. A prole de Ra é o universo que vem de um ovo, a luz encapsulada pelo ovo primordial. Os cantos dos pássaros são tão ou mais significativos do que a própria ave, tal qual o canto de Amon–Ra que se constitui no verbo criador do universo. Ra (sol) é o deus criador e engendra pela mediação do verbo. Seu outro nome designado no Fedro, é Amon. Sentido recebido deste próprio nome: o oculto. [...] um sol oculto, pai de todas as coisas, deixando-se representar pela fala. [...] a criação do ser e da vida, o sol – o olho, o ocultar-se [...] a história do ovo ou o ovo da história. O mundo nasceu de um ovo. Mais precisamente, o criador vivo da vida no mundo nasceu de um ovo: o sol, portanto foi inicialmente levado na casca de um ovo. O que explica diversos traços de Amon-Ra: é também um pássaro, um falcão. [...] Amon-Ra também a origem do ovo. Designamo-lo ora como pássaro sol nascido do ovo, ora como pássaro original, portador do primeiro ovo. Neste caso, e como o poder da fala e o poder criador são um só, alguns textos nomeiam “o ovo do grande tagarela.” (DERRIDA, 2005, p. 33). Avalovara aparece como um pássaro repleto de segredos, tão insondáveis quanto os pequenos insetos ou pássaros que compõem o seu corpo e que, com seus cantos e gritos, se anuncia a seus protegidos, adverte-os de situações e os consola com seus cânticos suaves. Os sons por ele emitidos, apesar de intraduzíveis, revestem-se de misteriosos significados. 96 Carrega consigo a raiz do verbo e, portanto, do conhecimento, conduzindo o processo iniciático que dá a o dom da palavra, da qual estava simbolicamente privada até então. durante a O som Raah por ele emitido em seus sobrevoos sobre Abel e a caminhada dos protagonistas até a unificação, identifica a enigmática ave em seu caráter onipresente e iluminado. Este aspecto simbólico da narrativa encontra paralelo com o pássaro sol, Amon-Ra, que detém o poder criador por intermédio do verbo e da luz resplandecente como fontes da vida e da prosperidade: O isolamento absoluto, em que me vejo, sob o Sol a pino, é o primeiro anúncio do prodígio. Voa bem alto um gavião, voa acima das nuvens, o braço esquerdo mantendo-me à distância, pássaros – [...] Alteia-se ainda um grito, mas tanto pode vir de uma criança aterrada como de alguma ave para mim desconhecida. Agudo, esse grito, distante - "Raah!" (E 15, p. 343). [...] afla na sala pássaro feito de pássaros bico rubro diademas e como ataviado em sedas laços flores o pássaro do júbilo da glória do encontro da misericórdia e seu nome é claro um Sol um dia. [...] vem o prazer como um sopro benigno e temível na sua intensidade, eu sob e sobre, dois e um, sou e somos, "Raah!" (E 15, p. 354). O pássaro Avalovara evoca em muitos aspectos a Fênix em sua representação da imortalidade associada à sabedoria tão buscada por Abel e alcançada na fusão com a e com o paraíso mítico do tapete: “pássaro feito de pássaros”, “voa em nós e canta”, “canta em duo”, “com voz humana”, “repassada de misericórdia”(T 16, p. 248). Habita o corpo da , nascida e nascida, e ao mesmo tempo está fora dela, incorporando um significado de onipresença, do ressurgimento após a morte e do conhecimento associado às palavras. O mito da Fênix assume diferentes contornos em outras culturas. O pássaro imortal encontra paralelo na lenda russa do Pássaro de Fogo, um ser mitológico com penas coloridas e brilhantes que encanta a todos que o veem pela sua beleza e esplendor. Podia se comunicar com os seres humanos, tanto aconselhando-os quanto produzindo ilusões para quem era considerado indigno de receber seus conselhos. Assim, para quem o capturasse podia ser uma bênção como também uma maldição. Suas penas majestosas flamejam em cores vermelha, amarela e alaranjada, as mesmas que emanam do brilho fulgurante de uma fogueira. Teria o tamanho de um pavão e sua cauda longa conteria penas em forma de olhos de cores variadas. Stravinsky, por meio da genialidade de sua música, soube dar vida aos personagens do conto russo de natureza fantástica quando compôs uma de suas peças mais conhecidas e criativas, O Pássaro de Fogo. A lenda russa sobre o pássaro mágico, ainda que embebida de uma ingenuidade infantil, revela, da mesma forma que o Avalovara, a caráter benevolente do Pássaro de Fogo com seu poder libertador e destruidor do mal. Para Grout e Palisca (2007), o “O Pássaro de Fogo filia-se na tradição nacionalista russa e tem a mesma orquestração rica e 97 sensual do mestre de Stravinsky, Rimsky Korsakov”. (GROUT; PALISCA, 2007, p. 720). A obra apresenta o universo maléfico do mago Katshei, em contraposição ao espírito benévolo do pássaro e do príncipe herói Ivan Tsarevitch, que vencerá as forças do mal com a ajuda do pássaro de fogo. A história narra uma aventura medieval de heroísmo quase infantil, de amor puro e de magia. O príncipe Ivan Tsarevitch parte com seus súditos para uma caçada e se perde em um bosque enfeitiçado dentro do qual viceja uma macieira mágica cujos frutos são de ouro. Nessa árvore avista um pássaro com penas vermelhas e alaranjadas, o Pássaro de Fogo, contra o qual dispara um tiro que não acerta o alvo. Alertado pelo barulho o pássaro foge e retorna em seguida para ficar voando ao redor da macieira. Ivan consegue aprisionar o pássaro que se debate desesperadamente para se livrar de seu captor. O pássaro, fatigado, suplica ao príncipe pela sua liberdade e que em troca lhe daria um de suas penas alertando que, sendo mágica, em caso de perigo, bastaria agitá-la que ele viria em seu socorro. Ivan aceita a proposta e liberta o pássaro. Em seguida doze donzelas cativas, lideradas pela bela Tsarevna, surgem no bosque e dançam ao redor das árvores mágicas brincando com seus frutos. Encantado com a beleza de Tsarevna, Ivan lhe oferece uma fruta que é por ela aceita. Entretanto, ela o alerta que aquele local faz parte dos domínios do maléfico mago Katshei e que correria perigo se ali permanecesse, pois todos que o confrontam são por ele transformados em pedra. Destemido, Ivan não houve os apelos da jovem e acompanha as donzelas de volta para o castelo do mago. Ao chegar, Ivan entra no castelo o que faz com que o temível Katschei abra as portas de acesso ordenando que suas criaturas invadam todo o bosque. Ivan pede Tsarevna em casamento o que enfurece o mago. Ivan cospe em seu rosto ao que Katschei reage usando seus poderes para iniciar a petrificação do príncipe. Ivan então sacode a pena mágica no ar e pede socorro ao pássaro que aparece imediatamente subjugando Katschei e suas criaturas e fazendo com que todos dancem até exaustão e entrem em sono profundo. O pássaro mágico conduz Ivan ao oco de uma árvore onde se encontra um cofre, dentro do qual está guardado um grande ovo branco que contém o segredo da eternidade e o poder de Katschei. Este, ao pressentir que seu segredo está em perigo agita-se, mas já é tarde, pois Ivan rompe o ovo destruindo todo o poder do mago. Katschei e suas criaturas desaparecem e os seres reais aprisionados ou transformados em pedra são libertados. Ivan casa com Tsarevna e os doze cavalheiros libertados casam com as doze donzelas. Retomando as relações do pássaro de fogo com o Avalovara, constata-se que a personalidade sinistra de Olavo Hayano tem características comuns com o espírito maléfico do mago Katschei que, com sua perversidade, mantêm aprisionadas suas criaturas. A de 98 uma certa forma é mantida reclusa pela força malévola do Iólipo, cujo poder de persuasão se manifesta também pelo cão feroz de hálito fétido que traz consigo. O Avalovara traz para si o sofrimento da perante a presença de Hayano, tornando-se um esqueleto, à semelhança daqueles que ousam enfrentar Katshei, o poderoso mago da história contada pela música de Stravinsky, que são transformados em pedra. A morte de Abel e a os conduz ao universo liberto do tapete, equivalente à libertação das princesas da temível mágica de Katshei. 4.3 CANTO DE TRABALHO E RUÍDOS O período medieval erigiu construções mais belas do que aquelas que surgiram nos últimos séculos o que é corroborado pelas infindáveis peregrinações turísticas e religiosas voltadas para os templos daquele período. O canto dos galos e dos pássaros soavam como despertadores naturais para chamar os moradores das tranquilas comunidades para o trabalho. Os sinos dos campanários indicavam as horas e lembravam os homens e mulheres da abertura do mercado e do início dos ofícios religiosos. Os suaves cânticos gregorianos ecoavam nas naves das igrejas incitando os habitantes a lembrar a presença de um ser supremo. Os trovadores cantavam nas praças e nas casas e os corais polifônicos entoavam canções feitas principalmente para a voz. Cantigas de trabalho tinham ritmos específicos em sintonia com a dinâmica do labor diário. Cada cantiga juntava-se a outras canções laborais numa sinfonia comunitária envolvente e contagiante. Dançar e cantar era uma necessidade tal qual comer e beber. Tais cânticos eram entoados nos campos, nas oficinas, nos navios e reproduzidos pelos vendedores de rua e pelas floristas que “[...] imitavam ou cantavam em contraponto, numa vasta sinfonia coral.” (SCHAFER, 2001, p. 99). Munford descreve a representação sonora da época: Na rotina diária, havia cantigas de trabalho, distintas para cada ofício, muitas vezes compostas segundo o martelar rítmico, o bater ou o serrar do próprio artífice. Por toda a parte, os ruídos da natureza misturavam-se com os do homem. Fitz Stephen informava que, no século XII, o ruído do moinho de água era um som agradável em meio aos campos verdes de Londres. À noite, havia silêncio completo, afora o agitar dos animais e o gritar das horas pela guarda da cidade. O sono profundo era possível na cidade medieval, imune às tensões ulcerantes dos ruídos, quer humanos, quer mecânicos. (MUNFORD, 1965, p. 386). O ir e o vir das serras e do batido estrepitoso dos martelos dos ferreiros e dos machados dos lenhadores eram regidos pelos cantos individuais ou coletivos que preenchiam os ambientes urbanos e rurais de uma Europa pré-industrial. 99 O racionalismo, cujas sementes teriam encontrado na renascença um terreno fértil para sua germinação, floresce com plenitude a partir do fortalecimento do pensamento iluminista. Coloca o homem no centro do universo e foca na investigação científica como fonte de todo o saber concreto. Este voltar-se para o externo, em contraposição à introspecção interna do período medieval, acarretou o surgimento de uma cultura de extroversão, reforçada pelos ruídos advindos do desenvolvimento industrial burguês. A sociedade, estimulada pelas descobertas da ciência em todos os níveis e de suas leis, passa a exaltar a máquina e seus ruídos como instrumento da modernidade social e de salto para um patamar nunca antes alcançado. Novas sonoridades artificiais passam a preencher os ambientes urbanos, sufocando e gradualmente substituindo os sons produzidos pela natureza e os sons musicais cultivados no seio das famílias e nos encontros festivos das comunidades. A sociedade humana recriavase culturalmente com base em novos paradigmas. Para Schafer (2001), com o advento da Revolução Industrial, os cantos de trabalho, cujos acentos estabeleciam os ritmos do labor diário, foram substituídos pelos ruídos frios e contínuos das máquinas. Seu desaparecimento se deve à dessincronia entre os ritmos dos homens e das fábricas. Nas cidades os pregoeiros e músicos de rua foram gradativamente silenciados por aqueles que se sentiam incomodados com as vozes e os sons advindos de uma classe desprovida de privilégios. Entretanto, os ruidosos e perturbadores sons de veículos movidos a motores de combustão eram aceitos passivamente, porque constituíam-se em instrumentos do progresso de uma era em que o reinado das máquinas passava a ostentar a coroa da modernidade e o status de poder. Os sinos das igrejas em nenhum momento tiveram seus sons interrompidos por qualquer legislação repressora, mesmo porque incorporavam o poder eclesiástico que se manteve acobertado pelo poder do Estado até bem pouco tempo atrás. Em Avalovara, o canto de trabalho põe-se em evidencia, através da voz com o acompanhamento acústico dos sons dos afazeres da personagem Natividade. A regularidade rítmica dos bilros conduz o canto da música folclórica da mulher rendeira, detalhando a caracterização sonora associada à execução do trabalho manual. Ouve-se um bater de roupa, de tapetes, de portas, de louça, de bilros, de talheres e a voz de Natividade cantando, voz alegre e forte, indo e vindo. [...] Vacilo entre contemplar, como um surdo, esse mover de boca e ouvir como se nada visse a sua voz rica em tons, agora calma e fresca, quase de criança, com rápidos acentos ásperos. (R 9, p. 55). 100 Natividade revive, na personagem negra, a tradição consolidada nos longos anos da história de nossos antepassados e rapidamente destruída pela ditadura das máquinas da era moderna. A comparação dos sons dos bilros de madeira com os sons produzidos pela natureza sugere a existência de uma conexão indestrutível entre a mulher artesã, o ir e vir de seu trabalho manual e a natureza. Natividade ante a sua almofada de rendeira, quatro bilros nas mãos. [...] Vai mudando sobre o risco os alfinetes e cruza em torno deles as linhas, os bilros de madeira estalando um contra outro, sempre quatro a quatro, um par na mão esquerda e um par na direita, abandona-os, toma outros dois pares entre muitos da almofada, trança-os. O rumor seco e breve das cabeças dos bilros, polidas pelo uso de anos, ressoa alegremente no silêncio. Natividade acha-o parecido com o dos corrupios ao vento e com o barulho de um fio d'água entre seixos. (R 10, p. 73). Nesta passagem, por meio da narrativa, destaca-se a semelhança dos sons artificiais produzidos pelos instrumentos dos artesãos de renda (bilros), construídos com materiais oriundos diretamente da natureza, com os sons naturais do vento e da água. Natividade, a negra humilde e explorada pela família de Olavo Hayano, conecta-se, por meio dos bilros, ao seu mundo original, simples e recheado de sons naturais. Opressão e submissão estão expressos na forma seca e autoritária com que Hayano tratava a sua babá. Põe-se a cantar em voz baixa. O menino em que concentra toda a sua carga de amor – e que às vezes assusta-a com seus olhos ao mesmo tempo rapaces e neutros – entreabre a porta, teso e sem elegância, duro, o uniforme cinza com vermelhos no quepe: “Mamãe está dormindo no sofá. Não cante”. Ela interrompe a canção e a porta se fecha sem ruído. Estalam menos rápidos os bilros. (R 10, p. 73). Nas tabelas da classificação números 3, 4 e 5 constam diversos tipos de sons coletados no romance que evocam ruídos oriundos do trabalho praticado no meio urbano: a) o tipo denominado de “Xícaras, máquina de datilografia, campainhas, carimbos, chamada de telefone, guichês”, pertencente à categoria específica “Sons de escritório” e à categoria geral “Sons e sociedade”, no qual foram incluídos os ruídos do local de trabalho de Abel: “O som doméstico das xícaras vai atravessando os gritos dos caixas e da clientela, o tilintar dos telefones, o bater das máquinas, os apelos das campainhas, os disparas dos carimbos.” (T7, p. 112); b) os tipos denominados de “Bilros” e de “Amolador de tesouras”, pertencentes à categoria específica “Sons de instrumentos de trabalho” e à categoria geral “Sons e sociedade”, no qual foram incluídos os sons dos bilros da Natividade e os ruídos 101 em sua do amolador de tesouras das ruas de São Paulo percebidos pela mudez: “A voz de Natividade, vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o cheiro de vinagre e o rumor calmo dos bilros [...]” (R9, p. 55); “[...] buzinas de automóveis, pregões, um amolador de tesouras, parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios [...]” (O15, p. 115); c) os tipos denominados de “Misturador de concreto”, “Perfuratrizes de rua e geradores de energia”, “Escavadeiras”, “Bate-estacas”, “Martelo” e “Serra mecânica”, pertencentes à categoria específica “Sons de equipamentos de construção e demolição” e à categoria geral “Sons e sociedade”, no qual foram incluídos os ruídos advindos das obras de urbanização nas ruas de São Paulo: “Mas os passos sutis de minha mãe, o arranhar das portas gradeadas e não lubrificadas dos elevadores, as misturadoras de concreto e as serras mecânicas do prédio em construção [...]” (O15, p. 115); “Grupos de operários, com, amarelos e vermelhos, capacetes vermelhos e amarelos, núcleo ruidoso de geradores móveis, perfuratrizes elétricas, lanternas, esburacam o asfalto [...]” (R20, p. 304); “Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem.” (R22, p. 322); “Por vezes, percutem um martelo, ou me deparo com a fachada de um prédio, ou vejo desenhos num muro, ou cravo as unhas na pele.” (O4, p. 26). Spina (1982) menciona que a ritmicidade poético-musical associada ao ritmo do trabalho dos cantos de ofício remete às ideias de Pitágoras sobre a existência de uma harmonia e de um continuum rítmico em todas as atividades perfeitamente disciplinadas e no mecanismo do universo. Percebe-se em Avalovara essa periodicidade rítmica, principalmente em fragmentos dispersos no tema R, na construção do relógio de J.H. (tema P), no movimento da espiral e no imbricamento dos temas. Em diversos trechos do romance, como nos temas A, E, T e R, destacam-se sequências de palavras com sonoridades semelhantes, algumas delas ásperas, produzindo vibrações vocálicas de efeitos poéticos. Com este recurso, elementos da linguagem musical associados à linguagem literária do texto jogam com a sonoridade das palavras, valendo-se de acentos fortes e de consoantes incisivas. No tema A – Roos e as cidades – são descritos os atributos de Roos: “Roos, uma visão, um impossível, a fugidia, a próxima, a ofuscante, a clara, a quase, a que entrevejo, a que perpassa, o relâmpago, a irisada, a apenas visitada, a intangível, a vinda inconclusa, o perene 102 ir.” (A 21, p. 258). Em um dado momento, seu nome desdobra-se em consoantes e em várias cidades, aquelas que povoam o seu corpo, cujos nomes reverberam carregados de sonoridades ritmadas, entretanto, mostrando-se vazias e silentes: Ratos grandes como porcos atravessam os becos e correm ao longo das pontes. Roos. R - O - O - S. Ravena, Oviedo, Orleans, Salzburgo. Avenidas desertas, cheias de carros estacionados. As janelas fechadas. Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma, Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que me segue, sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salarnanca, Samotrácia, Sodorna, Saragoça, Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. Um vento colérico abala esses nomes, solda-os, desagrega-os, atira-os contra outros nomes e outros ventos. Dois gatos se cruzam, ruidosamente, entre os lampiões amarelos da Ponte Notre-Dame. O mendigo masturba-se. Sena, Florença, Nuremberg, Berna, Múrcia, Viena, Cartagena, Linz. O céu empalidece, desapareceu meu seguidor. Salerno, Budapest, Esparta, Gênova, Sorrento, Reims. (A 21, p. 259). Em outro trecho, no tema E - e Abel ante o Paraíso - a reflexão de Abel e da voz narrativa que o questiona produz uma sucessão de palavras relacionadas aos ruídos de obras urbanas, provocando a sensibilidade auditiva imaginativa do leitor: A palavra estridor e todos os seus derivados, e as palavras serra, aço, dentes, brilho, azul, madeira, operário, mão, serragem (uma só palavra arrasta consigo todo o léxico existente ou virtual?) cruzam o meu espírito e repercutem em nossas bocas. O licor a que sabe a sua língua quente, Abel, não será então filtrado com palavras? Evoca-te, seu hálito, mirra e violetas, uvas, sarmentos, folhas secas queimando, ou o que te embriaga é o olor das palavras através das quais suscitas esse pequeno universo entre doméstico e vinário? (E 5, p. 290). O sentido áspero do texto é reforçado, em outro cenário, pelo uso de palavras duras e cortantes, que descrevem o fluxo dos sons desordenados que preenchem o corpo da : [...] tu portagem tu pórtico tu porto eis que finda a travessia e as palavras me invadem a princípio em tumulto irrompem em mim horda ríspida e silente irrompem em mim e minha carne conhece-as conhece e sofre a presença desses insetos de mica lâmina veloz do relâmpago correm entre nós as palavras e com elas o caos a balbúrdia a barafunda [...]. (E 16, p. 349). A aspereza da letra R no tema T – Cecília entre os Leões sonoriza a expressão textual que ganha força, ritmo e graça, à semelhança da leitura de uma partitura, em que através da linha melódica chega-se ao fraseado como fio condutor da música: Que faz a costureira com o que resta do fio? Cose, calada, a boca do cadáver. Aquém do além. Zás. Esta cantiga é descosida. Une-a um fio: a agulha. Rude Roderico, ris do redingote da rã? Alcatruz. (T 9, p. 137). 103 Na carta de 27 de dezembro de 1973, em resposta ao jornalista Leo Gilson Ribeiro sobre esse trecho de Avalovara, Osman Lins esclarece: “Esse trecho é justamente um jogo, uma brincadeira que só adquire sentido dentro do seu contexto. Corresponde, literariamente à afinação de um instrumento musical. Hermelinda ou Hermenilda toca bandolim.” (LINS apud PEREIRA, 2015, p. 483). A menção ao verbo ranger (/ʀɐ̃.ʒˈeɾ/) é abundante no tema R, e Abel: encontros, percursos, revelações – cujo som é a inicial deste verbo. Em um trecho da narrativa identificase o uso repetitivo de palavras com o som `R` que encontra paralelo com os ruídos oriundos do carrossel (/kɐ.ʀɔ.sˈɛɫ/) em movimento circular, expressando, com isto, uma certa musicalidade relacionada à repetição do verbo ranger. [...] eu no carrossel que range em torno do eixo, rangem as tábuas do piso se passa algum dos outros raros hóspedes; [...] range o mar nas bocas e nas barrigas dos peixes [...] as pranchas de carvalho rangem sob nossos pés, [...] propaga-se em ondas amplas o rumor do mar [...] Praia Grande a música estridente do parque e faz ranger a janela grossa, [...] rangem os baús e a cômoda, [...] rangem em mim os ossos, rumor da mala, aves noturnas rangem, rangem no ar. (R 3, p. 15). A sonoridade melódica na narrativa, com o som vibrante do `R`, oriunda da repetição, reproduz, na elaboração poética, a expressão da emotividade presente na ritmicidade do canto de trabalho, o qual proporciona motivação para a realização das atividades coletivas. O som estridente e desagradável de metais que se friccionam remetem às contradições inerentes à duplicidade da vida da , que se manifesta na convivência de dois corpos (nascida e nascida) e de seu envolvimento amoroso com Abel, ao mesmo tempo que mantém o casamento com Olavo Hayano. Os opostos aqui estão claramente manifestados na contraposição da personalidade opressora de Hayano com o acolhimento afetivo e compreensivo de Abel: o iólipo contra o anjo; Caim contra Abel28. Os significados dos sons da fala são reforçados pelas próprias características emissivas das vogais e das consoantes. Schafer (1991) relata que, para os antigos humanistas rabínicos, as vogais eram a alma da palavra e as consoantes, seu esqueleto. Considera que na música, são as vogais que dão a oportunidade ao compositor para a invenção melódica, enquanto que as consoantes articulam o ritmo. O confronto entre o bem e o mal encontra uma de suas manifestações mais conhecidas no episódio bíblico que aborda o conflito entre dois irmãos: Caim e Abel. Quando Deus, no lugar dos produtos da agricultura oferecidos por Caim, escolhe a ovelha preferida de Abel como oferta para o sacrifício, entende-se que, a partir das palavras advindas da divindade, que este era possuidor de qualidades mais nobres do que as de seu irmão, tais como humildade, obediência, bondade, dentre outras. Caim, tomado de inveja, retira a vida de seu irmão. 28 104 Não são incomuns na literatura o uso de temas que evocam o embate ou mesmo a coexistência, por conveniência temporária, entre o bem e o mal, em nossa cultura ocidental cristã, representados pelo anjo e pelo demônio. A esse respeito, Almeida Neto (2008), em sua dissertação, vislumbra semelhanças na história da com a linha central do romance Dr. Fausto de Thomas Mann, em que o protagonista, Adrian Leverkühn, faz um pacto com o demônio para se tornar um criador genial e adquirir a capacidade de construir uma obra musical absolutamente inovadora. O personagem narrador, Zeitblom, faz um relato paralelo sobre a ascensão do nazismo, em relação a qual a loucura sifilítica de Leverkühn encontra semelhança na loucura nazista de Hitler em um imaginário pacto com o mal. Almeida Neto faz reflexões sobre uma provavel reedição, em Avalovara, de algumas ideias de Mann, sobretudo no que se refere ao casamento da com Olavo Hayano, o demônio, o Iólipo, . Percebe-se que como uma espécie de pacto que, ao ser quebrado, resultará na morte da Almeida Neto estabelece uma relação dupla entre Leverkühn e J.H. e entre Leverkühn e a . Contudo, não ocorre um pacto da protagonista do Avalovara com o Iólipo para a obtenção de algo extraordinário mas, muito provavelmente, a realização de um ato impulsivo para se livrar de uma vida de descaso e desamor a que era submetida por sua família. A estabelece uma relação profunda e muito intensa com o Avalovara, o afetuoso pássaro que a inicia nos mistérios da palavra. Ainda, segundo Almeida Neto, o autoritarismo manifesto em Hitler ecoa no personagem militar Olavo Hayano, como uma representação da ditadura no Brasil. Uma segunda fuga para uma vida digna se concretiza por meio do encontro com Abel, o benfeitor, mas com a cobrança implacável do resgate da dívida pelo rompimento do pacto do casamento cujo preço é a morte. Entretanto, a morte de Abel e da mítico de libertação e de realização do conhecimento. A respeito dos sons estridentes e desagradáveis explicitados em Avalovara, a narrativa traz os sons da modernidade na paisagem sonora do romance, como a interferência do ruído das motocicletas, numa das cenas do tema A, que enrouquecem Abel: reveste-se de um significado [...] em Chambord, [...] após esse dia febril e abundante em imagens, ouço aproximar-se um ronco, um estrondo e me vejo envolvido pelos faróis de dezenas de motocicletas, conduzem-nas rapazes com blusões de couro, moças nos portabagagens, enlaçando-os, cruzam-se as máquinas em ziguezague, os motoristas, todos de negro, gritam uns para os outros calcando os aceleradores, os faróis trespassamse na noite, novos veículos chegam, ninguém desliga o motor, o trovão vindo do ar e da terra me rodeia, levanto os braços em meio ao turbilhão de pneus, luvas, rostos, canos de escape, guidões e jatos ofuscantes - e brado, mãos nos ouvidos, o nome de Roos, um grito longo, o mais longo que posso, no bojo do bramido provocado pelos setenta motores de explosão e com tal violência que enrouqueço. Como se 105 estivessem à espera deste apelo, quase a um tempo só, os motores emudecem e os faróis começam a apagar-se [...]. (A 8, p. 50). Neste cenário sonoro, o espaço acústico da voz de Abel tem os seus limites drasticamente reduzidos em virtude do barulho das motocicletas que o impedem de ouvir sua própria voz com uma intensidade normal de entoação. A citação acima, mesmo referindo-se a um contexto ficcional, mostra a elasticidade do espaço acústico que, tanto no mundo real como no ficcional, se contrai ou se expande em função da quantidade de espaços acústicos que se interpenetram e da intensidade dos sons produzidos em cada espaço acústico. Diversos sons misturados podem resultar em um ruído aproximadamente uniforme em que cada som individual se torna indiferenciável. Schafer (2001) diferencia os sons naturais dos artificiais, associando estes aos ruídos provenientes de aparatos mecânicos e aos ruídos tecnológicos. Aos primeiros atribuiu a denominação de sons hi-fi (alta fidelidade) e aos últimos, de lo-fi (baixa fidelidade). Os sons hi-fi, com exceção do barulho do mar, do vento e da chuva, são descontínuos e tem início, meio e fim, sendo, por isso, facilmente distinguíveis no silêncio da natureza. Já os sons lo-fi são contínuos e de intensidade média constante, preenchendo o silêncio da natureza com um ruído repleto de harmônicas de diferentes frequências e, com isso, dificultando sobremaneira a audição dos sons naturais provenientes dos pássaros, da água, do vento, dos insetos e de outros animais. Os sons hi-fi têm perspectiva e como tal, uma identificação espacial possibilitada pelo silêncio de fundo. Com o crescimento do ruído tecnológico, de modo que, nos tempos modernos, a intensidade relativa seja aproximadamente igual para ambos os tipos de sons, torna-se quase impossível detectar com clareza os sons naturais, dificultando ou impedindo o ouvido humano de situá-los no contexto da paisagem visual. Os sons lo-fi são, em geral, de baixa frequência e criam uma barreira envolvente e penetrante cerceando a audição em perspectiva. Na origem da palavra “ruído” Schafer (2001) busca um de seus possíveis significados: O aumento de sons no mundo moderno originou uma mudança no significado da palavra ruído [noise]. Etimologicamente o termo pode ser remetido ao francês arcaico noyse e às palavras provençais do século XI noysa, nosa ou nausa, mas sua origem é incerta. A sugestão de que possa ter-se originado das palavras latinas nausea ou noxia tem sido rejeitada. Ruído tem variedade de nuanças de significados, entre as quais as mais importantes são: som indesejado; som nãomusical para descrever o som composto por vibrações não-periódicas (o roçar das folhas) em comparação com o som musical, que consiste em vibrações periódicas; qualquer som forte; distúrbio em qualquer sistema de sinalização. Em eletrônica e engenharia, ruído refere-se a qualquer perturbação que não faça parte do sinal, como 106 a estática em um telefone ou o chuvisco na tela da televisão. (SCHAFER, 2001, p. 256). Para Wisnik o som, por ser um ente subjetivo, não é uma coisa palpável, mas algo que, com seu poder invasivo e envolvente, “consegue nos tocar com uma enorme precisão” (WISNIK, 1989, p. 26). O som constituinte da música enquanto objeto harmônico e ordenado estaria no limiar entre o ruído e o silêncio. Ainda que a grande maioria dos sons da natureza se caracterizem como ruídos, alguns animais, em especial os pássaros, conseguem emitir cantos que em muito se aproximam do que nós, seres humanos, entendemos como música: sons ordenados em sequências rítmicas e confinados em frequências específicas. O ruído das máquinas, oriundo de uma sociedade burguesa capitalista em franca industrialização, toma de assalto a paisagem sonora antes natural e harmônica para o ouvido humano e animal, sufocando os sons da natureza e provocando até a extinção de “espécies sonoras” que antes reinavam com absoluta liberdade. No século XX, com o advento da revolução elétrica e as amplas possiblidades de gravação e de manipulação de sons, os ruídos passaram a fascinar grandes compositores como Satie, Varése e Cage, dentre outros, que veem na inclusão de sons eletrônicos e de ruídos de máquinas da modernidade em suas composições uma metáfora de um mundo em um processo de evolução irreversível. Igor Stravinsky, Bela Bartok e Arnold Schoenberg transportam para a dissonância e para as irreverências rítmicas de suas composições as visões de um mundo que se livra do romantismo burguês e se filia a um ambiente urbanizado de máquinas ruidosas representativas de um novo momento da humanidade, em que cavalos são substituídos por motores. Sobre isto, Wisnik faz alusões a compositores da vanguarda do século XX: O alastramento do mundo mecânico e artificial cria paisagens sonoras das quais o ruído se torna elemento integrante incontornável, impregnando as texturas musicais. São exemplos conhecidos o balé Parade, de Satie, onde ele utiliza máquina de escrever como instrumento de percussão e teclado, sirene e tiro de revólver; os bruitismos (“ruidismos” ou “barulhismos”) do futurista Russolo – os futuristas estavam interessados nas máquinas em geral como produtoras de música, ou “quase música”. Honneger imita a locomotiva, no Pacific 1921 (que tem um correspondente mais idílico no Trenzinho Caipira de Villa-Lobos). (WISNIK, 1989, p. 42). Em uma primeira fase, compositores de música concreta como Pierre Schaeffer gravaram os novos ruídos da civilização industrializada, mixaram-nos e os introduziram em suas composições. O aperfeiçoamento dos instrumentos de reprodução sonora tem desenvolvido novos recursos tecnológicos que possibilitam a manipulação sonora a partir da criação artificial de novos timbres por meio de sintetizadores. Também os modernos samplers 107 permitem que ruídos e sons produzidos acusticamente sejam gravados e depois reproduzidos com alta qualidade em pianos digitais ou quaisquer outros instrumentos eletrônicos, inclusive em computadores. A nova estética sonora surgiu e tomou corpo com compositores como Henri Pousseur e Stockhausen que usaram em várias de suas composições ruídos gerados por sintetizadores eletrônicos. Diferentemente dos ruídos tecnológicos, os ruídos contínuos do mar, do vento e da chuva não se constituem em sonoridades estressantes. Em vários cenários sonoros, aparece o som das ondas do mar batendo nas pedras ou nas areias da Praia dos Milagres: “As ondas , sucessivas, formam-se e desfazem-se, ruidosas: e manchas de óleo, e detritos de cocos e pedaços de alcatrão despejados por algum navio ao largo.” (T 12, p. 182). Em outra passagem, o som forte das ondas é ressaltado por meio da expressividade metafórica do verbo moer: “O rumor das vagas chega amortecido ao quarto. O mar, ao sol das duas horas, continua moendo as paredes e pisos dos Milagres.” (T 12, p. 183). O som do mar ressurge em inúmeros capítulos do romance, como um leitmotiv representativo de um marco sonoro referencial da trajetória amorosa de Abel. Também aparece como reminiscência de sua vida em família enquanto criança e adolescente. O mar, em Avalovara, está intimamente ligado à cultura nordestina de Abel e carrega, na narrativa, um caráter mitológico nos trechos: “Rugem leões verdes, nas ondas, entre os peixes.” (T 12, p. 184) e “Um carneiro nascido das areias e das espumas das ondas acompanha-nos, dócil.” (T 12, p. 183). É o mais típico dos sons hi-fi (sons da natureza) e ao mesmo tempo o mais atípico, enquanto som natural, pela sua continuidade e variedade imensa de frequências formadoras. Ainda que se assemelhe aos sons artificiais pela duração interminável, diferentemente destes, é um som agradável aos ouvidos humanos em virtude de seus efeitos relaxantes e convidativos para uma atitude contemplativa. Para Chevalier (2008), o mar, no ir e vir das ondas, situa-se entre a realidade estabelecida e o que ainda não está formado, simbolizando a ambivalência da vida e da morte. Como representação da dinâmica da vida, em que dele tudo sai e para ele tudo retorna, o mar é rítmico, pulsante tal qual o movimento cíclico da vida, é o “[...] lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos.” (CHEVALIER, 2008, p. 592). A esse respeito, Schafer (2001) fala das frequências e timbres dos sons das ondas do mar e das correspondências de seus ritmos com os ritmos do corpo humano, associando o interminável movimento das águas à ideia de imprevisibilidade, de ritmicidade e de eternidade: 108 Os ritmos do mar são muitos: infrabiológicos – pois a água muda a altura e o timbre mais rapidamente do que a capacidade do ouvido para captar essas mudanças; biológicos – as ondas se identificam com o pulmão e as batidas do coração, e as marés, com o dia e a noite; e suprabiológicos – a presença eterna e inextinguível da água. (SCHAFER, 2001, p. 35). A citação ao mar com seus sons oriundos do fluxo e refluxo das ondas (ir e vir) reforça em Avalovara a ideia de dualidades em contraponto. O ir e vir está associado à Jano, deus bifronte, simultaneamente contemplador do futuro e do passado, e à espiral, em seu movimento ambivalente, ao mesmo tempo centrípeto e centrífugo, cujo simbolismo estaria, segundo o próprio autor, incorporado em Cecília, o ser andrógino, duplo por natureza, tal qual a divindade romana de duas faces. Esse ir e vir é reproduzido também no movimento cíclico do relógio de J.H., impulsionado pela força da mola em espiral, peça essencial para a construção de relógios mecânicos. A associação entre o deus Jano, a androginia e a espiral sustenta-se na representação da eterna pulsação cósmica, e no movimento do passado para o futuro, passando pelo presente. O ir e o vir pode ser percebido no movimento rítmico da lei que ordena a aglutinação dos fragmentos da música de Scarlatti integrante do relógio, em que grupos de fragmentos voltam a soar de tempos em tempos. Também é identificado na repetição da célula temática nesse mesmo trecho da sonata. Em todas as expressões musicais, o ir e o vir está presente invariavelmente no pulsar microscópico dos tempos musicais de cada compasso e das miríades de subdivisões rítmicas de cada tempo. Aparece na organização estrutural macroscópica da forma “sonata”, em que um ou dois temas são introduzidos no segmento inicial, os mesmos temas são abordados com modificações ou fragmentados no desenvolvimento e novamente são reapresentados na conclusão com mudança ou não de tonalidade. Na forma musical polifônica denominada “fuga”, existe somente um tema que, depois de apresentado no início da peça musical, aparece diversas vezes, não somente na primeira voz, mas em qualquer uma das demais vozes, podendo estar com a mesma configuração, invertido em relação a um espelho horizontal ou vertical e ritmicamente espichado ou comprimido em qualquer uma das modificações melódicas citadas. Também na forma musical “tema e variações” o tema, apresentado de forma sucinta no segmento inicial, surge modificado nas partes denominadas de variações, sem que se perca a ideia original do tema proposto. Nas cenas que trazem o encontro de Abel e a , a narrativa traz a decrição do soar da cantata Catulii Carmina de Carl Orff, ocasião em que tocam – simultaneamente – as batidas musicais do relógio de J.H. Aquela peça musical tem uma organização estrutural bem 109 definida, em que as melodias ritmadas em um ostinato ternário a quatro pianos e percussão, apresentadas no primeiro movimento (Praelusio), aparecem novamente no último movimento (Exodium) em formato mais curto. O trecho mais conhecido do texto da cantata é repetido na narrativa como representação literária do movimento musical do ir e vir: eis aiona eis ainona tui sum. As figuras que seguem mostram, respectivamente, a partitura da introdução da sonata K462 para cravo, de Scarlatti com a identificação dos treze fragmentos do relógio de J.H. e a primeira página da partitura manuscrita original da Cantata Catulli Carmina, de Carl Orff, onde se pode ver os primeiros versos do Praelusio com as palavras em latim eis aiona. Na introdução da sonata (Figura 4), o tema que – primeiramente – aparece nos fragmentos 4, 5 e 6 na forma de acordes arpejados sobre a tônica (fá menor), sobre a subdominante e sobre a dominante, repete-se nos fragmentos 7, 8 e 9. No Anexo III desta Tese, constam as três primeiras páginas da partitura da Cantata em forma impressa com as palavras eis aiona e tui sum, que acompanham o ritmo ternário acelerado dos quatro pianos juntamente com quatro tímpanos, castanhola, xilofone, xilofone tenor, dois glockenspiel, metalofone, litofone, maracás, três pandeiros, triângulo, bombo, três pratos, címbalo, tantã ou gongo. 110 Figura 4 – Partitura da introdução da sonata em fá menor K462 de Scarlatti com a identificação dos fragmentos29 29 Fonte: PAZ, 2010. 111 Figura 5 – Primeira página da partitura manuscrita da Cantata Catulli Carmina, de Carl Orff30 30 Fonte: Partitura da editora Ernest Eulenburg (1990). 112 Os movimentos cíclicos da música também se reproduzem nos fenômenos naturais, como no pulsar dos ventos e no ir e vir das ondas do mar. O vento emite sons das mais diversas intensidades e frequências e também acaricia a pele, propiciando uma dupla recepção pelos sentidos da audição e do tato. Em um trecho da narrativa, encontram-se Abel e a no canavial quando o vento bate nas folhas longas e afiadas da cana de açúcar. A sonoridade produzida pelo vento é explorada, passando pela plantação e a sensação tátil das folhas roçando no corpo da : “Sopra o vento raso e as folhas do canavial também plantado em mim roçam umas nas outras, verdes, as bordas como fios de navalha.” (E 15, p. 345). O vento, de acordo com Chevalier, é o sopro divino, citado nos Salmos e no Corão, um intermediário entre a divindade superior e os homens, um mensageiro à semelhança dos anjos. Para as doutrinas hinduístas, o vento é Vayu, o sopro cósmico, intermediário entre o celestial e o mundano. Schafer (2001) refere-se às semelhanças entre os sons do vento e do mar, destacando a ampla gama de frequências existentes nos sons produzidos por ambos, denominando poeticamente a paisagem pela qual o vento passa de harpa eólica: O vento como o mar apresenta um infinito número de vibrações vocálicas. Ambos têm sons de amplo espectro, e em sua faixa de frequência outros sons parecem ser ouvidos. [...] Abertas e com árvores, as pradarias constituem uma enorme harpa eólica. [...] O vento é um elemento que se apodera dos ouvidos vigorosamente. A sensação é tátil, além de auditiva. [...] Cada floresta produz sua própria nota tônica. (SCHAFER, 2001, p. 43). Tanto o som do mar como os sons do vento são amplamente explorados em Avalovara quando, no decorrer da narrativa, explicitam movimentos cíclicos representados pelo ir e vir das ondas e pelas rufadas e redemoinhos do ar que promovem o balançar da vegetação. Tais pulsações da natureza em movimento encontram paralelo nas menções ao renascimento da e na morte desta juntamente com Abel quando se unificam no tapete idílico. As incertezas da vida humana ficam gravadas na representação dos movimentos rítmicos do apogeu e declínio das trajetórias de vida dos personagens. No romance, as sonoridades manifestam-se em três níveis que vão desde os sons ásperos da letra R, percebidos somente pelo leitor, passando pelos sons do dia a dia dos personagens e chegando àqueles produzidos por suas imaginações e pelas lembranças. Durante viagem à Europa, Abel conhece Roos e com ela visita diversas cidades em busca de respostas para seus questionamentos. Enquanto passeiam pelas ruas de Amsterdam e ao beijar o luminoso rosto de Roos, a percepção interior dele fica aguçada surgindo, em seu imaginário, 113 os sons ruidosos da guarnição holandesa em um Recife distante no tempo e no espaço, que se desloca sob o rufar de tambores. Ouço um rufar de tambor, é um grande tambor, surge do chão brilhante o cortejo invisível que nos segue, um estandarte sanguíneo ondulando entre lanças de metal sobre os chapéus de feltro cônicos, de abas amplas, um clarão (vindo de Roos?) põe em relevo os rostos vivos dos homens, ornados com perucas que descem até os ombros, destaca as golas engomadas e lisas, as vestes da mulher que se insinua entre eles, a caixa do tambor e, principalmente, o ataviado personagem que vem à testa da ronda. Lanças entrechocam-se, avulta o bater ritmado do tambor, esse rataplã nas ladeiras de Olinda, cada vez mais próximo o tropel das botas com polainas de batista, vozes, risos, risadas, barulho de colares, estalar de línguas, roçar de tecidos, somos atravessados como a própria rua pelos homens, pela mulher que os segue, os tambores vibram em nossos flancos, o estrépito das botas (o mesmo que estremece as paredes do Recife) repercute forte em nossos pés, o latejar dos seus sangues pulsa em nós e ouvimos sobre nossas cabeças descobertas o adejar do imenso estandarte cor de vinho. (A 10, p. 67). Aqui o passado revisita Abel, e sua imaginação o remete à invasão holandesa, às lembranças31 de sua terra natal. Gomes (1998) faz algumas observações relevantes sobre este trecho da narrativa: Trata-se da descrição do quadro de Rembrandt (1606-1669) “A ronda da Noite” com pequenas alterações que devem ser significativas. Um estandarte sanguíneo, um clarão (vindo de Roos?) e as vestes da mulher que se insinua entre eles são três desses elementos, cuja significação merece ser analisada. Sendo a criação do quadro (1642) contemporânea à invasão holandesa, citada no mesmo capítulo A10, justifica-se a cor sanguínea do estandarte. O clarão no quadro emana do contraste do branco luminoso das veste de uma enigmática criança imiscuída nesse grupo de homens. Ao transpor da figura feminina para Roos a luminosidade que destaca as vestes da mulher, Osman Lins cria uma estranha inversão do jogo claro/escuro e um entrelaçamento de imagens. Em Roos (“claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume de fogos” - R15, p. 260). Abel vislumbra cidades que devem dar a ele o itinerário para o conhecimento, portanto Roos tem, no texto, função iluminadora análoga à da figura do quadro. (GOMES, 1998, p. 316). A Ronda da Noite faz parte da primeira fase artística do pintor holandês, quando adotava o estilo barroco. Os personagens são retratados com gestos dramáticos e carregados de expressividade, passando a ideia de movimento ordenado e rítmico. A impressão de movimento reforça também a sensação de estar ouvindo os tambores, as vozes e o barulho das botas. Destaca-se a luminosidade da figura feminina com vestes brancas no centro à esquerda Em minha dissertação de mestrado (2010, p.75), a respeito do quadro A Ronda Noturna, de Rembrandt constato que, musicalmente, Abel associa esses tambores à influência dos holandeses na música brasileira. “O rufar do tambor” pode estar relacionado ao forró, que tem a marcação rítmica percussiva bem explorada.” Regina Dalcastagnè (2000, p.77) relaciona “o rufar do tambor” ao maracatu dos folguedos carnavalescos recifenses. “O tambor, o estandarte, as lanças, a mulher e os homens engalanados, da Ronda Noturna, de Rembrandt, passa-se para os risos, as vozes, o estalar de línguas e o roçar de tecidos de um cortejo carnavalesco”. 