1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS POÉTICAS DO SILÊNCIO: REFLEXÕES SOBRE ROMANCES BRASILEIROS DO SÉCULO XXI GLAUCIANE REIS TEIXEIRA PORTO ALEGRE 2016 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA: ESTUDOS DE LITERATURA LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS LITERÁRIOS APLICADOS: LITERATURA, ENSINO E ESCRITA CRIATIVA POÉTICAS DO SILÊNCIO: REFLEXÕES SOBRE ROMANCES BRASILEIROS DO SÉCULO XXI Versão final da Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a conclusão do Doutorado em Literatura Brasileira. GLAUCIANE REIS TEIXEIRA ORIENTADORA: PROFª. DRA. GÍNIA MARIA DE OLIVEIRA GOMES PORTO ALEGRE 2016 3 4 Pai, pede uma folga no céu para segurar a minha mão. 5 AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Gínia Maria Gomes, pela sensibilidade, delicadeza, atenção, cuidado e apoio com que me acompanhaste desde o mestrado. Especialmente, pela extrema humanidade que teve comigo entre as tantas perdas que me acometeram ao longo do doutorado. À CAPES pelo auxílio financeiro, sem o qual, certamente, não teria chegado até aqui. À professora Marcia Ivana de Lima e Silva pela generosidade com que leu o meu trabalho, injetando altas doses de confiança. Obrigada pelas sugestões! Aos professores Daniel Conte e Luciana Paiva Coronel, pela profunda amabilidade, receptividade e extrema delicadeza com que avaliaram a presente tese. Aos escritores Bernardo Ajzenberg, José Castello e Francisco J. C. Dantas que prontamente responderam as entrevistas, contribuindo para a construção de minha trajetória acadêmica. Ao Charles, meu companheiro de todas as horas, por suportar meus silêncios e tentar acalmar minhas inseguranças e ansiedades. À minha mãe que nunca me deixou desistir e ao meu pai (in memmorian) que sempre me estimulou a estudar. À Luciane Figueiredo Pokulat, por estar junto comigo nos momentos mais cruciais do doutorado, por sempre encontrar uns minutinhos para fazer terapia via Skype. Ao meu amigo Marcelo Lopes que sempre se mostrou bem disposto a: buscar-me de madrugada na rodoviária, ouvir-me com atenção, acompanhar-me nos momentos difíceis. Aos meus irmãos e sobrinhos que souberam, com carinho, apoiar-me. Ao Canísio pela atenção, carinho e paciência. Aos professores e colegas do curso de pós-graduação da UFRGS. 6 “No silêncio nunca há o silêncio”. (Guimarães Rosa) “Não, de repente havia uma diferença, uma mudança no silêncio, ela percebia”. (Guimarães Rosa) “Então haveria não somente um silêncio, mas diversos silêncios, conforme o que uns ou outros escondem, conforme a presença que deles se ausenta”. (Francis Wolff) “Agora as Sereias têm uma arma ainda mais fatal do que suas canções, ou seja, o silêncio. E, embora por certo isso jamais tenha acontecido, ainda assim é possível que alguém tenha escapado do canto das sereias; mas de seu silêncio, certamente, jamais”. (Franz Kafka) 7 RESUMO A presente tese tem como objetivo investigar as distintas manifestações do silêncio na Literatura Brasileira Contemporânea, partindo da hipótese de que o aprisionamento das palavras não surge do nada; e, sim é suscitado por forças externas e pelos relacionamentos interpessoais representados. Esta pesquisa almeja compreender como as personagens sentem e fazem uso dessa potência e percorrer as causas que as pressionam a bloquear sua expressão verbal como estratégia comportamental, de forma que diferentes motivações geram diversos tipos de emudecimentos. Por se considerar que existem vários silêncios e não apenas um, busca-se estabelecer conexões com o deslocamento, a inadaptação, o poder, a dominação, o medo. Para tanto, recorre-se aos teóricos dos mais variados campos de estudo, como da análise do discurso, da sociologia, da filosofia, da psicologia, da história e da psicanálise; áreas que permitem entender os processos de construção do sentido do silêncio, interpretar as razões possíveis que o desencadeiam e as consequências que ele gera dentro de cada universo diegético. Nesse sentido, realizam-se breves reflexões acerca de dez narrativas publicadas no início do século XXI, em que é possível vislumbrar faces peculiares desse elemento. A fim de explorar, com maior acuidade, três abordagens literárias do silêncio, analisam-se os romances A gaiola de Faraday (2002), de Bernardo Ajzenberg; Sob o peso das sombras (2004), de Francisco J.C. Dantas, e Ribamar (2010), de José Castello. Palavras-chave: silêncio, literatura brasileira contemporânea, deslocamento, poder, medo. 8 RESUMEN Esta tesis objetiva investigar