31 114 do quadro, cujo brilho, no meio da guarnição em uma noite escura, encontra correspondência na função iluminadora de Roos na condução de Abel em sua busca do conhecimento. A despedida de Roos, em Amsterdam, desperta emoções passionais em Abel que, com os batimentos cardíacos acelerados, compara-os ao rufar de um tambor, tal qual o rufar de tambores recriados em sua mente pela visão do quadro de Rembrandt: “- Roos... Fui feliz esta tarde! Sinto-me como se estivesse dentro de um tambor. Um tambor ressoante. Como se me cercasse um ritmo. Um rufar. O tambor.” (A 20, p. 199). Segundo Chevalier, nas doutrinas orientais, o som do tambor se associa ao som primordial da gênese do mundo e seus ritmos expressam o ritmo do universo: “Este é seu papel enquanto atributo de Xiva (damaru) ou da Dakini búdica. Nesse segundo caso, o ritmo liga-se à expansão do Dharma, sobre o qual o Buda evoca o tambor da imortalidade.” (CHEVALIER, 2008, p. 879). O pulsar metafórico de tambores em Abel transparece um momento de amor, que também está associado ao impulso da criação do mundo. Diz a filosofia indiana que, em um momento de amor infinito e de solidão, Deus criou o universo para compartilhar com suas criaturas as maravilhas de sua criação. O mesmo impulso de amor é mencionado por Wisnik (1989) ao se referir à comparação feita por Santo Agostinho, em um de seus sermões, de Cristo a um tambor, em que a pele esticada na cruz e o corpo crucificado seriam representativos de um instrumento que propaga a música do mundo para finalmente se tornar o cântico da Graça, o sacrifício sem o qual não se ouviriam as aleluias. O tambor, além de exteriorizar os sons internos do homem (da pulsação e do coração) e a ritmicidade mais profunda de sua subjetividade, tem relação também com as expressões religiosas e com a guerra. Os tambores, gritos e ruídos eram usados para estimular os soldados para as batalha e como meio de intimidação dos inimigos: Os exércitos condecorados para a batalha ofereciam um espetáculo visual, mas a batalha em si era acústica. Ao barulho dos metais que se entrechocavam, cada exército acrescentava seus gritos de guerra e toques de tambor no intuito de amedrontar o inimigo. (SCHAFER, 2001, p. 80). Mas não só nas guerras antigas buscava-se o embate sonoro entre exércitos como meio de amedrontamento mútuo. Na Segunda Guerra Mundial, os aviões bombardeiros Stuka, da Luftwaffe, mergulhavam para atacar com suas bombas e metralhadoras ao mesmo tempo que acionavam uma sirene para causar pânico entre as tropas inimigas. A blietzkrieg (guerra relâmpago), praticada com muita eficiência pelos exércitos nazistas, era acompanhada pelos ruidosos barulhos da infantaria e precedida por intenso bombardeio aéreo, um inferno sonoro 115 de efeito psicológico devastador. Entretanto, algumas táticas de guerra exigiam o silêncio quase que absoluto para que as movimentações de tropas não fossem percebidas pelo inimigo. As tropas russas que destroçaram os exércitos alemães em Stalingrado atravessaram o rio Volga pelos dois lados da cidade, silenciosamente, à noite para, após se organizarem em um numeroso e bem armado exército, desfechar uma ruidosa ofensiva que cercou e rendeu as forças alemãs encurraladas dentro da cidade destruída. Este oscilar entre som e silêncio pode ser encontrado no sistema de organização sonora do relógio de J.H. Ouvindo-o dar, às sete ou às dez horas, quatro notas, seguidas de um silêncio e de mais sete ou vinte e cinco notas, ou, então, vendo correrem duas horas sem que nenhum rumor - salvo o do pêndulo - venha da engrenagem, deduzimos que a máquina, alternando silêncio e som, desdenha a ordem, ignora-a e serve à fúria. Não é sempre esta a nossa conclusão ante fenômenos que nos escapam? (P 8, p. 301). As batidas nas horas cheias alternam música e pausas entre os fragmentos da introdução da sonata de Scarlatti ou silêncio entre uma hora e outra, interrompido apenas pelo som indelével do mover do pêndulo e dos ponteiros. J.H. vê-se, de uma hora para outra, obrigado a silenciar seus carrilhões para, por força da guerra, transformar sua oficina em fábrica de material militar e interromper a construção de seu planejado relógio. A fabricação das peças, iniciada em 1933, poucos meses após a subida de Hitler ao poder, dura quatro anos e oito meses. Não falta muito para a conclusão, quando o intimam (como a outros relojoeiros, transformados em fabricantes de material bélico) a readaptar sua oficina, com o subsequente silêncio dos carrilhões, cujo som constitui como que a sua atmosfera natural. (P 9, p. 312). Neste trecho, a narrativa contrapõe mais uma vez som e silêncio, onde o som dos carrilhões, cujos ritmos e timbres J.H. se identifica por completo, desaparecem para dar lugar ao som das máquinas da opressão e da morte. 4.4 SILÊNCIO O silêncio reveste-se de profunda relevância em diversas passagens de Avalovara: como símbolo da impossibilidade de comunicação de Roos e da mudez da cidades incorporadas em Roos; da opressão que intimida a ; do vazio das frente a Olavo Hayano e emudece os homens e mulheres que habitam o corpo de Cecília; do pesar pela morte, da 116 desventura e da decadência anunciadas pela mudez dos instrumentos musicais da família de Abel e da ; da transcendência originada a partir da experiência de iniciação da e da morte e fusão com o tapete mítico. Utilizado para demonstrar o seu poder coercitivo e destruidor, o silêncio é, ao mesmo tempo, libertador. São significados conflitantes e que têm a sua gênese nos processos sociais e individuais construídos e entrelaçados no romance, revelando a ampla possibilidade de várias interpretações vinculadas a contextos diferenciados, associados às características de cada personagem. Em Roos, o silêncio revela uma personagem arredia, contida e com a qual Abel encontra grande dificuldade de comunicação em razão das diferenças de línguas. Em seu corpo, Abel vê a cidade perfeita, a chave e o portal para o conhecimento; entretanto, são cidades vazias e silenciosas. A mulher alemã o conduz para a primeira fase de sua busca, introduzindo-o nas nuanças culturais do continente europeu com sua história, sua música erudita, suas artes plásticas e sua arquitetura. Recita com fluência versos arcaicos e possibilita ao Abel a audição de música barroca francesa, numa mistura de ancestralidade cultural refinada com os ruidosos sons das modernas cidades europeias; no entanto, com a comunicação oral truncada, não lhe é facultado compreender os mistérios mais profundos da mulher feita de cidades. A língua de Racine, que utiliza de um modo literário, digno e até elaborado, com uma pronúncia na qual a exatidão constituiria a única falha, adquire, interposta entre idiomas diferentes - os idiomas que cada um de nós traz do país de origem e que o outro não fala um sentido mágico e benévolo: nós, sem ela, dois mudos. (A 4, p. 29). Este trecho da narrativa, classificado na tabela da figura 6 como “Silêncio de Roos”, explicita a convivência de duas pessoas de mundos diferentes; sendo, entretanto, uma passagem necessária ao processo de iniciação de Abel. A todo esse primeiro momento, até os nove anos não fala e também não tem nome: se existe um nome que a identifique, esse não é conhecido nem dela e nem de nenhum dos personagens. A ausência e o abandono da na casa de sua arrogante avó, ainda quando criança, refletem-se no silêncio que inunda seu corpo. Na primeira noite, deitada, fecho os olhos, todo o meu corpo em silêncio - e aguardo-o. Virão os imensos navios girando em minha direção, em direção a esta casa, vagarosamente, através da noite e da cidade? A sensação de ausência e de abandono não seria maior se possuísse um cão e dele me houvessem apartado. (O 17, p. 141). 117 em sua primeira vida, Fantasmas de algo que está por vir preenchem as visões da em que a mudez é o predecessor do mistério maior, aquele que lhe dará a posse das palavras a serem repassadas para Abel, a quem caberá também a incumbência de organizá-las. A impossibilidade de falar até a idade dos nove anos relaciona-se com o descaso de seus pais que a ignoram, demonstrando, também, notória desatenção com tudo que pode redundar em perigo para a sua vida. Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez. Tudo ouço – ventar, baterem as portas, risos, jato das torneiras, ordens, pulsar o coração, veículos na rua, pássaros cantando - tudo ouço, mas não me aventuro a repetir esses sons e tudo para mim é indecifrado. (O 4, p. 26). Mesmo não podendo falar, pode ouvir e compreender todos os sons que a atingem. O silêncio de sua mudez a atormenta, pois a impede de expressar suas potencialidades cognitivas ainda não plenamente manifestadas e que somente desabrocharão com o toque mítico do pássaro e da máquina espiralada. O silêncio da opressão aparece quando o truculento Olavo Hayano, o Iólipo, com seu envolvente poder controlador e sufocante, lança um convite, quase uma ordem, para que a seja sua esposa, ao que ela não responde, não porque não consiga falar, mas porque sentese intimidada, paralisada. - Não me interessam. Só você me interessa. - Curva-se sobre a mesa, fita-me de perto e, por um instante, seu olhar sonda os meus, vacilando. Baixo os olhos. Quero que seja minha mulher. Eu, sempre de pálpebras descidas, fico em silêncio. Não respondo. Não devo responder. Minha mão esquerda repousa sob a lâmpada, solta, para que Olavo Hayano se encoraje a tocá-la. Ele toma-a entre as suas, beija-a. Minha expressão é a de quem se compromete a refletir sobre o que houve e também a de quem pesa, perplexo, as próprias incertezas. (O 22, p. 215). Hayano é o militar frio e coercitivo, representação da ditatura dos quartéis e da censura sobre toda produção cultural que pudesse representar uma ameaça à estabilidade do regime. Dentro desse entendimento, é muito pertinente mencionar a percepção de Ana Luiza Andrade (2014), em seu livro Osman Lins: crítica e criação, sobre Olavo Hayano. Olavo Hayano é a imagem de “articulada na ausência”, sobre quem ele exerce cai livremente em sua armadilha, a um sortilégio, um amor enganoso. obrigatória e ritual descida ao inferno que a emudece na forma estéril do monstro iólipo, fechando-se nos espaços confinados do texto, em forma de ampolas, cofres, 118 caixas, imagens desagregadas e determinantes de um movimento retrativo da narrativa: prisão verbal. (ANDRADE, 2014, p. 222). Posteriormente, sobrevêm a suave opressão mitigadora do peso da máquina feita de muitas peças que, junto com o pássaro, movimenta-se no ar e, girando em silêncio tal qual um peão, pressiona delicadamente o corpo da . O silêncio classificado como “Silêncio da ” precede o ato de transformação para um estágio que a levará para um patamar de comprenssão mais ampliada a partir da posse do dom da palavra. “Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não, bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua austeridade.” (O 15, p. 117). A máquina descrita pela personagem lembra uma espiral que gira sobre o centro de seu corpo, um fardo pesado tal qual o peso do destino que a oprime e do qual ela não pode fugir. No entanto, a máquina é também o instrumento de libertação, de maturação e de auferição do conhecimento, a espiral traçada pelo pássaro para o despertar das palavras na . Durante o cortejo fúnebre, Natividade aceita seu próprio destino, submergindo em um silêncio pesaroso e resignado, representativo de uma vida sofrida e sem perspectiva, cujo sofrimento finalmente cessa com a mudez da morte. A carcaça negra de Natividade, sempre mais pesada, trespassa devagar esse mundo vário e indiferente, alheia ao traçado das ruas e avenidas, seguida pelo Chrysler e pelos poucos soldados distraídos, rumo ao jazigo perpétuo da família junto à qual envelhece servindo, rumor de bilros e de louça, cheiro de mostarda e de amoníaco, seu velho corpo e este anacrônico cruzeiro entre o asilo e o jazigo, enfim morta, enfim aceita, o silêncio, a inércia e a podridão do seu corpo encantando os lugares onde irrompe. (R 18, p. 287). Abel recupera, em suas lembranças, traços de cenas que aconteciam no casarão da família, em que o silêncio de fundo e que permeia a tela de suas reminiscências é quebrado apenas pelas visões de um ou outro jantar em família, pelas risadas do tesoureiro e pelos sons esporádicos de velhos e deteriorados instrumentos musicais. As luzes do farol passam nos ares. Oscilam dentro da noite as igrejas de Olinda, o Seminário, os conventos, o Mosteiro de São Bento, oscilam sobre o chão. Lua cheia. A maré já deve estar subindo e pela madrugada a ressaca violenta de agosto vai derrubar outras casas. Por isso está inquieto, em minha mãe, o gato simiesco: ouço o vaivém da cadeira e as risadas. Aflige-a, creio, o silêncio em que agora vive a casa, quebrado por um ou outro jantar como o de hoje, pela tosse do antigo Tesoureiro e pelas notas soltas, arrancadas de algum instrumento mal encordoado. (T 9, p. 135). 119 Nesta passagem, o silêncio retrata um cenário de desconstrução e de gradativa desconexão de um passado festivo e ruidoso. As cidades em Roos aparecem desertas, silenciosas, lúgubres, como um sinal a revelar para Abel o que não cabe em sua procura: A cerração, balsas de salvamento, refletores, sereias, Roos fragmentando-se, um cosmos, cidades vazias de seres humanos, vindas de inúmeros pontos da Terra e precipitando-se no lago, como os porcos possessos de Gerasa, porém em silêncio e não sem grandiosidade (A 16, p. 132). [...] Deslumbrado, só atento para o rosto de Roos, onde cidades desconhecidas agora se revelam e novamente se ocultam, na pele, silentes. (A 18, p. 162). Desprovidas de som e de vida, essas mesmas cidades projetam-se sem pessoas e em silêncio nas águas escuras do lago, da mesma forma que os porcos da cidade jordaniana de Gerasa teriam se atirado ao mar após terem recebido os demônios exorcizados de um homem por Jesus. As cidades que aqui despencam não são as cidades que Abel procura, sem pessoas e, portanto, sem palavras, sem sons e sem a luz do dia, a luz do conhecimento. Abel procura a cidade perfeita, harmoniosa e equilibrada, cujo portal lhe mostrará o que sempre almejou, o manejo refinado do encadeamento das palavras, o domínio necessário para o escritor. Inevitável se torna comparar este trecho da narrativa com outro em que o mar e o céu se contrapõem quando peixes saltam do escuro das profundezas oceânicas para a busca da luz celeste. Os peixes, assim como Abel, empreendem um movimento contrário, inusitado, buscando a luz ao invés das escuras profundezas do mar. Silenciosos são também os seres que perambulam pelo corpo de Cecília que, diferentemente das demais situações da narrativa, representam uma espécie de simbiose que a situa na condição de mulher protetora dos oprimidos e necessitados: Acompanham-nos (e da sua presença estamos penetrados) homens e mulheres do povo: estivadores, caixeiros, engraxates, pescadores, marafonas, lavadeiras, artistas de circo, empregadas domésticas, costureiras, caiadores de paredes, lavadeiras, camelôs, enfermeiras, vendedores de grampos, de pássaros, de alfinetes, mestras de primeiras letras, pedreiros, sacristães. Planam, acima de nós, como se fossem alados, bichos do chão e da água: rãos, lontros, peixes-vaca, emos, búzias, tartarugos, camarãs, arraios, lesmos, calangas, suçuaranos. Sob os nossos pés, fundo, o rumor de muitas vozes raivosas ou festivas. Ouvindo-as, compreendo: os homens e mulheres que nos cruzam estão vivos, mas mudos - e o seu clamor ou os seus risos enterrados. (T 16, p. 250). A representação de uma quantidade numerosa de homens e mulheres mudos, representados por trabalhadores humildes habitando o corpo de Cecília, mostra um silêncio opressivo, como metáfora de uma crítica refinada à mordaça imposta pela ditadura militar 120 brasileira e que recaía sobre uma massa de indivíduos pobres e sem perspectivas de ascensão social. Suas vozes, simbolicamente, são enterradas nas areias da sociedade, colocando-os num patamar inferior ao dos animais, da terra e da água. Em muitas cenas, o silêncio é apenas um pano de fundo para a identificação precisa de várias sonoridades dentro da paisagem sonora de Avalovara, sendo mencionado dezessete vezes ao longo da narrativa: “Calo-me e atento para o silêncio do chalé, cheio, em outros tempos, de moças e rapazes, vozes, canções e risos ressoando até na Sexta-Feira Santa.” (T 10, p. 151). Abel contrapõe o silêncio do casarão, no qual ninguém mais habita, às nostalgias das imagens de um passado movimentado e ruidoso. Em outra cena, no silêncio lúgubre do asilo onde vivia Natividade, parte o cortejo com seu corpo: “Ouve-se, no silêncio apenas alterado pelo rumor distante do tráfego e dos passos das freiras na aléia central, a soturna chuva artificial em torno da escultura.” (R 14, p. 193). Steiner (1988) aponta para o silêncio na arte como uma conquista do século XX, mesmo com a primazia da palavra como uma marca da exterioridade deixada pela herança grega e judaica. Denuncia o distanciamento entre palavra e arte iniciado no final do barroco e acentuado com a pintura impressionista e com a música atonal dodecafônica. O mundo das palavras encolheu. Não se pode falar de números transfinitos exceto através da matemática: não se deveria, sugere Wittgenstein, falar de ética ou estética segundo as categorias atualmente disponíveis. E creio ser extremamente difícil falar, de modo significativo, sobre uma pintura de Jackson Pollock ou sobre uma composição de Stockhausen. O círculo estreitou-se de modo extraordinário, pois existiria alguma coisa em toda a criação - fosse ciência, metafísica, arte ou música da qual um Shakespeare, um Donne e um Milton não pudessem falar com naturalidade, à qual sua palavras não tivessem naturalmente acesso? (STEINER, 1988, p. 43). Extrapolando o universo da literatura, na música do século XX, ocorre uma formidável ruptura com os paradigmas musicais vigentes desde a Idade Média, sendo que novos meios de expressão passam a fazer parte de numerosas peças de compositores de vanguarda, dentre as quais se pode citar o uso mais intenso do silêncio. Certamente o maior defensor do uso do silêncio na música foi o compositor norte-americano John Cage. Veio a ser um dos expoentes da música concreta, tendo como base sons do meio ambiente gravados em fita magnética, emissões simultâneas de várias estações de rádio e de piano preparado, assim denominado por causa da introdução de metais e de outros materiais entre as cordas, o que conferia a seu toque um efeito percussivo. Suas reflexões sobre uma nova estética musical preconizavam uma arte despojada do subjetivismo do compositor e das hierarquias 121 sonoras impostas pela harmonia e pelas formas musicais até então predominantes. Entendia que os ruídos do ambiente circundante, ao invés de lixos sonoros, poderiam se constituir em matéria prima de grande valor para a composição musical: Eu acredito que o uso do ruído - onde quer que estejamos, o que nós ouvimos é na maioria ruído. Quando nós o ignoramos, ele nos perturba. Quando nós o ouvimos atentamente, nós achamos ele fascinante. O som de um caminhão a cinquenta quilômetros por hora, a estática entre estações, a chuva. Nós queremos capturar e controlar esses sons, para usá-los não como efeitos sonoros mas como instrumentos musicais. Cada estúdio de cinema tem uma biblioteca de “efeitos sonoros” gravados para os filmes. Com um fonógrafo de cinema é atualmente possível controlar a amplitude e a frequência de qualquer desses sons e dar a eles ritmos dentro e além do alcance da imaginação. Dados quatro fonógrafos, nós podemos compor e executar um quarteto para motor a explosão, vento, batidas cardíacas e deslizamento de terra.32 (CAGE, 1973, p. 3, tradução nossa). Afirmava que o termo “música” estaria associado aos instrumentos musicais dos séculos XVIII e XIX e que, para a atualidade (século XX), a expressão “organização musical” é mais apropriada e repleta de significados. Para ele, o som e o silêncio na obra musical são elementos inseparáveis, tendo em vista que a existência dos sons e, portanto de sua duração, depende da presença do silêncio das pausas. A partir das afirmativas de Cage, pode-se diferenciar a princípio dois tipos fundamentais de silêncio: relativo e absoluto. O silêncio relativo diz respeito ao contexto no qual ele se insere: o silêncio na música ou pausa musical, o da fala, o da natureza, e assim por diante. Quando se procura entender o silêncio absoluto, fica evidente que se trata de uma situação impossível. Sobre isto, Cage menciona sua experiência com a câmara anecóica da Universidade de Havard: Há sempre alguma coisa para ver, alguma coisa para ouvir. De fato, ao tentarmos fazer silêncio tanto quanto podemos, nós não conseguimos. Para certos propósitos de engenharia, é desejável ter uma situação tão silenciosa quanto possível. Tal recinto é chamada de câmara anecóica, suas seis paredes feitas com um material especial, uma sala sem ecos. Eu entrei em uma delas na Universidade de Harward alguns anos atrás e ouvi dois sons, um alto e outro baixo. Quando eu os descrevi para o engenheiro encarregado, ele me informou que o som alto era o meu sistema nervoso em operação, o baixo, o meu sangue circulando. Até que eu morra haverá sons. E eles continuarão depois de minha morte.33 (CAGE, 1973, p. 8, tradução nossa). “I believe that the use of noise wherever we are, what we hear is mostly noise. When we ignore it, it disturbs us. When we listen to it, we find it fascinating. The sound of a truck at fifty miles per hour. Static between the stations. Rain. We want to capture and control these sounds, to use them not as sound elfects but as musical instruments. Every film studio has a library of "sound effects" recorded on films. With a film phonograph it is now possible to control the amplitude and frequency of anyone of these sounds and to give to it rhythms within or beyond the reach of the imagination. Given four fllm phonographs, we can compose and perform a quartet for explosive motor, wind, heartbeat, and landslide.” (CAGE, 1973, p. 3). 33 “There is always something to see, something to hear. In fact, try as we -may to make a silence, we cannot. For certain engineering purposes, it is desirable to have as silent a situation as possible. Such a room is called an 32 122 Cage era comumente associado à música experimental para cujos adeptos o som por si próprio passa a ganhar relevância em relação à música construída sobre a tradição da tonalidade e em relação às sonoridades timbrísticas dos instrumentos convencionais. O musicólogo Makis Solomos (2013) também adota essa visão sobre a crescente importância do som em relação à organização musical da música baseada na organização tonal. Para Cage o som – sozinho – tem vida própria e pode ou não provocar sensações e emoções naqueles que o ouvem enquanto ente autônomo. Como compositor, Cage sustenta que o silêncio na música teria o papel de abrir portas para outros sons que não somente os da partitura musical, tal qual os vidros na arquitetura de Mies van der Rohe ou os espaços entre os fios das esculturas de Richard Lippold, que possibilitariam ao apreciador ver outras coisas além da própria obra: Nesta nova música nada tem lugar além de sons: aqueles anotados e aqueles que não são. Aqueles que não são anotados aparecem na música escrita como pausas, abrindo as portas para a música dos sons que acontecem no ambiente. Estas aberturas existem no campo da moderna escultura e na arquitetura. Os vidros das casas de Mies Van der Rohe refletem seu ambiente, presenteando para os olhos imagens de nuvens, árvores ou grama, de acordo com a situação. E enquanto olhando para as construções de fio do escultor Richard Lippold, é inevitável que alguém verá outra coisa, e outras pessoas também, se ocorrer que eles estiverem lá ao mesmo tempo, através da rede de fios. Não existe tal coisa como um espaço vazio ou um tempo vazio.34 (CAGE, 1973, p. 7, tradução nossa). A partir de suas afirmativas, percebe-se que, para ele, o silêncio absoluto não existe em lugar algum e que os espaços vazios no campo da música e no campo da criação artística visual apenas cedem espaço para a percepção de outros aspectos subjacentes ao da obra de arte em si. Outro aspecto interessante do pensamento de Cage sobre o silêncio é que a sua inserção como elemento relevante da composição musical estimularia a percepção intencional de outros sons do meio ambiente, promovendo uma maior integração entre o homem e a natureza. Tal concepção do silêncio como instrumento de síntese remete ao pensamento da anechoic chamber, its six walls made of special material, a room without echoes. I entered one at Harvard University several years ago and heard two sounds, one high and one low. When I described them to the engineer in charge, he informed me that the high one was my nervous system in operation, the low one my blood in circulation. Until I die there will be sounds. And they will continue following my death. One need not fear about the future of music.” (CAGE, 1973, p. 8) 34 “For in this new music nothing takes place but sounds: those that are notated and those that are not. Those that are not notated appear in the written music as silences, openin the doors of the music to the sounds that happen to be in the environment. This openness exists in the fields of modern sculpture and architecture. The glass houses of Mies van der Rohe reflect their environment, presenting to the eye images of clouds, trees, or grass, according to the situation. And while looking at the constructions in wire of the sculptor Richard Lippold, it is inevitable that one will see other things, and people too, if they happen to be there at the same time, through the network of wires. There is no such thing as an empty space or an empty time.” (CAGE, 1973, p. 7-8) 123 ecologia moderna e decorre do envolvimento do compositor com a filosofia Zen Budista, pela qual o silêncio da mente leva à integração do indivíduo com o todo. Nessa linha de pensamento, o conceito de natureza deve extrapolar os aspectos meramente físicos para adentrar na esfera psicológica e espiritual da vida humana. Não é necessário temer pelo futuro da música. Mas, este destemor somente acontecerá se, em uma encruzilhada onde percebemos que sons ocorrem, sejam planejados ou não, alguém volta-se para a direção daqueles que não são intencionais. Esta virada é psicológica e parece à primeira vista ser uma desistência de tudo o que pertence à humanidade, para o músico, desistência da música. Esta virada psicológica leva para o mundo da natureza onde, gradualmente ou repentinamente, alguém vê que humanidade e natureza, não separadas, estão nesse mundo juntas; que nada foi perdido quando tudo foi dado. De fato, tudo se ganha. Em termos musicais, qualquer som pode ocorrer em qualquer combinação e em qualquer fluxo.35 (CAGE, 1973, p. 8, tradução nossa). Esta concepção de unidade pelo silêncio também aparece em Schafer para o qual o silêncio da natureza leva o indivíduo a perceber a sua interioridade e, por conseguinte, o todo: O silêncio pode ser ouvido? Sim, se pudéssemos estender nossas consciências para o exterior, em direção ao universo e à eternidade, poderíamos ouvir o silêncio. Pela prática da contemplação, pouco a pouco os músculos e a mente relaxam e o corpo se desenvolve, tornando-se gradualmente um ouvido. Quando atingem um estado de liberação dos sentidos, os iogues indianos ouvem anãbata, o som “sem ataque”. Então, se atinge a perfeição. O hieróglifo secreto do universo se revela. O número torna-se audível e flui, enchendo o receptor de sons e luz. (SCHAFER, 2001, p. 361). Suas preocupações ecológicas se tornam mais evidentes quando discrimina os sons hi fi, existentes na natureza, dos sons lo fi, sons artificiais oriundos da sociedade tecnológica. O silêncio de fundo é preenchido por sons naturais do vento, dos rios e dos córregos, da chuva, das folhas das árvores, dos pássaros, dos insetos, produzindo uma atmosfera de paz e propícia para o recolhimento interior. Sob a ótica de eventos sonoros, a análise de Schafer procura desvendar o sentido do silêncio e dos sons testemunhados em termos de acontecimentos sociológicos e culturais. Cada som tem sua simbologia específica no contexto das comunidades em que se inserem, e daí resulta o impacto psicológico que provocam nas pessoas. Schafer também não deixa de enfatizar o som enquanto ente absoluto, porém sempre avaliando a repercussão de sua propagação indiscriminada sob uma perspectiva ecológica. 35 “One need not fear about the future of music. But this fearlessness only follows if, at the parting of the ways, where it is realized that sounds occur whether intended or not, one turns in the direction of those he does not intend. This turning is psychological and seems at first to be a giving up of everything that belongs to humanity for a musician, the giving up of music. This psychological turning leads to the world of nature, where, gradually or suddenly, one sees that humanity and nature, not separate, are in this world together; that nothing was lost when everything was given away. In fact, everything is gained. In musical terms, any sounds may occur in any combination and in any continuity.” (CAGE, 1973, p. 8). 124 A categorização em oito tipos de silêncio, em Avalovara, conforme consta na tabela 9, evidencia a importância que se reveste a ausência de sons ao longo da narrativa como meio de explicitar as diversas sonoridades que compõem os cenários sonoros do romance. O silêncio de fundo destaca as sonoridades naturais, tais como os sons da água, do vento, do trovão, da chuva, dos pássaros, dos insetos, que se misturam, em algumas cenas, com os sons artificiais das máquinas da modernidade das cidades do século XX, realçando o contraponto entre os sons do tipo hi-fi e lo-fi, conforme conceituado por Schafer. Em algum momento da narrativa, o leitor cuidadoso sentir-se-á submerso neste silêncio profundo e envolvente, entrando na mente do protagonista quando o mesmo silencia para retornar ao passado de suas reminiscências. Dentro da ótica compositiva, Barry Truax estaria mais alinhado ao pensamento Cageano pelo fato de ser, antes de tudo, um compositor que introduz em suas obras, da mesma forma que Cage em suas elaborações de música concreta, elementos sonoros colhidos do meio ambiente, sejam eles naturais ou não, manipulando-os por meios eletrônicos para produzir uma música eletrônica com intenções declaradamente ecológicas. A diferença reside nos recursos tecnológicos disponíveis na época de Cage, e que não tinham alcançado uma evolução significativa nos anos da escrita de Avalovara, quando os compositores da música dita experimental empenhavam-se em produzir novos sons por meio da manipulação de gravadores de fitas magnéticas, de gramofones, da sintonização em estações de rádio, de antigos computadores mainframes e de pianos preparados com a introdução de materiais entre as cordas. Atualmente, tem-se a disponibilidade de poderosas ferramentas computacionais fornecidas pelos modernos softwares de sintetização e granulação sonora. Cage era um entusiasta dos novos recursos possibilitados pela fita magnética e que permitia a gravação com uma qualidade mais fidedigna. A descoberta dessa tecnologia ocorreu quando os aliados invadiram a Alemanha nazista e puderam dela se apropriar para produzir em escala industrial equipamentos de gravação e reprodução sonora. A obra Silence de John Cage, estreada em 1952 e composta em três movimentos, foi elaborada para qualquer instrumento, tendo duração de 4’33’. Ao invés de música, o maestro e os músicos ficam parados em posição de execução, em silêncio, e os únicos sons que se ouvem são os do ambiente. Suas reflexões sobre a relação entre música e silêncio se inspiraram em quatro fontes: as pinturas brancas e pretas de Robert Rauschenberg, a filosofia de Henry David Thoreau, as suas experiências na câmera anecóica e a experiência realizada com a água e a partitura. Sensibilizado pelas telas brancas de Rauschenberg, passa a defender a ideia de que, da mesma forma que o branco contém todas as cores, o silêncio contém todos 125 os sons. Adota a noção comparativa de silêncio e som, do filósofo norte-americano Henry David Thoreau, segundo o qual o som é como esferas de borbulhas em uma superfície líquida em movimento, o silêncio. A superfície permanece inalterada e as borbulhas, assim como surgem, desaparecem. Seria impossível dissociar a obra de Thoreau de sua obstinação pelo silêncio da natureza como fonte de inspiração. O escritor optou por afastar-se da vida das grandes cidades, que emergiam em uma sociedade em acelerado crescimento industrial, para deleitar-se com os prazeres dos sons do campo, dos lagos e da montanha e com o silêncio que os envolvia. Em um dado momento de suas experimentações, Cage jogou umas partituras ao mar, cujas pautas e notações foram perdendo a cor e se tornando da mesma cor do papel. Com este gesto simbólico, ele queria mostrar que o silêncio, associado à partitura em branco, representa o mesmo que a cor branca para a pintura. Para ele, a ausência de notação musical em um papel branco representaria a presença de todas as frequências sonoras, à semelhança de uma tela branca em que a ausência de cores seria também a manifestação de todas as cores. Sabe-se, da Física, que a mistura de todas as frequências luminosas visíveis resulta na cor branca. Assim, uma superfície totalmente branca refletiria todas as cores para nossos olhos, da mesma forma que uma superfície preta absorveria todas as frequências luminosas. As constatações de Cage encontram paralelo nas representações metafóricas do silêncio em Avalovara, que se manifestaria não como uma ausência total de sons e ruídos, mas na forma de sons indeléveis e quase imperceptíveis identificados pelos personagens nos momentos de ausência da fala e em estado de alerta, do mesmo modo que os ouvintes da peça de 4’33” que, ao deixarem de focar nos sons inexistentes da orquestra, passam a perceber os ruídos e os sons circundantes: Fico à espreita: há uma presença estranha, arfando (mas em silêncio) no escritório. Um ritmo. Não, não uma presença: um oco, um orifício por onde o mundo se esvazia. A ausência do avô? Erguem-se, em algum ponto da casa, vozes abafadas. Arrastar de móveis, passos velozes na escada, tomba uma cadeira. Um ritmo. (O 22, p. 213). O ser humano busca o som como forma de identificação consigo mesmo e com o universo que o rodeia. Mesmo durante o silêncio, os sons dos pensamentos e de suas lembranças preenchem a ausência de sons externos. Em quase todas as religiões e filosofias místicas, o som é utilizado como instrumento de realização espiritual, seja por meio de orações ou por meio do uso de mantras. Os cristãos, em suas práticas mais antigas, valem-se dos sons das orações ecoadas nas paredes das naves e cúpulas das igrejas como um símbolo 126 de comunicação com a divindade. Os budistas tibetanos repetem mantras em uníssono e em voz grave, dentro de seus imensos templos, para com isso atingir estados de introspecção profunda e de comunicação com a divindade presente em suas consciências. Schafer (2001) aborda um dos aspectos da relação entre som e silêncio, percebidos principalmente na cultura ocidental, como uma dicotomia entre existência e aniquilação, entre vida e morte: O homem gosta de produzir sons para lembrar de que não está só. Desse ponto de vista, o silêncio total é a rejeição da personalidade humana. O homem teme a ausência de som do mesmo modo que teme a ausência da vida. Como o derradeiro silêncio é a morte, ele adquire sua dignidade maior nos serviço funerário. Temendo a morte como ninguém antes dele temera, o homem moderno evita o silêncio para nutrir sua fantasia de vida eterna. (SCHAFER, 2001, p. 354). Em oposição à ideia de extinção, o escritor moçambicano Mia Couto, em entrevista ao jornalista Ubiratan Brasil do jornal O Estado de S. Paulo (2011), trouxe à tona a tradição africana sobre o acolhimento do silêncio na vida de seu povo: [...] não há o medo do silêncio, pois não existe o sentimento da ausência: o silêncio está sendo ocupado, alguém está falando. Na verdade, trata-se da relação com a explicação religiosa de que alguém está sempre presente. Até a mais absoluta solidão é povoada. Isso retira o medo do vazio, da solidão, algo que persegue nossa cultura ocidental. (BRASIL, 2011). Paradoxalmente, o silêncio externo e interno também são percebidos como momentos de busca da paz e dos mistérios mais profundos no interior de cada um, conforme descreve Schafer (2001) em suas observações: No passado havia santuários emudecidos onde qualquer pessoa que sofresse de fadiga sonora poderia refugiar-se para recompor sua psique. Poderia ser nas florestas, à beira mar ou numa encosta coberta de neve durante o inverno. Alguém podia admirar as estrelas ou o voo silencioso dos pássaros e ficar em paz. (SCHAFER, 2001, p. 351). Assim como necessita de tempo para dormir, reanimar-se e renovar suas energias vitais, o homem precisa também de períodos de quietude para recobrar a tranquilidade mental e espiritual. Em certas épocas, a calma era um precioso artigo, um código não-escrito de direitos humanos. O homem mantinha reservatórios de silêncio em sua vida para restaurar o metabolismo espiritual. (Ibidem, p. 352). Diferentemente do mero cessar das palavras, o silêncio interno corresponde ao cessar da atividade discursiva mental para com isto procurar a essência do ser, aquilo que não pode ser expresso com a expressão verbal. O budismo zen adota como prática meditativa a imersão no vazio; portanto, no silêncio absoluto. Ao focar a mente no nada, o meditante procura a 127 totalidade das coisas, a sua essência. Seria como estar na presença do próprio ser desnudado dos ruídos produzidos por seus pensamentos. Sobre isto afirma a zen budista monja Coen (2011): “Mais difícil do que o silêncio da boca, das palavras, dos sons emitidos, é o silêncio interno, o silêncio da mente.” A mesma vivência da paz absoluta e de distanciamento da esfera mundana é experimentada pelos protagonistas Abel e a mundo de antagonismos para se integrarem ao tapete. Nas práticas de meditação yogue, procura-se suprimir o som externo com a concentração no mantra, um som pronunciado mentalmente e que poderia levar à percepção do som máximo da criação do universo e à essência de sua gênese, o som AUM. Apesar de buscá-lo com perseverança, a meta maior do meditante estaria na transcendência desse som primordial para, finalmente, atingir a união com aquele que contém o silêncio absoluto e que gera esse som primordial, a entidade imanifestada, a fonte de todos os sons. Wisnik pondera sobre o significado deste som tão misterioso e ao mesmo tempo tão pronunciado por milhões de pessoas em todo o planeta. quando transpõem o No hinduísmo, que é, como já disse, uma religião intrinsicamente musical, toda constituída em torno do poder da voz e da relevância da respiração (onde o próprio nome de deus, Brama, significa originariamente força mágica, palavra sagrada, hino, e onde todas as ocorrências míticas e eventos divinos são declaradamente recitações cantadas com caráter sacrificial, mantra), atribui-se à proferição da sílaba sagrada OUM (ou AUM), o poder de ressoar a gênese do mundo. O sopro sagrado de Atman (que consiste no próprio deus) “é simbolizado por um pássaro cuja cauda corresponde ao som da consoante m, enquanto a vogal a constitui a asa direita e o u asa esquerda”. A música ocupa um lugar entre as trevas e a luminosidade da aurora, entre o silêncio e a fala, o lugar do sonho, entre a obscuridade da vida inconsciente e a clareza das representações intelectuais.” (WISNIK, 1989, p. 34). Wisnik, em suas análises sobre o hinduismo, menciona a associação do som sagrado com um pássaro que carrega o espírito da trindade suprema, da mesma forma que o pássaro Avalovara incorpora o mistério da divindade Avalokiteshvara, tríplice e una ao mesmo tempo. Elizabeth Hazin (2010), em seu artigo intitulado Como o segredo de um cofre (Reflexões acerca de uma personagem feminina em Osman Lins), faz referências acerca dessa correlação entre a e o som sagrado AUM. Transcreve um trecho de uma entrevista concedida por Osman Lins a Esdras do Nascimento para O Estado de São Paulo, em 12 de maio de 1974, na qual o escritor revela sua familiaridade com a filosofia oriental e suas simbologias, segundo a qual a união carnal entre homem e mulher encontraria a sua perspectiva mais refinada na escrita e nas narrativas. 128 As sugestões simbólicas do corpo e o sentido cósmico da união carnal, como se sabe, atraem o homem desde os tempos mais remotos. Lê-se num velho testo hindu: “Não há perfeição sem o corpo, sem beautitude”. Ainda certos livros religiosos da Índia dizem que a representação do prazer amoroso é uma imagem da sílaba Om, a fórmula religiosa sagrada entre todas e que representa o Absoluto. O encontro dessas duas vertentes – de um lado a escrita e as narrativas, de outro o amor carnal e o corpo – naturalmente não surgiu por acaso. Eu lembrava aqui uma das personagens, havendo nascido duas vezes (motivo gerado da ideia desse segundo nascimento que é a nomeação das coisas) é, ao mesmo tempo, carne e verbo: as palavras perpassam pelo seu corpo, visíveis e audíveis. (LINS, 1979, p. 175). Hazin estabelece uma conexão entre a e as palavras que deslizam pelo seu corpo, tem nome mas o desconhece: ele cuja representação última seria o som AUM. Para ela, a é inacessível e sempre envolto em mistério. Dentro dessa concepção, alude a um trecho de None, Novena, o nono mistério do Retábulo de Santa Joana Carolina em que o autor se refere a dois momentos da criação: “quando passou do nada para o existente e quando, alçado a um plano mais sutil, fez-se palavra.” (LINS apud HAZIN, 2010, p. 117). Associa essas etapas aos dois nascimentos da , quando, no segundo deles, ela começa a falar por meio das palavras que perpassam seu corpo. Refere-se, também, ao trecho em que o pássaro Avalovara voa em espiral descendente, cujo vértice toca o ponto central do corpo da , produzindo o som de um cálice vibrante em um momento de iniciação para uma nova vida repleta de palavras. Nessa direção, alude a um novo patamar existencial para a , uma identidade, pois o universo sonoro que passa a preencher o seu corpo lhe atribui um nome, a síntese de todos os sons e que geram o vozerio que dela emanam, o som AUM. Para Sarkar (1978), as três letras caracterizam, respectivamente, a trindade divina constituída por Brahma, Vishnu e Shiva, em que o primeiro é o criador do universo, o segundo, o mantenedor de sua própria criação e o terceiro, o destruidor. A visão cíclica do mundo fenomênico em que tudo o que é criado se desenvolve, tem um período de maturidade e por fim declina em direção à extinção, tem no som AUM a representação completa deste processo e de seu significado. A é a letra inicial dos alfabetos, o início da criação das palavras e o ponto de partida para todo um processo de comunicação e de busca de conhecimento. Três letras simbolizando a trindade também estão presentes na palavra inglesa para Deus, GOD, em que “G” é a primeira letra da palavra Generator (gerador, criador). “O” inicia a palavra Operator e “D”, a palavra Destructor. Da mesma forma que AUM, GOD contém a trindade sagrada representativa de um ciclo completo, um pulso rítmico da vida, a gênese por trás do silêncio da divindade não expressada, do nada e que ao mesmo tempo é tudo. As anotações de Osman Lins que antecederam a escrita de Avalovara (PEREIRA, 2009) demonstram que o autor conhecia essas manifestações filosóficas provenientes da 129 antiga ciência espiritual indiana, o que permite estabelecer paralelismos entre a trindade das três mulheres de Abel e a trindade cósmica hindu. A é a junção feminina de Roos, de Cecília e dela própria, a mulher feita de palavras cuja síntese culmina com o som único, AUM. A é também o ponto final, M, a destruição e a morte simbólica para este mundo das formas e que conduz ao nascimento para um paraíso cheio de silêncio luminoso. Mas para chegar até a sua identidade com o todo, a tem um percurso que passa pelo seu novo nascimento. Uma irrequieta serpente que habita o seu corpo é pacificada por Inês, a babá da casa da avó da , a “encantadora de serpentes” (O 19, p. 174). Mesmo com uma vida que lhe é imposta; adormecida, a serpente é a semente da irresignação da portanto, o impulso para a obstinada busca pelo sentido último de sua vida. Lins, em seus manuscritos de Avalovara (PEREIRA, 2009), guarda uma figura humana com os sete cakras36, com uma espiral de três linhas e meia partindo do quarto cakra e finalizando no sétimo (Anexo I). O centro dessa espiral está no centro do corpo, o ponto de partida em que a máquina espiral repousa seu peso na e sobre o qual o pássaro Avalovara revoa também em espiral. É o momento da iniciação para a palavra. Na filosofia tântrica indiana a energia Kundalini, a fonte da iluminação e da sabedoria, repousa adormecida e enroscada na base da coluna, no primeiro cakra, na forma de uma mola em espiral com três voltas e meia, tal qual uma serpente adormecida a espera do momento para dar o bote. Seu despertar faz com que ela suba de cakra em cakra, iluminando-os um a um até atingir o sétimo e último, no topo da cabeça. Na tradução para a língua inglesa por Woodroffe da escritura Mahanirvana Tantra, consta: Kuṇḍala significa enrolada. Portanto, Kuṇḍalini, aquela cuja forma é a de uma serpente enrolada, significa aquilo que é enrolada. Ela é a energia vital luminosa (jiva-sakti) a qual se manifesta como prana. Ela dorme no muladhara e tem três voltas e meia correspondendo em número com os três e meio bindus dos quais o Kubjika-Tantra fala.37 (WOODROFFE, 2008, p.12, tradução nossa). 36 Cakra em sânscrito literalmente significa roda, círculo. Para os tântricos significa um centro de energia, um portal para as potencialidades adormecidas nas diferentes camadas da mente e o caminho para a realização espiritual. Também relaciona-se com as glândulas do corpo e os correspondentes plexos nervosos, sendo o lugar onde repousam as propensões mentais dos seres humanos. Ao todo são sete os de maior importância e situam-se nos pontos de confluência dos nadis Ida, Pingala e Susumna, bem no eixo central do canal de Susumna, dentro da coluna espinhal. 37 “Kuṇḍala means coiled. Hence Kuṇḍalinī, whose form is that of a coiled serpent, means that which is coiled. She is the luminous vital energy (jīva-śakti) which manifests as prāṇa, She sleeps in the mūlādhāra and has three and a half coils corresponding in number with the three and a half bindus of which the Kubjikā-Tantra speaks. When after closing the ears the sound of Her hissing is not heard death approaches. “ (WOODROFFE, 2008, p. 12). 130 Chevalier assim descreve a serpente como representação daquela energia sagrada: No tantrismo, é a Kundalini, enroscada na base da coluna vertebral, sobre o cakra do estado de sono, ela fecha com a boca o canal do pênis (DURS, p. 343). Quando desperta, a serpente sibila e se enrijece; opera-se, então, a ascensão sucessiva dos chakras: é a subida da libido, a manifestação renovada da vida. A serpente cósmica Do ponto de vista macrocósmico, a Kundalini tem como homólogo a serpente Ananta, que encerra em seus anéis o eixo do mundo. Associada a Vixenu e a Xiva, Ananta simboliza o desenvolvimento e a reabsorção cíclica, mas, enquanto guardiã do nadir, é carregadora do mundo, cuja estabilidade ela assegura. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1982, p. 815, grifos do autor). De acordo com Sarkar (1991), dos sete cakras mais importantes, seis abrigam um total de cinquenta propensões mentais, sendo que em cada uma reside um som fundamental. Tais sons formam os cinquenta fonemas da língua sânscrito e, por esta razão, esta sempre foi caracterizada pelos panditas (pessoas instruídas versadas em língua sâncrito e na filosofia hindu) como uma linguagem espiritual, sempre tendo sido usada para a escrita dos livros sagrados da religião hinduísta. Afirmam os tântricos que estes sons teriam sido descobertos a partir de profundas meditações dos antigos seguidores de Tantra, que perceberam a importância destes sons para a fala; posteriormente, para a escrita. Para Sarkar, cada cakra tem suas formas e cores inseridas em um círculo (mandala), sendo as respectivas propensões representadas pictoricamente como pétalas, por associação às pétalas da flor de lótus, branca e pura, apesar de crescer nas águas lamacentas dos rios. As propensões ou tendências da mente estariam por trás de nossos desejos por meio da secreção de hormônios pelas glândulas endócrinas. O sétimo e último cakra (sahasrara), situado no topo da cabeça, teria a capacidade de controlar todas as propensões mentais interna e externamente e, também, por meio dos cinco órgãos motores e dos cinco órgãos sensoriais, pelo que ter-se-ia 50*2*10, que é igual a 1000, sendo por este motivo representado por uma flor de lótus de mil pétalas. Aos plexos (cakras) citados pela filosofia tântrica, à exceção do último, correspondem as seguintes raízes acústicas: a) quatro sons para o cakra muladhara (entre o ânus e o órgão genital, associado ao elemento “terra”): va, sha, śa, sa; b) seis sons para o cakra svadhisthana (pouco acima do órgão genital, associado ao elemento “água”): ba, bha, ma, ya, ra, la; c) dez sons para o cakra manipura (na altura do umbigo, associado ao elemento “fogo”): d́ a, d́ ha, ńa, ta, tha, da, dha, na, pa, pha; d) doze sons para o cakra anahata (na altura do coração, associado ao elemento “ar”): 131 ka, kha, ga, gha, uṋa, ca, cha, ja, jha, iṋa, t́a, t́ha; e) dezesseis sons para o cakra vishudha (na altura da garganta, associado ao elemento “éter”): a, á, i, ii, u, ú, r, rr, lr, lrr, e, ae, o, ao, aḿ, ah; f) dois sons para o cakra ajna (entre as sobrancelhas, sentimento do “eu sou”): kśa, ha. A menção a um disco cercado de mistérios, palavras e sons intraduzíveis é encontrada, em Avalovara, na descrição do disco de Festo e sua caracterização guarda proximidade com o significado dos cakras e suas raízes acústicas, insondáveis e somente reveladas aos iniciados mais preparados. Arqueólogos, inquietos e não sem a alegria de uma luz velando em seu íntimo, interrogam o hermético texto em espiral grafado no disco de Festo. Sabem que a probabilidade de decifrar o escrito é nula por assim dizer, mas não desistem e voltam sempre a ele. No disco, com os signos não decifrados sucedendo-se em espiral, separados por linhas verticais, há um vozerio incompreensível e que certos ouvidos podem escutar. (E 2, p. 275). A Kundalini está relacionada ao aspecto feminino da divindade, sendo uma representação de Shakti, a energia divina que, ao subir, encontra-se com Shiva (ou Xiva), o aspecto masculino da divindade cósmica situada no topo da cabeça, de modo que da união de ambos emerge a suprema realização, a obtenção da liberação e do conhecimento absoluto e que passa pela percepção do som AUM: a união do homem Abel com a energia feminina e libertadora da mulher feita de palavras, a serpente em do tapete mágico. Para atingir a libertação espiritual, o yogue necessita abstrair os cinco sentidos de seus objetos externos para obter a concentração perfeita e, com isto, abrir caminho para o despertar da kundalini. Isto implica a desconexão da mente da percepção dos sons externos e da atividade mental descontrolada para poder perceber a esência interna e, assim, os sons mais recônditos das profundezas da mente. Patanjali, no livro II de seus Aforismos, no sutra38 54, menciona: “Quando separados de seus correspondentes objetos, os órgãos seguem, como eles foram, a natureza da mente, o que é chamado de Pratyahara (controle dos órgãos).” 39 (ARANYA, 2012, p. 6, tradução nossa). , quando, então, alcançam o paraíso Frase proferida por um renomado mestre em filosofia espiritual ou da religião hindu, em sânscrito, com significado filosófico-espiritual. 39 “When separated from their corresponding objects, the organs follow, as it were, the nature of the mind, that is called Pratyahara (restraining of the organs).” (ARANYA, 2012, p. 6). 38 132 O aforismo de Patânjali explana que a mente (citta) assume a forma dos objetos percebidos pelos cinco sentidos, ou seja, que, na verdade, o que vemos, ouvimos, cheiramos, degustamos e sentimos pelo tato encontram-se dentro da mente imediamente após os sentidos terem captado as vibrações vindas dos objetos externos. Ao focar a atenção no silêncio do infinito, a mente procura assumir a forma desta entidade sem começo e sem fim, abrindo caminho para um mundo de sons não revelados aos iniciantes. Tanto o silêncio das percepções externas como o da mente são imperativos para se atingir tal estado de consciência, o mesmo silêncio que, em Avalovara, envolve Abel e a mundo de oposições para a unidade após o instante da morte. A , logo após o seu segundo nascimento, encontra-se com o pássaro Avalovara que na transposição do voa em espiral sobre seu corpo quando a extremidade da máquina em espiral pressiona o ponto que poderia ser o cakra anahata, o ponto que controla o elemento “ar”, o substrato que permite ao pássaro voar. Tal qual no estágio de uma iniciação espiritual, rompe-se o silêncio interno, e ela passa a perceber seus primeiros sons provenientes de seu interior e que se misturam aos sons externos. Palavras e vozes são libertados no corpo da mulher sem nome, que passa a ser “carne e verbo”. As bocas infantis não se aproximam nem se distanciam. Vêm mesclar-se à celeuma das crianças algumas vozes de homem. Distingo, claramente e de súbito, palavras soltas, tão próximas como se fossem ditas no meu quarto. Então, percebo-me inundada, povoada de vozes, vozes no meu sangue, nas costelas, nos maxilares, nos cabelos, nos olhos, nas unhas, muitas vozes. Gritos e palavras nadando ou revoando em mim, eu invadida por uma multidão de vozes, eu desfeita em vozes. Como se eu fosse uma escultura de areia fina e cada grão uma voz, uma palavra e suas danações. (O 15, p. 117). Nesse momento auspicioso, ela passa a conhecer os segredos do cosmos, o passado, o presente e o futuro: “Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista.” (O 15, p. 117). A Kundalini sobe por um canal central ou nervo sutil, nadi susumna, sendo referida nos textos tântricos tradicionais como a fonte do discurso, ou a origem da fala. Mais dois canais (nadis) circundam susumna em forma espiralada, unindo-se a esta nos pontos em que se localizam os cakras, tal qual uma mola espichada: ida e píngala. Na tradição tântrica, o peixe apresenta dois significados, atrelados aos aspectos mundano e espiritual presentes em sua doutrina. Pelo lado profano, interpreta-se que é permitido a seus praticantes a ingestão de 133 peixe, enquanto que, pelo lado sagrado, o peixe simboliza os nadis Ida e Pingala que, entre um nó e outro formados pelo encontro dos dois canais, apresenta o formato daquele animal. Woodroffe (2008) descreve a fisiologia energética do corpo humano conforme tradução de uma das escrituras que trata sobre a doutrina de Tantra, o Mahanirvana Tantra, o qual foi por ele traduzida para o inglês sob o título de Tantra Śãstra (Escrituras Tântricas): Desses nadis, os principais são quatorze; e desses quatorze, ida, píngala e susumna são os principais; e, novamente, desses três, susumna é o maior, e a ele todos os outros estão subordinados. Susumna situa-se na cavidade de meru, no eixo cérebroespinhal, Ele se estende do lótus Muladhara, o Tattvik centro relacionado com a terra, até a região cerebral. Susumna apresenta-se na forma de Fogo (Vahnisvarupa), e tem dentro dele o vajrininadi sob a forma de sol (Surya-svarupa). Dentro do último está o Citra ou Chitrini Nadi, por onde desce o néctar, que também é chamado de Brahma-Nadi, na forma da lua (candra-svarupa). Susumna é assim Triguna. Os vários lotos dos diferentes Cakras do corpo estão todos suspensos a partir do Citra-Nadi, os cakras sendo descritos como nós no Nadi, que é tão fino quanto a milésima parte de um fio de cabelo. Fora da Meru e em cada lado do Sushumna estão as nadis Ida e Píngala. Ida está no lado esquerdo, e enroscando-se ao redor de susumna, tem a sua saída na narina esquerda. Píngala está à direita e enrolado de forma semelhante, entra pela narina direita. Susumna, entrelaçando Ida e Píngala e o cakra Ajna ao redor do qual eles passam, formam, assim, uma representação do caduceu de Mercúrio. Ida é de uma cor pálida, como a cor da lua (candra-svarupa), e contém o néctar. Píngala é vermelho, e é parecida com o Sol (Surya-svarupa), contendo o "veneno", o fluido de mortalidade. Estes três "rios", que estão unidos no cakra Ajna, fluem separadamente a partir desse ponto, e por esta razão o cakra Ajna é chamado triveni mukta. O muladhara é chamado yukta (unido) triveni, uma vez que é o ponto de encontro dos três nadis que são também chamados Ganga (Ida), Yamuna (Píngala), e Sarasvati (Sushumna), os três rios sagrados da Índia. A abertura no final de susumna no cakra muladhara é chamada de brahmadvara, a qual está fechada pelas espiras da adormecida Devi Kundalini. 40 (WOODROFFE, 2008, p. 47, tradução nossa). Algumas relações são possíveis se levarmos em conta a proximidade que Osman Lins mantinha com aspectos interessantes de filosofia hindu. Em um trecho de Avalovara, a “Of these nāḍis, the principal are fourteen; and of these fourteen, iḍa, pingalā and suṣumnā are the chief; and again, of these three, suṣumnā is the greatest, and to it all others are subordinate. Suṣumnā is in the hollow of the meru in the cerebro-spinal axis. It extends from the Mūladhara lotus, the Tattvik earth centre,1 to the cerebral region. Suṣumnā is in the form of Fire (vahni-svarūpa), and has within it the vajrininādi in the form of the sun (sūrya-svarūpā). Within the latter is the pale nectar-dropping citrā or citrinī nāḍī, which is also called Brahmanāḍī, in the form of the moon (candra-svarūpā). Suṣumnā is thus triguṇā. The various lotuses in the different Cakras of the body (vide post) are all suspended from the citra-nāḍī, the cakras being described as knots in the nāḍī, which is as thin as the thousandth part of a hair. Outside the meru and on each side of suṣumnā are the nāḍīs iḍā and pingalā. Iḍā is on the left side, and coiling round suṣumnā, has its exit in the left nostril. Pingalā is on the right, and similarly coiling, enters the right nostril. The suṣumnā, interlacing iḍā and pingalā and the ājnācakra round which they pass, thus form a representation of the caduceus of Mercury. Iḍā is of a pale colour, is moonlike (candra-svarūpā), and contains nectar. Pingalā is red, and is sun-like (sūrya-svarūpā), containing “venom,” the fluid of mortality. These three “rivers,” which are united at the ājnā-cakra, flow separately from that point, and for this reason the ājnā-cakra is called mukta triveni. The mūlādhāra is called Yuktā (united) triveni, since it is the meeting-place of the three nāḍīs which are also called Ganga (Iḍā), Yamunā (Pingalā), and Sarasvati (suṣumnā), after the three sacred rivers of India. The opening at the end of the suṣumna in the mūlādhāra is called brahma-dvāra, which is closed by the coils of the sleeping Devī Kuṇḍalinī.” (WOODROFFE, 2008, p. 47). 40 134 : “ […] serpente “espreita” ora sobre o ombro direito e ora sobre o ombro esquerdo da enrola-se no meu pescoço e espreita serpente por cima de meus ombros - direito ou esquerdo os que são dóceis e tudo aceitam sem queixa.” (O 19, p. 174). Os nadis do corpo espiritual, tal qual descrito acima, saem pelo lado esquerdo e pelo lado direito: ida carrega a energia sagrada e que levaria o ser humano em direção à divindade; por seu turno, pingala induz à busca pelos prazeres mundanos. A imagem do caduceu de Mercúrio mostra duas serpentes enroscadas em uma vara com as asas de um pássaro no topo, as serpentes digladiando-se em uma luta eterna entre o profano e o sagrado, da mesma forma que os dois aspectos da em um embate aparentemente sem vencedores. Impulsionada pelo poder libertador de seu aspecto elevado a partir do discernimento e do poder criador de Abel, a encontra seu rumo e liberta o pássaro aprisionado, que guarda similaridade com a kundalini e seus movimentos, sendo descrito, em alguns cenários, movendo-se em espiral e conduzindo Abel e a em direção ao tapete, à cidade sagrada, cujo acesso é cuidadosamente protegido pelas águas da cisterna. O pássaro sobrevoa, então, a iluminado pela luz ígena dos raios que perpassam seu corpo, a mesma cor vívida do sol relatada pelos tântricos como sendo a cor da kundalini. Sobre a relação da máquina com a cidade, Osman Lins em seus manuscritos de Avalovara (PEREIRA, 2009), dá algumas pistas que podem trazer uma luz sobre o significado da máquina misteriosa: “Em O15, a recebe, no terraço do Martinelli, a máquina e a retomada desta MÁQUINA que é construída neste segmento tem uma relação com a busca da Cidade realizada por Abel.” (LINS apud PEREIRA, 2009, p. 36). Já tinha sido sugerida uma possível unicidade entre o pássaro Avalovara e a máquina. A representação do enigmático dispositivo suspenso, girando em espiral sobre o centro do corpo da , apresenta notável semelhança com a imagem mostrada no desenho com os cakras do Anexo I, encontrado nas anotações de Osman Lins. (PEREIRA, 2009). A máquina poderia ser interpretada como a energia do despertar que conduz Abel à "cidade perfeita" o sétimo cakra, o cakra coronário (sahasrara). Relatam os tântricos que o sexto cakra, ou o terceiro olho, é a sede da individualidade, onde reside a consciência do “eu sou”, e o ponto de encontro com o início da criação do universo pelo lado da divindade cósmica e, portanto, o ponto de início da manifestação do universo, o ponto em que surge o som primordial da criação, o som AUM. Já no último e sétimo cakra, a individualide desaparece tal qual uma gota de água que se dilui no oceano e todas as individualidades se tornam uma única essência, onde a presença do corpo não é mais necessária. Seria, então, a morte simbólica de Abel e da para se tornarem uma única coisa com o tapete e com seus animais e plantas ou então, na alegoria cristã da origem da raça 135 humana, o retorno de Adão e Eva ao paraíso de onde saíram para gerar a multiplicadade da vida com todas as suas alegrias e sofrimentos? Nesse instante de transcendência, Abel e a submergem no silêncio beatificante e passam a ouvir os sons idílicos do tapete, distanciandose das agruras de um mundo de ambiguidades e incertezas: “[...] mais e mais distantes latidos dos cachorros vem um silêncio novo e luminoso vem a paz e nada nos atinge, nada, passeamos, ditosos, enlaçados, entre os animais e plantas do Jardim.” (N 2, p. 357). Este pode ser considerado o silêncio mais importante de todo o romance e que foi incluído no tipo “Silêncio de fundo”, por tratar-se de uma imersão na ausência de sons necessária para conduzir os amantes para o ápice de suas jornadas. A adoração de símbolos alegóricos relacionados à divindade está presente no tantrismo antigo em que o Shiva-linga é reverenciado como representação do próprio Shiva, como sendo a fonte última da existência de todas as coisas animadas e inanimadas. Trata-se de um pênis (linga ou lingam) introduzido em uma vagina (região do períneo ou yoni, a dois dedos do ânus). Essa união fálica do masculino (Shiva) com o feminino (Shakti) alegoriza a coexistência da dualidade necessária para produzir a unidade de todos os objetos deste mundo em torno da consciência cósmica, simbolizada pela divindade Shiva. É também a representação do poder criador da entidade suprema. Tal representação simbólica da unidade na dualidade é, cuidadosamente, elaborada em Avalovara onde a união sexual entre Abel e a culmina com a morte de ambos (união) sem que haja um processo de aniquilação. Percebe-se uma notável similaridade entre as crenças da doutrina tântrica e a alegoria descrita nos cenários crucias do romance. Sobre isso, escreve o próprio autor: Uma coisa que não devo perder de vista: aqui, o órgão masculino é o poder criador. Criador no sentido artístico. No sentido literário. Sem isto, as palavras, gestos ou pensamentos da mulher ficam no nível de qualquer novela licenciosa. E não é isto que pretendo. O caráter do romance como representação da aventura de escrever um romance, de produzir um romance, não deve ser esquecido. Não há, no homem, um órgão que produza um romance. O que produz isto é seu poder criador, servido pela experiência vivida e pela imaginação. Assim, o p. não é a substituição de outro órgão, a representação carnal de outro órgão carnal. Ele é o signo, a representação visível da fôrça criadora, do poder criador. Ora, para que o poder criador se manifeste, precisa ser estimulado. Ser usado sem estímulo é uma prostituição. O que o estimula? Os sentidos e a reflexão. Os sentidos do homem são estimulados por essa mulher. A cópula é uma obra. Mas a energia criadora é do homem é provocada por essa mulher e se dirige a ela. Le monde existe pour aboutir à un livre. Un livre existe pour aboutir au monde. La femme existe pour aboutir à l´acte de l´amour; l´acte de l´amour existe pour aboutir à la femme. Plus ou moins. Ela deflagra as energias do homem. Essas energias se concentram no p. Este volta à mulher. Exatamente à mulher que o provocou, o excitou, o estimulou. Esse poder criador não existe isoladamente. (Pode-se escrever toda uma página sobre as 136 associações entre o p. e o poder criador.) Que é esse poder criador sem todo um suporte, uma comunidade, uma biografia etc.? (LINS aput PEREIRA, 2009, p. 30). O pensamento de Osman Lins sintoniza com a ideia central da concepção filosófica religiosa indiana sobre a dualidade masculino-feminina retratada na união carnal simbólica representativa do poder gerador, seja da criação literária, seja da criação da vida, seja da criação do mundo. Não se trata aqui de uma relação patriarcal hierárquica de superioridade criativa do homem em relação a uma suposta passividade feminina. É uma descrição alegórica cujo simbolismo remete ao poder criador único da divindade, representada pelo pênis, que para exercer a sua função de progenitor do mundo e, portanto, da organização do universo de sonoridades, necessita ser estimulado pelos seus próprios atributos. Os tântricos afirmam que Brahma, ou a divindade suprema, existe em dois estados: como uma entidade imanifestada e como uma entidade manifestada. Esta última seria a própria criação em que a consciência infinita densifica-se sob o despertar dos três princípios operativos da energia criativa (tamah, rajah e sattva) que lhe é inerente para formar o mundo criado. Sem essa estimulação inexistiria tal processo criativo. Assim, Brahma é constituído pela consciência em seu estado puro e imanifesto (Shiva) e pela energia dos três princípios operativos (Shakti=tamah+rajah+sattva), sob cuja ação emerge o Brahma manifestado. Para Sarkar (1978), no ponto de transição entre Brahma imanifestado e Brahma manifestado surgiria o som primordial, o som AUM, o Verbo da criação. Abel incorpora o escritor criador, tal qual o Brahma imanifestado, portador do pênis que deve ser estimulado pelos atributos femininos da , a mulher tríplice da mesma forma que a trindade dos atributos criadores daquela divindade, portadora das palavras ainda inexpressadas e que se manifestam no momento do ápice do poder criativo da cópula, quando surgiria o som de todos os sons, o provável nome da , o som AUM. Assim como Lins afirma que “A cópula é uma obra” (idem, p. 30-31) não se vislumbra aqui uma relação de superioridade e inferioridade mas uma junção do inseparável em que o poder criador sozinho não teria nenhuma capacidade de ação sem o poder das palavras presentes no corpo da . O símbolo fálico Shiva-linga procura mostrar esta unidade inseparável simbólica entre homem e mulher, indispensável para que surja a criação em todos os seus aspectos, inclusive a criação literária. Sobre o poder criador, Pereira (2015) comenta: Assim, a relação sexo e criação constitui uma “metáfora da própria criação literária do romance, já que por meio deles o escritor Abel e, uma mulher feita de palavras, 137 libertam a ave que dá nome ao livro - uma ave simbólica da criação - reprimida pelos atos de violência que sofreu e revigorada pela força da construção do amor.” Dessa forma, os amantes entram no paraíso, ingressando numa outra ordem na qual o simbólico é reatualizado. (PEREIRA, 2015, p. 95). Nesta passagem, aborda a relação homem-mulher na metáfora criativa da relação sexual e do papel da ave Avalovara sob o prisma da reordenação das palavras que se processa na construção da obra literária. Traçando um paralelo entre as conceituações metafísicas do misticismo tântrico e a esfera da percepção humana dos sons produzidos pela vibração das moléculas do ar, a doutrina de um som primordial no plano espiritual como origem de todos os sons encontra similitudes, no plano dos sons físicos, com as considerações de Cage sobre o silêncio, visto por ele como uma espécie de cor branca “sonora” que inclui todas as frequências. Ora, sabemos que, na prática, os efeitos percebidos em ambas a situações não são os mesmos em virtude de que ondas sonoras e eletromagnéticas têm naturezas distintas; consequentemente, os canais sensoriais humanos dispõem de diferentes modos de recepção das correspondentes vibrações que chegam em seus pontos sensíveis. A mistura de todas as frequências sonoras na verdade produzirá o que hoje conhecemos como ruído branco, constituído por um som que, ao conter todas as frequências sonoras audíveis, apresentaria semelhanças com a cor branca pelo fato de essa incluir todas as frequências luminosas perceptíveis ao olho humano. Entretanto, Cage (1973) não estaria completamente desprovido de razão, pois suas reflexões encontram eco no uso do ruído branco como supressor de todos os demais sons circundantes já que, contendo também as suas frequências, impediriam ou dificultariam a sua audição trazendo uma ideia de silêncio relativo. Atualmente, faz-se uso do ruído branco em alguns escritórios com a finalidade de criar uma falsa sensação de ausência de sons externos. Em Avalovara, é possível vislumbrar a busca pelo silêncio metafísico por parte de seus personagens mais importantes, em que a paz paradisíaca, obtida a partir da união de Abel e da com o tapete mítico e seus seres, leva-os ao distanciamento gradativo dos ruídos do mundo externo e a imersão nas sonoridades bucólicas e prazerosas daquele mundo transcendente percebidas em meio a um silêncio pacificador. Chevalier e Gheerbrant destacam a diferença de significados de um tapete para um ocidental e para um oriental. Para o primeiro, trata-se apenas de um objeto de decoração de conforto doméstico; para o segundo, de um espaço singular onde cada forma geométrica, cada desenho, cada animal, cada planta e cada cor tem um significado específico e também uma função particular, calcados na ancestralidade cultural e, por conseguinte, nas simbologias de 138 cada ente que o compõe. Aludem ao tapete como representação do paraíso como morada, o lugar de paz e de alegria permanentes: Como símbolo estético, o tapete expressa muitas vezes a noção de jardim inseparável da ideia de Paraíso. Ali encontram-se flores, árvores, animais, pássaros, reais ou míticos [...] O tapete resume o simbolismo da morada, com o seu caráter sagrado e todos os desejos de felicidade paradisíaca que ela encerra.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 864). Osman Lins, em suas anotações de Avalovara, descreve o simbolismo do tapete no contexto da narrativa da mesma forma que Chevalier, Gheerbrant: O tapete surge em fragmentos do tema O e E numa alusão a ideia de renovação com as imagens do crocodilo e coelho, mas também ao Paraíso. Para os ocidentais é simplesmente um fino objeto de decoração, porém assume uma vasta simbologia para os orientais. (LINS apud PEREIRA, 2009, p. 83). A música é uma das expressões máximas da subjetividade humana que se manifesta a partir da criatividade refinada, materializada em expressões vibracionais por meio de instrumentos físicos que, por sua vez, proporcionam aos que a ouvem o deleite estético da elaboração artística. Segundo Schafer, a audição conduz para dentro, enquanto os olhos projetam o indivíduo para fora de si. Este movimento centrípeto da música denota a sua capacidade de produzir um estado mais introspectivo até a busca do silêncio mais íntimo, evocando a crença mística profundamente arraigada em algumas culturas de que o poder da interiorização levaria o indivíduo, em profundo transe, à percepção da “música das esferas”. A aceitação da existência de uma música celeste adveio das descobertas de Pitágoras sobre a relação matemática entre os sons produzidos por uma corda e seus comprimentos, o que fez com que os antigos filósofos gregos viessem a supor a existência de uma harmonia no universo, por eles concebida como uma esfera constituída de corpos celestes em movimento circular, semelhante à harmonia existente na música. No romance, J.H. traz em seu relógio uma sofisticada organização de fragmentos musicais que visam reproduzir, no microcosmo do mecanismo de medição das horas, a ordem do universo. Obstinado por essa busca, constrói um dispositivo mecânico que trouxesse, em seu projeto, a ideia de um cosmos disciplinado, refletida na lei de estruturação dos fragmentos sonoros, cujas partes musicais lembram o ritmo harmônico da música das esferas. Julius quer evocar as conjunções do cosmos, mas poeticamente; não apenas a móbil ordem celeste, mas a harmonia de imponderáveis que permite a um homem 139 encontrar a mulher com quem se funde, que faz nascer uma obra de arte, uma cidade, um reino. (P 8, p. 301). O personagem músico planejava desenvolver um aparato perfeito que contemplasse não somente a previsibilidade matemática do movimento dos planetas, das estrelas e dos cometas, mas também o imponderável do pulsar ritmado da vida com todas as suas implicações. 5 140 EIXOS MUSICAIS E OS INSTRUMENTOS MUSICAIS 5.1 OS QUATRO EIXOS MUSICAIS COMO REPRESENTAÇÃO DE ROOS, CECÍLIA E Integram o romance Avalovara sons e músicas de caráter contrastante, intimamente associados a contextos narrativos e aos personagens do enredo romanesco, revelando simbolismos que contrapõem simultaneamente o sagrado e o profano. Percebe-se, na narrativa, a existência de quatro referências musicais significativas, constituintes de inúmeros cenários sonoros, e que delineiam o perfil das personagens centrais do romance. As três protagonistas femininas são anunciadas por essas manifestações musicais características em diversas cenas. A culta e impenetrável Roos é associada à cultura ocidental europeia, representada musicalmente na peça sacra do compositor francês barroco André Campra, intitulada Salmo In Convertendo Dominus. A andrógina Cecília, mulher do povo e habitada por seres oprimidos e emudecidos, mistura-se com as pastorinhas durante uma apresentação musical nordestina do Pastoril, manifestação folclórica oriunda da Península Ibérica, arraigada na cultura popular até poucos anos atrás, e que acontece durante as festividades natalinas. Nos cenários em que a e Abel realizam o rito amoroso da união carnal, a música erudita reaparece no soar das horas cheias do relógio de Julius Heckethorn (J.H.), quando soam fragmentos aparentemente desconexos da introdução da Sonata em fá menor (K462) para cravo do compositor clássico galante italiano Domenico Scarlatti e, simultaneamente, na cantata profana Catulli Carmina do compositor alemão do século XX, Carl Orff. Os quatro eixos musicais convergem para uma síntese musical em que o antigo e o moderno convivem em uma mulher, , que, por sua vez, é formada por mais duas: as duas mulheres anteriores de Abel que o levam por uma trajetória gradual em direção ao objetivo de sua busca, qual seja, a compreensão absoluta do mundo, como escritor, pela apropriação das palavras presentes no corpo da . A cantata de Orff, apesar de ter sido composta em um período estético da história da música caracterizado pela quebra dos paradigmas tonais, rítmicos e estruturais na música ocidental erudita, traz como tema versos romanos do poeta Catullo que abordam o amor não correspondido por uma bela mulher da classe alta da Roma antiga. Música moderna e texto antigo se entrelaçam em uma amálgama simétrica e convergente em que pianos, percussão e coro fluem em um acelerado ostinato em ritmo ternário: eis aiona, eis aiona, eis aiona. O comedimento do estilo musical e a regularidade rítmica da sonata de Scarlatti 141 lembram o bater das horas cheias de um relógio de carrilhões e sugerem uma atmosfera de mistério e de misticismo, associada ao andar indecifrável do tempo. Contrasta com o ritmo febril da cantata, cujo texto inicial traz o diálogo entre um grupo de jovens e um grupo de anciãos, em que estes lançam escárnios jocosos sobre as crenças daqueles na eternidade do amor. Ambas as músicas se fazem ouvir no mesmo cenário amoroso onde se encontram Abel e a , simbolizando os aspectos sacro e profano presentes na ambientação licenciosa da união dos amantes. O tema A – Roos e as cidades - descreve o início de uma trajetória de Abel em busca do conhecimento, como escritor iniciante, que o leva a visitar as cidades as quais, ainda que embebidas da tradição milenar da arquitetura e da música, não satisfazem seus anseios e não conseguem trazer as respostas esperadas. Em um trecho da narrativa, o leitor se depara com uma cena própria da catedral de Notre-Dame, uma grande escola da música medieval e um centro artístico importante para o desenvolvimento da música sacra francesa nos períodos medieval, renascentista e barroco, em que as refinadas sonoridades de uma música antiga brotam de dentro da igreja como “um navio ressoante” e se sobrepõem aos ruídos desagradáveis de uma paisagem urbana moderna de Paris no final da década de 1950. Neste momento, Abel e Roos caminham pelas ruas da capital francesa próximas à catedral gótica, quando ouvem a execução do Salmo de André Campra acompanhado pelas cem vozes de um coro, de um órgão de tubos e por uma orquestra cujas sonoridades reverberam pelos arredores, misturando-se com os ruidosos sons dos aparatos de uma civilização em franco desenvolvimento tecnológico. Coexiste, em um mesmo cenário, a atualidade de uma cidade moderna repleta de automóveis, de lâmpadas de iluminação pública e de sons de um forno, com a ancestralidade representada pela Igreja de Notre-Dame, pela estátua de Carlos Magno, pelos prédios antigos da Paris velha e pelos sons oriundos da execução musical do salmo de Campra: Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. [...] Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. [...] A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de Notre-Dame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. [...] As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre NotreDame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a 142 armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. [...] Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? Notre-Dame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite.41 (A 14, p. 109). Mesclam-se, no mesmo fragmento, o sacro e o profano, o antigo e o novo, formando um amálgama de ambivalências que se ajustam e se complementam. Roos, incrustada de cidades europeias silenciosas, embebidas de tradições culturais milenares, carrega essas ambivalências e as torna disponíveis para Abel em sua procura pelo conhecimento pleno. A mistura da refinada música barroca com as sonoridades da rua denotam a indiferença da sociedade moderna ao ruído e aos seus efeitos. A música do século XVII é reconstituída na catedral Notre-Dame, o mesmo local em que foi executada pela primeira vez. A música de Campra associa-se à erudição de Roos, evidenciada, também, pela fluência com que declama os versos de Anacreonte (poeta lírico grego de 582 a 485 a.C.). Abel e Roos estão em um dos epicentros da história da cultura artística europeia erudita embebida da tradição e da busca pela perfeição, o que é reforçado, na narrativa, pela descrição da estátua do rei dos francos, Carlos Magno que, na transição dos século VIII para o século IX, governou a região em que hoje se situa parte da França e, depois de várias conquistas, o sacro império romano germânico, que passou a ser formado pela Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein, Luxemburgo, República Tcheca, Eslovênia, Bélgica, Países Baixos e grande parte da Polônia, França e Itália. A representação do órgão de tubos e suas sonoridades encerram a ideia da ancestralidade e da densidade cultural presentes em Roos, sendo que, para uma compreensão mais clara acerca da evolução da música erudita na Europa, portanto, das razões pelas quais Roos é associada ao passado cultural do Velho Continente, faz-se necessária uma breve incursão pela história do salmo de André Campra, dos órgãos de tubo da catedral de Notre Dame, dos grandes compositores que por ali passaram, de suas escolas e dos estilos musicais relevantes a elas relacionados. A composição musical de André Campra, In Convertendo Dominus42, é baseada no A repetição desta citação ocorre em razão da necessidade de contextualizar o concerto de Campra como eixo musical. 42 CAMPRA, André. In convertendo Dominus (gravação via torrent). In: Messe de Requiem // Olivier Schneebeli.wav. Disponível em: . Acesso em: 02/10/2014. 41 143 salmo 125, com sua instrumentação formada por uma orquestra em que o baixo contínuo, constituído por um órgão e por violoncelos, dialogam com vozes solistas e coro misto, conforme a partitura original manuscrita e assinada por Campra (Anexo II), e que consta no acervo digital (Gallica - Bibliothéque Numérique) da Biblioteca Nacional da França43. André Campra nasceu em Aix-en-Provence (França) em 4 de dezembro de 1660. Filho de um cirurgião natural de Turim e também violinista, teve o pai como primeiro professor de música. Tornou-se mestre de música nas catedrais de Toulon, Arles, Toulouse e, finalmente, na Notre-Dame de Paris, de 1694 a 1700. Foi um dos mais importantes compositores de música litúrgica no século XVIII, desenvolvendo belas harmonias na construção de seus salmos e motetos. Em suas composições sacras, é forte a influência do estilo italiano, que se fez sentir também na maioria das diferentes obras sacras dos compositores barrocos do século XVII e início do século XVIII. Textos latinos oriundos de salmos e textos bíblicos do antigo e do novo testamento serviram de base para seus motetos polifônicos. Em muitas dessas composições, os músicos da época procuravam dar ênfase ao grandioso com a utilização de orquestra completa, solistas e um ou dois coros constituídos, em alguns casos, por aproximadamente cem vozes. Já as gravações do salmo, realizadas a partir do século XX, mostram uma redução significativa do número de componentes do coro e da orquestra. Entre as obras religiosas de Campra, constam cinco livros de motetos, dois livros de salmos (dedicados a Luiz XIV), uma missa e um réquiem. Inaugurou, em 1697, com a apresentação de sua ópera L’Europe Galant e em suas composições operísticas posteriores, uma forma musical mista denominada de ópera-ballet, em que árias ao estilo italiano e cenas de divertissement com coro e ballet, baseadas em danças antigas, passaram a enriquecer a ópera tradicional francesa. Faz-se oportuno ressaltar a importância de Notre-Dame para o desenvolvimento da música ocidental tal qual a conhecemos hoje em dia e seu simbolismo no enredo narrativo. Osman Lins transporta a tão admirada catedral ao Avalovara para que o leitor, novamente, a carregue em sua imaginação junto com os sons barrocos que dela emanam. Acolheu memoráveis estilos musicais a começar pela música medieval da Ars Antiqua, em que os mestres franceses Leonin (1135-1201) e Perotin (1160-1236) foram os principais expoentes. Com esses dois músicos geniais, desenvolveu-se, na música ocidental, a polifonia, base para todo o sistema musical atual, tendo como ponto de partida o cantochão ou canto gregoriano. O também francês Philippe de Vitry (1291-1361) cria o termo Ars Nova em seu tratado sobre 43 CAMPRA, André. In convertendo Dominus.//Pseaume 125.e (manuscrit autographe). Disponível em: . Acesso em: 01/10/2014. 144 música e avança no desenvolvimento da polifonia musical. Segue-lhe os passos o compositor Guillaume de Machaut (1300-1377), que escreveu a mais longa obra polifônica dedicada àquela memorável construção medieval: a Messe de Nostre-Dame (Missa de Notre-Dame). Com essa obra, Machaut estabelece um marco na história da música ao compor para quatro vozes e em dois estilos polifônicos. Em um deles, o tenor funciona como cantus firmus, sustentando notas longas e acompanhado por melismas44 das outras vozes. Em outro estilo, desenvolve um movimento contrapontístico com uma nota para cada sílaba. Introduz com maestria a evolução monotemática com reapresentações do tema em diversas vozes, proporcionando, à sua obra mais famosa, um sentido de unidade musical e lançando uma semente para o posterior desenvolvimento da fuga. Ressalta-se que o incremento da complexidade da música ocidental somente foi possível com o advento da notação musical sobre uma pauta de cinco linhas criada pelo monge italiano Guido D’Arezo, por volta do ano 1000. A música medieval era baseada em oito modos gregorianos ou escalas gregorianas, sendo quatro deles denominados de modos autênticos (dórico, frígio, lídio e mixolídio) e os outros quatro, de modos plagais (hipodórico, hipofrígio, hipolídio e hipomixolídio). Durante o período da música renascentista, gradativamente, passou-se a utilizar somente duas escalas: maior e menor, tendo sido estas as bases para o conceito de consonância e o ponto de partida para a metodologia de composição como hoje conhecemos na música erudita e também na música popular. Ainda que no século XX novos paradigmas tenham sido estabelecidos; dentre eles, a dissonância e o atonalismo, o sistema tonal baseado nessas duas escalas tem sido amplamente usado em todos os estilos e gêneros musicais. Na catedral de Notre-Dame, merecem destaque seus três órgãos, dos quais o mais antigo data do século XIV. De seus trinta e dois tubos apenas doze são originais. O órgão de Coro foi construído em madeira, com tubos de estanho, zinco, cobre e madeira. Possui ao todo mil duzentos e cinquenta e dois tubos, trinta registros, dois teclados (manuais) na mesa de comando e mais trinta pedais. Funciona com tração elétro-pneumática. O principal, um Cavaillé-Coll, situa-se em frente à rosácea da fachada ocidental e conta com cento e treze registros e sete mil e oitocentos tubos. É um dos maiores órgãos do mundo sendo utilizado para eventos especiais. Esse instrumento requer muita habilidade com o manuseio dos pés e mãos juntos e propicia grande variedade de timbres sonoros na sua execução. Atingiu seu “Os cantos em que a maioria ou a totalidade das sílabas correspondem cada uma a respectiva nota designam-se por silábicos; os que se caracterizam por longas passagens melódicas sobre uma única sílaba designam-se por melismáticos.” GROUT; PALISCA, 2007, p. 60). 44 145 apogeu no período barroco quando, para ele, centenas de peças foram compostas por Johan Sebastian Bach e George Frederich Haendel. Mozart, apesar de poucas composições para órgão, admirava-o muito e o considerava o ”rei dos instrumentos”. Costumava tocar nos órgãos das igrejas que visitava. Foi no século XIX que se instalou, em Notre-Dame, o que se poderia chamar de grande órgão. Desde então, ele passou a ser denominado de principal, tendo passado por aprimoramentos sem que seus construtores tenham se descuidado com a preservação e a restauração de valiosas partes já existentes. Por esta razão que ainda persistem alguns tubos implantados durante o período medieval. Em 1868, sob a supervisão do arquiteto Viollet-LeDuc, o construtor de órgãos Aristides Cavaillé-Coll, de origem francesa, iniciou os trabalhos de restauração e de ampliação desse instrumento que se transformou em um órgão sinfônico, modelo característico do período romântico. Depois da reforma, o órgão passou a contar com oitenta e seis registros, cinco teclados e uma pedaleira completa. Percebe-se, assim, a vinculação de Roos a um relevante segmento do conhecimento humano que Abel, o aprendiz de escritor, necessita travar contato. Apesar do refinamento e da complexidade de tudo o que vê e ouve, desde a arte medieval gótica até a música barroca de Campra, Abel ainda não está pronto, pois falta-lhe o convívio com o contraste representado pela arte folclórica popular do Pastoril, disponibilizada por Cecília, a mulher dos oprimidos, a antítese necessária para chegar à síntese, posteriormente, com o encontro da múltipla . No tema T – Cecilia entre os Leões – é detalhado o Pastoril, uma dança festiva de cunho religioso incorporada ao folclore nordestino de Recife e de Olinda. Foi trazida pelos portugueses vindos da península Ibérica no século XVI, quando se fixaram no Nordeste, sendo encontrada em todos os Estados dessa região. Sua origem remonta às canções natalinas denominadas vilancicos. O Vilancico, que em toda sua trajetória andou sempre associado à música, encontrou na Espanha, principalmente, seu ambiente de eleição como forma musical e poética, a princípio acompanhado pela ‘vihuela’, instrumento de cordas semelhante ao alaúde, de origem árabe, e posteriormente pela guitarra, também de origem arábica, já em 1300 citada como guitarra sarracênica. [...] Segundo Ludwig Pfandl, além da vihuela, os Vilancicos utilizavam ainda o triângulo e as castanholas nos acompanhamentos.45 (DAMASCENO, 1970, p. 8). Damasceno refere que, a partir do século XVI, a união entre o verso e a música consentiu que os vilancicos incentivassem as classes sociais a transpor a temática de composição artística profana para o sagrado, assim como as produções sacras baseadas em ritmos e melodias populares. As composições (rimas e solfas) dos vilancicos ficaram no anonimato e só foram impressas as letras que repercutiam a proveniência folclórica. 