las diferentes manifestaciones del silencio en la Literatura Contemporánea de Brasil, desde la hipótesis de que el encarcelamiento de las palabras no se origina de la nada, sino que se eleva por fuerzas externas y por las relaciones interpersonales representadas. Objetiva, también, comprender cómo se sienten los personajes y cómo utilizan ese poder, además de entender cómo pasan por las causas y presiones para bloquear su expresión verbal como una estrategia de comportamiento, por lo que las diferentes motivaciones generan varios tipos de emudecimentos. Debido a que se considera que hay muchos silencios y no sólo uno, el trabajo busca establecer conexiones con el desplazamiento, falta de idoneidad, el poder, la dominación, el miedo constituyentes de las novelas. Por lo tanto, se recurre al estudio teórico de diversos campos tales como Análisis del Discurso (AD), Sociología, Filosofía, Psicología, Historia y Psicoanálisis; áreas que nos permiten comprender el sentido de los procesos de construcción del silencio, interpretando las posibles razones que lo desencadenan y las consecuencias que genera dentro de cada universo diegético. En este sentido, se mantienen breves reflexiones sobre diez relatos publicados a principios del siglo XXI, en las cuales es posible vislumbrar peculiaridades de este elemento. Con el fin de explorar tres enfoques literarios del silencio, se analizan las novelas A gaiola de Faraday (2002), de Bernardo Ajzenberg; Sob o peso das sombras (2004), de Francisco J.C. Dantas, y Ribamar (2010), de José Castello. Palabras clave: silencio, literatura brasileña contemporánea, desplazamiento, poder, miedo. 9 ABSTRACT The present thesis has the purpose to investigate the distinct manifestations of silence in Contemporary Brazilian Literature, from the hypothesis that the imprisonment of the words do not come out of nowhere; but is raised by external forces and the interpersonal relationships represented. This research aims to understand how the characters feel and make use of this power and go through the causes that pressure them to block their verbal expression as a behavioral strategy, so that different motivations generate several types of muting. For considering that there are several types of silence and not just one, seeks to establish connections with displacement, unsuitability, power, domination, fear. Therefore, it resorts to the theoretical study of various fields, such as discourse analysis, sociology, philosophy, psychology, history and psychoanalysis; areas that allow us to understand the sense of silence building processes, interpreting the possible reasons that trigger off it and the consequences that it generates into each diegetic universe. In this sense, briefly reflections are held about ten stories published early the twenty-first century, it is possible to glimpse peculiar faces of this element. In order to explore, more accurately, three literary approaches of silence, analyzes the novels A gaiola de Faraday (2002), by Bernardo Ajzenberg; Sob o peso das sombras (2004), by Francisco J.C. Dantas, and Ribamar (2010), by José Castello. Keywords: silence, Contemporary Brazilian Literature, displacement, power, fear. 10 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................................................11 1. AS MÚLTIPLAS FACES DO SILÊNCIO.......................................................................23 1.1 Reflexões sobre o termo .................................................................................................... 23 1.2 Algumas faces do silêncio ................................................................................................. 26 1.3 Manifestações do silêncio na Literatura Brasileira Contemporânea ................................. 33 2. A GAIOLA DE FARADAY: O DESLOCAMENTO QUE APRISIONA AS PALAVRAS............................................................................................................................ 61 2.1 Bernardo Ajzenberg e os apontamentos críticos sobre A gaiola de Faraday ................... 61 2.2 Autoexílio e errância: a fuga da palavra ........................................................................... 65 2.3 A recusa da comunicação: a repulsão individualista ........................................................ 79 2.4 A manutenção do silêncio: segredos enclausurados ......................................................... 89 3. SOB O PESO DAS SOMBRAS: O PODER QUE IMPÕE SILÊNCIO .......................106 3.1 Francisco J. C. Dantas e os apontamentos críticos sobre Sob o peso das sombras .........106 3.2 Dominação e obediência: como funciona o poder ...........................................................112 3.3 Jileu Bicalho: os movimentos do poder e os consequentes silêncios ............................. 118 3.4 A dominação amorosa: Leopolda, a ceifeira das palavras .............................................. 127 3.5 Outras sombras taciturnas: o aprendizado do silêncio .................................................... 137 3.6 Justino Vieira: do silêncio da impotência ao silêncio da resistência .............................. 146 4. RIBAMAR: O MEDO QUE CALA E A PALAVRA QUE FRACASSA ................... 156 4.1 José Castello e os apontamentos críticos sobre Ribamar ................................................ 156 4.2 “Cala a boca”: o silêncio do medo e da angústia ............................................................ 161 4.3 O fracasso das palavras: o abismo entre pai e filho ........................................................ 177 4.4 Cartas do medo e do silêncio: outro filho escreve para outro pai ................................... 186 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 199 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 216 ANEXOS .............................................................................................................................. 227 Entrevista de Bernardo Ajzenberg ........................................................................................ 228 Entrevista de Francisco J. C. Dantas ..................................................................................... 230 Entrevista de José Castello .................................................................................................... 233 Ilustração da gaiola de Faraday ............................................................................................. 235 11 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe E só levo a certeza de que muito pouco eu sei, eu nada sei (Almir Sater e Renato Teixeira) A Literatura Brasileira Contemporânea Pesquisar a narrativa brasileira contemporânea é, de modo similar, querer apreciar o canto das sereias assumindo os riscos de ser seduzido e devorado. A princípio, configura-se como um desafio que exige ousadia, porque, diferentemente das correntes estéticas já consolidadas (a exemplo do Barroco ou do Romantismo), a produção literária atual está demasiadamente próxima a nós. Isso obriga o pesquisador a trabalhar com a incerteza, a vulnerabilidade e a dúvida, já que muitos dos autores, mesmo ocupando uma posição privilegiada no mercado editorial, ainda estão em processo de reconhecimento. Por conseguinte, a fortuna crítica apresenta-se incipiente, em alguns casos, ou até inexistente, em outros. Também há o risco de sermos atraídos pelo brilho de uma chama instável: a luz agora acesa, daqui a poucos anos, pode ter mudado de cor, de forma ou ser apagada, isto é, os textos que hoje circulam e são dignos de destaque podem ser esquecidos em um curto espaço temporal. Dessa forma, o trabalho com o contemporâneo suscita sentimentos diversos, que oscilam entre os polos da fascinação e do receio. O terreno movediço da crítica literária acadêmica defende que o atual cenário da ficção assemelha-se a um rico manancial, repleto de vertentes e horizontes variados propostos pelos ficcionistas. Inclusive os diferentes trabalhos desenvolvidos por estudiosos da contemporaneidade destacam tal pluralidade, como por exemplo, Beatriz Resende (2008, p.16-18) que constata a existência de três “evidências”. A primeira, denominada de “fertilidade”, refere-se ao fato de que a literatura brasileira vive um momento ímpar; estatisticamente, nunca na história se publicou tanto como agora. A segunda, diz respeito à “qualidade” dos textos, ou seja, pode parecer contraditório, mas a quantidade de publicação não afeta a qualidade dos escritos. Por fim, a terceira está relacionada à “multiplicidade”. É até difícil de imaginarmos que, diante da abundância de publicações e de autores, da proliferação das pequenas editoras e da difusão de textos na internet (através de blogs, Facebook, Twitter, e-books, etc.), houvesse alguma homogeneidade de suporte, gênero, 12 temática, formato ou linguagem. De forma diversa das escolas literárias, nas quais existia um estilo de época ou ideais em comum, agora vivemos um período sem um caráter definidor. Ou melhor, o traço comum seria precisamente a pluralidade, que “é a heterogeneidade em convívio, não excludente. [...]