45 146 Nas representações da Natividade, cantores do povo figurando pastores, entoavam um repertório cujo tema central exaltava a aparição dos anjos aos pastores, anunciando a chegada do Redentor, e relatava a caminhada deles à manjedoura. Essa homenagem ao nascimento de Cristo inicia durante o período das celebrações natalinas que ocorriam durante o mês de dezembro e finalizavam no dia seis de janeiro, dia dos Reis Magos, encerrando-se com o desmonte do presépio, a queima das palhas da manjedoura na frente da igreja, a dança e o canto das loas (toadas, cânticos) das pastoras e os pedidos escritos pelo público jogados ao Menino Jesus. Além do vilancico, o carnaval, a ópera, as valsas, as mazurcas, os schottisches, a polka e o maxixe, sendo este uma forma brasileira de dançar a polka, influenciaram as composições e as apresentações dos Pastoris. As loas e os versos do Pastoril eram compostos por poetas e artistas conhecidos na Bahia e em Pernambuco. O apogeu do Pastoril no Nordeste se deu do século XIX até o surgimento da televisão, mais ou menos, na década que se encerra em 1970. O Pastoril de Avalovara é rico na sua expressão artística e folclórica, apresentado por pessoas de poucas posses: as pastoras vestem saias desbotadas, nem todas dispõem de instrumentos musicais, um dos instrumentos da orquestra está desafinado (tambor rouco), e os músicos são descritos com vestimentas precárias (não têm sapatos). Atuando na profissão de assistente social em Recife, Cecília está muito próxima de uma classe social menos favorecida constituída de operários, camponeses e pessoas marginalizadas, identificando-se com essa manifestação musical popular. No Pastoril, os pandeiros marcam o ritmo e o compasso e são enfeitados com fitas da cor do cordão a que pertencem. A representação simbólica dos três Reis Magos que oferendam ao Menino Jesus aparece no momento em que as pastoras trazem cestos com flores e frutas. Além delas, entre os personagens que fazem parte dos cordões, geralmente há uma figura cômica que retrata ou um anjo, ou o diabo, ou uma borboleta, ou uma cigana, ou uma camponesa. Tem também a presença do Velho, ao qual são atribuídos diversos apelidos: equivalente a um palhaço de circo, comanda as jornadas (cantos das pastoras), as piadas e as improvisações, não se vinculando a nenhum dos cordões na coreografia. No que concerne à figura do Velho, ela surge como uma dramatização do poeta pernambucano do século XIX, Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Ele compunha as letras dos Pastoris enquanto o major Patrício José de Souza as musicalizava. Suas atividades musicais destinavam-se à Sociedade Natalense fundada no Recife em 1840, com a finalidade exclusiva de representar Pastoris durante o período natalino: “Entre os dois cordões, um 147 homem já idoso, de barba e cartola, metido num fraque sovado, grita agitando as mãos: “Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Sou conhecido nestas paragens. Sou Modesto Francisco das Chagas Canabarro!” (T 12, p. 184). Dentro dessa concepção, a cena do Pastoril, no romance, inicia com a representação, na praia, da evolução de uma roda de metal com oito raios, enfeitada com fitas coloridas e cheia de guizos. Na sequência, quatorze meninas, com idade entre dez e treze anos, cantam e dançam ao ritmo da batida de seus pandeiros. Cecília é cercada pelos dois cordões do Pastoril, sete figuras de um lado, com longas saias vermelhas; sete de outro, com longas saias azuis. O uso de tais cores advém de uma tradição popular de fundo religioso no Brasil em que cristãos são caracterizados pela cor azul e mouros, pelo encarnado. O cordão encarnado é dirigido pela Mestra e o azul pela Contramestra46. O homem, quando participa, exerce papéis secundários. Na tradição do Pastoril, existe uma pastora que se situa no meio dos dois cordões, cujo vestido tem a metade colorida de azul e a outra metade, de vermelho. No Pastoril de Avalovara, Diana é a personagem central que interage com Cecília, transparecendo uma relação de harmonia e equilíbrio. O entrelaçamento das pernas de Diana e de Cecília, em meio aos cordões do Pastoril, sugere uma profunda semelhança entre ambas47. Diana, vestida de azul e vermelho e com um laço das mesmas cores prendendo os cabelos, por meio de seus pés e dos movimentos desses laços, estabelece o ritmo da coreografia do grupo de meninas que se intensifica com a batida de um pandeiro redondo, maior que os das pastoras, também enfeitado com fitas vermelhas e azuis: “As pernas da Diana e as de Cecília, dançando as da primeira, andando as da segunda, trançam-se.” (T 12, p. 184). “Seus pés e o grande laço vermelho e azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto.” (T 17, p. 266). O término da apresentação ocorre na praia com as loas e com a despedida final por meio de canto e dança. Os textos dessas canções mantêm o mesmo caráter religioso de exultação pelo nascimento e pela infância do Menino Deus: As pastoras marcando o compasso da música com os pés e os pandeiros enfeitados com fitas, iniciam uma loa. Vinde, vinde, moços e velhos, vinde todos apreciar, como isto é bom, como isto é belo, como isto é bom e bom demais. [...] Com as pastorinhas, segue-nos, acompanhando a loa uma pequena orquestra: clarinete, pistão, bombardino, bombo e um trombone rouco. (T 12, p. 184). 46 Andrade, 1959, p. 359 diverge de Alvarenga afirmando que o cordão azul é dirigido pela Mestra e o encarnado pela Contramestra. Para Alvarenga e outros estudiosos do pastoril, o cordão encarnado é dirigido pela Mestra e o azul pela Contramestra. 47 Leny da Silva Gomes (1998) mostra, em sua tese de doutorado, Avalovara: uma cosmogonia literária, uma reflexão relacionando Diana com a mitologia. 148 Cecília desempenha aqui um papel mediador entre dois ciclos da vida de Abel, fazendo-o avançar para outra etapa, cuja finalização somente será possível com a . Sua androginia, associada ao deus Jano, com suas duas faces simétricas, insere-na em um ponto de transposição de um passado caracterizado pela mudez de Roos e o silêncio de suas cidades para um futuro com a e seu corpo repleto de sons, letras e palavras. Cecília é a mulher do povo e traz esta nova experiência para Abel dentro de um processo de humanização. O Pastoril é o símbolo musical dessa proximidade com o povo humilde e desassistido, mas fiel às suas tradições e às suas crenças. Mércia Pinto (2002) realizou uma pesquisa no Nordeste do Brasil em busca de significados e interpretações do Pastoril, desde o período colonial (século XIX) até o surgimento da televisão no século XX, envolvendo aspectos históricos, sociológicos e antropológicos. Nela relata que a divisão em duas alas reforçava a ideia de uma nítida separação entre grupos sociais em que as classes mais humildes, simbolizadas pelas pastorinhas vestidas de vermelho, deveriam desenvolver um espírito de resignação alegre e submisso, ao mesmo tempo que as classes mais ricas, simbolizadas pelas pastorinhas vestidas de azul, deveriam demonstrar espírito de caridade e benevolência. Alude que, em algum grau, estaria embutida nessas festividades uma postura patriarcal dominante onde, em muitas situações, os promotores dessas celebrações se aproveitavam da fragilidade e do abandono social de muitas das pastorinhas. Nos bordeis, as prostitutas tomam o lugar da Virgem Maria, conferindo masculinidade aos homens. O lado feminino emerge e é prêmio, objetivo de desejo. Os pastoris mostram duas faces da educação feminina e duas funções para os homens: escolher moças para casar e outras para o prazer. (PINTO, 2002, p. 76). As contradições de camadas sociais extremamente desiguais e fortemente presentes na sociedade do Nordeste brasileiro se faziam sentir, em certa medida, nas representações do Pastoril, em que a luta entre mouros e cristãos retratavam, também, um processo de desumanização presente na relação entre classes opostas. Na sua pesquisa, Pinto (2002) aponta para a influência que os instrumentos eletrônicos tiveram na evolução dos pastoris. [...] as orquestras dos eventos eram constituídas em grande maioria por músicos de banda [...] Até a década de 50, as orquestras que animavam bailes, night clubs e desfiles carnavalescos tinham majoritariamente músicos de corporações militares. Toda rádio formava sua big band e facultava um mercado paralelo aos profissionais. 149 A hegemonia foi ameaçada nos anos 50 pelos instrumentos eletrônicos. (PINTO, 2002, p. 92). A evolução dos instrumentos na década de 1950 evidencia um processo de transição da tradição para a modernidade em nossa música, o que se refletiu no Pastoril. A conexão do homem com o rádio, por meio da voz de um animador, torna-se uma espécie de confirmação da existência de si mesmo. É pelos canais de rádio que se difundem as músicas populares típicas que trazem algum alento para o povo. Em nota de rodapé, PINTO (2002, p. 100) enfatiza que “[...] nas rádios do nordeste, os programas de auditório tiveram nos pastoris um de seus suportes mais importantes. Muitas de suas pastoras partiram depois para formar conjuntos menores”. Traz como exemplo, o trio “Paulo Cirino e suas Pastoras”, famoso em Fortaleza aos anos 50 e 60, e, nas rádios do sul, “Ataulfo Alves e suas Pastoras”. Lembra que na era da TV, o Chacrinha dizia que “[...] a inspiração de seus programas eram os pastoris de sua infância.” (Idem). O período em que Osman Lins escreve o Avalovara contempla, na música brasileira, a época da Jovem Guarda, das Canções de Protesto, da Bossa Nova e da MPB nos meios culturais mais elitizados. As jazz-band proliferaram-se com maior intensidade no Rio de Janeiro, apresentando um repertório musical e tendo como base uma música fortemente influenciada pelo jazz norte-americano e que conquistou a preferência da nova classe média. Foi justamente da fusão deste jazz com o samba dos morros cariocas que surgiu a Bossa Nova, com sua típica batida sincopada criada por João Gilberto. Mais um estilo musical vindo de fora que abrasileirou-se, assumindo feições nitidamente nacionais. Osman Lins, na busca da identidade nacional, transpõe o Pastoril para algumas de suas obras. No livro infantil O diabo na noite de natal, o Pastoril, festa do sagrado natalino com uma temática litúrgica cristã, funde-se ao profano carnavalesco da festa, história esta que assemelha-se, em muitos pontos, com a do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Veremos, aqui, uma porção de personagens, quase todas conhecidas. Vocês devem tê-las encontrado no cinema ou em outros livros. Há também um grupo de meninas que os leitores, se moram, por exemplo, em São Paulo ou no Amazonas, decerto não conhecem: as pastorinhas. O pastoril, do qual elas fazem parte, é um brinquedo, um folguedo popular, muito conhecido no nordeste do nosso país e comum na época do Natal. Compõe-se de dois “cordões”: o encarnado e o azul. Usam as pastorinhas a cor do seu cordão. Dançam e cantam, batendo pandeiros, canções que ninguém sabe mais quem compôs. Essas canções ou loas são simples: algumas muito bonitas. Uma das figuras do pastoril veste-se de encarnado e de azul e pertence aos dois cordões: é a Diana. [...] As pastorinhas começaram a cantar: “Meu São José/dai-me licença/para o pastoril entrar/Viemos/para adorar/Jesus nasceu para nos salvar“. (LINS, 2005, p. 5). 150 O desenrolar do enredo trata da festa de Natal, organizada pela boneca falante chamada Lúcia, e acontece na casa de uma fazenda. As pastoras, estrelas da festa, entram em conflito com o mal, o Diabo, que aparece de intruso na celebração natalina, tumultuando a comemoração como represália por não ter recebido o convite. Para tal, são convidadas personagens das lendas folclóricas, de histórias em quadrinhos e de livros da literatura infantil, como o Negrinho do Pastoreio, o Super-Homem, o Capitão Gancho, o Chapeuzinho Vermelho, o Amarelinho, a Gata Borralheira, a Cinderela, o Mangaba, a Nossa Senhora (Virgem Maria) e seu filho (Jesus), que comparecem ao evento sem o convite para salvá-los da presença indesejada do Diabo. Em O pentágono de Hahn, uma das narrativas de Nove, Novena, surge nos ares, entre os papagaios, o papagaio de cores azul, rubro e laranja, enorme, belo e diferente dos demais, sendo utilizado para anunciar ao povo o início do espetáculo do Pastoril. O papagaio arquitetado pelo empresário do circo, juntamente com a elefanta Hahn, divide as atenções do público e suscita na criança a vontade de construir algo semelhante. Dentre os papagaios que, nos ares infestados de varíola, planam serenos, surgiu a Novidade, o Acontecimento. Um pastoril famoso divide com Hahn as atenções das pessoas. […] Num estrado alto, de madeira, iluminadas por dois lampiões a carbureto e lanternas esféricas de papel colorido, as pastoras cantam, fortemente pintadas, laços nos cabelos, pandeiros rodeados de flores artificiais, boleros vermelhos ou azuis, com medalhinhas de ouro e bordados de vidrilhos, saias bem curtas e meias compridas, de seda, apertadas nas coxas. Usam brincos de argola e sinais pretos no queixo, na testa ou junto do nariz. Correntes de papel crepom, também azuis e encarnadas, cruzam-se sobre o coreto, unindo uma lanterna à outra. A orquestra: um pífano, um banjo e um triângulo. Sendo grande o berreiro da assistência, quase não ouço os instrumentos e as vozes roucas das pastoras. Ora, o empresário, nos dias em que as dançarinas-cantoras se apresentam, descobriu este modo festivo de anunciar ao povo o espetáculo: às quatro e meia, solta um papagaio azul, rubro e laranja, por ele construído e que não imita os outros, nenhum outro. É enorme, régio, rosnador, em mais de um plano, cheio de festões, parecido com um peixe, um gavião, um guarda-chuva, um porta-bibelôs, uma girândola. Encanta-me. Decidi fazer um papagaio assim, formas novas, diferentes dos outros e ainda mais alegre. Vou fazê-lo. (LINS, 1994, p. 43). Osman Lins traz para o O pentágono de Hahn a riqueza do processo de criação literária por meio da metáfora do papagaio inédito, diferente e criativo, que participa do espetáculo, envolvendo a representação sagrada e profana do Pastoril. O Auto Pastoril, em A rainha dos cárceres da Grécia, é associado pelo autor do diário-ensaio à festa do boi, em que o animal morre e ressuscita, contando com recursos dos instrumentos musicais, pessoas, animais e seres fantásticos. 151 Imagem também enigmática da festa é a do “boi com fitas verdes nos chifres”, decerto um particular do Cavalo-Marinho, auto pastoril do Nordeste, que o intolerante cronista dos costumes P. Lopes Gama, no século passado, chama “agregado de disparates”. As muitas figuras do auto — gente, animais e seres fantásticos — cantam, bebem, dançam e correm, oito horas seguidas. Afinal morre o Boi, “sem que nem para que”, diz Lopes Gama, e ressuscita por via de um clister. Dispenso-me de indicar a equivalência, nesse breve passo do romance, entre os instrumentos musicais e as vozes de comando ou entre os fogos de artifício e as lanças, elementos com a identidade à flor do nome e obviamente associados à oposição festa/guerra. (LINS, 1976, p. 130) . Aqui o romance de Julia Marquezim Enone aborda a história, a guerra, a festa, o Boi, o padre Lopes Gama, os instrumentos musicais e as vozes de comando envolvendo o autopastoril48. Nos temas O, E, R e N, constatou-se a existência de dois eixos musicais associados à e que se constituem em elementos antagônicos e ao mesmo tempo complementares, imprescindíveis para o equilíbrio e para a vitalidade do enredo. Essa perspectiva abriga, sob o mesmo teto, o relógio, com sua presença sóbria e o soar elegante dos fragmentos da sonata de Scarlatti, e a vitrola, esta tocando a ritmada e exuberante cantata Catulli Carmina de Carl Orff. Coexistem dois estilos estéticos distintos representados pela melodia contida e equilibrada da sonata e pela letra lasciva da composição musical um tanto primitiva da cantata de Orff, surgindo como símbolos inseparáveis do sagrado e do profano. A peça de Orff aparece nos capítulos dos temas O - História de Re Abel: encontros, percursos, revelações, E , nascida e nascida, e . Os e Abel: ante o Paraíso e N - Abel: o Paraíso como música de fundo para o enlace voluptuoso dos amantes Abel e ritmos ternários e vibrantes da introdução da cantata são produzidos por um conjunto instrumental de quatro pianos e percussão (quatro tímpanos, castanholas, xilofone, xilofone tenor, dois glockenspiel, metalofone, litofone, maracás, três pandeiros, triângulo, bombo, três pratos, címbalo, tantã ou gongo). A acentuada ritmicidade resultante de um vigoroso ostinato tocado pelos pianos cria uma atmosfera licenciosa e primitiva em diversos cenários sonoros, compatível com os momentos amorosos que envolvem os dois protagonistas. A cantata Catulli Carmina inicia com uma introdução denominada de Praelusio (Prelúdio), seguida de três atos cênicos constituídos de doze partes (5+2+5) e finaliza com o Exodium (Epílogo). Na pesquisa realizada no IEB/USP, no dia 22/10/2014, encontrei a carta de Osman Lins à Maryvone Lapouge, tradutora da publicação de A Rainha dos Cárceres da Grécia (La Reine dès Prisons de Grèce), na França, datada de 03/01/1978. Nela, Osman Lins explica a nota 130 para o auto pastoril: “Inútil. Dispensável. Já há no texto uma explicação completa”. Arquivo do IEB: OL-LIT-RCG-091. 48 152 A parte introdutória, o Praelusio, vale-se de um texto poético do próprio Carl Orff. Os versos mostram um diálogo entre rapazes e moças, por meio do qual explicitam seus desejos amorosos, sendo observados por um grupo de anciãos que, a certa altura, passam a ridicularizar a crença no amor ingênuo e eterno manifestada pelos jovens. Um coro repete incisivamente ‘Eis aiona' (para sempre) acompanhando o exaltado ostinato dos pianos e da percussão. No romance, os termos em latim Eis aiona e Tui sum (a ti pertenço) aparecem repetidas vezes no tema O - História de , nascida e nascida, narrado sob a perspectiva da . O soar da cantata de Orff tece um pano de fundo para o relacionamento amoroso entre Abel e a , estabelecendo uma interação entre narrativa cênica e música e, portanto, de alusão à inseparabilidade entre espaço e tempo: “Solta Abel as presilhas da meia e desnudame [...] A penumbra da sala parece iluminar-se com a entrada imediata do coro. Eis aiona! Eis aiona! Tui sum.” (O 6, p. 35). A parte central utiliza um texto com doze poemas do poeta romano Catulo, os quais exploram a temática do amor e do desejo entre um jovem apaixonado, o próprio Catulo, e uma bela mulher, Lésbia, esposa de um cônsul romano. Esta, assediada pelos homens em virtude de sua beleza e sensualidade incomuns, menospreza o cortejo de Catulo que fica inconformado pela falta de reciprocidade da mulher amada. O tema do Praelusio (prelúdio) retorna na parte final da cantata, o Exodium (Epílogo), novamente relatando o ímpeto incontido dos jovens, que, desdenhando os conselhos de prudência dos anciãos e suas zombarias sobre o amor, dão prosseguimento aos seus intentos amorosos. O tema da cantata de Orff explicita polaridades que convivem, construindo uma síntese de opostos em equilíbrio: anciãos e jovens, amor e razão, paixão incontida e desdém. A estrutura da cantata revela simetria, coesão, portanto, equilíbrio, em que um invólucro formado por um prelúdio (introdução) e um epílogo encapsula três atos também simétricos. Na mesma paisagem sonora onde Abel e a eternizam o amor metafórico, faz-se ouvir, paralelamente à cantata de Orff, a introdução da Sonata K462 para cravo, de Scarlatti, cuidadosamente decomposta por J.H. em treze fragmentos os quais, arranjados em uma ordem aparentemente desconexa e incompreensível, soam nas horas cheias de seu inusitado aparato de medição do tempo. Os momentos mais íntimos do envolvimento amoroso entre Abel e a ocorrem nos temas E e N, quando a narrativa se desdobra em diversas molduras de cenários sonoros, que fazem alusão aos sons originados do movimento do pêndulo do relógio de J.H. e do soar dos 153 fragmentos da sonata de Scarlatti produzidos pelos carrilhões do mesmo relógio. “O rumor compassado e discreto do relógio ao lado do sofá ressalta o ritmo da respiração.” (E 5, p. 288). O relógio - desligada a serra mecânica - soa a nosso lado e nós nos desprendemos: ouço claramente o carrilhão, descontínuo. [...] Também a minha voz não me obedece e eu não a reconheço enquanto admito que o magnífico relógio soa de , dá horas modo bem diverso do que estou habituado a ouvir. Sempre, acrescenta de um modo incongruente e não se tem notícia de que alguém ouvisse toda a sequência de notas musicais, dispersas – diz-se – nos seus engenhos de som. (E 6, p. 291). O relógio dialoga com as passagens da cantata Catulli Carmina, de Carl Orff que, com seus incisivos ostinatos a dois pianos, também acompanha o casal de amantes em sua trajetória rumo à fusão com o tapete paradisíaco. O relógio dá vida ao tempo com o soar dos fragmentos da introdução da sonata de Scarlatti. Ambas as músicas, em estilos completamente distintos, coexistem em um mesmo ambiente e em momentos coincidentes, mas se separam no limiar da transição entre o tempo de aprendizado e o tempo que precede a morte e a realização dos amantes: a cantata soa vigorosa em uma representação do lado profano dos encontros entre Abel e a : Soam guizos em um ponto qualquer do edifício ou no long playing posto por . Que significa essa música, ardorosa desde a abertura e destoando, com seu coro violento, seus timbales rebeldes, desta sala formada para exprimir aceitação e continuidade? Devo entender que tão ríspida cantata, moldada no que há de mais elementar no homem e governada, entretanto, por uma inteligência lúcida e sensível, constitui uma espécie de norma - ou de aspiração - para o rito carnal que iniciamos? Peças dos nossos vestuários, arrancadas com crescente impudor e uma violência que parece imitar as vozes da cantata, jazem em vários pontos, sobre móveis ou no piso, algumas nos limites da sala. (E 7, p. 297). O piano, com seus acordes sonoros e ritmos vibrantes, evoca a vida que renasce no encontro amoroso dos amantes. O texto da cantata se funde na linguagem verbal do romance numa sintonia notável entre linguagem musical e linguagem literária, que constroem as cenas de amor entre Abel e a : Eis aiona, eis aiona. Assim como um tecido poroso absorve a umidade, vai o meu corpo bebendo, permeável, os desenhos do tapete. (O7, p. 40). [...] eu, Asteróide cindida e unificada, eu, eu, dual, eu, una. Morde me. Basia me. (O7, p. 41). Proclamam os velhos a transitoriedade das paixões, immensa stultitia, mas os jovens contestam ferventes de esperança. (O8, p. 44). 154 Os efeitos sonoros das melodias e dos acordes da cantata, provindos da vitrola, e dos sons da sonata oculta no relógio, contribuem com as descrições cênicas, visuais e auditivas dos cenários de Avalovara. Percorrendo as diversas passagens do romance, percebe-se que a vibração sonora da música traz uma mensagem de agregação, de ordem cósmica e de equilíbrio, à semelhança das vibrações microcósmicas de um mundo impregnado de energia, no qual habita a vida em todas as suas dimensões. A música, no ciclo temporal cuidadosamente planejado ao longo do enredo de Avalovara, tem, nos saltos rítmicos, uma reprodução do pulsar da vida proporcionada pela respiração dos amantes Abel e a e pelo palpitar de seus corações, rumo ao encontro final amparado pelos pianos da música de fundo de Catulli Carmina, de Carl Orff, e pelo soar dos trechos da Sonata K462 para cravo, de Scarlatti, advindos do sofisticado relógio musical de J.H. Sons do relógio e da cantata misturam-se com os da conjunção carnal dos amantes num vislumbre do simbolismo profano e ao mesmo tempo sagrado do ato perfeito que conduz Abel e a mulher feita de sons e de palavras ao idílico tapete: “(Os coros arcaicos e os versos latinos do long playing, o compasso do relógio, nossas palavras gastas e mesmo assim verdadeiras, beijos mudos, gritos contidos, tilintar das pulseiras nos seus braços.).” (E 8, p. 302). Ríspidos sons urbanos se mesclam com as sonoridades das peças musicais tocadas pelo relógio e pela vitrola enfatizando a inter-relação inseparável entre o mundano e o espiritual: “Posso ouvir, através das vozes da cantata e da grande bateria associada às vozes, a marcha do relógio, a serra elétrica e murros numa porta, descontínuos.” (E 10, p. 314). Finalmente, aproximando-se o clímax, a cantata, contraparte profana desse rito carnal, silencia para dar espaço ao instrumento sagrado, o relógio de J.H. Dos treze fragmentos da introdução da sonata de Scarlatti, doze se subordinam a uma lei de agrupamento sequencial numericamente complexa e original. Somente um dos fragmentos, o décimo segundo, que deveria tocar de cinco em cinco horas, está sujeito a um defeito propositadamente introduzido no mecanismo do relógio, fazendo com que, provavelmente, a audição integral daquele trecho musical jamais ocorra nos raros instantes reservados para esse evento. Aqui, a impossibilidade de prognosticar o destino humano se confirma com a imprevisibilidade conferida pela falha mecânica intencionalmente planejada por J.H. para eventualmente ocorrer em seu misterioso relógio: “[...] exaure-se a cantata e cresce, entre súplicas e gritos, o compasso do relógio, Julius os engenhos conjugados de som, uma criança e um cão caberiam na caixa de madeira, Heckethorn.” (E 16, p. 347). “[...] o vigente o esperado o temido pêndulo relógio dois minutos 155 e meio para as cinco. (E 17, p. 353). O enlace dos amantes encaminha-se para o instante final de sua busca consagrada no tema N: [...] armam-se os martelos do relógio o pêndulo um sistro ou alaúde eu mais e mais o teu corpo mais e mais a voz de grande e rebelde multidão [...] enfim alcançado o limite supremo canta o relógio e nota após nota flui a melodia fraturada na máquina e conhecemos o que poucos ou ninguém, vivam o que viverem...[...] os martelos do relógio ferem precisos as cordas vamos de patamar em patamar e a Cidade, imóvel, move-se, aproxima-se com lentidão, a armação Julius Heckethorn vai formando a sequência a harmonia reúne-se o disperso e nós rejubilados a vertigem o voo galopam saltam e lançam vozes os animais que nos habitam [...] bala na agulha o Portador falha no relógio o penúltimo grupo da sequência [...]. (N 2, p. 356-357). Atinge-se, neste ponto, o momento apoteótico do romance, a revelação final, a realização da sabedoria pela integração com as palavras, a fusão com tapete e sua natureza excelsa, em que homem e mulher se reúnem em um ser único, tal qual o ser andrógino, representado também pelo casamento alquímico entre o sol e a lua. Uma sinfonia de sons alcança o apogeu quando se mesclam as vozes dos amantes e da multidão de palavras presentes na com os sons da introdução quase completa da música de Scarlatti e dos seres do tapete paradisíaco. A utilização dos doze fragmentos da peça musical de Scarlatti, que se submetem à lei de formação dos agrupamentos e que integram o sofisticado mecanismo do soar das horas cheias do relógio de J.H., encontra paralelo no dodecafonismo de Arnold Schoenberg, em que os doze sons da escala temperada ocidental são dispostos em uma sequência melódica de tal sorte que nela não seja possível reconhecer qualquer traço de tonalidade. A aparente aleatoriedade do agrupamento de segmentos da sonata lembra um pouco a também aparente incoerência sonora das melodias dodecafônicas. Mas o processo de conformação melódica, a partir dos métodos desse sistema de composição, deve observar leis bastante rigorosas, da mesma forma que as sequências das partes fracionadas da sonata. Isto leva os leitores de Avalovara a uma reflexão sobre a dicotomia entre caos e ordem no Universo e sobre as leis que o regem, de forma implacável, comandando o pulsar rítmico da criação. Entretanto tais leis, no caso do ser humano e seus destinos, abririam uma margem de possibilidades para o imponderável, o que é representado pelo defeito proposital introduzido no mecanismo do relógio de J.H. Desta forma, empreende uma busca pelo equilíbrio e pela ordem materializada no projeto de seu relógio musical. Mais do que um simples instrumento de marcação do tempo, a complexa lei que rege a aglutinação dos segmentos musicais da sonata de Scarlatti, simultaneamente ao defeito introduzido no sistema mecânico do relógio, reproduzem, na 156 complexa máquina do tempo idealizada por J.H., a conjugação da ordem e da desordem presentes tanto no macrocosmo como no microcosmo. O rigor nos processos de composição musical se fazia presente no período da história da música em que viveu o compositor italiano Domenico Scarlatti, quando ocorre a transição entre o barroco e o classicismo. Durante a prevalência deste estilo musical, buscava-se, de forma quase obsessiva, a perfeição nas composições, que se manifestava na simetria, no equilíbrio, na adoção de regras bem precisas para as elaborações de sequências sonoras verticais (harmonia) e de fraseados. No romance, o anseio pelo equilíbrio absoluto manifestase na escolha, pelo personagem músico, de uma das sonatas de Scarlatti como peça musical que iria dar vida ao seu inusitado relógio. Domenico Scarlatti compôs quinhentos e cinquenta e cinco sonatas para cravo, a maior parte em estrutura binária. Sua música segue um sistema meticuloso de composição, com repetições cuidadosamente planejadas e ritmos precisos, sem variações dinâmicas significativas. O estilo musical das sonatas de Scarlatti assemelha-se ao bater sistemático de um relógio. A Sonata K 462 vem a ser uma escolha apropriada para a musicalização do relógio, já que o somatório dos algarismos que a identificam (4+6+2) resulta no número 12: a hora máxima de todos os relógios para compor a metade de um ciclo diário de tempo. James Sea Dean (1983) observa que o relógio fictício de J.H. toca segundo uma progressão harmônica com a sequência de acordes sobre os graus I, IV e V, mais rica se comparada à sequência de acordes da grande maioria dos relógios de carrilhão: I-V-I, como toca o Big Ben de Londres, provavelmente o relógio mais famoso do mundo. 5.2 O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN E A MÁQUINA CHILREADORA DE PAUL KLEE O relógio de J.H. tem uma expressiva representatividade em Avalovara tanto como elemento estruturador do romance quanto no que se refere à sua significância musical no contexto da narrativa. Esse relógio reaparecerá em outros temas O - História de e nascida, R eNe Abel: encontros, percursos, revelações, E – a , nascida e Abel: ante o Paraíso, . e Abel: o Paraíso, pontuando no espaço-tempo a relação amorosa de Abel e a Consiste em um dispositivo mecânico sofisticado e de aparência discreta, porém refinada, cujo mecanismo de demonstração das horas cheias foi construído a partir de complexas combinações matemático-musicais, as quais refletem a vida do personagem e o modo como a 157 percebia. O aparato está impregnado de uma arquitetura na qual música, marcação de tempo e aleatoriedade sintetizam a ordem cósmica e o curso da vida em seu aspecto imprevisível. Os relógios – escreve J.H. – têm estreita relação com o mundo e o que representam ultrapassa largamente a sua utilidade. Desde a origem, opõem ao eterno o transitório e tentam ser espelho das estrelas. Mais ainda: exprimem em números simples - tão simples que, ingenuamente, julgamos compreendê-los - o ritmo impresso desde a origem à marcha solene e delicada dos astros. Vede os relógios de Sol. Pode-se, após alguma reflexão, continuar a crer que Anaximandro de Mileto, quando fabrica quadrantes, quer apenas facilitar a divisão do dia em horas? O que ele pretende é converter a luz solar, seu giro harmonioso, numa flor geométrica que feneça ao anoitecer. (P 1, p. 143). A visão da conexão entre micro e macrocosmo leva J.H. a sugerir uma relação mais profunda entre relógios, natureza e cosmos. Para ele, os aparatos mecânicos teriam um significado muito mais abrangente do que a simples busca pela qualidade do delicado mecanismo de precisão. Ao citar o relógio solar de Anaximandro de Mileto, o narrador compara-o a uma flor geométrica feita do contraste entre luz e sombra, que nasce ao amanhecer e morre ao anoitecer. A exaltação a uma articulação coordenada entre mecanismos construídos pelo homem e o movimento do sol para reproduzir, na narrativa, uma flor em forma de sombra, coaduna-se com o pensamento ecocrítico de integração homem/natureza. A intenção de construir um relógio incomum é um projeto de Julius desde criança. Fascinam-lhe a música e a medição do tempo. Desde cedo manifesta preferência pelo cravo. Define-se por um relógio que funcionará aos saltos, pois para ele assim funciona o universo: com ritmicidade, em saltos cíclicos. Sobre tal escolha o narrador assim expõe: É, portanto, fundado em precedentes vários que abandona a ideia arcaizante da água ou do azeite como princípio motor do seu relógio, e opta em definitivo por um mecanismo a saltos. O tempo, flua ou não, repudia as interrupções, os seccionamentos. Contesta-se, no entanto, a tendência do homem a imprimir-lhe um ritmo? Este ritmo surge - é conquistado - com o relógio a saltos. A saltos move-se no corpo o sangue, a saltos atuam os pulmões, move-nos a saltos, mesmo as aves de mais tranquilo voo a saltos se deslocam, nadam os peixes movendo, a saltos, as barbatanas, dia e noite são saltos, ir e vir, passar e ressurgir, sim e sim, não e não, e a própria consciência que temos de existir não é contínua, toma-nos e foge, vez por outra assalta-nos, a saltos. (P 6, p. 280). Na narrativa, é consolidada a relação entre relógio, tempo e vida e entre marcação do tempo e o universo inexpugnável, estabelecendo, mais uma vez, um relacionamento indissociável entre homem (microcosmo) e o mundo (macrocosmo), entre o pulsar rítmico da vida e os movimentos cíclicos do universo. 158 Um erro ambicionarmos, para a representação do tempo, engenhos contínuos, nunca interrompidos, sem pausas, renegando a nossa natureza, que pulsa como pulsam os pulsos - e que tudo corta, como corta o pensamento, em palavras, em sílabas, em letras. Acentua ainda sua decisão: a presença, no mecanismo do relógio a saltos, do cabelo e das molas, corações metálicos da engrenagem, peças em espiral e, a seu modo, figurações palpáveis do tempo, tão claras qual se fossem, da palavra tempo, a representação ideográfica. (P 6, p. 281). O tempo no romance se apresenta como o fio condutor da vida e da morte, definidor por si só dos compassos musicais que, em suas linhas melódicas e rítmicas, carregam o destino dos personagens em seu caminho na busca da realização espiritual. O relógio de J.H. se mostra como um ente controlador, testemunha implacável, cujo soar das horas vai selando a trajetória dos amantes, Abel e a , rumo à fusão com o tapete mítico. A morte de ambos é a libertação das amarras do mundo e da dualidade. Neste instante, tocam quase completos os fragmentos da Sonata K 462, de Scarlatti, faltando apenas o décimo segundo trecho, simbolizando, com isto, as incertezas que permeiam a transitoriedade da vida humana. No tema metaliterário S - A Espiral e o Quadrado, o autor descreve, detalhadamente, a estrutura construtiva de sua obra tendo como base o palíndromo de Loreius. A espiral superposta ao quadrado mágico do palíndromo aparece como uma representação perfeita para o tempo, um elemento indispensável para a montagem de mecanismos destinados ao funcionamento de relógios mecânicos. A visão concentrada na espiral produz uma sensação visual de movimento ininterrupto – sem começo e sem fim – tal qual a infinitude do tempo. A conexão espaço-tempo se concretiza por intermédio da junção da espiral com o quadrado mágico do palíndromo em uma simbolização perfeita do universo em quatro dimensões infinitas (três dimensões espaciais e mais o tempo). O contexto da vida fragmentada de J.H. está refletida no projeto de seu relógio com trechos musicais truncados, à primeira vista desconexos, da sonata de Scarlatti. A possibilidade de que jamais seja ouvida a totalidade da introdução daquela peça musical revela a intenção do personagem músico de por em evidência o paradoxo entre as leis que regem o cosmos e a provável insubmissão do destino humano a estas mesmas leis. A confrontação entre o incalculável e o previsível, implantados por J.H. em seu mecanismo de medição das horas, reforça a intenção do narrador de explicitar a simultaneidade entre ordem e aleatoriedade: Também isto é visado por Julius: colocar as pessoas, frente aos sistemas de som do seu relógio, na mesma atitude de perplexidade que se sofre perante o Universo. Ainda uma intenção o orienta, representar o que há de aleatório em nossas existências. Sabemos, todavia, que o relógio de Julius Heckethorn, ou melhor, seus aprestos de som, obedecem a um esquema rigoroso. Sobre este rigor, assenta a ideia 159 de uma ordem no mundo. Como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e de aleatório, inerente à vida? (P 8, p. 301). Por outro lado, pode-se vislumbrar no relógio de J.H. uma obra de arte que tenciona imitar o universo em todas as suas dimensões, pois em sua finitude incorpora uma tentativa de imitação do andar do tempo e de todas as suas implicações confinadas em uma máquina inventada pelo homem, que procura reproduzir, nas limitações do sofisticado aparato mecânico, a infinitude do tempo e do espaço. O quadro de Paul Klee, a Máquina Chilreadora, traz à tona um caleidoscópio de cores e de significados que encontram eco no relógio musical de J.H. A obra do pintor suíço, realizada em um período histórico de intenso desenvolvimento industrial e tecnológico, explicita o conflito entre a glorificação da máquina e a necessidade de preservação da natureza, que passa a ser vista pelos adeptos do desenvolvimentismo como um ente secundário e descartável a ser controlado pelo ser humano. O quadro expõe pássaros conectados por meio de suas patas a uma manivela que ao ser acionada pela mão humana possibilitaria o chilreado das aves. Na representação pictórica de Klee, os pássaros são criaturas vivas aprisionadas por um sistema artificial, mecânico e sem vida. A música é uma manifestação natural do homem, um produto da fala e da linguagem. Ela é uma forma natural do ser humano de expressar seus sentimentos, um meio de integração do homem com a natureza e com sua natureza mais íntima e desconhecida; é um veículo de realização da unidade com o todo. É como um pássaro que em seu voo risca nos céus uma linha cujos contornos, velocidade e intensidade do movimento das asas lembram as variações de altura, de intensidade e de velocidade da melodia. Os pássaros, em diversas culturas, sempre carregaram consigo uma simbologia: a de seres intermediários entre os homens e os deuses, mensageiros de um mundo desconectado, visível apenas para os iniciados mais avançados. Os anjos, na crença cristã, têm essa representatividade bem caracterizada, em que seres alados se comportam como guardiões e mensageiros da divina trindade celestial. Schafer adotou uma visão mais introspectiva das artes em relação ao ser humano e sua busca interior, e a música se inclui nessa perspectiva. Para ele a música é uma hierofania, ou seja, a manifestação do sagrado em toda a sua plenitude. Manifesta esta convicção quando, em uma entrevista realizada para Cadernos de Estudo por Victor Flusser, em 1992, comenta o seu projeto musical “O Lobo”, no qual se insere a apresentação de sua peça musical, Pátria: 160 Toda a música que a gente cantar será a nossa própria música. Eu deveria mencionar que todo este trabalho é um tipo de "hierofania" ou ritual sagrado na forma de drama musical. Ele tem um tema. Nós o chamamos Wolf Project mas seu nome real é "E o Lobo herdará a lua". É uma estória sobre um lobo saindo da floresta e finalmente se unindo com a princesa das estrelas, e herdando a lua como recompensa. É como mitologia. Nós estaremos criando muitos rituais durante o dia, o dia inteiro será mais ou menos ritualizado (SCHAFER apud FLUSSER, 1992). Marisa Fonterrada (2004) corrobora este viés nas obras de Schafer e fala da importância que o compositor atribui ao retorno aos ritos ancestrais, em forma de arte, para uma reintegração do homem com a natureza e consigo mesmo: uma relação de convivência harmônica sem qualquer tentativa de submissão. Na mesma entrevista, ao ser questionado sobre uma hipotética sinfonia do vento executada em uma sala de concertos, Schafer fala, explicitamente, do zelo pela coerência com seu pensamento ecológico: A única resposta que eu poderia te dar, é que talvez hoje estejamos engajados em tentar mudar a atitude das pessoas a respeito de sua relação e responsabilidade com a natureza, e que natureza não é necessariamente uma coisa que precisa se conformar com os nossos desejos. Por isso, o som natural não é algo que precisa ser moldado de acordo com a determinação humana, e com as tradições e valores humanos. Se você quer incentivar as pessoas a escutarem a paisagem sonora você cuidadosamente, deve induzir isto criando obras que se conformem mais com o comportamento da paisagem sonora natural, e menos com o comportamento da música tradicional. Em outras palavras, a "Sinfonia do Vento" não soa como Mozart ou Beethoven ou Debussy ou Stravinsky. Você sabe, esta é a nossa tradição. Uma vez que se tenha escutado tanta música ocidental, você descobre que não consegue mais escutar a natureza. Você descobre que não tem mais ouvidos para isto. Entende? Nossa música tem uma pulsação muito mecânica, dominada pelo relógio. Ela tem sido sempre assim, desde a idade média, desde anotação "mensurada", e nós criamos um tipo de universo mecânico com andamentos particulares. E o movimento inteiro de uma peça se conforma a um certo ritmo, a um certo compasso, a um certo tempo. (SCHAFER apud FLUSSER, 1992). Por meio do relógio de J.H., pode-se vislumbrar uma sociedade mecanizada, subjugada aos ritmos autoritários do tempo. Inseridos em um mundo capitalista, antropocêntrico por tradição cristã e movido pela imposição de resultados econômicos como valor prioritário, onde predomina o chavão de que “tempo é dinheiro”, perdemos o convívio com o relógio natural e também a nossa própria naturalidade. Estas influências estenderam-se por todas as esferas do comportamento humano; por conseguinte, à sua arte, à sua cultura. Sobre este tema, Schafer, ao falar a respeito de sua Sinfonia do Vento, faz uma crítica aberta a escravidão da regularidade dos ritmos implacáveis do relógio a que a música ocidental se submeteu. Sob esta perspectiva, é viável relacionar música com a trajetória de vida dos personagens de Avalovara: ambas são reguladas pelo tempo do relógio, em que pese as 161 imprevisibilidades inevitáveis que permeiam a vida humana. Isto fica evidenciado nas passagens cruciais do romance em que música e marcação do tempo caminham juntas, adornando e dando um sentido mais amplo aos cenários sonoros importantes da narrativa. Nos projetos musicais de Schafer, fazem parte do conjunto de personagens não humanos, cervos, lobos e pássaros. Ao se alinhar com a percepção de Schafer a respeito do papel da música como instrumento de autorrealização, não se pode perder de vista o significado esotérico dos pássaros e sua similaridade com o traçado das linhas melódicas e das estruturas verticais de sons. Também não se pode olvidar o duplo caráter profano e sagrado da música que, neste último caso, foi e é intensamente usada como meio de comunicação com o divino ou como meio de atingi-lo. Assim, o voo solitário de um pássaro pode ser comparado a uma monodia, enquanto que vários pássaros, voando coordenadamente, produzem um movimento de linhas sincronizadas, paralelas ou não, da mesma forma que a polifonia musical. Os movimentos rítmicos da vida reproduzem-se em formas muito parecidas em diversas esferas da natureza. Sendo a música uma percepção subjetiva da beleza das vibrações do ar que chegam ao ouvido humano, ela, naturalmente, é um produto da vida. Enquanto o pássaro, vívido, alça seu voo, livre, traçando riscos imaginários nos céus, a música é o resultado de riscos49 produzidos nos céus do livre imaginário criativo dos sons e na percepção sonora subjetiva da psique humana, uma espécie de codificação das sutis vibrações do ar em seu singelo movimento de ir e vir. Apesar de todo o conteúdo hermético do relógio de J.H., ele não deixa de ser um artefato cujo mecanismo segue leis e propósitos definidos pelo homem. Por isto, mantém semelhança simbólica com a surrealista Máquina Chilreadora, de Paul Klee, expondo a contradição entre a vida e o artificialismo da sociedade industrial, em que o sistema mecânico encarcera a música, por natureza livre e fluida como os pássaros, mas aqui intencionalmente fragmentada e sem a beleza natural da unicidade de todas as partes de uma linha melódica. A descontinuidade das partes selecionadas da introdução da sonata de Scarlatti sugere também o significado de procura, de uma vida ainda fraturada por um estado de dualidades e de indefinições. Dean (1983) afirma, em seu artigo intitulado Musical in Osman Lins’ Avalovara, que a forma binária da sonata, com seus dois temas em contraste sonoro e tonal, encaixa-se O termo “risco” guarda um sentido metafórico associado com a forma de notação da música ocidental, que é representada por meio de notas escritas em pauta ou pentagrama de cinco linhas. As variações de altura ou de frequência das notas musicais são percebidas visualmente como linhas, à semelhança de linhas imaginárias do voo dos pássaros. 