. São muitos os tons e temas e, sobretudo, múltiplas as convicções sobre o que é literatura” (RESENDE, 2008, p.18). Se partirmos do pressuposto de que não ocorreu nenhum tipo de ruptura significativa entre os autores que despontaram durante a década de 1990 e os que conquistaram espaço a partir da década de 2000, é perfeitamente aceitável entendermos que a diversidade pode ser considerada como uma característica herdada da geração de 1990. Já esta, como Karl Erik Schøllhammer (2011, p.35) expõe, foi produto de um “golpe publicitário muito bem armado”, visto que um grupo disforme (desprovido de semelhanças reais, sem unicidade, somente com o foco temático em comum: sociedade e cultura contemporânea) de escritores foi reunido em duas coletâneas de contos organizadas pelo ficcionista Nelson de Oliveira1. Desse modo, conquistou a identidade de geração graças à sua dissemelhança. Endossa essa perspectiva a reflexão proposta por Flávio Carneiro (2005), que, ao fazer um levantamento crítico de obras literárias produzidas entre 2000 e 2004, evidencia que, a partir dos anos 1980, a ficção brasileira deixa para trás o princípio-esperança e a vocação missionária dos grandes momentos da arte moderna em prol de um princípio pós-utópico2. Estaríamos vivendo em um tempo da descrença e da desconfiança, em que não existem grandes projetos, os movimentos das décadas de 1960 e 1970 tiveram motivações coletivas, lutaram juntos contra inimigos claros e definidos, porém a coletividade foi soterrada pela profusão de projetos individuais3. No lugar do princípio-esperança, instalou-se o princípiorealidade; o primeiro volta-se ao futuro; o segundo, ao presente. Com isso, o traço expressivo da prosa brasileira do início desse milênio “é o da convivência pacífica dos mais diversos 1 2 As coletâneas são: Geração de 90: manuscritos de computador (2001) e Geração 90: os transgressores (2003). Antes de elaborar um mapeamento da ficção brasileira produzida no começo do século XXI, Carneiro (2005) realiza um balanço do que foi a produção literária desenvolvida no século XX. Para isso, utiliza o termo pósutópico, cunhado por Haroldo de Campos (1984), no texto “Poesia e modernidade: da morte do verso à constelação”, para designar o sentimento geral de uma época marcada pela descrença no projeto estético e ideológico proposto pelo Modernismo. 3 Conforme Carneiro (2005, p.26-27), a rígida censura à produção intelectual e artística, característica da ditadura que foi imposta nos fins dos anos 1960 e se estendeu pelos anos 1970, produziu uma literatura de combate, cujo adversário era explícito: o autoritarismo do governo militar. Entretanto, com o fim do regime, no início dos anos 1980, os escritores que nasceram e amadureceram ao longo do período militar perdem o referente, instalando-se o impasse de contra quem deveriam escrever. Por sua vez, os autores que despontam na década de 1990 assumem a liberdade sem culpa alguma, totalmente livres de patrulhas dogmáticas, despidos da necessidade de filiar-se a uma corrente ideológica. Sem a obrigação de seguir modelos, surge a possibilidade de cada um elaborar seu próprio percurso, de escolher o caminho e o estilo que melhor lhe convém. 13 estilos” (CARNEIRO, 2005, p.33) e gêneros, resultado de um processo desencadeado nos anos 1980 e intensificado nos anos 1990. Sob o prisma da multiplicidade, ao concentrarem a atenção nas publicações desse começo de século, os diferentes pesquisadores identificam distintas vertentes literárias. Resende constata três questões predominantes que se manifestam com mais intensidade, seriam: a “presentificação”, o “retorno do trágico” e o tema da “violência”, enquanto que Schøllhammer destaca a sobrevivência do realismo que passa a ser representado através do “hiper-realismo”, do “novo regionalismo”, do “miniconto” e da “literatura marginal”. Por sua vez, Carneiro evidencia o desenvolvimento de treze tendências na literatura nacional: absorção de situações e formatos televisivos; permanência da temática amorosa e da manutenção dos eternos conflitos afetivos; retorno do campo e das cidades do interior associadas ao regresso do narrador clássico; fortalecimento da narrativa fantástica; continuidade da prosa de teor intimista; desenvolvimento da “reescritura” 4; atualização do gênero policial; reconfiguração do romance histórico; revigoramento dos textos memorialísticos que ganham força com os narradores que sempre