49 162 perfeitamente nos propósitos de Osman Lins em destacar a convivência dos opostos como fonte de equilíbrio. Os contrários povoam o romance em vários de seus cenários relevantes: o encontro amoroso entre homem e mulher (Abel e suas três mulheres); a androginia de Cecília; o bem, representado pela , e o mal, representado pelo Iólipo Olavo Hayano; espaço e tempo representados respectivamente pelo quadrado do palíndromo e pela espiral superposta a este; o soar integral da introdução da sonata de Scarlatti e os fragmentos desta aprisionados no relógio e tocados de forma desconexa; o sagrado e o profano inseridos implicitamente na relação amorosa entre Abel e a microcosmo e o macrocosmo. e nas manifestações misteriosas do pássaro Avalovara; o 5.3 OS INSTRUMENTOS DE TECLADO E SEUS ASPECTOS SIMBÓLICOS A narrativa se desloca no tempo e no espaço, construindo fragmentos cênicos impregnados de sonoridades aparentemente antagônicas e segmentadas, mas que, permanentemente, entremeiam-se e se complementam como elos inseparáveis e indispensáveis para a coerência e a consistência da escrita e de seu conteúdo. A riqueza de detalhes visuais e sonoros constroe e reconstroe complexos cenários sonoros, conforme conceituação de Murray Schafer, formadas por sons naturais, sons artificiais da sociedade tecnológica e sons musicais, dentre os quais, neste sub-capítulo, são realçados aqueles produzidos pelos instrumentos de teclado, com seus simbolismos associados a personagens, a cenas e a aspectos estruturantes. Observa-se, em Avalovara, um movimento rítmico, à semelhança da ritmicidade da música, no sentido de trazer uma dinâmica cíclica demonstrada pelo ir e vir, movimento esse delineado com o uso da espiral, cujo traçado sobre as letras do palíndromo estabelece o esqueleto estrutural do romance. O movimento espiralado, ao qual se atribui a representação de um fluxo temporal interminável, também se faz presente no incremento da quantidade de linhas da sequência de capítulos com uma mesma letra. Há indícios do uso da espiral na composição dos grupos de fragmentos A, B e C da introdução da Sonata K462 para cravo, de Domenico Scarlatti, cuja quantidade, respectivamente crescente, inicia em três, passa por quatro e termina em cinco. J.H. é o arquiteto dessa organização de fragmentos em seu relógio musical: Sempre fiel ao cravo, escolhe, para trabalhar em seu projeto, a introdução da Sonata em fá menor (K 462), de Scarlatti. (Seria de esperar que preferisse uma passagem de Mozart, a quem não se cansa de admirar). Secciona a introdução em treze partes, 163 numera-as pela ordem e, pondo de lado a penúltima, põe-se a manipular as outras doze. [...] Firmada esta preliminar, desenha e constrói três sistemas sonoros interrelacionados, designando-os pelas três primeiras letras do alfabeto. O sistema A reúne os grupos de notas 1, 5 e 11, funcionando com os intervalos de quatro, uma e seis horas, ou seja, cumpre-se em onze horas: soa, na primeira vez em que ocorre, o grupo de notas 1; na segunda, os grupos 1 e 5 soam; na terceira, os três. Este processo acumulativo repete-se nos outros dois sistemas. Outros grupos, quatro - o 2, o 4, o 7 e o 9 -, cabem ao sistema B, cujo ciclo é de treze horas, aos intervalos de duas, duas, três e seis horas. Maior é o sistema C, que abrange cinco grupos de notas: o 3, o 6, o 8, o 10 e o 13. Também seu ciclo é o mais longo de todos, com os intervalos de quatro, três, cinco, seis e três horas sucessivamente, totalizando, portanto, vinte e uma. (P 8, p. 299). Também a visualização gráfica da escolha desses fragmentos em cada grupo dá a ideia de passagem dos traços de uma espiral. Em Avalovara destacam-se os instrumentos de teclado que surgem nas menções ao piano, ao cravo e também ao órgão. Esses instrumentos deixam suas marcas em personagens importantes, em especial na culta Roos com os sons de órgão da música barroca de André Campra, que vertem da catedral de Notre-Dame em Paris, e com os sons de cravo da sonata de Scarlatti no relógio de Julius Heckethorn que, junto com os sons do piano da cantata Catulli Carmina, de Carl Orf, preenchem o ambiente do apartamento do edifício situado na Avenida Angélica, em São Paulo, quando do encontro amoroso entre Abel e a mulher repleta de palavras, a . No universo sonoro de Avalovara, os instrumentos de teclado aparecem na narrativa como de uso tanto para a música popular quanto para a erudita. Em especial, o piano se apresenta como um símbolo de eventos importantes, tal qual um marco temporal da evolução da vida dos personagens. Os temas T – Cecilia entre os Leões, e O – História de os pianos das famílias de Abel e da , nascida e nascida, trazem , respectivamente, os quais são tocados nos períodos mais auspiciosos da vida dos personagens e se calam nos momentos de desestruturação familiar e de decadência individual. Toda a família de Abel tinha habilidades musicais e tocava diversos instrumentos. Mesmo se tratando de uma família de poucas posses, havia um piano no casarão da Gorda, no qual as irmãs de Abel, Janira e Isabel, ensaiavam músicas populares: “os dedos infantis de Janira ou Isabel no piano meio rouco” (T 3, p. 68). Seus sons preenchiam o ambiente doméstico enquanto a família ainda permanecia coesa. Muitos anos depois, Abel, junto à cisterna do chalé da família na praia dos Milagres, lança inúmeras vezes uma rede empreendendo um ritual repetitivo, com a intenção de desvendar algo que ele nem ainda compreendera. Recorda-se dos tempos em que seus irmãos 164 tocavam instrumentos diversos e que, com o passar do tempo, foram ficando somente nas lembranças: “Vozes e sons de instrumentos musicais rolam pelo declive. A flauta de Eurílio, músico precoce, Leonor com o seu bandolim [...].” (T 3, p. 68). Tais lembranças, juntamente com o espaço físico, se materializam como trechos literários no livro de Abel, com alterações de cores e da mobília do casarão de Olinda, muito provavelmente para recriar um ambiente com as características idealizadas pelo protagonista escritor. Em um dado momento, Abel vê a rede que jogara ficar rigidamente trancada nas águas lodosas e escuras da cisterna. Para desvencilhá-la, quase se joga nas águas turvas, quando algo lhe segura pela cintura. O impulso de jogar-se advém de sua ansiedade pela busca da compreensão do desconhecido, do mistério, representado pela negritude das águas da cisterna e pela impossibilidade de ver o que ali reside. A cisterna contém também o mistério da morte simbolizada pela mão invisível que o impede de jogar-se para algo de que talvez ele não pudesse mais retornar. Em seguida, profere, com seus dentes cerrados, o nome de Cecília, que ainda não conhecera, a qual associa imediatamente a Ercília, viúva do tio também com o nome de Abel, morto afogado, ao ser arrastado pelas águas revoltas. Nesse momento, recorda-se de uma passagem quando ainda criança: “Tenho nove ou dez anos e alguém me impele na sua direção. De luto, sentada na sala, junto ao piano e envolvida num halo pesado de abandono, ela me olha séria. É Ercília, a viúva do seu tio Abel.” (T 3, p. 69). O piano aparece como uma representação simbólica tanto da vida quanto da morte, mesmo que ele não esteja sendo executado. Assume o papel de aproximar classes sociais distintas, mas que têm, nesse instrumento musical, uma forma de expressão artística criadora, seja ela popular ou erudita. A confluência entre esses dois gêneros musicais é uma tônica no romance, transparecendo uma visão de unicidade pela síntese de elementos contrastantes e aparentemente conflitivos. Uma das irmãs de Abel, Isabel, casa-se com um homem vinte e um anos mais velho do que ela, de hábitos rudes e profissões incompatíveis com a delicadeza cultural da jovem esposa. O piano apresenta-se, silencioso, como uma figura referencial de uma cena em que, mais uma vez, rostos expressivos evidenciam amargura e resignação. Num cenário, o rosto sério da viúva Ercília; noutro, o da irmã de Abel, tem como figura de fundo o móvel fechado do piano. O silêncio deste instrumento musical acompanha o lado sombrio e decadente da vida dos personagens: Mesmo o rosto de Isabel, mesmo o seu, curvado sobre o piano e meio oculto entre os cabelos louros, sugerindo, aos treze anos, inteligência e mistério, reflete agora a seu modo o espesso e obtuso rosto do marido, vinte e um anos mais velho do que ela, 165 aposentado, contrabandista amador, ex-foguista de navio mercante e que se serve empurrando com os dedos a comida para o garfo. (T 8, p. 124). Aqui, a trajetória de Isabel expõe uma situação de marcante diferença de níveis culturais, em que a refinada sensibilidade musical da personagem é anulada pelo convívio com um marido inculto e insensível às requintadas sonoridades do piano. O piano East Coker é referido, duas vezes, no tema T. Em um trecho dos escritos de Abel, esse piano e os demais instrumentos musicais da família de Abel são mencionados em estado de abandono: “Deixo de mencionar os instrumentos de música negligenciados nas gavetas, o piano East Coker, os jarros pomposos, o enorme espelho entre arandelas na sala de visitas e o retrato oval de casamento” (T 6, p. 101). As lembranças de Abel sobre seu próprio passado trazem à tona a trajetória desconcertante de sua numerosa família, ao longo da qual o gradativo silenciar dos instrumentos reflete a desagregação e a degradação de seus membros: Mortos Eurílio e Estêvão; Leonor num convento da Bahia, após três noivados desfeitos; Cenira num subúrbio do Rio de Janeiro, casada antes dos dezoito anos com um dentista sem clientes, comendo o pão amassado pelo diabo (seu violino descola-se, sem cordas, numa das muitas gavetas do chalé); Augusto no oco do mundo há oito anos, sem dar notícias e sem que se saiba ao menos se ainda vive; Janira foragida da polícia, em algum cabaré de quinta classe, depois de fazer o que fez. Mudos, com o violino de Cenira, o bandolim de Leonor, o clarinete de Damião, a viola de Mauro, a flauta de Eurílio, o piano East Coker. (T 8, p. 125). O piano fechado carrega um simbolismo de reclusão, de um universo de manifestações de angústias e apreensões. Bachelard relaciona os espaços delimitados em móveis e em cofres, podendo incluirse nesta lista o espaço interno de um piano fechado, com os espaços psicológicos de cada indivíduo: “O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta.” (BACHELARD, 1989, p. 91). O piano se constitui, também, em um elo entre o passado e o futuro. Seus sons tímidos e sem brilho denotam a nostalgia melancólica de um passado cheio de vigor e alegria, para o qual inexiste a possibilidade de retorno. Naqueles tempos, a tampa do teclado ficava sempre aberta, integrando-o ao cotidiano da família. Até o gato da Gorda desliza velozmente sobre o piano, produzindo sons de glissando. Nesta passagem, o detalhe do piano aberto mostra que ele era tocado com frequência, mais uma vez em um simbolismo de expectativa de otimismo e de agregação: “(Corre entre as cadeiras da sala o gato com cabeça de macaco, escala o piano e desliza, veloz, entre os jarros de cor viva. Volta para a Gorda.)” (T 15, p. 231). 166 era professor de piano da No tema O – História de , nascida e nascida, o pai da mãe dela e se tornou afinador de pianos ao perder a audição de um ouvido; com isso perdeu, também, o emprego de violonista da orquestra e os alunos de piano. Após tantas perdas, o piano Erard permanece coberto por uma ampla toalha de brocado e sempre fechado. Os elos com o passado estão gravados em um álbum de recortes de jornais e em fotografias de renomados cantores de óperas com dedicatórias. Tendo perdido tudo o que para ele era mais precioso, lhe resta o piano como uma ponte para um mundo impregnado de sons e no qual era feliz. Nesse instrumento musical do passado, ouviam-se peças de música erudita em contraposição ao popular que era executado no piano das irmãs de Abel. O piano estabelece uma conexão afetiva entre os pais da vida representada pela desavença e a indiferença. . Seus sons concretizam um prelúdio da criação da e mais tarde, o móvel mudo e fechado, testemunha a descrença, a Meu pai [...] Sobre um piano que jamais se abre, vê-se também seu retrato [...] O rosto do tempo em que ensina piano e minha mãe é ainda sua aluna. Aí está ele, em algum ponto do tempo, corrigindo, talvez com excessiva complacência, talvez com excessivo rigor, a posição dos dedos dessa adolescente viçosa e arrebatada, com as asas do nariz sempre vibrando e que o olha com insondáveis desígnios enquanto o ouve falar de Stefania Doratti, de Del Nigro, das Corday, de Norma Bergantini (seriam estes os nomes?), personagens brilhantes, trágicas e voluntanosas como as das óperas, e com as quais ele priva, cujos perfumes sente e de quem possui fotografias com dedicatórias. (O 13, p. 90). Meu pai, em silêncio, a corneta de chifre sobre o peito, cola clichês num álbum. Sem mais acesso a atrizes e cantores que se apresentem no Municipal e não podendo abdicar por completo desse mundo, não se desfaz do piano, instrumento que jamais chega a tocar em público (na fotografia, empunha uma viola) e mantém um álbum de celebridades, com retratos cortados de jornais. (O 14, p. 96). O piano, com suas sonoridades, incorpora o papel de símbolo do passado e do presente. Seus sons vibrantes traziam um indicativo de felicidade e de plenitude e, à medida que as vicissitudes da vida recaem sobre os personagens, tanto do lado da família de Abel quanto do lado da família da , ambos os pianos emudecem. Não somente os pianos se calam, mas também os demais instrumentos. O silêncio desses revela um significado de desgraça, de insucesso, de desagregação, enquanto que o soar de seus timbres, especialmente o do piano, expressava vitalidade e alegria. O piano mudo testemunha momentos de amargura da infância da em sua vida junto aos pais, que a ela se mostram indiferentes e autoritários, e também quando almeja fugir de casa: 167 Estou junto ao piano, orgulhosa do meu vestido negro e de estar penteada. Ela se volta e ordena-me: "Venha". (O 16, p. 119). [...] vejo o piano Erard, coberto por uma ampla toalha de brocado, o piano junto ao qual minha mãe empena o seu destino, vejo a lamparina acesa no meu quarto, dentro de um copo vermelho, não há apenas o silêncio no mundo, o silêncio está em mim, no meu corpo vazio, é aterrador, eu me levanto, visto-me, salto a grade do jardim e fujo. (O 17, p. 41). O piano silente na cena em que a de uma vida de opressão e de medo: conhece Olavo Hayano surge como prenúncio Saio de junto do piano e me sento no tapete, aos pés do jovem: "Como é o seu nome?" Indago como se procurasse alguém cujos traços correspondessem aos seus ou como se apenas precisasse dissipar as últimas dúvidas de uma evidência qualquer. (O 18, p. 145). O piano da família de aparece sempre fechado, coberto por uma toalha, selando o destino para um fim cheio de incertezas e agruras e entoando um silêncio desconfortável e repleto de mistérios. Sem que ninguém mais o toque, da mesma forma que o piano da família de Abel, mostra-se como um símbolo do infortúnio, da decadência familiar e individual: “Três dias vacilo entre ficar e fugir. No terceiro, estou junto ao piano, sempre coberto com a sua toalha de brocado, estou de pé ao lado do piano, no exato ponto em que meu pai, crédulo, enleia sua aluna, sem o saber, num destino adverso.”(O 18, p. 144). [...] “Meus passos ressoam, ressoam. O piano com a sua toalha de brocado” [...]. (O 22, p. 216). Osman Lins reposiciona os valores da sociedade no romance Avalovara quanto à representatividade e à utilidade do piano, produtor de conhecimento e de status, num tempo em que só a elite o possuía. Ele cria algo novo, rompendo com o pensamento dominante na época por meio de novos agenciamentos, novas funções, novos arranjos. Em dado momento, insere o piano em uma família de poucos recursos financeiros, promovendo uma confluência da cultura popular com a cultura erudita e criando, com isto, um novo território social para esse instrumento musical. Nesse contexto, o soar do piano e também dos demais instrumentos está associado à vida, à felicidade, aos momentos de plenitude familiar e de uma convivência estruturada. O seu silêncio evoca sensações de decadência, de medo sinistro, de mau presságio e de resignação sufocada. Tanto no tema T – Cecilia entre os Leões, quanto no O – História de , nascida e nascida, e no R e Abel: encontros, percursos, revelações, essas realidades familiares estão inseridas em contextos sociopolíticos de conflitos e de opressão, que refletem o momento histórico relacionado à ditadura militar e aos problemas sociais e fundiários que, a partir da década de 60, passam a assumir dimensões significativas no pais. 168 Os sons e o silêncio do piano revelam atmosferas psicológicas associadas às circunstâncias no tempo e no espaço dos personagens. São como vozes, mudas ou não, que falam por eles e externam a interioridade de cada indivíduo frente às vicissitudes da vida. Além disso, esse jogo entre som e silêncio pode ser pensado como um ato intencional do autor para democratizar a expressão narrativa em um antagonismo à ditadura em todos os níveis e que, principalmente, se concretizava com o autoritarismo da censura do regime militar no Brasil durante o período mais fértil da produção literária de Osman Lins. No que se refere às manifestações sonoras do piano como representação de estados de espírito dos personagens, cabe mencionar o pensamento de Eliot (1921) sobre a “despersonalização do sujeito-poético”, segundo o qual o poeta não seria um indivíduo a expressar unicamente suas emoções, mas um receptáculo de diferentes vivências, da tradição, de sensações do presente, de frases, de partes desconexas, aglutinadas em um todo coeso dentro de sua obra de arte. Quanto mais perfeito o artista, mais distanciado se torna de si, constituindo-se, assim, em um porta-voz de experiências e impressões importantes para os seres humanos. Não é ele um simples descobridor de novas emoções ou um irradiador de sua própria personalidade, mas um indivíduo que se propõe a resgatar emoções e vivências cotidianas presentes na coletividade. As reflexões de Eliot podem ser estendidas para a análise de Avalovara, na medida em que as emoções de vários personagens ganham voz por intermédio de mudanças de focos narrativos em tempos e lugares diferentes, e de diversificados apelos sensoriais tais como descrições visuais e percepções sonoras. Abel considera a como uma representação do verbo, metáfora do romance, sendo que, em vários momentos, ela é a voz coletiva do artístico e do literário. O próprio autor enfatiza que seus personagens não são uma réplica dele próprio, mas indivíduos com vida própria, com pontos de vista, personalidades e histórias de vida particulares. Elizabeth Hazin, em seu artigo Chegando ao mundo: Osman Lins toma a palavra em Avalovara, associa a marca do piano da família de Abel com o nome do segundo poema de Eliot, integrante de sua obra intitulada Quartetos: East Coker. Deixo de mencionar os instrumentos de música negligenciados nas gavetas, o piano East Coker, os jarros pomposos, o enorme espelho entre arandelas na sala de visitas e o retrato oval de casamento. Mantenho, com alguma ênfase, a estampa alemã do tempo de Holderlin, representando três jovens fiandeiras. Faço ainda entrar o sol pelas bandeiras de vidro — colorido no chalé real e branco no fictício. (T 6, p. 101). 169 Nesse artigo, Hazin salienta o aspecto circular presente na narrativa e o pensamento do autor materializado na organização de sua obra, em que o ir e o vir integra as múltiplas facetas dos personagens e os diferentes cenários sonoros a eles relacionados. Osman Lins era leitor de T.S. Eliot. Basta nos lembrarmos de que o nome do piano de que fala Abel no fragmento T6 é East Coker, o segundo poema dos Quatro Quartetos que se inicia pelo verso “In my beginning is my end” e termina precisamente com “In my end is my beginning”, numa clara alusão à reversibilidade, uma das grandes figuras conceituais de Avalovara. (HAZIN, 2014, p. 140). A certa altura, Eliot afirma em seu poema: “Dirás que estou a repetir alguma coisa que antes já dissera. Tornarei a dizê-lo. Tornarei a dizê-lo? Para chegares até lá, para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás [...]”. (ELIOT, 1963, p. 211). Aqui o poeta ressalta a circularidade que ele vislumbra em todas as coisas, um eterno retorno ao ponto de partida em um movimento cíclico permanente de ir e vir, tal qual a espiral sobre o palíndromo, tal qual a espiral cíclica e rítmica da música. O piano East Coker jorra suas melodias e seus acordes em momentos de esplendor e de vitalidade e se cala em tempos posteriores de desagregação, exprimindo ritmos maiores da vida de seus personagens. O piano Érard, pertencente ao pai da , deve seu nome ao construtor de pianos Sébastien Érard, francês, de origem alemã, nascido em 5 de abril de 1752 e falecido em 5 de agosto de 1831. Destacou-se pelas significativas melhorias introduzidas na harpa e no piano, sendo o mecanismo de duplo escape por ele inventado em 1822 o precursor dos mecanismos dos pianos modernos. Foi justamente a partir desse período que o estilo romântico na música levou ao extremo o uso do piano em concertos e peças de grande envergadura, tendo surgido compositores virtuoses, entre eles destacando-se Franz Liszt, Frédéric Chopin, Robert Schumann, Félix Mendelssohn e Johannes Brahms. O glamour de uma marca tradicional é introduzido na casa de uma família que acredita pertencer a uma estirpe elevada. O pai da , professor de piano e violonista, guarda retratos em álbuns com dedicatórias de músicos com os quais teria convivido quando participava da orquestra, revivificando, assim, lembranças nostálgicas de um passado recheado de brilho e de sons. Aqui, estabelece-se uma conexão entre o real e o imaginário, quando o autor confronta o piano Erard, uma marca existente no mundo real, com um piano de marca inexistente associado ao nome de um poema de T.S.Eliot, East Coker. 170 O piano acompanha a vida da desde sua gestação. Sendo seu pai músico e tendo é concebida em meio a uma sido professor daquela que se tornaria sua esposa, a ambientação musical em que o piano é o instrumento proeminente. Ao longo da narrativa, dois cenários se complementam. Em um deles se repete o ciclo interminável do nascimento e do declínio da vida, representados respectivamente pelo soar do piano e pelo seu silêncio. No outro, Abel e a introduzem um rito carnal, ao mesmo tempo profano e sagrado, rumo à plenitude do conhecimento das letras, no qual se fazem presentes os sons de instrumentos de teclado que ressoam os fragmentos da Sonata em fá menor (K462) para cravo, de Scarlatti, e os ritmos vibrantes dos pianos na cantata Catulli Carmina, de Carl Orff. O soar simultâneo do cravo e do piano, na cena que relata o encontro de Abel e a , remete à evolução do primeiro para o último, os quais têm em comum a produção de sons por meio do acionamento de teclados que, por sua vez, fazem vibrar as cordas esticadas. O sons do cravo originam-se de um mecanismo que pinça as cordas enquanto que os do piano surgem da batida sobre as cordas de pequenos martelos de madeira acionados pelo teclado. O piano é um instrumento musical de potencial tímbrico, harmônico e interpretativo e com tecnologia de execução que utiliza pedais clusters, bem como, efeitos sonoros tais como glissandos e harmônicos. Seu repertório requer a criatividade do intérprete, envolvendo uma variedade de elementos relativos ao ritmo: acentos deslocados, métricas assimétricas, métricas alternadas e mudanças métricas, ritmos prosódicos, polimetria, ostinatos, pedais e ritmos pulsantes. A menção ao piano aparece em outras obras de Osman Lins, o que sugere uma admiração do autor por esse instrumento musical. No romance A Rainha dos Cárceres da Grécia, são feitas referências a versos inteiros de canções populares brasileiras que permeiam o texto de uma ponta a outra, indicando a autoria e trazendo a sequência do carnaval. O piano aparece em menções a partes da música Mandarim, de autoria dos pernambucanos irmãos Valença, bem como em descrições de um dos mais famosos refrões de Capiba, muito cantados durante os carnavais de rua de Recife: “Eu quero ver queimar carvão [...], mas o que dói de verdade é o homem do piano, batucando e berrando “Eu já cantei muito em serenata, Na porta de uma ingrata”. (LINS, 1976, p. 88) . Ao longo do livro-diário, trechos de um frevo de Capiba são transcritos pelo escritor de Um Cavalheiro da Segunda Decadência: A Porteira do Mundo. Hermilo Borba Filho50 Hermílo Borba Filho (1917-1976), – advogado, escritor, crítico literário, jornalista, dramaturgo, diretor, teatrólogo e tradutor brasileiro e autor de Um Cavalheiro da Segunda Decadência: A Porteira do Mundo – era amigo de Osman Lins. 50 171 destaca-se como um ocasional personagem que participa das festas carnavalescas de sua terra, tocando piano: “Hermilo canta batendo no piano, Eu não sei o que fazer para o meu amor não chorar.”(LINS, 1976, p. 88). As menções do narrador, mais explícitas e detalhadas do que as discretas citações de Julia Marquezim Enone às músicas do carnaval de rua de Recife, configuram-se como um resgate da memória da cultura popular enfraquecida e esquecida pela invasão crescente das jazz-band, de influência norte-americana, que passam a cativar a preferência da alta classe média, especialmente no Rio de Janeiro. Em Um Ponto no Círculo de Nove, Novena, de Osman Lins, o personagem masculino é músico e toca saxofone para ganhar dinheiro, mas, em lugar desse, gostaria de executar peças musicais no oboé, seu instrumento predileto. Na pensão em que vive há quatro anos, recorda-se de que ali havia um piano, o Broadwood, e questiona-se como “Improvável que o refeitório ocupasse aquele mesmo lugar onde comemos: destinando-se o térreo quase sempre, aos alojamentos de negros e aos estábulos, o piano, as estampas inglesas e os tapetes enfeitariam algum lance do primeiro andar.” (LINS, 1994, p. 23). O piano Broadwood, assim como o piano Erard, é uma das marcas de piano mais antigas e de maior prestígio no mundo. Foi apreciado por Mozart, Haydn, Chopin, Beethoven e Liszt, como também, pela Rainha Elizabeth II. Nesse trecho da narrativa, o piano assume um lugar reservado aos objetos mais requintados e caros, associado, portanto, a uma clara distinção entre classes sociais. Nos Casos Especiais, de Osman Lins, a Marcha fúnebre, uma das três narrativas escritas para a série “Caso Especial” da TV Globo (A ilha no espaço; Quem era Shirley Temple; Marcha fúnebre) faz referência ao terceiro movimento da Sonata nº 2, para piano em Si bemol menor, op. 35, de Frederic Chopin (1810 – 1849), denominado Marcha Fúnebre, como música de fundo para acompanhar o cortejo do enterro de Selene Raquel, a principal protagonista da narrativa, cessando a execução da peça musical quando o corpo dela repousa no túmulo. Nessa cena, consta a recomendação “(Música: acorde grave, cortando a cena. Esses acordes vão acompanhar o enterro, logo misturando-se com a música de um realejo.).” (LINS, 1977, p. 123). No final, para encerrar, há uma indicação sobre a execução do movimento final desta composição. A referida sonata é composta de quatro movimentos: 1 Grave – Doppio Movimento; 2 - Scherzo; 3 - Marche Funèbre; 4 - Finale: Presto. 172 O andamento da Marcha fúnebre, com seus acordes lentos, acentuados e tocados nas notas graves, sugere uma marcha para uma procissão funeral. O trecho intermediário desse mesmo movimento traz uma melodia singela e carregada de lirismo, também em ritmo lento, constituída por notas mais agudas, a qual lembra momentos de resignação e de recordações associadas a sentimentos de perda. O último movimento, Finale: Presto, contém um turbilhão ininterrupto de grupos de três notas para cada tempo executados simultaneamente pelas duas mãos com deslocamentos cromáticos e com ritmo e dinâmica invariáveis. Esse trecho da sonata sugere sensações de inconformismo e de desespero que sucede o sentimento lúgubre de tristeza associado a um funeral. O cravo é anterior ao piano, tendo perdido o seu espaço para esse instrumento na segunda metade do século XVIII em decorrência dos recursos acústicos e de dinâmica que o piano passava a oferecer. Ressurgiu com nova tecnologia no século XX, quando teve introduzidos vários pedais para mudança rápida dos registros. Este modelo já havia sido recomendado por Carl Emanuel Bach e, em virtude de sua implementação, foi incluído um registro de 16’ (uma oitava abaixo do normal), a exemplo do cravo de Johan Sebastian Bach e de Haendel. Nos séculos XX e XXI, diversos compositores escreveram obras para o cravo, somando-se à abundante execução do repertório musical do século XV ao XVIII. O cravo tem o formato semelhante ao do piano de cauda: as cordas são fixadas no cepo, atrás do teclado, presas às cravelhas por uma pequena asa, sendo cada uma delas distendida por dois cavaletes. O som é produzido por meio do pinçamento das cordas, fazendo com que a intensidade sonora não se altere com a mudança da força do toque, diferentemente do que ocorre com o piano, em que a pressão dos dedos sobre o teclado repercute numa maior velocidade com que o martelo se projeta sobre as cordas. Adicionalmente, os sons assim produzidos atenuam-se rapidamente. Tais limitações fizeram com que os músicos da época incluíssem em suas apresentações a execução de ricas ornamentações que incluíam mordentes, trinados, apogiaturas, grupetos, etc.. Os trinados longos serviam para sustentar as notas e os trinados curtos e mordentes, para dar a impressão de acento e peso às notas mais importantes. A variedade de timbres, alturas e intensidades acontecem por meio dos registros e dos pedais, cabendo ao executante a escolha da registração adequada para a peça a ser tocada. Não se tem notícias da origem do cravo e o mais antigo que se conhece está no Victoria and Albert Museum, em Londres, fabricado em 1521, com uma extensão de quatro oitavas. As referências ao surgimento do cravo datam do século XIV, fabricado pelos italianos, contando com um só teclado, com pouca tensão nas cordas e com o tom apropriado para acompanhar cantores e outros instrumentos, tendo a extensão de quatro oitavas ou menos. 173 A partir o século XVII, os fabricantes flamengos criaram o cravo de dois teclados, o segundo colocado em nível mais alto e atrás do primeiro para melhorar a transposição, facilitando a duplicação dos registros dos manuais e resultando em uma maior reverberação e em sons mais harmônicos. No século XVIII, os franceses copiaram o modelo flamengo e aumentaram a extensão do teclado para cinco oitavas. Os fabricantes alemães ajustaram o modelo francês acrescentando duas oitavas de cordas afinadas acima das já existentes para obter maior variedade de sonoridade e tentando aplicar ao cravo os efeitos estéticos e acústicos do órgão. Adicionaram o registro 16’ e sondaram várias combinações de registros. Domenico Scarlatti (1685–1757), assim como Bach e Haendel, foi um dos maiores compositores para cravo, tendo contribuído para a criação do estilo estético na música erudita denominado de rococó. O cravo e o órgão atingem o seu apogeu durante o período Barroco (1600-1750), quando se destacaram como instrumentos usados para a execução do baixo contínuo e como instrumentos solistas em concertos compostos para esses instrumentos e orquestra. Também foram utilizados como acompanhadores do canto e de outros instrumentos. Órgão, cravo e piano se sucedem cronologicamente desde os tempos medievais até os tempos modernos. O cravo, com seus sons claros, elegantes e comedidos, serviu de referência para a criação do piano, com cordas marteladas e maiores recursos sonoros e, com isto, de um novo estilo musical: o classicismo. Os instrumentos de teclado são executados com os dez dedos das mãos e, no caso do órgão, também com os pés que pressionam os pedais para extrair os sons mais graves. Com isto, obtém-se um leque de possibilidades polifônicas sem par em outros instrumentos. O primeiro órgão de tubos de que se tem notícias foi doado em 757 pelo imperador de Bizâncio, Constantino Coprônimo – ao rei dos francos, Pepino o Breve – como parte de um presente diplomático. Passou a ser usado em festividades especiais até aproximadamente o ano 1000, quando então começou a fazer parte com bastante frequência dos serviços litúrgicos. Assim, em Avalovara, o cravo, elo histórico entre o órgão e o piano, estabelece-se como ponto de confluência desses instrumentos musicais com a introdução da Sonata em Fá menor (K 462), de Scarlatti. O piano, dentro da família de Abel e da , está associado a sentimentos de alegria, desagregação e status no contexto de uma sociedade do século XX. O órgão de tubos traz a ancestralidade da cultura europeia (Roos e as cidades) com a execução do Salmo In Convertendo Dominus, de André Campra. 5.4 174 O BANDOLIM E SEU SIMBOLISMO MITOLÓGICO EM AVALOVARA Em Avalovara, também se reveste de particular importância o som do bandolim tocado pelas irmãs Hermelinda e Hermenilda51, figuras mitológicas dedicadas ao ato de coser, pelo qual podem prever a vida e a morte. Quando executam o instrumento, despertam o canto dos pássaros que cantam em coro, fazendo ressurgir sentimentos de júbilo. A expectativa dos animais de estimação das idosas pelo soar do bandolim é a expectativa pelo renascimento, em uma representação do ritmo pulsante da vida que nasce, cresce e morre, em um movimento cíclico interminável: Um homem, acompanhando um casal de crianças, aponta algo à distância, talvez um papagaio [...] Hermelinda [...] tem a mão no ar, a direita, prestes a ferir seu bandolim.[...] Os pássaros dos viveiros e os canários-do-império nas gaiolas fixadas à parede ou às colunas finas do alpendre, aguardam, os ouvidos ocultos na plumagem, que a palheta de Hermenilda desperte as cordas tensas. No degrau do alpendre: um gato deitado; outro junto ao portão; dorme um terceiro no peitoril da janela, a cauda pendente; à porta da sala de jantar, vindo em nossa direção, outro ainda, uma das patas levantadas. (T 4, p. 78). Nesta passagem, animais de estimação e seres humanos participam de uma peça musical entoando canções regidas pelos dedos hábeis de Hermelinda ou Hermenilda, à semelhança da execução de uma cantata profana (temas não religiosos). Transparece a convivência igualitária entre pássaros e gatos com as mitológicas irmãs, em que os pássaros demonstram possuir talentos musicais similares aos dos seres humanos, distanciando-se, assim, da visão antropocêntrica e estabelecendo um elo com as futuras ideias cultivadas pelos adeptos da ecocrítica. O soar do bandolim, à semelhança dos pianos da família de Abel e da , evidencia sentimentos de agregação, de evolução e de vitalidade. As cordas vibrantes desse instrumento reproduzem o ato de renascer simbolizado pelo cântico festivo dos pássaros. Os atos de tecer o fio e de tocar as cordas (fios) do bandolim remetem ao significado da criação da vida que palpita no ritmo efusivo da música. Tais cenários reconstituem momentos musicais representados na linguagem verbal, em cujo cerne reside a ideia de unidade, associada ao canto coletivo dos animais simultâneo aos sons do bandolim tocado pelas duas irmãs: Hermenilda rompe a imobilidade e fere com energia insuspeitada as cordas do instrumento. O gato, na porta, pousa a pata no chão, o homem no outro lado da estrada baixa o braço e vai-se com os meninos, saltam os pássaros presos, erguem os 51 Esse tema foi abordado na minha dissertação Avalovara: leituras musicais. 175 bicos e de muitos modos soltam o canto, não só esses que eu vejo ou os que sei existirem, mas ainda outros de que não suspeito e que respondem a Hermenilda, de modo que o chalé aumenta, expande-se, revelado pela voz dos cantores nele ocultos. (T 4, p. 78). Em cada região da Terra encontram-se tipos de pássaros cujos cantos são tão característicos quanto é a linguagem ou o dialeto das pessoas daquele lugar. São considerados, por uma ampla maioria, como os que emitem os sons mais agradáveis de se ouvir. Percebe-se, aqui, a exploração da linguagem de comunicação dos pássaros, num diálogo polifônico entre a música do bandolim de Hermelinda e Hermenilda, mostrando a diversidade da fauna de Pernambuco. Prossegue a música de Hermelinda, a que os pássaros respondem [...] aves cantantes (corto e cruzo nomes de pássaros: papa-campinas, xeúnas, ós, galos-decapins, rios, curinás, caxéus, sagrabiás); o rústico instrumental, em toda parte a evocadora valsa de Hermelinda, em toda parte as gargantas ativas dos pássaros [...]. (T 5, p. 88). As repetições dos cantos dos pássaros, com variações e expansões, mostram, em muitos casos, um virtuosismo repleto de leitmotivs com significados que variam com a necessidade de exteriorizar seus instintos de medo e de prazer. Nas composições musicais dos trovadores medievais e, também, de Haydn e Wagner, encontram-se reproduzidas muitas das técnicas verificadas nos cantos dos pássaros. Em suas pesquisas, Schafer detectou que o chilrear dos pássaros, em muito, aproxima-se das formas de expressão, pelo homem, de suas emoções: Em alguns de seus pormenores, a linguagem afetiva de certos pássaros, como vem sendo mostrado, mantém relação com as formas de expressão humana vocal e musical. Por exemplo, os sons aflitos dos pintainhos são compostos apenas por frequências descendentes, enquanto as frequências ascendentes predominam nos cantos de prazer. Os mesmos contornos gerais estão presentes nas expressões de tristeza e prazer do homem. (SCHAFER, 2001, p. 55). Schafer aborda a simbologia e a influência dos pássaros nas diversas sociedades, atribuindo-lhes uma força de mudança comportamental. Seus cantos classificam-se em cantos de prazer, de angústia, de defesa territorial, de alerta, de voo, de plumagem, de ninho e de alimento. Os pássaros podem ser distinguidos pelos sons que produzem ao voar. Sobre os sons da natureza, Schafer faz a seguinte afirmação: Os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons podem encerrar um significado arquetípico, isto é, podem ter-se imprimido tão 176 profundamente nas pessoas que os ouvem que a vida sem eles seria sentida como um claro empobrecimento. (SCHAFER, 2001, p. 26). Em diversas religiões e crenças esotéricas, os pássaros estabelecem a conexão do mundo divino com o terreno, podendo ser a representação da própria divindade ou do mistério. O título do romance de Osman Lins, Avalovara, é o nome de um pássaro mítico cuja presença lúgubre e sombria e seu canto ríspido e metálico prenuncia acontecimentos desagradáveis. Em momentos de alegria e de descontração, o pássaro ressurge colorido e com um canto agradável e um comportamento dócil e encantador. De cima de seu voo celestial, tudo observa, da mesma forma que a onipresente divindade budista, Avalokiteshvara, observa com infinita compaixão os seres humanos, ouvindo seus clamores e conduzindo-os para o caminho da libertação. Assim como o piano, a ausência de sons do bandolim explicita a vida em extinção, a alegria irrecuperavelmente desaparecida com a desagregação familiar e a decadência dos personagens. Há sempre um bandolim na sala, ocupando uma poltrona. Fino instrumento, faz-me evocar o que pertence à minha irmã Leonor (por que não o levou para o convento?) e que se desfaz em algum armário do chalé, com a viola de Mauro e a flauta de Eurílio, varado de balas num bordel do Recife. O instrumento de mme. Weigel também já não serve para nada: ela tocava-o quando jovem e o meu interesse vem dessa circunstância. Mantenho-o, às vezes, no colo – este mudo sobrevivente de mais alegres dias –, como se amparasse coisas baldas e mortas, enquanto converso com as duas filhas do casal. (A 13, p. 104). O soar da música e o tecer são reproduzidos pelos instrumentos relacionados à morte e à vida: o bandolim e a agulha, por meio de linhas melódicas e da linha de coser, constroem e desconstroem a vida num movimento pulsante, tal qual o ritmo presente no ato de coser e intrínseco ao ato musical, afinados com a criação literária. Tom e som. Eu e eu, Hermenilda e Hermelinda eis-nos, ajudantes da fábula que começa a tomar corpo e na qual dois amantes, por via e modo nosso aproximados, começam a enredar-se, cheios de alegria, de paixão e ainda mais de espanto. Temperar o bandolim. (T 9, p. 137). Na tese de Éder Rodrigues Pereira (2015) consta a carta por meio da qual Osman Lins respondeu ao jornalista Leo Gilson Ribeiro, em 27 de dezembro de 1973. Num trecho da mesma, trata da interpretação que faz de sua escrita no que se refere ao conteúdo de Avalovara, atribuindo ao ato de coser o sentido literário de “afinar o instrumento” ou de 177 “temperar o bandolim”, relacionado a um momento mais profundo da relação amorosa entre Abel e Cecília. Hermelinda ou Hermenilda toca bandolim. Vez por outra, funcionando como um coro da tragédia clássica entram as duas em cena e falam de um modo peculiar, delas. Aqui, a história de Abel e Cecília começa a entrar numa fase mais intensa; e por isto, insinua-se a afinação do "instrumento". Outras expressões, no trecho referido, indicam isto: "Tom e som." "Temperar o bandolim." O recurso corresponde àquele "tremor ante a matéria futura" (materiei futurae trepidatio) a que se refere o velho E. R. Curtius. […] Quanto à expressão "alcatruz", alude sutilmente à muita idade de Hermelinda e Hermenilda. Veja-se o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa: […] alcatruzado: curvo; abaulado; desajeitado." Esta última acepção remete ao modo mesmo como o texto a que se reporta está construído: desajeitadamente, descosidamente. ("Esta cantiga é descosida.") Preciso dizer mais? (LINS apud PEREIRA, 2015, p. 483). Por sua vez, Regina Igel (1988), no seu livro Avalovara: uma biografia literária, conduz os nomes Hermelinda e Hermenilda ao herói mitológico grego Hermes, deusmensageiro, símbolo de ligação entre os deuses e os mortais. Como Hermes é o que vai negociar, “[...] flagra-se, então, na mitológica ascendência das irmãs Hermenilda e Hermelinda, o seu papel pragmático na apresentação de Cecília, mulher-homem, a Abel.” (IGEL, 1988, p. 151). Leny da Silva Gomes (1998) mostra a perspectiva mítica que envolve Hermelinda e Hermenilda numa função que se assemelha à do coro nas tragédias gregas, associando a composição do nome com o radical Herm a estranha caracterização das velhas, “nem paridas e nascidas”, feitas de “cera má” (T 1, p. 51). Hermelinda e Hermenilda conduzem o destino de Cecília. Nessa mesma linha, em minha dissertação de mestrado, Avalovara: leituras musicais (2010), relaciono o ritmo da valsa, em compasso ternário, aos aspectos mitológicos do coser e do tocar as cordas do bandolim por meio dos quais Hermelinda e Hermenilda conduzem o destino de Cecília: O cantar e o tecer são reproduzidos pelos instrumentos de morte e vida: o bandolim e a agulha, que, por meio de linhas melódicas e da linha de coser, constroem e desconstroem a vida, num movimento pulsante, tal qual o ritmo presente no ato de coser e intrínseco ao ato musical. É a trindade simbólica de Hermelinda, Abel e Hermenilda, que, da mesma forma que as deusas mitológicas, criam, mantêm e destroem sob o impulso do ritmo ternário da valsa. (PAZ, 2010, p. 72). 178 A utilização do bandolim, no romance, tem estreita relação com o aspecto mitológico desse instrumento pelo fato de pertencer à mesma família da lira. Associando a linguagem literária com a musical, pode-se dizer que na narrativa: O som do bandolim eleva o canto magnífico dos pássaros que entoam em coro, evocando no leitor a sensação musical de alegria, de elevação, de interação, de impulso da vida, de caráter triunfante e de vitória, caracterizando o andamento da música tocada. (PAZ, 2010, p. 72). As duas irmãs mitológicas destacam-se no romance pelo seu caráter super-humano, que se sobrepõe aos destinos dos demais personagens, cujos caminhos, à exceção da trajetória de Abel e a da , tem seu início, apogeu e declínio. A unicidade de ambas se manifesta na alternância entre seus corpos e está implícita em seus nomes, em que a inversão da sequência de três letras, desde a sexta até a oitava, do nome Hermelinda, portanto “lin”, leva à sequência de letras “nil” e, deste modo, ao nome Hermenilda. A transposição simbólica entre suas essências aparece na forma de representação literária pela simples troca de três letras de seus nomes. Presumem-se imortais e, com suas agulhas e sua música ao bandolim, “tecem”, com os fios e as linhas melódicas de suas performances musicais, o destino dos homens, assim como traçaram o destino de Cecília rumo à morte. Abel e a diferenciam-se dos demais em virtude de sua busca pela transcendência espiritual, simbolizada pela procura do mistério do domínio das palavras que transitam pelo corpo da mulher sem nome. 179 6 CONCLUSÃO Raymond Murray Schafer empreendeu sua minuciosa pesquisa sobre paisagem sonora coletando os sons do Canadá e depois da Europa para compor uma notável biblioteca sonora segregada em categorias e subcategorias, as quais serviram de base para esta pesquisa, após a transposição de sua metodologia, destinada inicialmente para ser aplicada no mundo real, para o universo ficional de Avalovara. Schafer procura identificar os sons agradáveis ao ouvido humano – naturais ou até mesmo aqueles produzidos por artefatos criados pelo homem – separando-os do que ele considera implicitamente como lixo sonoro. Deste modo, tomando como referência as suas considerações e conclusões acerca da evolução da paisagem sonora mundial até nossos dias, é possível atribuir a Schafer o papel de um obstinado defensor da ecologia acústica, da mesma forma que os adeptos da ecocrítica cultivam uma literatura voltada para a conscientização da sociedade para os problemas da poluição ambiental. Em Avalovara, é realçado o contraste entre sonoridades sugeridas como prazerosas para a percepção de seus personagens e ruídos desagradáveis, dentre os quais são dignos de menção o canto suave do pássaro Avalovara, os sons musicais da cantata Catulli Carmina, de Carl Orff e dos fragmentos da introdução da sonata K462, de Scarlatti, que se opõem aos barulhos estridentes da serra mecânica em meio à ruidosas obras de urbanização em São Paulo. A inserção intencional do conflito sonoro entre o deleite e a aversão nos diversos cenários do romance explicita uma técnica que Osman Lins emprega com bastante frequência em todos os níveis do enredo ficcional. A narrativa, na obra aqui estudada, vale-se do ruído para criar contraposições literárias, assim como Stockhausen e Pierre Schaeffer os utlizaram em suas composições eletroacústicas. As pesquisas do músico e educador canadense inspiraram diversos compositores, dentre eles o seu colaborador Barry Truax, a criar um movimento composicional denominado Soundscape Composition, que se vale de sons coletados da natureza e, na sequência, manipulados por meio de softwares de síntese sonora. Ainda que Schafer não tenha seguido esta linha estética, posteriormente à renúncia da condução do projeto que ele mesmo criara (World Soudscape Project), passa a elaborar composições em que os sons da natureza se misturam a criações teatro-musicais executadas em meio a paisagens virgens recheadas de lagos e florestas, corroborando a sua escolha por um processo de criação artística afinado com o ambiente natural. O ciclo Pátria tem até o título sugestivo para o Epílogo, que se constitui no ponto alto de sua composição: E o Lobo Herdará a Lua. 180 Para compreender os possíveis significados dos aspectos musicais de Avalovara e de todos os seus sons, é necessário submergir no fluxo do enredo narrativo para descobrir o cerne das personagens, seus percursos de vida, seus anseios e suas frustrações. Somente assim é possível perceber que as peças musicais, cuidadosamente selecionadas pelo escritor, ultrapassam a simples condição de trilhas sonoras para se transformarem em elementos essenciais do romance: dão vida aos personagens e revestem-se de profundos sibolismos, provendo a narrativa de movimento e de ritmo e o leitor de instrumentos para desvendar os enigmas inerentes à complexidade de Avalovara. Processa-se uma notável simbiose entre a linguagem musical e a literária, em que o pulsar do fluxo e do refluxo e a justaposição inseparável do tempo e do espaço trazem à tona a música do mundo, a música das esferas impressa no universo ficcional das palavras que, com seus ritmos alternando ordem e caos bem como certezas e imponderabilidades, culmina com o rompimento de um ciclo aparentemente interminável, a síntese final representada pela morte de Abel e a . Aqui a linguagem musical complementa a literária, evocando a personalidade dos personagens e as situações por eles vivenciadas. Em Avalovara, processa-se uma rica mixagem sonora, em que músicas eruditas, música popular, sons naturais, humanos e mitológicos, além de ruídos de todos os tipos executam uma elaborada composição musical literária, conduzida pela espiral do pássaro de mesmo nome do romance e pelos sucessivos quadrados cênicos acompanhados por diferentes conjuntos instrumentais incomuns: o barco, o trem, os pássaros, a sereia na praça Piazza Duca d'Aosta, a música de André Campra na igreja de Notre-Dame, os ruídos dos automóveis, os gritos, os sons imaginários da ronda dos invasores holandeses durante os passeios de Abel e Roos; a música e as batidas do Pastoril, o mar, o cabriolé, os cavalos, a roda mítica com seus raios enfeitados, os pássaros de Hermelinda e Hermenilda, o duo das velhas em que uma ou outra toca o bandolim, o rugido dos leões nas idas de Abel e Cecília pelo litoral nordestino brasileiro; a cantata de Orff, o relógio, os ruídos urbanos de São Paulo, o canto do pássaro, o rosnar do cão de Olavo Hayano, o tiro, os trovões, a chuva nas cenas do encontro de Abel e a . No romance, o silêncio é explorado como instrumento de explicitação ou de denúncia daquilo que não pode ser dito: o silêncio dos instrumentos musicais traz à tona a decadência da família de Abel; o silêncio do piano mostra situações de tristeza e infortúnio; o silêncio de Roos demonstra sua frieza e ausência de vínculo com Abel; o silêncio da frente ao autoritarismo de seu marido, Olavo Hayano, denota a opressão da ditadura militar; o silêncio 181 da Natividade mostra uma vida sofrida e resignada diante da exploração coercitiva decorrente de uma estrutura de classes injusta. Esta superposição de sons musicais e de ruídos, em quase todos os cenários sonoros, sugere uma similitude do romance Avalovara a uma peça de música concreta do século XX, quando os ruídos das máquinas da sociedade industrial foram utlizados, após a segunda guerra mundial, em composições musicais que podiam incluir a voz humana e sons produzidos por instrumentos convencionais. Esta simultaneidade entre som musical e ruído fica bem caracterizada nos vários cenários sonoros, como, por exemplo, quando Roos e Abel caminham pelas ruas de Paris e ouvem o Salmo de André Campra. Nesta cena, as linhas melódicas do coro e do órgão vindas de dentro da catedral de Notre-Dame atingem a rua misturando-se aos sons de automóveis e ao ranger da porta de um forno. Esta mescla de sons musicais e não musicais também ocorre no encontro entre Abel e a , quando se ouvia a introdução fracionada da Sonata K462, de Scarlatti e da cantata Catulli Carmina, de Carl Orff. Ao mesmo tempo, chegavam até o quarto os ruídos vindos das movimentadas ruas de São Paulo e aqueles produzidos pelo vento, pelos trovões e pela chuva, durante o temporal que assolava a capital paulista naqueles momentos de amor. A categorização de sons possibilitou destacar as sonoridades relevantes pelos simbolismos de que se revestem ao longo da narrativa e pela associação, não somente aos aspectos construtivos do romance, mas, principalmente, às visões do escritor relacionadas à concepção da vida de seus personagens no enredo. Pode-se citar a utilização repetida de situações contrastantes em um mesmo cenário sonoro e que, num primeiro momento, podem dar ao leitor a impressão de se deparar com algo insolúvel. Entretanto, parece querer chegar a um ponto de confluência, a uma síntese, sempre lembrando a imponderabilidade da vida humana frente a um cosmos em constante mutação. Tais oposições, simultâneas, são também visualizadas nas diversas expressões sonoras em que o antigo convive com o novo, o sacro com o profano e o popular com o erudito. Os ruídos de uma sociedade moderna recepcionam os sons barrocos do Salmo de André Campra; os sons singelos e ordenados dos trechos fragmentados da sonata de Scarlati soam simultaneamente aos sons da cantata de Orff em uma convivência inseparável entre o sagrado e o profano. Sob esta ótica, não se pode deixar de mencionar os aspectos míticos concernentes ao pássaro Avalovara que, com seus cantos suaves ou estridentes, se consagra como a entidade observadora e iniciadora da mistérios do sagrado ao fornecer-lhe o dom das palavras. Também acompanha Abel e a até a obtenção do apogeu de suas jornadas quando se unem ao tapete idílico, libertando-se da opressão do mundo representada por Olavo Hayano. nos 182 A cópula entre Abel e a remete ao simbolismo tântrico da união entre o masculino e o feminino, entre Shiva e Shakti, da ascensão da energia divina kundalini até a sede da divindade no topo da cabeça para somente então obter a libertação das amarras do mundo, a libertação espiritual, o domínio do poder da palavra; portanto, do conhecimento. Nesse momento a percebe-se imersa no silêncio absoluto e ao mesmo tempo no som último que se constitui na sintese de todos os sons: o som AUM. Esta pesquisa aglutinou os sons identificados, ao longo do romance Avalovara, em sete categorias gerais, a partir de uma hierarquização classificatória composta de categorias gerais, categorias específicas e tipos. A vinte e cinco tipos de sons, foi atribuída a denominação de “marcos sonoros” em razão da particular relevância diante do significado destes sons na composição da paisagem sonora do romance. Destes, nove foram qualificados como eixos sonoros pela representatividade e pelo simbolismo que conferem aos protagonistas e às suas trajetórias de vida. Entre tais sons, encontram-se o canto e o grito do pássaro sagrado Avalovara, o mítico condutor da em sua jornada. Os matizes do pássaro passam do delicado colorido para o cinzento agourento, emitindo gritos estridentes em alguns momentos, que contrastam com o cantar suave, em outros, prenunciando acontecimentos e ataviando com suas penas multicromáticas o enlace amoroso de Abel com a . A divindade que origina seu nome – Avalokiteshvara – é o controlador dos homens que, por compaixão com o seus sofrimentos, empenha-se, com seus incontáveis braços, em um trabalho hercúleo e continuado para conceder-lhes a salvação. A é por ele iniciada despertando-a para a palavra quando, imediatamente antes desse momento, ela morre ao cair no fosso do elevador do edifício Martinelli e novamente nasce, sugerindo um momento simbólico de transição da ignorância espiritual, caracterizada pela mudez, para a luz da sabedoria, simbolizada pela incorporação de um universo novo de sons e de palavras que passam a habitar o seu corpo. A misteriosa ave, símbolo da onipresença, habita o corpo da , ao mesmo tempo que voa fora dele, sobre ela, nos céus iluminados pelos relâmpagos que trespassam seu corpo fazendo dele um ente de luz. O símbolo da eterna compaixão budista é aqui a encarnação da luz, enquanto despertar, e do conhecimento, pela luz que invade as trevas. Ainda que as menções aos sons desse pássaro não sejam as mais numerosas, seus cantos suaves ou ásperos trazem um significado de predição e de proteção, da mesma forma que o Bodhisattva Avalokiteshvara. Ao longo do romance, ganham destaque as quatro peças musicais (Salmo In Convertendo Dominus, Pastoril, Sonata em fá menor (K 462) e Cantata Catulli Carmina) pelo fato de estarem associadas às três personagens femininas que, com Abel, estabelecem 183 relações amorosas. Tais composições vinculam-se diretamente com os ambientes culturais que moldam essas personagens e com as diferentes circunstâncias relacionadas às suas trajetórias de vida. O Salmo de André Campra realça a tradição cultural europeia impregnada nas cidades que de Roos fazem parte. O Pastoril é a assinatura musical da mulher andrógina, Cecília, a mulher do povo que, em seu corpo, abriga tanto leões como homens e mulheres silenciados pela opressão política. O Pastoril, em determinado momento histórico do nordeste brasileiro, em certo modo reproduz uma estratificação social injusta em que meninas pastoras, submetidas a uma condição social de extrema vulnerabilidade, prostituiam-se como forma de sobrevivência. A cantata Catulli Carmina e fragmentos da Sonata K 462 soam, simultaneamente, em alguns momentos como música de fundo para o enlace amoroso de Abel e , anunciando um ato que põe em evidencia uma das partes mais importantes de Avalovara, em que o lado profano esconde o aspecto metafórico mais profundo da relação sexual entre Abel e a , o ritual da união sagrada necessária para atingir a morte simbólica e a subsequente libertação. O som do mar destaca-se pela frequência com que aparece ao longo da narrativa. Assim como o pêndulo do relógio, em seu vai e vem, o mar tem seu ritmo regulado pelo ir e vir das ondas que entram na praia ou nas pedras e retornam em um movimento pulsante interminável. O som contínuo do movimento das águas, que resulta numa combinação de frequências características, confere ao mar um aspecto de infinitude e de fonte da vida a qual, em seus ciclos finais, é por ele engolida. Em Avalovara, transparece esse aspecto mítico e quiçá divino do mar na cena em que os cavalos que puxam o cabriolé de Cecília submergem nas águas. Eles escorregam nas pedras, junto à praia, e caem sobre o corpo de Cecília, que morre, ao mesmo tempo em que os animais e o cabriolé são puxados para dentro das águas revoltas. Os céus descritos no romance são preenchidos pela luz do sol, da lua e dos relâmpagos e neles voam os pássaros, em especial a ave mítica Avalovara, contrapondo-se à escuridão das águas do mar dentro das quais circulam os peixes por diversas vezes citados ao longo da narrativa. Essa composição de elementos, aparentemente desconexos, converge para um uníssono quando peixes se sobrepõem à água e são devorados por pássaros famintos passando a fazer parte deles, à semelhança dos peixes brancos no mar escuro do quadro de Escher, Sky and Water I, que, à medida que sobem para atmosfera, se transformam em pássaros pretos num céu branco. Pode-se fazer uma analogia entre os peixes que saltam da escuridão das águas profundas para encontrar a luz e, finalmente, desaparecer entre os pássaros, e a busca pela luz por Abel e que, ao final, transcendem as limitações da morte e da dualidade para, 184 sob os auspícios do Avalovara, fundirem-se em um só ser e com o tapete paradisíaco da serenidade eterna. Nesse momento, ambos distanciam-se dos sons de um mundo feito de ambiguidades para fundir-se ao tapete como símbolo de um mundo transcendente, em que a natureza com todos seus animais, a luz, os rios, a brisa, a vegetação, os protagonistas e todos os sons ali existentes convertem-se em uma única coisa: a sublime unidade, a síntese perfeita. Este trabalho focou nos vinte e cinco tipos de sons constituintes da paisagem sonora de Avalovara, caracterizados como marcos sonoros pelo simbolismo de tais expressões acústicas para a linha narrativa, seus personagens e seus caminhos. Aqui, a linguagem musical, representada pela música e pelo silêncio, complementa a linguagem literária insuflando-a com o sopro estético da originalidade ornamentativa. Não teve a pretensão de esgotar todas as possibilidades associativas, mas procurou encontrar algumas das possíveis relações a partir de pistas deixadas por Osman Lins, em suas falas, sobre a construção do romance. Ficou clara a importância da linguagem musical na estruturação do Avalovara, sem a qual o significado dos cenários cênicos perderia a sua consistência e profundidade. Na música erudita do século XX, derrubam-se as fronteiras entre som e ruído, adotando-se o silêncio como instrumento de hegemonização do som enquanto ente autônomo e autossuficiente. O silêncio assume o papel de integrar o homem com a natureza pela audição meticulosa das expressões acústicas do meio circundante, bem como o de integrá-lo com sua essência mais íntima e, assim, perceber os sagrados sons guardados em sua alma. A narrativa em Avalovara consagra dois aspectos inseparáveis da vida humana e que envolvem o culto ao sagrado e a entrega ao profano. Um mesmo fato dentro de uma cena qualquer pode possibilitar a percepção simultânea de tais interpretações. Da mesma forma que o complexo relógio musical do personagem J.H. desperta em todos os que se defrontam com suas sonoridades fraturadas um estado de perplexidade frente à infinitude do cosmos e às imponderabilidades da vida humana, a leitura atenta do romance de Osman Lins poderá despertar, no leitor, um estado de reflexão frente às oposições que se alternam e se complementam, transmutando-se em um ser mais completo, da mesma forma que Abel e a fundem-se para submergir na plenitude da paz e da beatitude do tapete paradisíaco. Acredito que esta tese alcançou seus objetivos ao segregar as sonoridades mais significativas da paisagem sonora de Avalovara e ao identificar as possíveis interpretações para os simbolismos desses sons. 185 REFERÊNCIAS ALVARENGA, Oneyda. Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950. ALMEIDA, Hugo (Org.). Osman Lins: o sopro na argila. São Paulo: Nankin Editorial, 2004. ALMEIDA NETO, Arnoldo Guimarães de. Música das Formas: a melopoética no romance Avalovara, de Osman Lins. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2008. ANDRADE, Ana Luíza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo: HUCITEC, 1987. ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. São Paulo: Martins, 1959. ARANYA, Swami Hariharananda. Yoga Philosophy of Patanjali: collection of yoga aphorisms. Calcutta University Press. Disponível em: . Acesso em: 31 jul. 2015. AVALOKITEŚVARA. In: Wikipedia. [S.l.: Wikimedia Foundation: 2014. Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 2015. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BARBOSA, J. A. Nove Novena Novidade. O Estado de São Paulo, 12 de nov. 1966. Suplemento Literário. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2014. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1992. BRASIL, Ubiratan. O Inegável Valor do Silêncio. O Estado de São Paulo, 7 ago. 2011. Caderno Cultura. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2015. BENNETT, Roy. Instrumentos de Teclado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BOUCOURECHLIEV, Andre. Igor Stravinsky. Madrid: Turner, 1982. CAGE, John. Silence: lectures and writing of John Cage. Hanover: Wesleylan University Press, 1973. CAMPBELL, Joseph. El Héroe de las Mil Caras: psicoanálisis del mito. México: Fondo de Cultura Econônica, 1993. CAMPRA, André. In Convertendo Dominus (gravação via torrent). In: Messe de Requiem // Olivier Schneebeli.wav. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2014. 186 _____. In convertendo Dominus. // Pseaume 125.e (manuscrit autographe). Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2014. CASCUDO, Luís da Camara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: MEC, 1962. CHANDRA, Lokeshvara. The Thousand-Armed Avalokiteśvara. Volume 1. Nova Deli: Shakti Malik; Abhinav Publications, 1988. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2015. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. COEN, Monja. A importância do silêncio. In: Monja Coen Sensei. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2015. COLOGNE Digital Sanskrit Lexicon. In: Monier-Williams' Sanskrit-English Dictionary. Disponível em: < http://www.sanskrit-lexicon.unikoeln.de/scans/MWScan/tamil/index.html>. Acesso em: 20 abr. 2015. CONVENÇÕES e Transcrição Fonética. In: Instituto Camões. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2015. DALCASTAGNÈ, Regina. A Garganta das Coisas: movimentos de Avalovara, de Osman Lins. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. DAMASCENO, Darcy. Vilancicos Seiscentistas. Rio de Janeiro: MEC, 1970. DEAN, James Seay. Musical analogs in Osman Lins’ Avalovara. In: MÉNDEZ, Luis Felipe Clay. BATES, Lawrence (Eds.). Brazil and Rio de La Plata: challenge and response. Madison: Eastern Illinois University, 1983. p. 31-33. [Acervo Osman Lins IEB/USP]. DICIONÁRIO FONÉTICO. In: Portal da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2015. DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. DOLGE, Alfred. Piano and their Makers. Covina, Califórnia: Covina Publishing Company, 1911. DOSSIÊ Osman Lins. Revista Eutomia , 2014, v. 1, n. 13. ESCHER, Maurits C. Sky and Water I. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2014. 187 ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas: das religiões da China Antiga à síntese hinduísta. Trad. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. _____. Aspectos do Mito. Trad. Manuela Torres. Lisboa: Ed. 70, 2000. _____. O Sagrado e o Profano. Lisboa: Livros do Brasil, 1991. ELIOT, T.S. Tradition and individual talent. In: ELIOT, T. S. The sacred wood: essays on poetry and criticism, 1921. Disponível em: . Acesso em: 28 de mar. de 2013. FARIA, Zênia de; FERREIRA, Ermelinda. Osman Lins: 85 anos - A harmonia dos imponderáveis. Recife: EDUFPE, 2009. FERREIRA, Ermelinda. Cabeças Compostas: a personagem feminina na narrativa de Osman Lins. São Paulo: Edusp, 2005. FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. O Lobo no Labirinto: uma incursão à obra de Murray Schafer. São Paulo: Editora da UNESP, 2004. _____. De Tramas e Fios: um ensaio sobre música e educação. São Paulo: Editora da UNESP, 2005. _____. Música e Meio Ambiente: três eixos para a compreensão do pensamento de Murray Schafer. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2014. FLUSSER, Victor. Encontro com R. Murray Schafer. Cadernos de Estudo. Trad. Fausto Borém de Oliveira. Indian River, Ontário/Canadá: Agosto/1992. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2014. GARRARD, Greg. Ecocrítica. Trad. Vera Ribeiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. GOMES, Leny da Silva. Avalovara: uma cosmogonia literária. 360 p. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Letras, Porto Alegre, 1998. _____; HAZIN, Elizabeth de Andrade Lima; SILVA, Odalice de Castro. (Orgs.). O Reverso do Tapete: a escritura de Osman Lins. Porto Alegre: UniRitter, 2012. GLOTFELTY, Cheryll; FROMM, Harold (Eds). The Ecocristicism Reader: landmarks in literary ecology. Athens/London: The Univ. of Georgia Press, 1996. GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007. GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. 188 HAZIN, Elizabeth de Andrade Lima (Org.). Como o Segredo de um Cofre: reflexões acerca de uma personagem feminina em Osman Lins. Ângulo, n. 121, v. 2, 2010. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2014. ______. O Nó dos Laços: ensaios sobre Osman Lins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013. _____. Linscritura: limiares da escrita osmaniana. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2014. IGEL, Regina. Osman Lins: uma biografia literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988. INSTITUTO de Estudos Brasileiros (IEB). Fundo Osman Lins. Ficheiros sobre as aulas de História da Arte do escritor Osman Lins na Universidade de Marília em São Paulo, na década de 1970. [Material cedido pela Ms. Elisabete Marin Ribas.] Ficheiros com fundo musical (200 MB total): Ft2A - Aula Pintura 1.mp3; Ft2B - Grécia - Class. e Helenismo .mp3; Ft3A - Arte Bizancio-Romanico.mp3; Ft3B - Pintura Romanico.mp3; Ft4A Gótico.mp3; Ft4B - Renascimento Italiano.mp3. INSTITUTO de Estudos Brasileiros (IEB). Fundo Osman Lins. Carta de Osman Lins à Maryvone Lapouge (tradutora da publicação de A Rainha dos Cárceres da Grécia - La Reine dès Prisons de Grèce). França, 03 jan. 1978. Arquivo do IEB: OL-LIT-RCG-091. KELLER, Damián; TRUAX, Barry. Ecologically-based Granular Synthesis. Anais da International Computer Music Conference, Ann Arbor, MI: ICMA, 1998. Disponível em . Acesso em: 26/05/2015. KLEE, Paul. Metamorfoses: Paul Klee e a Máquina Chilreante. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2014. ______. O Diário de um Artista. Disponível em: . Acesso em: 15 ajn. 2014. LEVONIAN, Robert. História da Dança e das Artes Auxiliares. Canoas: Ed. ULBRA, 2004. LINS, Osman. A Rainha dos Cárceres da Grécia. São Paulo: Melhoramentos, 1976. ______. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. São Paulo: Ática, 1976. ______. Casos Especiais. São Paulo: Summus, 1978. ______. Evangelho na Taba: outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1979. ______. Nove novena. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ______. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 189 _____. O Diabo na Noite de Natal. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005. MANN, Thomas. Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. NITRINI, Sandra (Org.). Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo: Hucitec: Abralic, 2011. ORFF, Carl. Catulli Carmina: ludi scaenci. Londres: Ernest Eulenburg, 1990. PAZ, Martha Costa Guterres. Avalovara: leituras musicais. 131 p. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Faculdade de Letras, Porto Alegre, 2010. PINTO, Márcia. Pastoril: educação sentimental e construção do imaginário numa festa popular brasileira. Linhas Críticas, Brasília, v. 8, n. 14, jan./jun. 2002. PEREIRA, Eder Rodrigues. A chave de Jano: os trajetos da criação de Avalovara de Osman Lins: uma leitura das notas de planejamento à luz da crítica genética. São Paulo, 2009. 309f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada). FFLCH - USP. PEREIRA, Eder Rodrigues. Da leitura à escritura: a biblioteca de Osman Lins como parte do processo criador de Avalovara. São Paulo, 2015. 589f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). FFLCH - USP. RIBAS, Elisabete Marin. Giz, caneta e pincel: Literatura e História da Arte do professor Osman Lins. São Paulo, 2011. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada). FFLCH - USP. SADIE, Stanley. Expressão. In: Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. SARKAR, P. Ranjan. Discourses on Tantra. Calcutá: Ananda Marga, 1978. ______. Yoga Psychology. Calcutá: Ananda Marga, 1991. SCHAFER, R. Murray. O Ouvido Pensante. Trad. Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: UNESP, 1991. _____. Voices of Tyranny: temples of silence. Ontario: Arcana Editions, 1993. _____. A Afinação do Mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente sonoro. Trad. Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: UNESP, 2001. 190 STEINER, George. Linguagem e Silêncio. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. STUCKENSCHMIDT, Hans.Heinz. La Música del Siglo XX. Madrid: Guadarrama, 1960. SOLOMOS, Makis. Da música ao som, a emergência do som na música dos séculos XX e XXI – uma pequena introdução, 2013. Trad. rev. Rogério Costa e Carole Gubernikoff. Art Research Journal/ Revista de Pesquisa em Arte, v. 2, n. 1, 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2015. SOUZA, Fernando Falci de; MAIA JR., Adolfo. Complexidade Musical em Síntese Granular. XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Uberlândia, 2011. SPINA, Segismundo. Na Madrugada das Formas Poéticas. São Paulo: Ática, 1982. TRUAX, Barry. Interview Toru Iwatake with Barry Truax. Computer Music Journal, n. 18, v. 3, 1994, p. 17-24. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2015. ______. Genres and Techniques of Soundscape Composition as Developed at Simon Fraser University, 2002. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2014. ______. Soundscape composition as global music: electroacoustic music as soundscape. Organised Sound, n. 13, v. 2, 2008, p. 103-109. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2014. UMA Rede no Ar: Os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Campinas: Papirus. 1992. VILLENA, Marcelo Ricardo. Música ubiqua e paisagens sonoras: possíveis contribuições. Cadernos de Informártica, Porto Alegre, v.8, p. 4, 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2015. WHITE, Eric. Stravinsky. Porto Alegre: L&PM, 1991. WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. WOODROFFE, John. Introduction to Tantra Śãstra. Leeds: Celephais Press, 2008. WORLD Soundscape Project. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2012. YÜ, Chüng-fang. Kuan-Ying: the chinese transformatios of Avalokiteshvara. New York: 191 Columbia University Press, 2001. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2015. OUTRAS REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. O Conto Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2002. BOULEZ, Pierre. A Música Hoje. São Paulo: Perspectiva, 1972. CESAR, Guilhermino. O obstinado Osman Lins. Correio do Povo, Caderno de Sábado, Porto Alegre, 30 set. 1975. ______. Cadernos de Sábado: páginas escolhidas. CAMPOS, Maria do Carmo (Org). Caxias do Sul: Educs, 2008. CHION, Michael. La Audiovisión. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1993. FERREIRA, Ermelinda. Cecília: uma surdez em mim. Eutomia: Revista de Literatura e Linguística, v. 1, n. 13, 2014. FERRETI, Ulises. Entorno Sonoro del Cotidiano: cinco piezas instrumentales. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2014. _____. Entornos Sonoros: sonoridades e ordenamentos. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2014. FRITOLLI, Luiz Ernani. Ítalo Calvino e Osman Lins: da literatura combinatória ao hiperromance. Universidade de São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). HENRIQUE, Luis. Instrumentos Musicais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. KRAMER, Jonathan. The Time of Music. New York: Schirmer Books, 1988. KRAUSE, Bernie. Wild Soundscapes. Bekerley: Wilderness Press, 2002. LA RUE, Jan. Análisis del Estilo Musical. Barcelona: Editorial Labor, 1989. LINS, Osman. Do Ideal e da Glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977. 192 _____. Guerra sem Testemunhas: o escritor, sua condição e a realidade social. São Paulo: Ática, 1974. _____. O Visitante. São Paulo: Summus, 1979. _____. Marinheiro de Primeira Viagem. São Paulo: Summus, 1980. _____; LADEIRA, Julieta. La Paz Existe?. São Paulo: Summus, 1977. _____. Lisbela e o Prisioneiro: teatro. São Paulo: Scipione, 1994. _____. Domingo de Páscoa. ANDRADE, Ana Luiza (Org.). Florianópolis: UFSC, 2013. _____. O Fiel e a Pedra: romance. São Paulo: Summus, 1979. _____. Quero Falar de Sonhos: textos críticos do autor anteriores a Avalovara. São Paulo: HUCITEC, 2014. LINO, Dulcimarta Lemos. Barulhar: a escuta sensível da música nas culturas da infância. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008. MACHADO, Renata Silva. Planejamento Urbano na Escuta: os sons da cidade. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2014. MENEZES, Flo. A Acústica Musical em Palavras e Sons. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003. NITRINI, Sandra. O pássaro na trama de Avalovara. Revista Eutomia, 2014, n. 13, v. 1. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Literatura e Música: modulações pós-coloniais. São Paulo: Perspectiva, 2002. ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1990. (Debates, 48). SIMONS, Marisa. As Falas do Silêncio em O Fiel e a Pedra de Osman Lins. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999. TALAMON, Gaston O. História de la Musica del Siglo XVIII a Nuestros Dias. Buenos Aires: Ricordi, 1979. TINHORÃO, José Ramos. Pequena História da Música Popular: da Modinha à Canção de Protesto. Rio de Janeiro: Vozes, 1974. 193 THOMAS, Werner. Preface. In: Catulli Carmina: ludi scaenci. London: Ernest Eulenburg, 1990. VILLENA, Marcelo Ricardo. Paisagens sonoras: um processo compositivo através da mimesis de sonoridades. Curitiba, 2013. Disponível em: < http://www.sacod.ufpr.br/portal/artes/wp-content/uploads/sites/8/2013/04/Marcelo-RicardoVillena.pdf >. Acesso em: 25 fev. 2015. WALTER, Roland. Em Busca da Natureza, em Busca do Self. Recife: EDUFPE, 2010. SITES ABRALIC. Disponível em: . Banco de Teses da CAPES. Disponível em: . Banco de Teses USP. Disponível em: . Bíblia Online. Disponível em: . Casa Rui Barbosa. Disponível em: . Instituto de Estudos Brasileiro. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/. Osman Lins: vida e obra. Disponível em: . Teses e Dissertações. Repositório institucional da UFRGS. Disponível em: . Tiro de Letra. Disponível em: . 194 GLOSSÁRIO Fonte: SCHAFER, 2001, p. 361-368. Ecologia acústica é o estudo da relação entre os organismos vivos e seu ambiente. A ecologia acústica é, assim, o estudo dos sons em relação à vida e à sociedade. Isso não pode ser realizado em laboratório. Só poderá ser desenvolvido se forem considerados, no próprio local, os efeitos do ambiente acústico sobre as criaturas que ali vivem Seu principal objetivo é dirigir a atenção aos desequilíbrios que podem ser efeitos insalubres ou hostis. (SCHAFER, 2001, p. 364). Espaço acústico é o perfil de um som na paisagem. O espaço acústico de qualquer som é a área na qual ele pode ser ouvido antes que caia abaixo do nível sonoro ambiental. Evento sonoro - o evento sonoro, como o objeto sonoro, é definido pelo ouvido humano como a menor partícula independente da paisagem sonora. Difere do objeto sonoro na medida em que o último é um objeto acústico abstrato para estudo, enquanto o evento sonoro é um objeto acústico para estudo simbólico, semântico ou estrutural e é aqui um ponto de referencia não abstrato relacionado com um todo de maior magnitude do que ele próprio. Hi-fi – Abreviação de alta fidelidade (high fidelity), isto é, uma razão sinal/ruído favorável. O uso mais geral do termo ocorre em eletroacústica. Aplicado aos estudos da paisagem sonora, um ambiente hi-fi é aquele onde os sons podem ser ouvidos claramente, sem estarem amontoados ou mascarados. Comparar com Lo-fi. Limpeza de ouvidos – Um programa sistemático para treinar os ouvidos a escutarem de maneira mais discriminada os sons, em especial os do ambiente. Lo-fi – Abreviação de baixa fidelidade (low fidelity), que é uma razão sinal/ruído desfavorável. Aplicado aos estudos da paisagem sonora, o ambiente lo-fi é aquele em que os sinais se amontoam, tendo como resultado o mascaramento ou a falta de clareza. Comparar com Hi-fi. 195 Marco sonoro – O termo deriva de landmark – marco divisório – para referir-se ao som da comunidade, que é único ou possui qualidades que o tornam especialmente notado pelo povo dessa comunidade. Objeto sonoro – Pierre Scaeffer, inventor desse termos (l’object sonore), o descreve como um “objeto acústico para a percepção humana e não um objeto matemático ou eletroacústico para a síntese”. O objeto sonoro é, então, definido pelo ouvido humano como a menor partícula independente de uma paisagem sonora e é analisável pelas características de seu envoltório. Embora possa ser referencial (isto é, um sino, um tambor etc), o objeto sonoro deve ser considerado basicamente como uma formação sonora fenomelógica, independente de suas qualidades de referencia como evento sonoro. Comparar com evento sonoro. Paisagem sonora – O ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente. Projeto Paisagem Sonora Mundial – Projeto sediado no Estúdio de Pesquisas Sonoras do departamento de Comunicação da Universidade Simon Fraser, Colúmbia Britânica, Canadá, dedicado ao estudo comparativo de paisagem sonora mundial. O Projeto nasceu em 1971, e desde então se tem realizado um grande número de pesquisas nacionais e internacionais relacionadas com a , percepção auditiva, o simbolismo sonoro, a poluição sonora etc., tentando unir as artes e ciências dos estudos sonoros para desenvolvimento da interdisciplinar Planejamento Acústico. Eis as publicações incluídas no Projeto Paisagem Sonora Mundial: The Book of Noise, The Music of Enviroment, A Survey of Community Noise By-laus in Canada, The Vancouver Soundscape, Dictionaryof Acoustic Ecology, Five Village Soundscapes e A European Sound Diary. Ruído – Etimologicamente, essa palavra (noise) pode ser remetida ao francês arcaico (noyse) e ao provençal do século XI (noysa, nossa, nausa), mas sua origem é incerta. Existe uma variedade de significados e nuanças de significados, os mais importantes são os seguintes: 1 Som não desejado. The English Oxford Dictionary contém referencias a ruído como um som não desejado já em 1225. 196 2 Som não musical. O físico do século XIX Hermann Helmholtz empregava o termo ruído para descrever o som composto por vibrações não periódicas (o farfalhar das folhas) em comparação com os sons musicais, que consistem em vibrações periódicas. Ruído ainda é utilizado, nesse sentido, em expressões como “ruído branco” ou “ruído gaussiano”. 3 Qualquer som forte. No uso geral de hoje, a palavra refere-se particularmente aos sons de intensidade forte. Nesse sentido, uma lei que trate da redução do ruído proíbe certos sons fortes ou estabelece limites permissíveis numa escala de decibéis. 4 Distúrbio em qualquer sistema de sinais. Em eletrônica e engenharia, ruído significa qualquer perturbação que não faça parte do sinal, como a estática em telefone ou o chuvisco na tela de televisão. A mais satisfatória definição de ruído para uso geral é ainda a de “som não desejado”. Isso torna ruído um termo subjetivo. O que para uma pessoa é música pode ser ruído para outra. Mas mantém aberta a possibilidade de haver, em determinada sociedade, mais concordâncias do que discordâncias a respeito de que sons se constituem em interrupções não desejadas. Deve-se notar que cada linguagem preserva sutileza únicas de significado para as palavras que representam o ruído. Assim, na França, fala-se de bruit de um avião a jato, mas também de bruit de passarinhos ou o bruit das ondas. Comparar com o ruído sagrado. Ruído sagrado – Qualquer som prodigioso (ruído) que seja livre da proscrição social. Originalmente, o Ruído sagrado refere-se a fenômenos naturais como o trovão, erupções vulcânicas, tempestades etc., pois acreditava-se que representassem combates divinos ou ira dos deuses para com o homem. Por analogia, a expressão pode ser estendida aos ruídos sociais que, pelo menos durante certos períodos, têm escapado à atenção dos legisladores da redução de ruído, como os sinos de igreja, o ruído industrial, a música pop amplificada etc. Sinal sonoro - Qualquer som para o qual a atenção é particularmente direcionada. Nos estudos da paisagem sonora, os sinais estão em contraste com os sons fundamentais, exatamente do mesmo modo que “figura” e “fundo se opõem na percepção visual. Som fundamental (Fundo) – Em música, o som fundamental identifica a escala ou a tonalidade de uma determinada composição. Ele fornece o som fundamental em torno do qual a composição pode modular, mas a partir do qual outras tonalidades estabelecem uma relação especial. Nos estudos da paisagem sonora, os sons fundamentais são aqueles ouvidos continuamente por uma determinada sociedade ou com uma constância suficiente para formar 197 um fundo contra o qual os outros sons são percebidos. Exemplo disso poderia ser o som do mar para uma comunidade marítima ou o som das máquinas de combustão interna nas cidades modernas. Com frequência, os sons fundamentais não são ouvidos conscientemente, mas atuam como agentes condicionadores na percepção de outros sinais sonoros. Por isso eles têm sido relacionados com o fundo, no grupo figura/fundo, da percepção visual. Comparar com sinal sonoro. Silêncio – O silêncio pode ser ouvido? Sim, se pudéssemos estender nossas consciências para o exterior, em direção ao universo e à eternidade, poderíamos ouvir o silêncio. Pela prática da contemplação, pouco a pouco os músculos e a mente relaxam e o corpo se desenvolve, tornando-se gradualmente um ouvido. Quando atingem um estado de liberação dos sentidos, os iogues indianos ouvem anãbata, o som “sem ataque”. Então, se atinge a perfeição. O hieróglifo secreto do universo se revela. O número torna-se audível e flui, enchendo o receptor de sons e luz. 198 APÊNDICE – Seleção de cenários sonoros para cada tipo de som CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA Mar Água do lago em Paris TIPO CENÁRIO SONORO Malmequeres desbotados em um velho pedaço: de jornal o céu da madrugada empalidece (ouço o mar percutindo na amurada) Nós perto do lago, reclinados. O som de uma pequena orquestra encrespa a superfície da água. Homens nus da cintura para cima, alguns com chapéus ou com tatuagens, meio deitados, de frente para o lago. As águas crepitam, com um rumor de folhas secas pisadas ou revolvidas sem cessar pela brisa. [...] Fico ante a janela envidraçada olhando as espirais de detritos e de pó grosso. Sob essa mesma janela, quando chove, as águas pluviais gorgolejam, sorve-as não sei que conduto dissimulado nas lajes. Esse rumor e o vento bravo do pátio são na casa as duas coisas não compradas e impostas pelo dono, as únicas. Aposso-me de ambas e a elas me prendo. Hayano rompe o silêncio e me pergunta: “Por quê?” Para ele, tudo tem causa, por força. Pela centésima vez deixo de responder e o silêncio instala-se novamente entre nós. Insiste, feita a pausa, sua voz neutra e um pouco ansiosa: “Qual foi o motivo? Tenho o direito de saber”. TEMA PÁGINA O19 A19 171 190 Gorgolejar das águas pluviais O24 243 I - SONS NATURAIS Som de pedra ou de mergulho de rãs na Ouço bater de asas e mergulhos sucessivos de pedras ou rãs. água Rumores sobem da copa o estanho da bacia sob o jato forte da torneira tilintar de talheres água louça deposta Jato de água de torneira no granito tinir da pia e as vozes. A) Sons da água, do ar e do fogo Incerto, sopra o vento entre as antenas e os altos anúncios sobre os edifícios. Dourado rumor de abelhas, Vento semelhante a uma chuva, desce do Sol sobre a cidade em decomposição. Trovão Relâmpagos arabescos convulsos lento rolar dos trovões estrondos dos trovões carradas de pedrouços entornados sobre lastro de madeira uma explosão atira-os para o ar a sala treme cintilam cristais lustres vidros caixilhos moldura nuvens de chuva açoitadas edifícios pára-raios antenas de TV. Tempo incerto, com rápidas pancadas dágua, trovões surdos, a chuva fustiga a vidraça do meu quarto de fundo em Montparnasse e logo as nuvens se vão, brilha efêmero o céu deste fim de primavera e ventos leves tocam as flores nos outros soturnos peitoris. Os fogos, nos campos, tornam-se mais vivos. Sugadas pelo vento, as chamas alongam-se, levitam, voam em direção a esse ímã invisível. Passam na rua soldados a cavalo, as ferraduras batendo forte nas pedras - e eu em luta. A lamparina crepita, a chama intensifica-se, apaga-se, o quarto fica às escuras: eu em luta. Cães latem e silenciam, passa uma ambulância, há explosões longínquas. Eu luto. Pássaros começam a trilar sobre o telhado, eu luto, a débil claridade da manhã penetra pouco a pouco no quarto, delineando os móveis e as paredes, delineando a inimiga e eu luto, luto ainda. E11 T15 O12 N2 321 232 74 354 Chuva Labaredas de fogo A18 T14 160 220 Chama de lamparina O18 147 199 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO Canto dos pássaros de Hermenilda/Hermelinda Grito ou canto de pássaros em geral Ruflo das asas de pássaros CENÁRIO SONORO Prossegue a música de Hermelinda, a que os pássaros respondem [...] aves cantantes (corto e cruzo nomes de pássaros: papa-campinas, xeúnas, ós, galos-decapins, rios, curinás, caxéus, sagrabiás); o rústico instrumental, em toda parte a evocadora valsa de Hermelinda, em toda parte as gargantas ativas dos pássaros [...] Cantam pássaros, discretos, ocultos nos ramos. O vento agita de leve seus cabelos. À noite, a casa de Hermenilda e Hermelinda, sem a cantoria que a luz diurna aciona nas gargantas dos pássaros, dá a impressão de ser menor. Algum (há pesadelos de pássaros?) Solta um pio aflito e ouve-se por vezes uma surda agitação de asas ou de rostros. [...] ouço mover-se um pássaro entre os ramos da árvore: defronto, ouvindo-o, a mulher e o céu de sempre, cândidos, novamente acobertando, sob aparências reais e assim mesmo truncadas, suas identidades secretas. Canários ainda imprecisos novas réstias cruzam o ar ladra o chão matinal o Sol multiplicado um galo refletindo-se nas casas canta sob pedras um cachorro breve muitas estrelas ressurgem chão e casas perdem a intensidade esvai-se com o retorno do Sol [...] canários cruzam o ar, um galo canta matinal, ladra um cachorro e chão e casas, ainda imprecisos [...] Quase na hora do seu trem, Roos.” Seguimos lado a lado, as valises na mão, rumo às plataformas de embarque, nomes sonoros precedem-nos, os nomes da nossa viagem, desolam-me a altura do teto, das escadas, as dimensões da estação, seus espaços inóspitos, essa aridez, passamos ante a banca de revistas, ofereço-lhe algumas (Burda, Stern), cruzamos a borboleta, ouço apitos de trem e gritos de pavões, a paisagem alpestre e as luxuosas vivendas desfilam sob a chuva. Os urubus planam mais baixo e as aves miúdas ampliam os intervalos entre um vôo e outro, pulsam mais tempo nos ramos ou nos fios elétricos. Lançam pequenos gritos inquietos e parecem ao mesmo tempo desejosas de fugir e entorpecidas, como sob os olhos de serpentes. Leio para Cecília o conto concluído, representação talvez do mundo que conheço e onde velhas vozes inclusive em mim - buscam impor verdades cuja substância esgotou-se para sempre. Minha mãe varre o chão em redor das redes. Vozes de gansos e de galos erguem-se em outros quintais sossegados. Dormimos ouvindo isto e o rumor do mar forte ou distante, segundo as marés. Canta um sabiá, à distância ou ocluso. Na fronde do seu múltiplo corpo? No seu corpo ou no mundo, outros pássaros e galos escutam-no, respondem. O seu perfil nasce da sombra e o darão do amanhecer delineia as rugas do lençol. As vozes dos batráquios e dos tantos insetos, invisíveis, tecem na sombra, entecem, fios de voz enlaçam fios de voz. Um cavalo ruço, sem arreios, as clinas caídas e puxando uma corda, procura descobrir o que comer entre os arbustos de folha acre. Sopra a intervalos entre os beiços. As batidas dos cascos no chão mole soam como breves fórmulas enigmáticas trocadas entre a Terra quieta e o seu sentimento de estar vivo, ele, um animal de carga, velho e de juntas emperradas, agora em repouso, vasculhando ocultos verdes. Afluem, misturados com a respiração do mar e o rumor - agora menos forte - de suas investidas na praia dos Milagres, sons imprecisos de clarinete, de flauta, de viola, o pigarro com que o Tesoureiro se impõe, vozes joviais dos meus irmãos e irmãs, doze; na cadeira de balanço, a Gorda, instigada pelo bicho, dobra a risada. Sinto de maneira mais intensa, a intervalos, o cheiro de umidade. Apurando o ouvido, posso distinguir, nesses segundos, dentre os rumores vagos, algum salto de peixe. TEMA PÁGINA T5 A21 T12 88 256 185 Pássaros movendo-se nos galhos de árvores R21 333-334 I - SONS NATURAIS Pavão A17 153 B) Sons de animais Urubus R13 157 Gansos T17 267 Galos R16 264 Batráquios T13 204 Salto de peixe T2 59 200 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Existe o Pai? Nele e em torno dele: um rumor sem silêncios, cortiço ressoante de abelhas, a Eternidade ressoando: em torno dele e nele. Abelhas zumbem soando: em torno dele e nele. Abelhas zumbidoras, suspensas - não se movem - em toda a extensão do Tempo e do Mundo. Muito havendo convivido com as águas e à força de ler na superfície, diz o pescador: "Aqui há peixe". Onde? Quantos? Não sabe e o peixe é veloz: não pára ante o anzol e as interrogações. Uma mosca, bêbada talvez do cheiro de cavalo, zumbe no quarto, pesada. [...] tenho o rosto sobre o sexo de , cheiro de mar e de capim sob a chuva, canta uma cigarra em algum verão longíquo, vejo o que sou, o que somos, dois entes escondidos, destinados a solver o insolúvel, sós na madrugada e no mundo, extraviados, batidos, habitados por visões, e clamo "O que será de nós?", a voz, abafada, vibra como se eu gritasse, intensa, "O que será de nós?" [...] Trilam as grilas, noturnas; as cigarras zunem. Silenciam as cigarras de novembro, enganadas pela noite que se infiltra entre os ramos das árvores; mariposas começam a agitar-se nos seus esconderijos diurnos e aventuram-se indecisas no meio-dia turvo. O globo de luz estala sobre nós como se um besouro, preso, buscasse escapar. As portas, o estuque, o tecido com