estiveram à sombra; novas variações para a literatura de cunho social; forte representação de personagens inadaptadas, estrangeiras em seu país de origem; continuidade da escrita que combina ficção com o ensaio e expansão do humor. Frente ao que foi exposto, fica claro que a Literatura Brasileira Contemporânea é eclética, embora seja um campo em conflito5. Se não houve nenhuma ruptura nítida na passagem do fim do século XX para o começo do século XXI, como sinalizam os críticos, tampouco se desenvolveu uma única corrente estética. A “Geração 00” (SCHØLLHAMMER, 2011, p.8) não rejeita os modelos do passado, que foram revitalizados e aperfeiçoados com o tempo, de modo a fazer parte de um cenário em construção, no qual, diariamente, desabrocham tanto novas formas e estilos quanto novos nomes que, junto com aqueles já consagrados, compartilham o mesmo palco do universo literário, sem embates. A heterogeneidade assinalada pelos estudiosos não é uma maldição dos tempos pós-utópicos, 4 A reescritura é um diálogo com a tradição, assim definida por Carneiro (2005, p.46): “Na ficção contemporânea, a obra canônica não surge mais como modelo a ser seguido (visão clássica) ou negado (visão romântico-moderna), mas relido, como forma ao mesmo tempo de transgressão e homenagem, de referência (crítica) e reverência”. Embora o pesquisador não tenha definido nestes termos, podemos mencionar que essa tendência é uma espécie de relação intertextual de uma obra ou de uma temática já explorada. Por exemplo: o romance Dois irmãos (2000), em que Milton Hatoum, quase um século após a publicação de Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, também relê o mito dos gêmeos inimigos e cita o texto machadiano. 5 Sobre o conflito no campo literário, sugerimos a leitura dos ensaios reunidos no livro Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado (2012), da pesquisadora Regina Dalcastagnè. 14 mas, sim, uma dádiva, pois abre espaço para o desenvolvimento da diversidade, para a elaboração de outras temáticas e novas perspectivas. Em meio a essa pluralidade que define o panorama da literatura nacional dos últimos anos, no decorrer de nossas leituras, detectamos um fenômeno que nos inquietou sobremaneira. Identificamos várias narrativas que fazem uso de um elemento: o silêncio. É certo que o texto literário sempre fora permeado pelo silêncio; entretanto, agora nos parece se apresentar muito mais impregnado de vazios, ausências, lacunas. Até mesmo se realizarmos uma breve pesquisa, a fim de averiguar sua incidência nos últimos anos, já conseguimos sinalizar a proliferação de títulos que o colocam em uma posição de destaque: Adágio para o silêncio (2000), de Luís Giffoni; Não falei (2004), de Beatriz Bracher; O silêncio do delator (2004), de José Nêumanne Pinto; Mil e uma noites de silêncio (2009), de Mayra Dias Gomes; A arte de afinar o silêncio (2012), de Mariel Reis; Amor e silêncio (2012), de Fernanda K. Soifer; e Aldeia do silêncio (2013), de Frei Beto. Em determinados romances, constatamos que nem tudo é dito e, ao omitir certos pontos, eles acabam por intensificar os sentidos. Verificamos, também, uma quantidade expressiva de personagens que, por diversas razões, calam. Algumas emudecem por vontade própria, enquanto outras são forçadas a silenciarem; há ainda as que não enunciam devido a uma inépcia lexical. Se, por um lado, se recusam a falar, por outro lado, os implícitos, os não ditos, as sugestões que permeiam seus discursos e as expressões corporais são capazes de comunicar mensagens diversas. Ao percebermos que o silêncio não é trabalhado isoladamente por apenas um escritor, mas que ocupa uma parte significativa da produção literária, delineamos a presente tese. O estado das pesquisas sobre o silêncio Proporcionalmente à proliferação, na Literatura Brasileira Contemporânea, de títulos que põem em evidência o silêncio, há também, nos últimos anos, uma acentuada expansão de estudos acadêmicos – desde artigos6 científicos até teses de doutorado – que têm se debruçado 6 Apenas para registrar alguns artigos científicos que elegeram o silêncio como temática de análise, destacamos os seguintes: “O silêncio da representação: uma leitura de Eles eram muitos cavalos”, de Tatiana Salem Levy, publicado em 2003, na revista eletrônica Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea da UNB; “A imagem do silêncio em Canoas e marolas, de João Gilberto Noll”, escrito por Ieda Maria Magri, disponível no periódico Anuário de Literatura da UFSC de 2003; “Entre o silêncio da palavra e as falas do silêncio” (analisa o silêncio dos protagonistas de A hora da estrela e Vidas secas), elaborado por Carlos Augusto Moraes Silva, integrante do periódico de 2004, da UFG Linguagens – Estudos e pesquisa; “A arte de dizer e silenciar: dialética-gênese da prosa poética”, produzido por Luiza Tofalini que estuda Guimarães Rosa, publicado na Revista Letra Magna (2006); “As engrenagens do silêncio”, em que Janaina Rocha de Paula discute a narrativa Ópera dos mortos, de 15 sobre tal problemática. Com a finalidade de demonstrar que é possível compreendê-la através das mais variadas perspectivas e enfoques teóricos, faremos uma rápida abordagem de algumas dissertações e teses que encontramos no decurso de nossa trajetória de pesquisa e que também elegeram o silêncio como ponto de análise em romances nacionais. Antes de apresentarmos os estudos desenvolvidos na última década do século XXI, convém destacarmos o estudo Sob o signo do silêncio: Vidas secas e O estrangeiro, realizado por Lourival Holanda que, embora publicado em 1992, julgamos ser um clássico nesse campo de investigação. Neste trabalho, o pesquisador tem como intento apreender os traçados do silêncio por meio da comparação entre os dois textos literários, a fim de demonstrar a duplicidade do calar: “o de Fabiano na querência e carência da palavra; o de Meursault na descoberta da vacuidade do signo” (HOLANDA, 1992, p.19). Apesar de Holanda chamar a atenção para a organização sucinta de ambas as narrativas, para o contorno da frase depurada e concisa, de afirmar que a economia descritiva – enquanto expõe um silêncio – determina aquele que sofre, seu alvo de discussão não é propriamente a forma romanesca, mas, sim, a linguagem (não linguagem) e a ação das personagens. O estudioso argumenta que o desejo de possessão de Fabiano pela palavra desvela um sistema social injusto, o qual soçobra, reduz e reforça o poder instalado sobre os despossuídos. Este silêncio, dotado do peso da tradição, expressa o condicionamento social e revela uma total incompetência linguística à medida que a comunicação gestual se amplifica. Já em O estrangeiro, Meursault, preso no emaranhado das circunstâncias, cala porque desconfia da linguagem, evita o verbo vão, foge da armadilha das palavras a que o homem se expõe e parece recear que o tomem por aquilo que não é. Ione Marisa Menegolla, em A linguagem do silêncio7, analisa a teia da metamorfose silenciosa desvendada na performance dos jogos de linguagem inscritos em A hora da estrela, Uma aprendizagem ou livros dos prazeres, de Clarice Lispector, e Maina Mendes, de Maria Velho da Costa. O trabalho, organizado em 14 capítulos, realça a apreciação estéticoontológica do romance, em que o silêncio é um duelo de astúcia que visa à sedução, mais precisamente, uma estratégia, um feito da sutileza utilizado pelas personagens. Para Autran Dourado, na edição de 2007 da revista Pyschê; “Um monstro mudo: linguagem e silêncio em Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum”, de Denis Leandro Francisco, publicado em 2009, na revista eletrônica Maldoror; “Paredes do silêncio ou silêncios no escuro? Reflexões sobre o romance de Altair Martins”, desenvolvido por Glauciane Reis Teixeira e publicado no livro Narrativas Contemporâneas: recortes críticos sobre Literatura Brasileira (2012), organizado por Gínia Maria Gomes; “O sentido do silêncio em Macabéa e Fabiano”, publicado por Joanne Ferreira de Oliveira Cordeiro, no periódico da UESB de 2013; “A legitimidade presente no silêncio das palavras de Kaka Werá Jecupé”, de Bianca Basile Parracho, disponível no periódico Nau Literária da UFRGS de 2013. 7 A tese A linguagem do silêncio foi defendida em 2001 e em 2003 foi publicada como livro. 16 desenvolver tal interpretação, no plano existencial e linguístico das protagonistas de cada narrativa, a pesquisadora recorre ao enfoque poético-mítico através dos mitos de Narciso, Eco, Zeus, Prometeu, e, também, dos pressupostos filosóficos de Friedrich Nietzsche, Martins Heidegger e de Ludwig Wittgenstein. O desvelar do silêncio na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos foi a dissertação elaborada por Maria Soledade Ferreira, no ano de 2007, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Fundamentando-se teoricamente nas discussões de Eni P. Orlandi, George Steiner e Gilberto Mendonça Teles, o estudo destaca a poesia do silêncio no ritmo e nas imagens (re)criadas em um meio hostil, onde a voz cala e o poético busca a