rosas cor de chumbo sob o vidro da mesa entre as poltronas, o cheiro do jornal, as paredes pardas, pintadas a óleo, com grinaldas verde-sujo, o realejo, os mosaicos do piso, tudo se aproxima: como os ratos que saem dos buracos quando as casas silenciam. São nove da manhã. Abre-se a porta e os dois irmãos de Cecília invadem o quarto. O mais alto, segurando-me o braço, fala com a boca junto a minha cara; o outro, mais afastado, aponta-me o cano escuro da automática. [...] Ao guardar o manuscrito ouço um ruído no ar, como se um pássaro todo feito de dentes estendesse as asas - e lembro-me da automática voltada para mim. Quem teria furtado o revolver do chalé? Rumor de asas no piso. Mil baratas presas sob as tábuas fazem esforços vãos para voar e roem umas as outras. [...] ela amplia dócil à distância entre os joelhos e começa a falar, os braços soltos, a cabeça sem sossego, cruzam-se vozes discordantes e tumultuosas, um clamor impaciente [...] mais uma vez grita o pássaro [...] os braços luminosos se estendem para mim, uma voz dentre as vozes implora com deleite e autoridade "Vem! Vem!", um grito, os cordeiros soltam um berro de boi no matadouro, [...] Faço-me ao seu corpo, penetrando, mais e mais fundo, voz potente dos cantores, gesto do Portador o cinto na alça do coldre, vultos translúcidos de sépia respiram fora das molduras, o pássaro e o grito ("Raah!"), o relógio o ritmo, a Cidade vôo luz do meio-dia, fundo e mais fundo o mergulho, cego? não. Revelações. [...] falo e Abel, espaço de vozes e vozes e vozes e vozes, múltiplas bocas múltiplas, nossas línguas um laço [...] [...] ele abre a boca exicial e vários cães ou abonaxis latem de uma vez Dois gatos se cruzam, ruidosamente, entre os lampiões amarelos da Ponte Notre-Dame. [...] as cigarras silenciam e neste centro (ou em mim, pois com o centro me confundo) muge um bezerro. TEMA PÁGINA Abelhas R8 43 Moscas Cigarras Grilos Mariposas I - SONS NATURAIS E15 344 T16 R16 249-250 261 Besouro B) Sons de animais R18 286 Barata T16 255 Carneiros / Cordeiros E16 346 Cães Gatos Bezerros N2 A21 E15 357 259 345 201 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Canários ainda imprecisos novas réstias cruzam o ar ladra o chão matinal o Sol multiplicado um galo refletindo-se nas casas canta sob pedras um cachorro breve muitas estrelas ressurgem chão e casas perdem a intensidade esvai-se com o retorno do Sol árvore da noite novas réstias curvas - o Sol multiplicado - refletem-se nas pedras sob a árvore, canários cruzam o ar, um galo canta matinal, ladra um cachorro e chão e casas, ainda imprecisos, ressurgem da noite breve, muitas estrelas perdem a intensidade, esvai-se com o retorno do Sol, crescente ainda fino, o núcleo central da mancha escura ao longo da divisa, na coxilha povoada de rebanhos, de carneiros e de bois atordoados, as garças afastam as , asas, ouço vozes indistintas de adultos e meninos vindas das ruas próximas ou dos corpos de mariposas feridas pela passagem da pesada ave do eclipse e pela volta do Sol debatem-se no calçamento TEMA PÁGINA Bois I - SONS NATURAIS R22 334 B) Sons de animais Cavalo , do corpo tangível e do corpo que, oculto como o céu das e no ar em redor dos corpos de profusas imagens, números, letras e riscos, contempla-me de dentro de si mesma. O zumbido, mesclado com o bater de cascos de cavalo e o som de um guizo (eu cerro os punhos), define-se: motor de automóvel. As ondas alcançam-na e também molham o cavalo. Grito, em vão, o nome de Cecília e desço as pedras. Ninguém a quem pedir ajuda. Cecília, lívida, ferida, [...] Impossível tirá-la de sob o cavalo, que continua lutando, as veias do pescoço encordoadas. Afrouxo os arreios, ele soergue o corpo e eu carrego [...] Movimento algum. Respira? Um salto de peixe. [...] Olho em redor. Ninguém, ainda. O vento tange para longe o chapéu. Tomo entre as mãos o seu rosto, os olhos sempre abertos, indiferentes à luz. Tu e a rede, Abel. Por que não mergulhas? Urros apagados de leões. Chamo-a ainda uma vez, mas este chamado já é pobre de convicção, embora eu não queira, não possa admitir que Cecília, macho-fêmea, força e compaixão, doadora e beneficiária, Cecília, esteja morta. Vívida impressão de que o cortejo nos segue, invisível - mas o tênue e compassado rumor dos nossos passos dissolve-se no silêncio. O carro fúnebre invade o subsolo de S. Paulo e sons da superfície chegam até à morta através das galerias negras; tambores e soldados em marcha compassada, correrias, galope de cavalos, o rolar dos veículos e o embate das línguas. Através da noite, Anneliese Roos e eu, silenciosos, nas ruas de Amsterdam. Todas as casas com as janelas fechadas. Bicicletas nos passeios, ainda úmidas da rápida chuva de maio. Ouvimos os nossos passos vagarosos e contemplamos o reflexo das lâmpadas no calçamento. O braço de Roos pesa docemente e com indefinível esquivança sobre o meu. Sou um recinto no qual penetrou e de onde logo irá embora um pássaro fugidio. Sob as pedras molhadas - ou em algum quarteirão remoto - vozes de homens cantando, risos, rufar de tambores, tropel. Nos arredores desta nova cidade que descubro, uma das tantas encontráveis em Roos e, como as demais, deserta, ressoam as músicas que ela e eu dançamos abraçados. R12 107 Leões T17 271 Passos de andar ou de correr II - SONS HUMANOS Marcha compassada A) Sons do corpo Tropel A10 R20 65 308 A1 21 Passos de dança A20 195 202 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO O parque de diversões, com as suas luzes perdidas na escuridão circundante, ela e eu no carrossel que range em torno do eixo, rangem as tábuas do piso se passa algum dos outros raros hóspedes; [...] range o mar nas bocas e nas barrigas dos peixes, ouço ou julgo ouvir, rosto contra rosto, um crepitar de chamas: as pranchas de carvalho rangem sob nossos pés, [...] propaga-se em ondas amplas o rumor do mar [...] Praia Grande a música estridente do parque e faz ranger a janela grossa, [...] rangem os baús e a cômoda, [...] rangem em mim os ossos, rumor da mala, aves noturnas rangem, rangem no ar. (LINS, 1995, R 3, p. 15). Raul Nogueira de Albuquerque e Castro, o Tesoureiro, ao tempo dos fogos de artifícios e de alpendre enfeitado com lanternas, compraz-se em repetir, entre um pigarro e outro, dando palmadas nas coxas, essas palavras da Gorda. Agora, serrado o fêmur, segue dentro da noite pela Avenida Norte. Meus olhos pesam e todos vamos em silêncio. Cruza o salão Cara de Calo, gesticulando, entre as carteiras vazias, colocadas sem o menor sentido de ordem e protegidas por grandes folhas verdes de mataborrão. Circula o sangue nas veias com um rumor de cascavéis. Respiramos? Enchem-se os pulmões de madressilvas, de vidrilhos e de penas de pavão. Ecoam, no silêncio, nossos suspiros, meus gemidos e as surdas palavras que ele me sopra. Mais escura a sala e agora um clarão trêmulo. Longa e decrescente sucessão de trovões, nascida sobre nós, entre nuvens que não vejo, desce em direção a todos os pontos do horizonte. Uma cúpula. [...] Cecília [...] Nossos dedos se entrelaçam. O calor da sua pele e o sangue martelando o pulso fino, fazendo vibrarem as argolinhas de prata e as pecinhas de ouro. Reencontro o meu sonho híbrido, agora acrescido dos múltiplos rumores de panos dilacerados e de uma febre que me lavra. Iludo-me, procurando expulsar do corpo a febre por um esforço da vontade. A febre aumenta e eu sinto o coração estourar, bombeando o sangue em fogo. Grito, a febre castiga-me, os olhos fixos no lençol que parece adquirir então um significado, conquanto nada veja, sobre ele, das imagens ou letras que a superfície virgem e imóvel parece anunciar ou esperar. Sofro, solitário, sem ajuda possível - estou fechado à chave e não ouso mover-me - e só do meu corpo batido pela febre espero socorro. Ainda os rasgões rápidos e raivosos, lenços, cobertores, vestidos. O carneiro, num salto, levanta-se e dá alguns passos, vendo a cabeça. Apuro o ouvido. Um assobio fino e significativo, vindo não sei de onde, atravessa-nos. As ondas quebram, bastante longe de nós. Outro silvo, este mais agudo, responde ao primeiro. Do lado oposto? Sim. Dois novos assovios indicam haver movimentos na sombra, próximos de nós — ou demarcam o cerco. O cerco . Vejo desfilarem os minutos como se o tempo fosse uma paisagem, esses campos cultivados que ficam para trás, com girassóis, papoulas, gavelas de feno. Que viagem é esta? Para onde vou ao certo e com que fim? Os segundos moem-me, rolam em mim como pedras, pois cada momento abriga a possibilidade de que Roos venha e fale-me. As escadas em hélice. Roos com a mão estendida em direção ao pássaro. Bato palmas para que ele voe, para que eu não me enrede na armadilha. Gritos repercutem na vitrina. Uma mulher, não longe de mim, insulta um homem; sem responder, ele espanca-a, corta-lhe as palavras com mão lenta e firme. TEMA PÁGINA Ossos rangendo R3 15 Pigarro T11 167 Gesticular Respiração II - SONS HUMANOS Suspiro A) Sons do corpo Circulação sanguínea T10 T17 O22 T16 149 268 217 254 Batimento cardíaco E14 340 Assovio T14 221 Bater palmas entre si ou palmas contra o corpo A15 128 Pancadas no corpo (espancamento) A9 61 203 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO QUANTIDADE Aplausos, tambores, cornetas e vozes cruzam o oco do circo, desligam-se as chaves dos carros e no silêncio do meio-dia estalam os ossos humilhados da morta, estalam, quebrados por dentes ou instrumentos de ferro. Artistas aparecem, gente de outros países, alguns com sandálias havaianas, por trás dos vestiários bale uma cabra, aproximam-se da morta os pobres domadores e acrobatas estrangeiros, mas os carros dão a volta e partem, acelerando. [...] ouço o ruído abstrato dos seus beijos, mas ele já não beija a minha pele, beija o espaço entre as coxas, de joelh Cecília range os dentes e atira a cabeça para trás. Falham, por vezes, ou tornam-se mais leves as passadas da mulher que segue junto à freira, como se ela abrandasse o peso do corpo, atenta ao estalar de juntas, às tosses ao arrastar de urinóis e às frases cortadas que enchem os dormitórios. A freira adiantou-se, abre a porta e o casal aparece à luz da vela [...] Levanto-me e estalo os dedos para o gataco. Ele dá-me as costas e arranha o sovaco da minha mãe, sonso. Aplausos, tambores, cornetas e vozes cruzam o oco do circo, desligam-se as chaves dos carros e no silêncio do meio-dia estalam os ossos humilhados da morta, estalam, quebrados por dentes ou instrumentos de ferro. Artistas aparecem, gente de outros países, alguns com sandálias havaianas, por trás dos vestiários bale uma cabra, aproximam-se da morta os pobres domadores e acrobatas estrangeiros, mas os carros dão a volta e partem, acelerando. [...] intensificam alegremente a música, oscilamos abraçados, rosto contra rosto, as tábuas rangem com o mover dos corpos, tão crispados este abraço que os meus punhos vibram, cada vez nos cingimos com mais veemência, não sabemos como interromper o abraço e decerto iremos agora rebentar em soluços. Fabordão. [...] ressurgem as duas mulheres a quem amo em pontos afastados dos anos e do mundo, que me atravessam, as quais me confio, que em dado momento concentram e assumem minhas obsessões, trituro entre os molares os seus nomes e os dois nomes como que se fundem, o primeiro nome: claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume de fogos, o segundo: Cecília, guarnecida de virilidade, essas a quem amo e ante as quais, humilde e assombrado, subvejo a face - cheia de vozes e signos — do mundo, eis que ressurgem. Introduzo as primeiras alusões, difíceis e abafadas, entre as pausas de e a língua se contorce quando falo. Ouve -me? As luzes apagadas no carrossel imóvel e nas barracas, as ondas se desfazem e as nossas vozes confundem-se, solenes e inflamadas, boca contra boca, a verdade rangendo em nossos dentes, sem artifícios e também sem capciosa ênfase. As linhas quase sempre ocupadas dificultam minhas tentativas de obter ligação, tanto para a Rosa e Silva como para o Serviço Social. Quando consigo falar, outros respondem. Deixo recados ou reponho o fone com uma praga surda. A testa ainda no chão, começo a balbuciar. Meu pai e minha mãe acreditam que eu esteja possessa do demônio. Falo aos solavancos, sem pensar, sem nexo, minhas palavras são pus, minha boca um abcesso aberto, falo sem parar, às vezes murmurando, aos brados em seguida, e assim como antes muitas palavras se formulam em mim sem que as pronuncie, falo agora de coisas que estão fora do meu entendimento. TEMA PÁGINA Aplausos R19 297 Beijo Ranger de dentes Estalo de juntas O19 T16 R16 173 249 263 Estalo de dedos A) Sons do corpo T10 153 II - SONS HUMANOS Estalo de ossos da Natividade R19 297 Rosto contra rosto R17 279 Conjunto de sons do ato sexual R15 226 Conversas ao telefone B) Sons da voz Primeiras falas da T16 255 O14 98 204 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Sigo-a e com sintaxe escolar digo não saber qual merece contemplação mais prolongada ou atenta: se ela ou a rosa que tem entre as mãos. O vocabulário precioso torna a frase impessoal. Apenas deixando entrever que me ouve, e imitando, no seu andar vagaroso, a cadência dos versos, Anneliese Roos começa a declamar num tom de salmodia: La Rose est te, charme des yeux. C’est la Reine qes fleurs dans les printemps écloses. Vejo, num relance, sem neles prender a atenção, tetos cinza-rubros e noto que um sino começa a bater. Pensar que tantas vezes, à mesa do refeitório, falamos da questão de Suez e de como chove em Paris, quando ela é capaz de repetir sem erro versos de Anacreonte! Movido pelo interesse que de mim se apodera, evoco, eu também, outro fragmento do poeta, proclamando talvez a súmula deste curto instante, quando Anneliese Roos, distante, não reencontrável - aprisionada numa juventude imune aos carunchos do tempo -, emitir, sugerida num texto, o seu halo: Sa vieillesse même est aimable, Puis qu' elle y conserve toujours La même odeur qu' aux premiers jours. Assim, a sombra de um lírico grego, vertido para uma língua que não é a de Goethe nem a de Camões por um tradutor do século XVIII, lido por mim numa edição de mil setecentos e tantos cheirando a fumo e a vestidos velhos, em voz alta, junto à cisterna do chalé, enquanto soam apagados os risos da Gorda e as vozes dos meus vários irmãos, fala pelas nossas bocas a dois milênios e meio de distância e estabelece entre nós um liame provisório, mas, não frágil. Um vento inesperado traz o som de vozes, homens cantando. Marinheiros bêbados? Sobrevoa-nos, baixa, uma nuvem de aves, os bicos mudos: parecem voar com raiva. Ecoa na praça, apagado, o brado das cinquenta mil bocas na Praia do Cassino e eu mostro a no céu cada vez mais profundo e estrelado o Nike-Apache - um traço, diamante e fogo. Sigo-a e com sintaxe escolar digo não saber qual merece contemplação mais prolongada ou atenta: se ela ou a rosa que tem entre as mãos. O vocabulário precioso torna a frase impessoal. Apenas deixando entrever que me ouve, e imitando, no seu andar vagaroso, a cadência dos versos, Anneliese Roos começa a declamar num tom de salmodia: La Rose est te, charme des yeux. C’est la Reine qes fleurs dans les printemps écloses. Vejo, num relance, sem neles prender a atenção, tetos cinza-rubros e noto que um sino começa a bater. Pensar que tantas vezes, à mesa do refeitório, falamos da questão de Suez e de como chove em Paris, quando ela é capaz de repetir sem erro versos de Anacreonte! Movido pelo interesse que de mim se apodera, evoco, eu também, outro fragmento do poeta, proclamando talvez a súmula deste curto instante, quando Anneliese Roos, distante, não reencontrável - aprisionada numa juventude imune aos carunchos do tempo -, emitir, sugerida num texto, o seu halo: Sa vieillesse même est aimable, Puis qu' elle y conserve toujours La même odeur qu' aux premiers jours. Assim, a sombra de um lírico grego, vertido para uma língua que não é a de Goethe nem a de Camões por um tradutor do século XVIII, lido por mim numa edição de mil setecentos e tantos cheirando a fumo e a vestidos velhos, em voz alta, junto à cisterna do chalé, enquanto soam apagados os risos da Gorda e as vozes dos meus vários irmãos, fala pelas nossas bocas a dois milênios e meio de distância e estabelece entre nós um liame provisório, mas, não frágil. TEMA PÁGINA Leitura em voz alta A6 39-40 II - SONS HUMANOS Canto B) Sons da voz Vozes de muitas pessoas A10 R18 65 295 Declamação A6 39-40 205 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA Reza TIPO QUANTIDADE Corredores noturnos do Hospital Pedro 11. Apoiada a um bastão, uma freira reza em altas vozes frente às portas dos quartos. Este o lugar onde Cecília, ardorosa e cândida, vive parte dos seus dias, açulando a virtude de exigir nos que aceitam por norma não ter direitos no mundo. [...] Cecília entra (a voz da freira, um instante, invade a enfermaria), entra e abraça-me, calada. Quatro e cinquenta e seis. Sorvo a boca de Abel, falo na sua boca, dentro da sua boca, digo que o amo, com a língua enlaçada em minha língua ele diz que me ama, rola entre nossos dentes a palavra amor. Feita de nuvens grossas, envolve-nos, veloz e prematura, a noite de novembro. Desdobra-se, ecoante, um trovão surdo e móvel: circular. Lucíola, os olhos baixos, finge não ouvir e ignora as risadas. [...] Mesmo o rosto de Isabel, mesmo o seu, curvado sobre o piano e meio oculto entre os cabelos louros, sugerindo, aos treze anos, inteligência e mistério, reflete agora a seu modo o espesso e obtuso rosto do marido, vinte e um anos mais velho do que ela, aposentado, contrabandista amador, ex-foguista de navio mercante e que se serve empurrando com os dedos a comida para o garfo. Aqui estamos, obedecendo a um hábito persistente e inútil, para festejar o aniversário da nossa mãe. Em que evoca este jantar ainda cheio de risos mas impregnado de melancolia, as ruidosas comemorações anteriores a 1950? [...] o Tesoureiro preside a mesa. Tosse, porém, vez por outra e fala sempre que pode no seu novo emprego: fazer cobranças para uma empresa de reputação mais duvidosa que a dele. Roos. R - O - O - S. Ravena, Oviedo, Orleans, Salzburgo. Avenidas desertas, cheias de carros estacionados. As janelas fechadas. Um deserto quase igual ao das cidades de Roos. Reno, Riga, Roma, Rodes, Rotterdam, Ródano, Ruão, ruam e rebentem todas. Único ser humano: o que me segue, sombra. Sagres, Salônia, Sena, Salarnanca, Samotrácia, Sodorna, Saragoça, Sèvres, Sídon e Siracusa, sumam. [...] exclamo convicto que a amo, amo, amo-a, eis que te amo, solto e desatado grito, minha amada, amo-a, falo com três bocas, três são as minhas vozes e se dirigem às mulheres a quem amo. Todas me ouvem: ela me ouve. Alguém me chama de longe, eu, talvez, dentre as ramagens do tapete. - Que é isto? Na pressa com que me responde há um certo desafio: - Furo de bala. Um tiro. A voz, desgovernada, soa com estridência, um grito insultuoso. Sinto a dilaceração e talvez a mágoa da carne, as fibras estouradas e saradas em nódulos, um vácuo. O sol pisano sobre os mármores dos monumentos e as velhas fachadas ocres ou rubras margeando o Arno. No centro do Batistério, o eco dos meus gritos, três, quatro, ressoando como um sino de bronze. Sua voz lenta, a palavra difícil, a tenra garganta atravessada de agulhas. Natividade ergue as mãos e confessa às duas outras velhas cheia de alegria: "Acreditam? Estou sentindo um perfume de terra. Vou ser recebida! Vou ser recebida por Deus!" A palavra Deus queima a sua boca e ela põe-se a chorar, agitando-se na cama, procurando erguer-se e assentar os cabelos lanosos, certa de estar a caminho de Deus, nos arredores - e talvez até dentro - dos muros do Paraíso. Não sei o que fazer com as minhas próprias bocas e ponho-me a gritar. Línguas para fora, lambo o ar. Ignoro se os meus gemidos marcam o ritmo com que ele bate na entrada do meu útero ou se ele faz dos meus gritos o seu ritmo. São quatro horas e cinqüenta e três minutos. TEMA PÁGINA T17 265 Sussurro O24 262 Risada II - SONS HUMANOS T8 123-124 B) Sons da voz Trava língua A21 259 Chamado E11 323-324 Grito E10 314 Eco de grito A15 130 Choro R19 296 Gemido O22 217 206 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Hayano mexe-se. Atravesso o quarto, nua, abro o guarda-roupa, procuro uma camisa sem tantos enfeites. Dou com a vista num coldre. Vazio? Debruço-me, sopeso-o: contém uma pistola e cheira a cavalo. Dói-me o baixo ventre, eu sinto-me estuprada, tiro a arma do estojo e aponto-a para o vulto debruçado no leito. Existe uma pistola? Então nada falta - constato. Acrescento que a hora se aproxima. Guardo a arma no coldre e a ponho no lugar, no mesmo, de onde a retiro. Contudo, não troco de camisa: visto, com movimentos medidos, a que tenciono substituir. Deito-me, fecho os olhos, ouço-o murmurar. E quando sopra o vento, tão fresco o vento que eu estremeço e me cubro. Adormeço. De súbito, abro os olhos: o vento deve ter apagado a lamparina. [...] Cruzo os braços por causa da frieza, volto-me para o homem adormecido. Ele ressona e eu vejo-o de face. Os três carros do enterro percorrem sinuosos as avenidas e ruas cobertas de veículos [...] o velho corpo [...] a carne desfazendo-se no centro do rumor - de motores, de freios, de imprecações, de passos apressados, de explosões -, suas cantigas das tardes sossegadas indo e vindo em surdina, fio invisível e melodioso enleando a penúria e a prosperidade [...] vai Natividade cada vez mais pesada entre os cimentos e aços de S. Paulo, a cabeça povoada de vozes que se calam e manhãs luminosas que se apagam [...] Apitos prolongados e exclamações dos guardas atravessam as árvores. Vão cerrar-se os portões. Levantamo-nos. Os pés de Roos no saibro, o compassado ritmo do seu andar: o ritmo com que segue, no meio-dia da Loire. os versos de Anacreonte. Ao longe, bate um portão. Andamos entre a rua Direita e a rua das Calçadas, de madrugada, eu e Cara de Calo, atirando pedras nos cães. "Agosto começou, Cara de Calo. Mês de cachorro doido!" Tentamos matar a pontapés as ratazanas que correm de um buraco a outro, assustadas, junto ao meio-fio. Uma mulher meio bêbada, vinda dos lados da praça do Mercado, decide acompanhar-nos, vaiando quando falhamos em nossas tentativas de caçar as ratazanas. Alguém abre a janela num primeiro andar e joga-nos garrafas vazias. Eu e a mulher corremos, ela escorrega e cai, ferindo-se nas pedras. Ajudo-a a levantar-se. Saímos abraçados, ela chorando alto, eu consolando-a. Cara de Calo acompanha-nos, distanciado, as pernas trôpegas. Aproxima-se correndo: "Vou embora". Visita-me o Tesoureiro, na pensão. [...] Difícil reconhecer neste homem sob a lâmpada, grande e amedrontado, sempre tossindo, a mesma figura ríspida, de voz autoritária e gestos largos, que decide tirar a minha mãe da zona com os três meninos sem pai - eu entre eles, casa-se com ela e registra-os como seus, nunca admitindo diferença entre os adotados e os do próprio sangue, engendrados sem pausa naquele ventre que até o vento e as sombras engravidam. [...] Sobem, do térreo, as vozes de outros hóspedes, jogando baralho. Um carneiro nascido das areias e das espumas das ondas acompanha-nos, dócil. De dentro de Cecília, meu pai, entoando uma cantiga dos seus tempos de moço, olha para mim e põe a mão no meu ombro. TEMA PÁGINA Murmúrio O23 240 Imprecação II - SONS HUMANOS R21 316-317 B) Sons da voz Exclamação A6 161 Vaia T7 114-115 Tosse T7 112-113 Canto individual T12 182 207 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. [...] Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. [...] A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de Notre-Dame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. [...] As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre Notre-Dame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. [...] Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? Notre-Dame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite. Inês dirigindo-se com voz de falsete aos pássaros que não existem, dando-lhes água e alpiste. Mas os passos sutis de minha mãe, o arranhar das portas gradeadas e não lubrificadas dos elevadores, as misturadoras de concreto e as serras mecânicas do prédio em construção, buzinas de automóveis, pregões, um amolador de tesouras, parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios, para ocultar o evento verdadeiro, o que me diz respeito e se relaciona com o meu destino - a formação da máquina. Cada vez é mais imperioso ouvir tombarem os vestidos de Cecília na esteira do quarto, enquanto o vento move os ramos do flamboyant; e repetir, sob formas sempre novas, vigiados pelo leão rampante, nosso prazer tríplice. [...] enquanto tenta abotoar um vestido negro, que se adapta mal ao seu corpo. As costuras estalam. [...] quem sabe escutarei dentro em breve no meu corpo as vozes que só ouço pela madrugada e que desde lnácio Gabriel têm sido neste mundo a minha companhia, a única [...] Ouvirei aquelas vozes, o enxame de palavras que jamais distingo e ainda assim me conforta? Cecília e Abel [...] Sem que nenhum dos dois saiba, ou escute, duas bocas, mágicas, falam entre si. Logo ele a verá de um modo novo, vária e múltipla, habitada na carne por visões ou corpos - e sob reverberações, como aclarada pelo Sol rebatido em mil facas oscilantes. Procurar na vida o rumo é igual a buscar, num palheiro, a agulha que pode ter caído em outra parte. TEMA PÁGINA Coro A14 109-110, 111-112 B) Sons da voz II - SONS HUMANOS Imitação de pássaros O21 208 Pregão O15 115 C) Sons de vestuário D) Sons transcendentes, palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e Vestimentas Costuras de roupa estalando Palavras e vozes no corpo da T16 O15 O8 252 119 44 Vozes de Cecília dúplice, andrógina T6 90 208 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO [...] ressurgem as duas mulheres a quem amo em pontos afastados dos anos e do mundo, que me atravessam, as quais me confio, que em dado momento concentram e assumem minhas obsessões, trituro entre os molares os seus nomes e os dois nomes como que se fundem, o primeiro nome: claridade constante, maré resplendente, Roos, cardume de fogos, o segundo: Cecília, guarnecida de virilidade, essas a quem amo e ante as quais, humilde e assombrado, subvejo a face - cheia de vozes e signos — do mundo, eis que ressurgem. Introduzo as primeiras alusões, difíceis e abafadas, entre as pausas de e a língua se contorce quando falo. Ouve -me? As luzes apagadas no carrossel imóvel e nas barracas, as ondas se desfazem e as nossas vozes confundem-se, solenes e inflamadas, boca contra boca, a verdade rangendo em nossos dentes, sem artifícios e também sem capciosa ênfase. Roos e Cecilia [...] essas mulheres tão fundamente amadas que se incorporam para sempre ao mundo, são no mundo uma poeira e um som, eis que as vejo sob uma perspectiva inesperada e que nem assim me espanta. Serias, Roos, em tua flutuação entre o ir e o vir, uma versão mais sutil e antecipadora das oposições de Cecília? O pequeno cálice, o som em meu umbigo, o som, o cálice vibrante continua a soar por muitos dias. Quando, afinal as vibrações esmaecem, há uma presença em mim, uma presença. Algo semelhante a um besouro, não, a uma aranha de movimentos lentos. A máquina, etérea mas real, seu arcabouço intangível invadido em parte pela estrutura concreta do Martinelli, a máquina, varada por morcegos e tão alta que as últimas peças engolfam-se nas nuvens negras, nas nuvens dessa noite sem estrelas, a máquina se move e pousa delicadamente em mim. Gira e zumbe, assemelha-se a um pião em movimento, gira, giro vagaroso, zumbe e quase inaudível é o rumor que produz. Não tenho dificuldades em compreender que a sua lenta formação é puramente simbólica, que nada a impediria de formar-se mais rapidamente e que mesmo o fenômeno da formação da máquina seria dispensável, uma vez que, na verdade, sua existência é anterior à consciência que eu tenho de sua presença e de sua própria fabricação. A máquina, suavemente, gira sobre mim, a ponteira pousada no meu ventre. Seu giro capta os fastos do mundo, a ressonância dos fastos do mundo, mói em suas rodas as coisas e os eventos, verte-os em mim. Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não, bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua austeridade, processa-se em mim uma mudança de estágio, uma sagração. Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista. Corremos através dos passageiros, o grifo do fular comendo as flores: ruge, ladra, brame e canta feito pássaro. O globo apagado, um halo marcando o centro do forro envernizado, sons nas ruas, passos na escada, visível na penumbra a parte superior das paredes, o perfume, cheiro de hortelã, de sândalo - e o lençol pendendo sobre a pintura a óleo, o lençol, não encerrado nos limites do sonho. Ouço, acordado, tecidos rasgando-se: rasgar frouxo de trapos, rasgar cantante de veludos, tenso rasgar de sedas, lonas (som rascante e grave). TEMA PÁGINA Vozes dos corpos em Cecília R15 226 II - SONS HUMANOS D) Sons transcendentes, palavras e vozes associadas à Roos, Cecília e Som representativo da unidade entre Cecília e Roos Cálice vibrante e zumbidos internos à R15 227 O7 40 Som da máquina cônica sobre a i O15 116-117 Sons do grifo do fular de Roos E) Sons imaginados A20 199 Sons de tecidos sendo rasgados E13 338 209 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Ouço um rufar de tambor, é um grande tambor, surge do chão brilhante o cortejo invisível que nos segue, um estandarte sangüíneo ondulando entre lanças de metal sobre os chapéus de feltro cônicos, de abas amplas, um clarão (vindo de Roos?) põe em relevo os rostos vivos dos homens, ornados com perucas que descem até os ombros, destaca as golas engomadas e lisas, as vestes da mulher que se insinua entre eles, a caixa do tambor e, principalmente, o ataviado personagem que vem à testa da ronda. Lanças entrechocam-se, avulta o bater ritmado do tambor, esse rataplã nas ladeiras de Olinda, cada vez mais próximo o tropel das botas com polainas de batista, vozes, risos, risadas, barulho de colares, estalar de línguas, roçar de tecidos, somos atravessados como a própria rua pelos homens, pela mulher que os segue, os tambores vibram em nossos flancos, o estrépito das botas (o mesmo que estremece as paredes do Recife) repercute forte em nossos pés, o latejar dos seus sangues pulsa em nós e ouvimos sobre nossas cabeças descobertas o adejar do imenso estandarte cor de vinho. Arqueólogos, inquietos e não sem a alegria de uma luz velando em seu íntimo, interrogam o hermético texto em espiral grafado no disco de Festo. Sabem que a probabilidade de decifrar o escrito é nula por assim dizer, mas não desistem e voltam sempre a ele. No disco, com os signos não decifrados sucedendo-se em espiral, separados por linhas verticais, há um vozerio incompreensível e que certos ouvidos podem escutar. O texto, vindo de fora, entra no disco pelas bordas. [...] torno à sala de jantar e vejo sobre a mesa, vejo, no centro de um pano redondo de filé, um álbum de fotografias. Não o percebera? Com decisão e rápido, como se no alpendre e nos quartos andasse à caça do álbum, apanho-o. Volto para a rede, examino-o.[MP1] Obras do tempo em que os fotógrafos, não captando o artifício existente na impossível naturalidade dos modelos e ambicionando dar uma impressão de vida aos seus trabalhos, fixam atitudes e gestos só aceitáveis longe da objetiva. O amarelamento das imagens e os danos das traças contestam a dolorosa aparência de ação. - De quem são estes retratos? - Pessoas. Ouço, como em outro ponto do tempo ou da memória, o vozerio e as risadas do Tesoureiro, da Gorda, de Leonor, de Augusto, de Mauro, de Cenira, de Cesarino, de Isabel, de Janira, de Lucíola, de Damião, de Eurílio, de Dagoberto, de Estêvão, a dispersão e o desacerto já instalados entre nós, sem que ninguém perceba o seu odor nas roupas, nos hálitos e atrás das portas. [...] O mar desfaz-se nas pedras. [...] Vozes e sons de instrumentos musicais rolam pelo declive. A flauta de Eurílio, músico precoce, Leonor com o seu bandolim, os dedos infantis de Janira ou Isabel no piano meio rouco Natividade ergue as mãos e diz às outras duas velhas: "Façam alguma coisa. Não estão vendo toda essa gente no quarto? Vão buscar água e copos. Eles querem beber. Muita sede." Quatro homens carregam o seu caixão. TEMA PÁGINA Representação de sons imaginários a partir da visão do quadro de Rembrandt A Ronda da Noite A10 67 E) Sons imaginados II - SONS HUMANOS Sons ou vozes internos E2 275 Sons de traças roendo fotografias sugeridos ao leitor T5 88-89 F) Sons de lembranças Lembranças T3 68 G) Sons da mente na passagem para morte Voz interna da Natividade na transição entre a vida e a morte 210 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA A) Sons da cidade TIPO Sons urbanos Sons domésticos: chaves na porta, portas batendo, abrir janelas, campainha, louças, talheres, panelas, móveis batendo, móveis caindo, móveis se movimentando, descarga de banheiro. Arranhar de folhas em edificações Vidros de janelas estremecendo Pingentes de lustro de cristal CENÁRIO SONORO Ecoam, com seus dias cálidos e súbitos crepúsculos, os meses desse verão inebriante, como teclas de um órgão calcadas sucessivamente e cujos sons se fundissem. Portas, movidas pela brisa, batiam com brandura nas ombreiras. Ninguém, na lassidão daquelas horas, tinha ânimo de erguer-se, fechar as portas de uma vez ou as abrir. Elas batiam: escala breve e frágil tendendo para o silêncio. Aqueles sons, como as cigarras, eram uma das vozes do verão. O homem: “As dobradiças rangiam?” Sim, algumas, um pouco. Adverte-me a Gorda: “Cuidado, homem. Até onde vai isso? Está durando!” Escutamos as folhas de um flamboyant arranhando as esquadrias (abram-se, em janeiro, suas flores sanguíneas), vemos o ramo que atinge a cortina e invade o aposento, vemos o céu de índigo, imensas nuvens brancas - e não somos vistos. Os rugidos do mar, não muito violentos, morrem aos pés de Cecília. O carrilhão da Sé ondula sobre a tarde de domingo e os vidros estremecem nos caixilhos. Um vento quente invade a sala e as dálias estremecem na mesa, tilintam os pingentes dos lustres, o carneiro se move, vai e vem o grande pêndulo, o Portador entra em casa, silêncio, repõe no gancho o telefone desligado, percorre os cômodos [...] Um cão ladra e responde. As luzes do navio latejam nas paredes, mais rápidas que antes. Tiro a pistola do coldre, volto a fechar a porta, retrocedo alguns passos, fico no centro do quarto. Que dizem os projetores?...Entra e sai da penumbra o perfil de Olavo Hayano. Dou volta à fechadura, cruzo a porta que abre para o corredor. Insegura, distancio-me. Algo, na cena, reflete um determinado momento da minha vida e eu tenho clara consciência disto. Bate uma porta, longe. Estouram as ondas contra as pedras. Volto ao quarto e deixo a porta aberta. A outra, em outro andar, continua a bater. Sento-me ante os espelhos ovais do toucador. O cão late ainda. [...] Eu abro o colo, apalpo a carne do peito e volto sobre mim o cano da pistola. A explosão ressoa como no fundo de uma cisterna. Ficamos lado a lado, apenas de mãos dadas, em silêncio, fixando o estuque, as respirações agitadas. Posso ouvir, através das vozes da cantata e da grande bateria associada às vozes, a marcha do relógio, a serra elétrica e murros numa porta, descontínuos. Falham, por vezes, ou tornam-se mais leves as passadas da mulher que segue junto à freira, como se ela abrandasse o peso do corpo, atenta ao estalar de juntas, às tosses ao arrastar de urinóis e às frases cortadas que enchem os dormitórios. A freira adiantou-se, abre a porta e o casal aparece à luz da vela [...] Pronuncio, como um esconjuro, o nome de Cecília e outra vez adormeço. Quando, ao fim da tarde, beija-me no alpendre e parte (e quantas vezes, ao voltar-se no portão, corre, sobe os degraus, beija-me ainda?), rangem as paredes da casa. O vácuo e o silêncio atingem cada osso. Acendo dois rojões, que explodem e lançam no céu quase noturno luzes de estrôncio e magnésio. [...] Mas o que escrevo ou pronuncio, com estas explosões e riscos luminosos, lançados tão alto, é o nome de Cecília. O som doméstico das xícaras vai atravessando os gritos dos caixas e da clientela, o tilintar dos telefones, o bater das máquinas, os apelos das campainhas, os disparas dos carimbos. TEMA T16 PÁGINA 251 T16 252-253 T15 R19 E14 234 294 339 III - SONS E SOCIEDADE B) Sons domésticos Sons de portas batendo, de dobradiças e de fechaduras rangendo O23 240 Murros ou batida em portas domésticas e de elevadores E10 314 Urinóis R16 263 Ranger de paredes T16 251 C) Sons de escritório Xïcaras, máquina de datilografia, campainhas, carimbos, chamada de telefone, guichês T7 112 211 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Todas as luzes da noite, globos da iluminação pública, esmalte e cromado dos carros, faíscas brancas arrancadas pelo trolley dos ônibus na rede elétrica, letreiros, sinais de tráfego, mármores polidos e vidraças do Edifício Zarvos, letras efêmeras do jornal luminoso, LE MONDE CONSIDERA EQUÍVOCA VITÓRIA DO GOVERNO NO BRASIL, faroletes rubros e luzes dianteiras dos veículos em marcha, tudo liga-se e explode, fogos de artifício, círculo girando e ela o centro do círculo, do fogo. Vibra o claustro de Santo Antônio sob as explosões vindas de fora, da rua do Imperador. Manhã de Todos os Santos. Estou no centro do pátio, sobre as lajes roídas pelas alpercatas dos franciscanos e os sapatos dos visitantes. Outro barco, maior, aporta a isola Bella. Através da chuva, vamos distinguindo os ocupantes vestidos a rigor e as mesas postas, com flores. Protegemo-nos sob um toldo agitado pelo vento. No barco, irrompe uma música festiva - xilofone, flautas-doces, uma corneta, pandeiro, bandolins. Decerto um epitalâmio. Mulheres com chapéus e peliças desembarcam, os garções, enluvados, protegem-nas com guarda-chuvas de gomos brancos e verdes, os cavalheiros, aos saltos, correm com as mãos sobre a testa, um cão põe-se a latir. Tábuas são jogadas no caminho, e mesmo assim molham-se as meias das mulheres, os sapatos revestidos de cetim. Surge a noiva. Há um grito isolado, sem resposta: Viva la sposata! Ressoam palmas úmidas. Com a mão esquerda, estreita o buquê de camélias sobre o peito: com a outra, sustém a grinalda; o véu de gaze, pregueado e amplo, esvoaça. À sua aparição, o vento se levanta, sopra mais rápido, quebra as varetas do guarda-chuva azul com que tentam protegê-la, o véu, a ponto de rasgar-se, ondula, afia, estala à direita e à esquerda dos seus ombros, entra pela boca, emaranha-se nos restos do guarda-chuva, o casal de crianças ataviadas de veludo vermelho que sustenta a longa cauda do vestido esforça-se para mantê-la presa, mas tanto cabeceia o vento nessa vela de rendas enfunada que a moça vacila, a ponto de voar. Da capela para onde se dirige o cortejo vem um som de órgão. [...] O vento e as ondas rosnadoras do lago misturam o hino sacro com a música profana executada no barco. As pastoras, vibrando os pandeirinhos enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Seus pés e o grande laço vermelho e azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto. Modesto Canabarro, a barba branca, ginga à frente da orquestra que vem pelo alpendre. Dirige-se a Gorda para Cecília, beija-a no rosto, chorando de alegria e faz questão de tomar a sua mala. O gataco corre nos seus peitos, salta para o meu ombro, passa para os ombros de Cecília, acompanha-nos, sobe outra vez pelas ancas da Gorda. Os pobres e encardidos homens da orquestra DEIXA FALAR, descalços, entram conosco. O cheiro de suor mescla-se ao perfume das laranjas maduras e dos lírios. Ecoam, ensurdecedores, nas salas e quartos da casa, os instrumentos e as quatorze vozes agudas das meninas. Irrompe o carneiro entre seus vestidos longos. O gataco precipita-se dos cabelos da Gorda e corre para Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Eis-nos: o Velho com os joelhos dobrados, a cauda do fraque voltada para um lado e o gataco dentro da cartola, os músicos sustentando o trombone, o bombo, o clarinete, o pistão, o bombardino, as dançarinas estáticas, mãos a ponto de ferir os pandeiros, a Gorda conduzindo a exígua bagagem de Cecília, Cecília entre os músicos, de costas, porém com o rosto voltado para mim, rindo sobre o ombro e eu meio curvado, como quem fosse prender o carneiro nos braços. No céu límpido - não um céu noturno, mas um céu tumultuado, onde noite e dia coincidem -, no anel do horizonte, brilham constelações desconhecidas, tanto sobre os tetos das casas como do lado do mar. Na calmaria, o som das águas se espraia, passa sem fazer sombra um bando de pássaros, uma onda cor de breu ondula com mais ímpeto ao longe, cintilante, o refluxo cumpriu-se e a preamar da tarde se anuncia forte. Algumas bandeiras ainda pulsam, as cores demudadas e envoltas desde o extremo do mastro numa espécie de névoa, um reflexo tenso e sufocado. TEMA PÁGINA Fogos de artifício, rojões R6 25 Festivais religiosos T13 205 Música nupcial III - SONS E SOCIEDADE A16 134 D) Sons de celebração e de festivais Pastoril T17 266-267 Tremular de bandeiras em eventos públicos R18 285 212 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA Jogo de tênis TIPO CENÁRIO SONORO Adolescentes jogam tênis e no céu quase noturno perpassam relâmpagos. Um dos jogadores, inexperto, atira a bola em minha direção. Curvo-me para apanhá-la e fico imóvel: creio ver Roos num banco, as róseas pernas cruzadas, pensativa. O Chrysler negro e a viatura do Exército seguem o carro mortuário através dos pequenos quarteirões do Jaçanã, com crianças descendo as ruas ladeirosas sentadas em carrinhos primitivos, a estridência das rodas de metal no asfalto coberto com um lençol fino de areia, outras brincando sobre montes de barro em terrenos baldios, velhas roupas secando ao sol de outubro ou de novembro, muros guarnecidos com arame farpado, pequenas automecânicas graxentas, escuros botequins, o quadro-negro à porta anunciando pratos populares em letras de alvaiade, calhambeques transportando mudanças – trastes desconjuntados, trouxas, eletrodomésticos e gaiolas de pássaros -, centros espíritas, canta um canário no silêncio e certas ruas permitem uma visão fugaz: montanhas longínquas entre tetos baixos e postes de cimento. No silêncio, as delicadas unhas do cordeiro soam como pisadas de potro. (Entramos num parque de diversões. Roos, despenteada, as fontes porejadas de suor, as mangas da blusa dobradas a altura dos cotovelos, leves manchas rosadas no rosto e até nos braços.) Na sala central do Palácio vejo o trono, vazio, rodeado de leões dourados e árvores de prata, com pássaros de pedras preciosas cantando eternamente nos seus ramos . O cordeiro estremece e afasta-se balindo: numa dessas árvores, há uma serpente verdadeira. Seguimos de mãos dadas, Roos cantando em voz baixa uma romança do Reno, a fita e as abas do chapéu aflando, as passadas largas. Normalmente, seu andar é outro, comedido. Giramos na montanha-russa, e, tal como um dia, em Chambord, em meio ao ruído de inúmeros motores de dois tempos, brado o seu nome, brado o seu nome em círculo e o som das vogais ondula com a ondulação das cadeiras sobre os trilhos. Subimos na roda-gigante, vemos os telhados, os horizontes, o mundo, com ambas as mãos ela ergue o fular, o grito fantástico e as flores voam sobre nossas cabeças, encho os pulmões de ar e pronuncio Roos, lentamente, Roos, o nome forma agora um círculo na vertical, a roda se engalana com as flâmulas, os rastros e as guirlandas do R, do 0, do 0, do S, e de súbito, no alto, o chapéu de Roos desprende-se, regira entre os raios da roda-gigante, é erguido pelo vento e levado para longe com a longa fita verde. Passam na rua soldados a cavalo, as ferraduras batendo forte nas pedras - e eu em luta. A lamparina crepita, a chama intensifica-se, apaga-se, o quarto fica às escuras: eu em luta. Cães latem e silenciam, passa uma ambulância, há explosões longínquas. Eu luto. Pássaros começam a trilar sobre o telhado, eu luto, a débil claridade da manhã penetra pouco a pouco no quarto, delineando os móveis e as paredes, delineando a inimiga e eu luto, luto ainda. Ouve-se um bater de roupa, de tapetes, de portas, de louça, de bilros, de talheres e a voz de Natividade cantando, voz alegre e forte, indo e vindo. Mas os passos sutis de minha mãe, o arranhar das portas gradeadas e não lubrificadas dos elevadores, as misturadoras de concreto e as serras mecânicas do prédio em construção, buzinas de automóveis, pregões, um amolador de tesouras, parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios, para ocultar o evento verdadeiro, o que me diz respeito e se relaciona com o meu destino - a formação da máquina. TEMA PÁGINA A18 161 Carrinho de lomba R18 286 E) Sons de entretenimento III - SONS E SOCIEDADE Roda gigante A20 197 F) Sons de protestos e de repressão Protestos de rua e bombas de efeito moral O18 147 Bilros G) Sons de instrumentos de trabalho R9 55 Amolador de tesouras O15 115 213 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. [...] Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. [...] A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de NotreDame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. [...] As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre Notre-Dame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. [...] Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? NotreDame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite. O complexo ferroviário (FFSS), quilômetros de trilhos, de dormentes, postes inúmeros, cabos elétricos, locomotivas, pessoal da estrada e de escritório, regulamentos (VIETATO), horários (PARTENZA), estações (SOTTOPASSAGIO), controles eletrônicos, rádios, ligações telefônicas, uma roleta imensa e bem lubrificada onde migro durante treze dias, sempre com insucesso, em rápidos, expressos, noturnos e composições de bitola reduzida que seguem devagar e se detêm em muitas estações, entredormido sobre a trepidação das rodas, ou procurando um modo de obter, com perguntas de través, indicações sobre o que procuro. As pastoras, vibrando os pandeirinhos enfeitados com fitas coloridas, cantam na sala. Seus pés e o grande laço vermelho e azul nos cabelos da Diana marcam o ritmo do canto. Modesto Canabarro, a barba branca, ginga à frente da orquestra que vem pelo alpendre. Dirige-se a Gorda para Cecília, beija-a no rosto, chorando de alegria e faz questão de tomar a sua mala. O gataco corre nos seus peitos, salta para o meu ombro, passa para os ombros de Cecília, acompanha-nos, sobe outra vez pelas ancas da Gorda. Os pobres e encardidos homens da orquestra DEIXA FALAR, descalços, entram conosco. O cheiro de suor mescla-se ao perfume das laranjas maduras e dos lírios. Ecoam, ensurdecedores, nas salas e quartos da casa, os instrumentos e as quatorze vozes agudas das meninas. Irrompe o carneiro entre seus vestidos longos. O gataco precipita-se dos cabelos da Gorda e corre para Modesto Francisco das Chagas Canabarro. Eis-nos: o Velho com os joelhos dobrados, a cauda do fraque voltada para um lado e o gataco dentro da cartola, os músicos sustentando o trombone, o bombo, o clarinete, o pistão, o bombardino, as dançarinas estáticas, mãos a ponto de ferir os pandeiros, a Gorda conduzindo a exígua bagagem de Cecília, Cecília entre os músicos, de costas, porém com o rosto voltado para mim, rindo sobre o ombro e eu meio curvado, como quem fosse prender o carneiro nos braços. Crava as unhas no meu dorso, passam músicos na praia, abraço-a com força, uma flauta, um violão, um trombone, uma rabeca, os pés descalços dos músicos na areia, nossos corpos oscilando [...] TEMA PÁGINA G) Sons de instrumentos de trabalho Forno A14 109-110, 111-112 III - SONS E SOCIEDADE H) Sons diversos Controles, roletas, rádios, ligações de estação de trem telefônicas A17 153-154 I) Música Música folclórica T17 266-267 I) Música Música popular de rua R17 279 214 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. [...] Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. [...] A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de NotreDame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. [...] As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre Notre-Dame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. [...] Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? NotreDame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite. Bate o relógio algumas pancadas, trecho incompleto da frase musical que dizem só de tempos em tempos pode ser ouvida. Ponho um disco na vitrola: Catulli Carmina. A penumbra da sala parece iluminar-se com a entrada imediata do coro. Eis aiona! Eis aiona! tui sumo Nos pés descalços sinto os fios dos tapetes, os fios, poderia dizer que sinto os seus desenhos, cores, flores, motivos geométricos. Eis aiona! (Sempre) eternamente, sempre, a ti pertenço. Tui sumo TEMA PÁGINA Salmo "In convertendo dominus" de Andre Campra A14 109-110, 111-112 I) Música III - SONS E SOCIEDADE Cantata Catulli Carmina de Carl Orff O6 41 [...] o relógio de J. H. [...] À primeira vista, nada, nessa máquina, desperta atenção; a não ser, talvez, certa majestade que emana do seu porte, o movimento compassado do pêndulo — um segundo para ir, um para Fragmentos da introdução da Sonata K voltar — e a limpidez com que estão desenhados, em algarismos romanos, os números do quadrante. No mais, 462 para cravo de Scarlatti no relógio de é um relógio como os outros e só um pouco mais alto, em seu gênero, que a média. Entretanto, soam as horas J.H. (um número incôngruo de notas) e então passamos a vê-lo com olhos novos: os sons diversos dos que ouvimos em geral, surpreendem-nos. Cresce nossa estranheza ao percebermos que não se repetem, antes variam nas horas seguintes, sem que possamos alcançar a lei — pois há de haver uma – que rege tais mudanças. Tambores [...] tombam hastes de prata sobre um tambor de bronze, com um ruído tão sutil e intenso que se ouve à distância [...] As pastoras, enrugadas, sujas, batem pandeiros feitos com couro de culhões, as bocas arrolhadas com caralhos. Destino puto e amargo. Todos se vão. Numa trilha, a passo, de costas para mim, vai o cavaleiro solitário, assoviando. Entra numa zona sombria. [...] Os dentros de Cecília estão vazios e as ondas vão arrastando para o mar o cavalo atrelado. O mar devora o lugar onde Cecília morre. Ao longe, dois vultos aproximam-se correndo. [...] Então, fico de quatro pés, ponho a testa no chão, enfio os dedos nas beiradas do sedenho, e brado, cago, brado, clamo para o mundo, puto, soluçando, puto da vida, falo pelo rabo, blasfemo pelo rabo, entre os dentes do cú que a terra come, cago no chão com a boca, todo eu me transformo no esgoto do verbo, cagando palavras mortas, cascas de palavras, dentro da morta, nem eu próprio as reconheço, estranhas, falar é nada e ninguém mais me ouve, eu não me ouço, ninguém mais, ninguém. O mar bate nas pedras. O rumor emaranhado de sinetas e chocalhos corta o violento ruído dos ônibus, dos táxis, dos gritos, dos passos, dos silvos, dos golpes, como se bois, éguas de carga e cabritos soltos galopassem no [...] P2 175 P7 289 J) Sons de Instrumentos musicais Pandeiros T17 273 Chocalhos R22 335 215 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Dezenas de pessoas seguem-nos, rápidas, entre as barracas dos vendedores de flores, haverá um concerto em Notre-Dame. [...] Sentamo-nos, frente a frente, sob o toldo verde do café. Todas as luzes estão acesas na praça. Passam veículos quase sem cessar e nem sempre consigo ouvir a voz de Roos, que orienta a conversa num sentido ao mesmo tempo neutro e pessoal. [...] A estátua de Carlos Magno, sob as luzes fortes da praça, parece revestida numa armadura de aço e claridade. Cessa um instante o desfile ruidoso dos veículos, flui de NotreDame a abertura de não sei que Marcha Triunfal, os calos dos construtores dos órgãos deslizam pelos tubos. [...] As cem vozes do coro descem das ogivas sobre a rue du Cloitre Notre-Dame, trituradas pelo barulho dos veículos. Parecem, mesmo assim, envolver numa pátina de sonho as cadeiras amarelas do café, suas lâmpadas cônicas, as luzes da praça, Carlos Magno entre as árvores com a armadura úmida e do outro lado do rio o perfil dos velhos edifícios. [...] Um rumor confuso se levanta, não sei onde, o rumor que vem de um grande forno aceso quando a tampa se abre. Funde-se com as vozes do coro e com a orquestra, mais uma vez vencendo a trepidação sempre menos intensa dos veículos. Conheço o que agora cantam: o Salmo "ln Convertendo Dominus", de Campra. Colhe-se realmente entre canções quando em pranto jogamos as sementes? NotreDame, um navio ressoante entre os ruídos brutos da noite. Soam algumas notas do piano. Tudo semelhante aos sons de outros tempos. Algo parece faltar, entretanto, nos sons, no rosto da desconhecida, na voz magoada e vagamente perversa. Nós, duas velhas, vivemos das pensões todo mês recebidas na delegacia fiscal e de alguma ajuda vária, rodeadas de gatos e canários, tocando bandolim (uma de nós, apenas) com dedos meio surdos, tudo como determinado. Alguns retardatários - vindos de onde? - detêm-se, conversando em voz alta, à altura da praça Antônio Prado, um toca clarinete, executa uma valsa, a execução tem qualquer coisa de um arrastado monólogo de bêbado. Ainda ouço, longe, o clarinete, quando surge um vozerio, gritos confusos, inumeráveis, extraviados em alguma distante transversal. De súbito, atravesso um pórtico, um limite (ouço as vozes dos irmãos, os sons dos seus instrumentos) - e aceito, fendido da cabeça ao calcanhar pela visão da minha fraqueza absoluta, aceito a verdade, resignado, como os privados dos bens vagos e concretos da Terra, amoldo-me à verdade e começo a viver no mundo sem Cecília. [...] O cavalo, ainda atrelado, debate-se nas pedras. Mundo filho da puta. Afluem, misturados com a respiração do mar e o rumor - agora menos forte - de suas investidas na praia dos Milagres, sons imprecisos de clarinete, de flauta, de viola, o pigarro com que o Tesoureiro se impõe, vozes joviais dos meus irmãos e irmãs, doze; na cadeira de balanço, a Gorda, instigada pelo bicho, dobra a risada. Sinto de maneira mais intensa, a intervalos, o cheiro de umidade. Apurando o ouvido, posso distinguir, nesses segundos, dentre os rumores vagos, algum salto de peixe. Aplausos, tambores, cornetas e vozes cruzam o oco do circo, desligam-se as chaves dos carros e no silêncio do meio-dia estalam os ossos humilhados da morta, estalam, quebrados por dentes ou instrumentos de ferro. Artistas aparecem, gente de outros países, alguns com sandálias havaianas, por trás dos vestiários bale uma cabra, aproximam-se da morta os pobres domadores e acrobatas estrangeiros, mas os carros dão a volta e partem, acelerando. Um casal almoça no meio de um trigal ainda verde, a mulher sentada e o homem reclinado. Aparece em meio à plantação, de braços dados, um casal de noivos, os acompanhantes dançam, alguém toca uma rabeca cujo som não chega ao ônibus. O casal que almoça acena para os noivos. TEMA PÁGINA Órgão A14 109-110, 111-112 Piano III - SONS E SOCIEDADE Bandolim J) Sons de Instrumentos musicais T9 T1 136 51 Clarinete O15 117 Instrumentos musicais em geral T17 271 Flauta transversa e viola T2 59 Corneta R19 297 Rabeca A5 36 216 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Alcança-me, cada vez mais longínquo, nas escadas sombrias, o som de um realejo e a mesma melodia, incansavelmente repetida, filtra-se com a luz vesperal entre as cortinas da sala. [...] O globo de luz estala sobre nós como se um besouro, preso, buscasse escapar. As portas, o estuque, o tecido com rosas cor de chumbo sob o vidro da mesa entre as poltronas, o cheiro do jornal, as paredes pardas, pintadas a óleo, com grinaldas verdesujo, o realejo, os mosaicos do piso, tudo se aproxima: como os ratos que saem dos buracos quando as casas silenciam. Tomamos o metrô e ela segura a minha mão, porém de modo fugaz (cerca-a um som apagado de fanfarras) enquanto subimos no elevador da Cité. TEMA PÁGINA J) Sons de Instrumentos musicais Realejo R18 285-286 Conjunto instrumental A14 T17 109 273 III - SONS E SOCIEDADE Ouço o rolar, sobre mim, do carro e do cavalo, um trovão duro, frio, rodeado de dentes e de garras de aço, um Sons do cabriolé batendo nas pedras com ser redondo, ventoso, feito cem leões e tão luminoso que me acende por dentro, batendo no chão, nas pedras Cecília molhadas, longamente, crestando-as, lanhando-me as costas, onde está Cecília? Metais rangendo e estalando Rolam as portas de ferro nas lojas, fecham-se com lentidão os cofres-fortes, os escritórios vão silenciando. Os elevadores chegam lotados aos andares térreos. Acelera-se a marcha das pessoas na rua e os veículos arrastamse. Ando pelo chalé vazio. Atento ao desejado som dos sapatos de Cecília (cruze o portão e venha, atravesse o alpendre, venha!) não escuto os meus passos no mosaico. [...] Range o portão de ferro [...] Cecília, rindo, a blusa amarela, a saia rodada, com desenhos de pássaros e flores, precipita-se em direção a mim, com tal ímpeto que as cortinas vibram. Sinto uma dor na perna, o ombro dormente e ouço dentro do quarto um barulho de ferragens rolando sobre lajedos. Existem a dor, a dormência, os lajedos, os ferros? Nas trevas, continua aceso o abajur de papel. Sua luz, porém, nada ilumina. Um caminhão, já com os faróis acesos, aproxima-se da praça, sem carga, vacilando sobre as pedras. [...] Entra numa rua, o cão enfia-se em outra e o rumor do caminhão - o motor fatigado, a carroceria batendo perde-se em alguma transversal. Nossos relógios marcam doze e cinco, hora da sombra máxima. A voz de Natividade, vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o cheiro de vinagre e o rumor calmo dos bilros, cinerárias e rosas queimadas pelo Sol, rumor de passos nas sendas e o céu uma flor com doze pétalas, agosto à esquerda, fevereiro à direita e à frente novembro. Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de ódio. Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem. T9 136 Portão de ferro batendo e/ou rangendo K) Sons diversos de metais, madeiras vidros e Ferros rolando sobre lajedos outros Metais se chocando T15 233 T7 115 R20 303-304 Madeiras batendo entre si R22 322 217 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO Ranger de madeiras CENÁRIO SONORO Ressoa o mar nos vãos silenciosos da noite. Ela e eu, nus, de mãos dadas, no leito. Rangem a cama e as tábuas do quarto com o pulsar violento do meu sangue e do seu. Quem será este, frente à catedral? O Assomo Anônimo? O Não-Sendo? O Furado-às-Avessas? Ele: o que nasce em outro lugar e só surge onde está quando se foi. Muda de cor, como se muitos discos transparentes - azuis, verdes, vermelhos - flutuassem, cruzando-se, entre o Sol e a praça. Ele e os passantes, os veículos, o chão, a face ensolarada dos prédios. Volto-me: imensa, vacilante, cristalina e leve pirâmide de corrupios vem e pousa, mais elevada que as torres, ante a catedral, sem interromper ou alterar os rugidos de vagos animais subterrâneos e as vozes angustiadas dos meninos que gritam à frente das lojas. Solene. Os corrupios giram, festões unindo as pontas. Abro as mãos. As cores dos corrupios nos meus dedos. As pernas da visagem sobre garras que pousam como sombras, sem agarrar o asfalto oleoso onde se refletem. Triângulo? Ângulo? Não, um A. Garras imóveis, erguido, aproxima-se o A, ouço o giro, os corrupios. O cantar dos pássaros é mais alegre e de alguma parte, longe, vem um rumor de garrafas. Alguém põe-se a gritar na Santa Casa. No meu coração, discordante a princípio e logo em uníssono bate o coração mais novo. Doze anos, seis meses e dois dias vivo nessa casa. instrui-me para o encontro, não mais um encontro como os outros, mas o encontro total, decisivo amadurecemos para isto -, a sua voz soando de modo inesperado, lenta e plácida, com uma nota de solidão, como quem lê uma escritura, sem as irisações e dissonâncias que tanto animam o que diz. [...] Soa o carrilhão da Sé: hora e meia para o nosso encontro. Ainda? Gane, emperrada, a fechadura do quarto, como um cachorro na corrente que deseja fugir. Racha-se, como golpeada, uma folha da vidraça. Desço a escada (o corrimão tem o mesmo odor dos móveis, velho e deteriorado), saio, a tarde abafada, sigo entre vozes e passos rumo à Praça da Sé. [...] Volto-me: imensa, vacilante, cristalina e leve pirâmide de corrupios vem e pousa, mais elevada que as torres, ante a catedral, sem interromper ou alterar os rugidos de vagos animais subterrâneos e as vozes angustiadas dos meninos que gritam à frente das lojas. Andamos entre a rua Direita e a rua das Calçadas, de madrugada, eu e Cara de Calo, atirando pedras nos cães. "Agosto começou, Cara de Calo. Mês de cachorro doido!" Tentamos matar a pontapés as ratazanas que correm de um buraco a outro, assustadas, junto ao meio-fio. Uma mulher meio bêbada, vinda dos lados da praça do Mercado, decide acompanhar-nos, vaiando quando falhamos em nossas tentativas de caçar as ratazanas. Alguém abre a janela num primeiro andar e joga-nos garrafas vazias. Eu e a mulher corremos, ela escorrega e cai, ferindo-se nas pedras. Ajudo-a a levantar-se. Saímos abraçados, ela chorando alto, eu consolando-a. Cara de Calo acompanha-nos, distanciado, as pernas trôpegas. Aproxima-se correndo: "Vou embora". TEMA PÁGINA R6 25 Corrupios R20 307 III - SONS E SOCIEDADE Garrafas K) Sons diversos de metais, madeiras vidros e outros Vidros quebrando O18 148 R20 307 Pedras sendo jogadas T7 114-115 218 CATEGORIA GERAL III - SONS E SOCIEDADE CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Sentada numa poltrona de couro, olho os títulos das encadernações nas estantes. Ouço o rascar da pena no papel. Meu avô se levanta para interrogar os seus fichários. [...] ouço o chapejar soturno dos anéis de chumbo e dos fios encerados. [...] Estes fios no fundo da cisterna, presos nos cornos das trevas, vêm interferir, como um ruído importuno ou a vinda de estranhos, em meu trabalho secreto, a procura cega de uma indicação (o onde, o nome, o por quê) que aplaque em minhas veias o castigo de busca. Ouço o repuxo no centro do jardim e o rumor dos veículos nas ruas que o circundam. Roos, com um vestido vermelho, vem ao meu encontro. Pesadas gotas de chuva, prateadas de sol, tombam com um leve ruído em seu redor . Com o tremor das mãos, devo ter arranhado a outra face do disco, um choque rítmico e desagradável fere as melodiosas vozes dos cantores. As rodas dos automóveis, na avenida, deslizam e freiam, as rodas, rente a meus pés; o rumor da serra numa construção, agudo, atravessa meu corpo; mal vejo minhas mãos, os olhos turvos. Eu na sala, de pé, curvada sobre o disco em movimento. Um choque rítmico. Nós, num táxi de molas ruidosas e já áspero o couro das poltronas, dando voltas indecisas entre as ruas do Progresso, da Soledade, das Ninfas, Conde da Boa Vista e Padre Inglês. [...] Cecília, abraçada a mim, estremece: move a cabeça apoiada no meu ombro, negando. [...] O suave vento noturno, cheio das vozes que pervagam nas ruas, atenua a dor das feridas. O temporal armado a janela aberta sombreando a sala passar dos carros ganido das buzinas teus cabelos enlaçados nos ramos do tapete parecem haver crescido o Portador comprime as orelhas com as mãos abre a porta desce pela escada o vazio em torno dele os dois carneiros sobem no sofá a marcha dos ponteiros quatro e cinqüenta e quatro a marcha do mecanismo de som o raio a explosão outra explosão outra explosão pausa breve o estrondo e ainda outra explosão vibram as folhas de vidro nos caixilhos tua beleza um rugido no teu rosto a serra mecânica descargas hidráulicas bater de porta as exclamações os beijos a vertigem o rumor no teu sexo de laranjas sugadas ou expremidas abre-se a porta do Chrysler os vultos dos retratos interpostos entre nós e as paredes seu odor naftalina madressilva pó vagos borrões amarelos nos chapéus ano 1910 nos véus nas rendas nas botinas um clarão na sala seus espectros lívidos vem a chuva grossa respingos soprados pelo vento molham o chão ela alteia as ancas bate no meu dorso implora morde-me a boca. [...] até que noite fechada, novamente em Chambord, após esse dia febril e abundante em imagens, ouço aproximar-se um ronco, um estrondo e me vejo envolvido pelos faróis de dezenas de motocicletas, conduzemnas rapazes com blusões de couro, moças nos porta-bagagens, enlaçando-os, cruzam-se as máquinas em ziguezague, os motoristas, todos de negro, gritam uns para os outros calcando os aceleradores, os faróis trespassam-se na noite, novos veículos chegam, ninguém desliga o motor, o trovão vindo do ar e da terra me rodeia, levanto os braços em meio ao turbilhão de pneus, luvas, rostos, canos de escape, guidões e jatos ofuscantes - e brado, mãos nos ouvidos, o nome de Roos, um grito longo, o mais longo que posso, no bojo do bramido provocado pelos setenta motores de explosão e com tal violência que enrouqueço. Como se estivessem à espera deste apelo, quase a um tempo só, os motores emudecem e os faróis começam a apagar-se, quase a um tempo, e eu me vejo livre das vespas, dos seus aguilhões, mas fendido, sem fôlego, só, rodeado de estranhos. TEMA PÁGINA O20 178 Rascar da pena no papel K) Sons diversos de metais, madeiras vidros e Sons de rede de pescar outros T2 60 Motor de veículos automotivos A21 257 Freio de veículo O19 172 Molas de veículos automotivos IV - SONS ELETROMECÂNICOS T14 224 A) Sons de veículos automotivos Porta de automóvel E16 348-349 Motocicletas A8 50 219 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO A voz de Natividade, vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o cheiro de vinagre e o rumor calmo dos bilros, cinerárias e rosas queimadas pelo Sol, rumor de passos nas sendas e o céu uma flor com doze pétalas, agosto à esquerda, fevereiro à direita e à frente novembro. Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de ódio. Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem. Alterado o acordo existente entre mim e tudo que forma este momento (o ritmo da viagem, a constância do vento e da rotação do motor), levanto a cabeça. O vento, com força crescente, sopra sobre mim vindo dos manguezais e infla-me, infla-me, eu cresço. Não só o vento: sou invadido pelo vento e pela rapidez. Infla-se o meu peito contra o vento como a vela do relevo, enfuna-o a rapidez — e de repente, colhida no ar, na velocidade, ocupa-o sem nele caber, feita de vento e de aceleração, a imagem de Cecília. Esta presença e o nome, o seu, que se forma na garganta, um laço, coincidem. Não o pronuncio e o laço me sufoca. Súbito, desata-se, desata-se o nome, um corte na garganta, o nome se pronuncia, banha-me o peito, rubro, um leque. Brilhante e rubro. Uma pulsação — e apaga-se, o leque. O ônibus retorna a marcha anterior. Silva o vento, as ondas se sucedem, salta a embarcação, range o madeirame. Uma das freiras, ainda muito jovem, tosse sem parar. Não estaremos em nosso próprio velório? Trinta cadáveres vogando sob a chuva, entre destroços. A cerração, balsas de salvamento, refletores, sereias, Roos fragmentando-se, um cosmos, cidades vazias de seres humanos, vindas de inúmeros pontos da Terra e precipitando-se no lago, como os porcos possessos de Gerasa, porém em silêncio e não sem grandiosidade. Falham as manobras para atracar. A embarcação vibra de proa a popa, cheia de asas e de nadadeiras tortas e o casco de madeira bate no molhe, seguidamente, com um ruído cavo. - Você prometeu não procurar-me. Sua voz mistura-se com o rumor dos êmbolos e das rodas nos trilhos, parece deslizar sobre esses sons duros, deslizar como um óleo, amaciando-os. São três ou quatro horas da manhã quando afinal se completa. Não se ouvem rumores no edifício ou na cidade. Apenas, com intervalos mais ou menos longos, o ranger de um bonde sobre os trilhos, talvez rodando vazio. Entro no elevador, subo para o alto do edifício. [...] As peças de tração do elevador rangem e estalam. é a primeira a ver, na amplidão de um azul cada vez mais profundo, o rastro branco e ascendente do segundo foguete, um Nike-Javelin, apontando-o com a mão esquerda adornada de anéis, enquanto o grito da multidão aglomerada na praia do Cassino aclama o vôo e ecoa - um urro - sobre os telhados. Uma frota de grandes aviões a jato, emissários da NASA, voando a tal altitude que confinam o imaginário, estudam os círculos solares. TEMA PÁGINA Caminhões R22 322 A) Sons de veículos automotivos IV - SONS ELETROMECÂNICOS Ônibus T13 203 B) Sons de Barcos transporte náutico A16 132 Trem C) Sons de tração eletromecânica Bonde Elevador Foguetes Avião a jato A15 O15 O24 R13 R19 129 116 246 157-158 295 D) Sons de aeronaves 220 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA Carro de bois E) Sons de tração animal Cabriolé TIPO CENÁRIO SONORO Voa bem alto um gavião, voa acima das nuvens, o braço esquerdo mantendo-me à distância, pássaros - alguns dos quais identifico - cantam escondidos, sob os pêlos úmidos, velado, seu sexo atento, um casal de canários pousa no cajueiro e foge, discretos espasmos nos joelhos macios, zunem nos eixos, nota incerta e sem fim, as rodas, um carro de bois [...] À distância, rede lançada na cisterna do mundo, surge, vindo ao longo da praia, um cavalo puxando um cabriolé descoberto. [...] Ouço, de permeio com o rumor das ondas, o bater surdo e ainda distante, mas não muito, das patas do cavalo. O cavalo aproxima-se a passo e o cocheiro parece não ter pressa. As rodas vão desenhando na areia, lentas, dois sulcos paralelos. Habitantes de Cecília agora nos rodeiam, felizes e um pouco assustados O carro negro, com o ataúde de Natividade, pára no cruzamento, perdido entre automóveis, ônibus e misturadoras de concreto. [...] Dois únicos veículos acompanham o carro fúnebre: uma viatura do Exército e um Chrysler negro, com algum uso, lataria e vidros espelhando. O motorista, mãos firmes no volante, ignora o tumulto, estilo de ação que repudia e considera ameaçador (não vá proliferar, na desordem, algum princípio insólito). Grupos de operários, com, amarelos e vermelhos, capacetes vermelhos e amarelos, núcleo ruidoso de geradores móveis, perfuratrizes elétricas, lanternas, esburacam o asfalto, ferramentas e avisos de HOMENS TRABALHANDO, esburacam perto do Correio, do Correio, o estridor das máquinas, chão e paredes das lojas estremecem, o estridor, abafam o estridor o ruído dos motores e as buzinas raivosas dos transportes que despejam, a cada dia útil, nesta área, quatro milhões e seiscentas mil pessoas, a cada dia útil, vindas de todas as nascentes de todas as nascentes dos ventos e depois e depois arrastam-nas de volta, o asfalto, operários esburacam o chão. O Vale do Anhangabaú e os dois e os dois viadutos sobre ele, parte da Av. São João, a passagem de nível no encontro dessas duas artérias dilatadas e todas as ladeiras, todas, ruas, largos, travessas e alamedas, todas, num raio que se amplia, HOMENS TRABALHANDO, vibram sob o peso dos veículos. Os pedestres entre os carros atravancam-se entre os carros, os pedestres, tensos, as caras fechadas, alguns, pedestres, correm, estugados por varas implacáveis, solo e paredes tremem, estridor. A voz de Natividade, vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o cheiro de vinagre e o rumor calmo dos bilros, cinerárias e rosas queimadas pelo Sol, rumor de passos nas sendas e o céu uma flor com doze pétalas, agosto à esquerda, fevereiro à direita e à frente novembro. Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de ódio. Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem. A voz de Natividade, vindo e vindo, de numerosas tardes, vindo, plácida, vozes, o cheiro de vinagre e o rumor calmo dos bilros, cinerárias e rosas queimadas pelo Sol, rumor de passos nas sendas e o céu uma flor com doze pétalas, agosto à esquerda, fevereiro à direita e à frente novembro. Os filhos assistem à passagem do enterro e só o olhar da puta é de ódio. Escavadeiras amarelas trabalham perto do muro, caminhões descarregam madeira e ferro, ouvem-se as vozes e os risos brutos dos homens, o bate-estacas abala o meio-dia e as serras mecânicas zunem. TEMA PÁGINA E15 343 T17 269 Misturador de concreto IV - SONS ELETROMECÂNICOS R13 159 Perfuratrizes de rua e geradores de energia F) Sons de equipamentos de construção e demolição R20 304 Escavadeiras R22 322 Bate-estacas R22 322 221 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Aos nove anos de idade, ainda não falo. Não sinto a voz em mim. Pareço um cão humano ou uma possessa infantil, uma criança carregando em si o demônio da compreensão e da mudez. Tudo ouço – ventar, baterem as portas, risos, jato das torneiras, ordens, pulsar o coração, veículos na rua, pássaros cantando - tudo ouço, mas não me aventuro a repetir esses sons e tudo para mim é indecifrado. As palavras sobressaem-se do meio dos ruídos, mas tão-só como fios de outra substância em um novelo inextricável. Distingo-as, nem sempre com muita nitidez. Há um casal de crianças maiores do que eu e semelhantes a mim. Ferem-me com alfinetes, jogam sal nos meus olhos, molham minha roupa de dormir, batem-me na cabeça. Sei que haverá um código, um sinal para chamar-me. Procuro descobri-lo no confuso ir e vir das coisas que me cercam. Será um som, será um odor, será uma cor, uma claridade? Por vezes, percutem um martelo, ou me deparo com a fachada de um prédio, ou vejo desenhos num muro, ou cravo as unhas na pele. Abraça-me este homem (para mim se dirige há tanto tempo que não mais se recorda desde quando), uma serra mecânica corta tábuas de pinho, vai e vem no relógio o pêndulo em forma de sistro, um vento morno move as dálias sobre a mesa, sobe da avenida um rumor confuso de veículos. Roos [...] Vejo-a no visor, diminuta, invertida, difusa, com seu vestido rubro, sorrindo, olhando-me, uma flor na mão (fui eu que trouxe a flor?), de perfil, a máquina estala entre meus dedos, clique do obturador, passar do filme, Roos, fugidia e móvel, presa em flagrantes imóveis, nos quais amanhã, depois, depois, tentarei recuperar [...] Com o tremor das mãos, devo ter arranhado a outra face do disco, um choque rítmico e desagradável fere as melodiosas vozes dos cantores. As rodas dos automóveis, na avenida, deslizam e freiam, as rodas, rente a meus pés; o rumor da serra numa construção, agudo, atravessa meu corpo; mal vejo minhas mãos, os olhos turvos. Eu na sala, de pé, curvada sobre o disco em movimento. Um choque rítmico. O cortejo diminui a marcha e aguarda a abertura do sinal. À direita, vindo de um parque de diversões exíguo, soa rouco e invisível um alto-falante: invade, estridente, as casas de muros muito baixos e onde as folhas das plantas, nas nesgas de jardim, lembram pedaços de sola. Evocam, essas presenças alheias, as suas próprias matrizes, existentes no corpo encantado de Cecília? [...] as prostitutas nas sacadas da Rua Bom Jesus, mostrando a língua ao ritmo das músicas que as vitrolas tocam alto nas salas [...] o tilintar das moedas tornando o Cais mais desértico, todos podem existir na carne de Cecília [...] O vento matinal agitando nas calçadas silentes algumas folhas caídas pela madrugada. O dia uma planura clara e virgem a espera dos homens. Cecília telefona-me. Vago nos museus (Guimet, Instrumental, Armeniano), ouço rádio (ONU, Leo Ferré, Sierra Maestra, Suez, Charles Trenet) enquanto escrevo cartas que nem sempre envio ou sento-me nos parques, ocioso. TEMA PÁGINA Martelo F) Sons de equipamentos de construção e demolição IV - SONS ELETROMECÂNICOS O4 26 Serra mecânica O1 19 Obturador de máquina de fotografia A21 258 LP arranhado G) Sons de equipamentos fotográficos e eletrônicos de som O19 172 Alto-falante R19 293 Vitrola T12 185-186 Rádio A18 160 222 CATEGORIA GERAL CATEGORIA TIPO CENÁRIO SONORO TEMA PÁGINA ESPECÍFICA H) Sons de armas Sons de tiro, de gatilho e de inclusão de O Portador, com um golpe seco e exercitado, enfia o pente na coronha áspera; guarda a arma na bainha de E15 344 de fogo pente de balas couro. O ritmo da vida e dos sinos de Eltville (aí nasce Anneliese Roos e aí vivem os seus) repercute em tudo que faz: no andar, nos gestos, no falar. A língua de Racine, que utiliza de um modo literário, digno e até elaborado, com uma pronúncia na qual a exatidão constituiria a única falha, adquire, interposta entre idiomas diferentes - os idiomas que cada um de nós traz do país de origem e que o outro não fala um sentido mágico e benévolo: nós, sem ela, dois mudos. O sino bate duas pancadas e mais uma, agudas. Nove e meia? Dez e meia? Há quanto tempo estou aqui, ante Anneliese Roos? Em meio a essa galeria composta e descorada, onde já inclusive se dissolve a identidade dos modelos, salta-me de súbito entre as mãos uma foto pouco hábil, datada de um mês, tirada em algum espetáculo circense: uma jovem sorrindo para a câmara, tendo nos braços um leão ainda novo, amordaçado. No verso, em letras achatadas e vagamente pretensiosas, esta inscrição: Cercília não tem medo de leões. 15, junho, 1962. Cortado, porém, o R do nome. Ouço (na estrada?) sons precipitados, cruzados, rodas e eixos, uma estrutura pesada desmembrando-se. O álbum estremece em minhas mãos. Movimento algum na estrada: a mesma paz. Mas Cecília, a que não tem medo de leões - as grades e a sombra vertical das grades barrando seu vestido amarelo -, abre o portão. Inicia, abrindo-o, uma frase metálica: o tilintar da pulseira no antebraço frágil, com pequenos astros e moedinhas de ouro, o ranger do ferro nos gonzos não lubrificados, o badalo de bronze na campainha de cobre, suspensa de um arco flexível de aço. Cai a aldrava no encaixe, pesada. O mesmo ruído, o mesmo, de uma jaula cerrando-se. Cecília, a Madona dos leões? (Não temos copo e bebemos nosso vinho na garrafa. “Conhece Dáfnis e Cloé?” O cordeiro deitou-se a nosso lado, tilintam seus guizos.) A grande roda, com seus inúmeros guizos, enferrujada e com fitas de crepe voando entre os raios, sai do mar e vem girando em minha direção. Futuro e sonho, certeza e segurança, projetos engendrados na inciência, fodamse. Esfarrapados, doentes, trôpegos (surgem de onde?), deixam o corpo de Cecília como quem deixa uma cidade empestada. Uma nuvem de pássaros escuros, vindos do mar e multiplicando-se nos ares, cobre por um momento o Sol e uma noite breve, ilusória, escurece a praia e o mar. [...] A roda passa por mim, refazendo o trajeto da tarde jubilosa em que Cecília e eu, com o pastoril, seguimos de mãos dadas pela praia. Mordo os ovos do engano e cuspo-os, mastigados. Apesar da cantata, do passar dos veículos e da serra mecânica novamente ativa, ouço-a arfar e tilintarem as pulseiras nos alvos braços carnosos. Sinos da igreja de Eltville A4 29 Outros sinos de igreja IV - SONS ELETROMECÂNICOS A14 111 Sinos pequenos domésticos A) Sinos, gongos e guizos T5 89-90 Guizos do carneiro A20 196 Guizo da roda de metal de oito raios T17 272 Tilintar de pulseiras metálicas E11 322 223 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO Motores e buzinas, vozes confusas, passos, silvos estridentes dos guardas de trânsito. Na sua garganta, nasce e repete-se um apelo inarticulado, nasce e repete-se (a palavra, talvez, que devo encontrar?), repete-se, ecoa entre as clavículas, grito sufocado (não, não é ainda a palavra, a frase, o enunciado), nos sons sem forma e lacerantes eu reconheço meu nome. Apitos prolongados e exclamações dos guardas atravessam as árvores. Vão cerrar-se os portões. Levantamonos. Os pés de Roos no saibro, o compassado ritmo do seu andar: o ritmo com que segue, no meio-dia da Loire. os versos de Anacreonte. Ao longe, bate um portão. Passa o trem do cais, devagar. Seu apito, nasal e poderoso, o mugir de um grande boi de ferro. Dagoberto e eu, no táxi de Damião, seguindo a ambulância com o corpo mutilado do homem que assume ser pai e protetor de quem só possuía mãe e nenhuma proteção.Dagoberto, no banco traseiro do táxi, canta em voz baixa e Damião range os dentes. A ambulância, com a sirena ligada, entra na Avenida Norte. [...] Damião rompe o silêncio: "Que aporrinhação. [...] Abro o vidro do carro; o vento grosso sopra-me na cara. Desligaram a sirena da ambulância. Uma explosão longínqua faz tilintarem os pingentes (faltam alguns) nos lustres de cristal. Também ouço o mecanismo, lento, do alto relógio. Assim, os primeiros anos de Julius Heckethorn passam-se entre carrilhões que soam dia e noite. Pode-se imaginar que os seus sonhos sejam atravessados por um contínuo bater de horas. Com a guerra de 14, dois imprevistos abatem esta criança frágil e propensa a quietude: uma viagem para a Inglaterra e o silêncio dos dias. Adoece, mas não devido a ausência dos pais: anseia pela presença dos carrilhões. Continuam os relâmpagos, mais frequentes e breves, acendendo as pontas amarelas das grades que limitam o Luxemburgo. Ouço um atroar compassado e longínquo de canhões. Soa o telefone, na mesa do Chefe. O som da campainha, estridente, agita os dois andares em silêncio: foge pelas janelas altas, reforçadas por grades cobertas de fuligem. […] Volta a chamar o telefone. Atendo e vários maxilares invisíveis, […] Mais uma vez retine o telefone. Cerro os ouvidos ao telefone que insiste [...] até que o telefone emudece. TEMA PÁGINA Buzinas de veículos automotivos R5 19-20 B) Buzinas, apitos, sirenes V - SONS INDICADORES Apitos de boca Apitos de trens A6 T9 161 138 Sirene de ambulâncias T11 166 Tic Tac do relógio de pêndulo C) Sons do tempo Sons de carrilhões R2 14 P3 211-212 D) Canhões E) Sinais produzidos eletricamente VI - SONS DA MITOLOGIA Tiros de canhões A18 163 Telefones e campainhas T10 148-149 A) Sons do Avalovara Pousam junto a nós e esvoaçam, aos pares, pássaros cujo nome, estrangeiro, me escapa. Roos olha-os de Sons do pulsar do coração do Avalovara relance: a impenetrável e tensa expressão surpreendida em Amboise. Aparenta-se aos seres do ar? Afaga-me a testa. Percebo em sua mão um frêmito de asas e o pulsar, o pulsar, de um coração de pássaro. A20 195 224 CATEGORIA GERAL CATEGORIA ESPECÍFICA TIPO CENÁRIO SONORO [...] afla na sala pássaro feito de pássaros bico rubro diademas e como ataviado em sedas laços flores o pássaro do júbilo da glória do encontro da misericórdia e seu nome é claro um Sol um dia. […] eu sob e sobre, dois e um, sou e somos, "Raah!", o Portador a chuva ondula com o vento toldos agitando-se calçada úmida Avenida Angélica [...] rangem no ar rude peças ferruginosas "Raah!" [...] Cândido peso dos escrotos aprazível peso doces calcanhares nos meus rins abre-me a vara pródiga une-me a vara pródiga golpeio o chão com as mãos cerradas sucções e gritos ferem-me as unhas morde-me o ombro (ondas fortes contra as pedras dos Milagres flores vermelhas dos flamboyants no quadro da janela e urros de leões rondando os tetos das casas) [...] Olavo Hayano a entrada do edifício azulejo policromo com cena de caçada os cordeiros berregam amedrontados [...] ah corpo verbal e ressoante e proliferador eis que supondo invadir-te por ti sou invadido libra-se o pássaro de pássaros em círculos maiores e mais altos roçando chapas como de aço as chapas giram devagar voa o pássaro através pesadas nuvens feridas por relâmpagos [...] Alteia-se ainda um grito, mas tanto pode vir de uma criança aterrada como de alguma ave para mim desconhecida. Agudo, esse grito, distante - "Raah!" - um só.[...] puxo-a e vou sobre ela, grita o pássaro desconhecido, risos e ais estrangulados, seus pés miúdos no ar, [...] [...] o Avalovara [...] Voa em nós e canta. Estranho: canta em duo, com voz humana e repassada de misericórdia. Mordo e sugo o centro do seu corpo, ela repete o meu nome entre repreensiva e deslumbrada, a voz alteia-se e morre num sussuro, suas mãos não param, a cantata melodiosa e áspera, incôngruo vozerio no seu corpo, corre o carneiro, o guizo de metal, grita um pássaro na sala e debate-se, o estalo das asas, a ventania, eu te amo, o Portador sopesa na palma grossa algumas balas, o brilho amortecido da espoleta e do aço, azuis e baços. Um vento move nas trevas os ramos da árvore na praça, inquietando os pássaros, rítmico. Abano de plumas, rítmico, a cabeleira de pulsa ao sopro compassado. Ouço um ruído áspero e vindo de grande altura, como se todas as portas da cidade, arrancadas, boiassem no ar e se abrissem de um só a ideia de pássaro golpe, rhroeirh. A vasta nuvem escura, compacta e adejante só evoca em mim e no momento em que nos sobrevoa com o seu cantar informe. As asas, tão largas que, abertas, apagam muitas estrelas e a brilhante coroa em torno do disco betuminoso da Lua, tornando ainda mais negra a breve noite meridiana, sacodem os tetos das casas quando batem, encurvam os galhos da árvore, levantam o pó das pedras e atiram mariposas contra nós, contra o chão, contra as casas. Curvamo-nos, as mãos à altura dos olhos, fazendo o possível, apesar dos ciscos e das asas nas pestanas, para não perdê-lo de vista (sua plumagem de ébano) e rimos, sufocados, do seu grasnido lastimável, um aleijão: laringe de chifres e de batinas velhas? Sua passagem é rápida, um vôo reto, embora dificultoso (as asas, longe de erguê-lo como as dos pássaros diários, arrastam-no, cabeça e asas, vivas, levando um corpo morto, um fardo) na direção sudeste-noroeste, parecendo evoluir de um lugar ensolarado para o centro da está nos meus braços [...] escuridão, cruza os céus, grotesco e estúpido, desaparece. Compramos nossos bilhetes (eu para Verona, ela de volta a Paris) e ficamos um momento no alto da imensa escadaria, absortos, olhando o ir e vir das pessoas nos degraus. Ruídos de locomotivas, distantes sons de sereia na Piazza Duca d'Aosta, gritos agudos de aves nos portões, no restaurante, nas passagens subterrâneas, no guichê de informações, nos lavatórios, nas cabines telefônicas. TEMA PÁGINA Arfar do Avalovara N2 354 Grito do Avalovara VI - SONS DA MITOLOGIA Canto suave do Avalovara A) Sons do Avalovara E15 O24 343 248 Rumor das asas do Avalovara E14 340 Vento produzido pelo ruflo das asas do Avalovara R20 307-308 B) Sons da mitologia grega Sereias A16 131 225 CATEGORIA GERAL VI - SONS DA MITOLOGIA TIPO CENÁRIO SONORO [...] canta apaziguador o nosso pássaro mais forte o nosso abraço, novo relâmpago na sala e ouvimos irado cheio de dentes irados o ladrar dos cães e cruzamos um limite e nos integramos no tapete somos tecidos no tapete eu e eu margens de um rio claro murmurante povoado de peixes e de vozes nós e as mariposas nós e girassóis nós e o pássaro benévolo mais e mais distantes latidos dos cachorros vem um silêncio novo e luminoso vem a paz e nada nos atinge, nada, passeamos, ditosos, enlaçados, entre os animais e plantas do Jardim. Suspicaz, olho para um e para outra, vou à porta que abre para os corredores, para as escadas e os elevadores desregulados. Dou volta à chave, saio. Dos dois, na sala, nenhuma palavra. Nenhum gesto. [...] voltando de um passeio nos outros pavimentos do edifício, encontro a porta fechada; calco o botão da campainha, bato na porta com os "pés, a porta custa a abrir-se, enfim abre-se, e minha mãe quando abre não olha na altura dos meus olhos, olha três palmos acima dos meus olhos, na altura do seu rosto, do rosto de um adulto. Por quê? Sou injusta em supor que adivinho? Espera que venham trazer a notícia da minha morte. [...] Levo a mão à boca e mordo esta certeza, este espanto, esta amargura, este ódio, esta ira, levanto-me e decido-me, não guardarei silêncio, porei termo ao silêncio, vou falar, abro a boca, mas não é fácil falar, tenho a língua e a laringe cheias de teias de aranha, aspiro o ar e expiro-o, pela boca, com dificuldade, eles me olham, meu pai leva a corneta aos lábios, crispam-se no chapéu os dedos de minha mãe e eu grito, cuspo, vomito em suas caras: "Inrerno. Inrerno." [...] tento outra vez, agora com mais força, com mais ódio, e grito: "Inferno!" É a primeira palavra que libero, a primeira, volto a repeti-la, quatro, cinco vezes, de modo cada vez mais débil, depois me curvo, toco o chão com a fronte e caio em pranto. Acompanham-nos (e da sua presença estamos penetrados) homens e mulheres do povo: estivadores, caixeiros, engraxates, pescadores, marafonas, lavadeiras, artistas de circo, empregadas domésticas, costureiras, caiadores de paredes, lavadeiras, camelôs, enfermeiras, vendedores de grampos, de pássaros, de alfinetes, mestras de primeiras letras, pedreiros, sacristães. Planam, acima de nós, como se fossem alados, bichos do chão e da água: rãos, lontros, peixes-vaca, emos, búzias, tartarugos, camarãs, arraios, lesmos, calangas, suçuaranos. Sob os nossos pés, fundo, o rumor de muitas vozes raivosas ou festivas. Ouvindo-as, compreendo: os homens e mulheres que nos cruzam estão vivos, mas mudos - e o seu clamor ou os seus risos enterrados. Incorporam-se na minha última visão, ao mundo orgânico, arcos e colunas? - Tenho problemas. - Que tipo de problemas? Fale! - Prefiro não falar. Além do mais, odeio perguntas [Roos]. Haverá realmente dito a segunda frase? Quem sabe se a ouço antes do tempo justo, escandidas por uma mulher que não conheço ainda e me ignora? É possível, igualmente, que as destilara eu próprio em minhas sombras, para impedir-me de insistir junto a Roos e conservar íntegro o enigma, rico em suas virtualidades como não importa que revelação. De qualquer modo, o silêncio obstinado de Roos, detestável que seja, por certo atende ao que sou. TEMA PÁGINA C) Sons do tapete Sons de animais e da natureza no tapete paradisíaco N2 357 Silêncio da O14 96-97 VII - SILÊNCIO Silêncios dos seres que habitam Cecília T16 250 Silêncio de Roos A15 129 226 CATEGORIA GERAL TIPO Silêncio dos instrumentos musicais Silêncio de fundo CENÁRIO SONORO {…] ouço um peixe saltando, ressoam ainda uma vez essas vozes distantes e esses instrumentos já então em silêncio Estamos de mãos dadas, em silêncio e a presença de Cecília amplia-se, levanta-se, vem sobre mim, uma vaga, envolvendo-me, vaga vagarosa, como se contemplada de uma elevação. A noite se aproxima e um resto de luz, coando-se nas leves cortinas brancas, enreda-se nas coisas como teias. Mal vejo as pessoas que nos cercam. Deslumbrado, só atento para o rosto de Roos, onde cidades desconhecidas agora se revelam e novamente se ocultam, na pele, silentes. Sem que, com um gesto ou palavras, tente reter-me a seu lado, levanto-me e fico de pé na escuridão do quarto. Sinto um corpo estranho sob a língua, uma agulha de costura. Cuspo-a. Outra na mão fechada. Jogo-a fora. As palavras ou o silêncio da hora e as trevas que me cercam arrancam a minha pele, estou descarnado e vulnerável. - Pode-se supor que um projeto literário pouco comprometido com a superfície do real – e, portanto, com o tempo histórico -, não contradiz, em princípio, a gramática dos opressores. Meu pai, sempre em silêncio, permanece a nosso lado. Move-se de leve e pisa cauteloso, o olho cego. Amarra-o a convicção de não ter direito a nada e de ser legítima a fraude de existir. TEMA T4 T13 A18 PÁGINA 77 204 162 VII - SILÊNCIO Silêncio das cidades em Roos Silêncio da opressão R17 276 Silêncio pesaroso T17 267 227 ANEXO I – Figura com os cakras encontrada junto aos manuscritos de Avalovara Fonte: LINS apud PEREIRA, 2009, p. 291. 228 ANEXO II – Partitura do Salmo In Convertendo Dominus, de André Campra (Partitura do acervo digital da Biblioteca Nacional da França) 229 230 231 232 233 234 235 236 237 238 239 240 241 242 ANEXO III – Partitura da Cantata Catulli Carmina, de Carl Orff (Três primeiras páginas) 243 244