sua sobrevivência através de indivíduos aprisionados como coisas ao lugar. A análise constata que, na dor de serem apenas um objeto (in)útil, as personagens ficam mudas para economizar o fôlego e, assim, tentarem resistir contra suas (sub)condições. Desse modo, encontram-se em um processo embrionário da linguagem, em que a problematização da incomunicabilidade é consequência, simultaneamente, da solidão irremediável e da necessidade de se entregarem à luta pela sobrevivência. Ao longo dessa leitura, são examinados os aspectos estruturais, tais como: a reconstituição dos estados mentais das personagens nos monólogos, a onisciência do narrador, o discurso indireto livre, o discurso direto e o enfoque espaço-temporal. Málter Dias Ramos, em 2009, também elege o romance de Graciliano Ramos como objeto de estudo na dissertação O silêncio em Vidas Secas, defendida na Universidade Federal de Uberlândia. Esta pesquisa escolhe como embasamento teórico a Análise do Discurso, de linha francesa, destinando-se a explicitar na narrativa o silêncio como uma forma de manifestação discursiva, para averiguar os efeitos de sentido gerados na constituição dos sujeitos, e analisá-lo como elemento instaurador ou destituidor do poder nas relações entre os sujeitos representados. A abordagem, preponderantemente, linguística demonstra que as dificuldades de comunicação das personagens principais, bem como os mutismos que lhes são peculiares, estão relacionadas à própria secura do espaço. Portanto, existe no universo ficcional uma política de silêncio constitutiva de um sentido que indica que, para dizer, é preciso o não dizer. Izabel Cristina da Costa Bezerra Oliveira defendeu, em 2010, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a tese intitulada A dupla poética do silêncio: uma análise de Fogo morto e Cartilha do silêncio. Ambicionando avaliar os pontos comuns e não comuns no percurso das ações das personagens principais, a pesquisadora averigua os vários espaços onde se descortina um mundo de variantes silenciosas. Inicialmente, Oliveira examina como a tradicional questão do patriarcalismo, instalado no meio rural do Nordeste brasileiro, passou 17 da ascensão à decadência em espaços sociais distintos nas narrativas; para isso, utiliza como suporte teórico os textos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. O trabalho também promove uma reflexão crítica sobre as várias relações do universo feminino com o masculino, observando como o homem representado experimenta as tensões ocasionadas pelas mudanças sociopolíticas que foram implantadas em seu meio, devido à passagem da vida arcaica para a vida moderna. As investigações indicam que, nos dois romances, as transformações ocorridas tanto no espaço social quanto familiar refletem a decadência do ser humano, provocando uma nova forma de convívio, fazendo-o experimentar um mundo de solidão e silêncios. Cabe mencionar que, nesta pesquisa, as discussões sobre o silêncio pautam-se nos pressupostos de Lourival Holanda, Eni Orlandi e Marisa Simons. Por sua vez, a tese Manifestações silenciosas na narrativa contemporânea: Clarice Lispector e Chico Buarque, escrita por Márcia de Oliveira Reis Brandão, defendida em 2010 pela Universidade Federal Fluminense, elege o silêncio enquanto elemento desestabilizador de práticas discursivas tradicionais, demonstrando que ele remete a múltiplas formas de atualização no texto literário. A partir da definição das categorias do “neutro” e do “sublime”, vinculadas ao procedimento narrativo denominado “hesitação” ou “gagueira”, Brandão procura identificar as diferentes manifestações silenciosas nos romances A hora da estrela e A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, e em Estorvo e Budapeste, de Chico Buarque. As reflexões desse estudo se centraram nas questões filosóficas expressas por Roland Barthes, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze e Jean-François Lyotard. No limiar do silêncio e da letra: traços da autoria em Clarice Lispector é o título dado por Maria Lucia Homem para sua tese, apresentada em 2011, na Universidade de São Paulo. Os romances Água viva, A hora da estrela, Um sopro de vida constituem o corpus da pesquisa, cujo intuito fora o de discutir a questão da autoria relacionada com uma determinada “forma de narrar”, nascente do incessante embate da palavra com o silêncio. O estudo vasculha a relação entre o estatuto da linguagem e o objeto representado, palavra e impossibilidade de dizer, para analisar quem tem o poder da enunciação e como o inominável é traduzido pelo discurso. O trabalho apoia-se tanto no referencial psicanalítico de Sigmund Freud e Jacques Lacan, como nas contribuições para o estudo do sujeito e da modernidade, de Theodor Adorno, Walter Benjamin e Friedrich Nietzsche, e também na crítica traçada por Erich Auerbach, Roland Barthes e Anatol Rosenfeld. Silêncio e sentido: as tramas do silêncio em A parede no escuro, de Altair Martins é a pesquisa de mestrado realizada por Camila Vianna Leão, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, defendida em 2011. Almejando compreender o silêncio como algo 18 constituído de sentidos móveis, dependentes dos contextos em que se manifestam, a estudiosa, em primeiro lugar, centra sua atenção em dois espaços da narrativa: a casa de Adorno e a gaiola de Fojo. Em seguida, procura expor que a desfiliação entre pais e filhos é representada discursivamente através dos sinais de pontuação, os quais traduzem as pausas, a hesitação, a dúvida, a morte e denunciam a ruptura dos laços afetivos entre as personagens principais do romance. Diferentes postulados teóricos sustentam este trabalho, como: da Análise do Discurso e da Enunciação, da Música, da Filosofia e da Teoria Literária. No ano de 2013, Carlos Augusto Moraes Silva defendeu a dissertação intitulada A poética do silêncio em Vidas secas e A hora da estrela, pela Universidade Federal de Uberlândia. Nesta pesquisa, Silva evidencia que o silêncio instaurado no discurso das personagens e na arquitetura das duas narrativas se configura como um mecanismo de expressão que aponta, concomitantemente, para o emudecimento e a anulação dos sujeitos. Para problematizar o trabalho com a linguagem de Ramos e de Lispector, que produziram “textos enxutos em que o silêncio dos protagonistas expõe a fragilidade não apenas dos que foram silenciados ao longo da história” (SILVA, 2013, p.25), mas também daqueles que acreditaram ter seu último conforto na palavra. Utiliza como arcabouço teórico os textos de Susan Sontag e de George Steiner. O alvo de análise escolhido por Silva é tanto a posição do narrador frente à (im)possibilidade de narrar em um mundo reificado quanto as vozes das personagens abafadas pela paupérrima condição social. Fabrina Martinez de Souza, em 2013, apresenta a dissertação intitulada Silêncio, violência e melancolia em Marçal Aquino: uma leitura de Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O estudo tem como propósito principal mostrar como a violência, o silêncio e a melancolia foram expressos no texto literário, tendo como plataforma de leitura os operadores da narrativa: enredo, personagem, espaço, ponto de vista e tempo. Especificamente sobre o silêncio, a pesquisadora se orientou pelo pressuposto teórico delineado por Eni P. Orlandi para analisar as personagens que ou estão em silêncio ou que foram silenciadas pela violência e melancolia. Souza destaca que o emudecimento mais expressivo desse romance se refere à personagem Lavínia, visto que são poucos os momentos em que ela possui voz e, quase sempre, é retratada a partir da perspectiva de algum homem, inclusive nos momentos em que lhe é dada a oportunidade de enunciar, a mesma cede espaço à manifestação masculina. O silêncio não é um nada. Se, por um lado, é ausência, pois se espera alguma coisa que não está aí; por outro lado, é presença, existe uma significação nessa ausência. O cessar linguístico/sonoro reflete a presença de sentido. Ao silenciar, sempre se diz alguma coisa, mas 19 também pode significar qualquer outra coisa. Enquanto inexistência (de sons, de palavras, de ruídos), nenhum silêncio é capaz de se diferenciar fisicamente dos outros; por esse motivo, tal lapso não apresenta nada, e sim tem capacidade para falar tudo, representar tudo. Não existe apenas um único silêncio, existem vários. Há inúmeros sentidos que ele pode comportar: estado acústico, pausa musical, obstrução, desesperança, privação, isolamento, imobilidade, sofrimento, assim como plenitude espiritual, contemplação, espera, inspiração, continência. A lista é, talvez, infinita. Devido à sua natureza ambivalente e multiforme, abordá-lo nas análises literárias por uma perspectiva única é inconcebível, da mesma maneira que é totalmente descabida a ideia de eleger um arcabouço teórico exclusivo para aplicar a todas as narrativas. Os estudos acadêmicos que destacamos ratificam a argumentação de que existem tanto diversos pontos de vista pelos quais se pode contemplá-lo quanto distintas perspectivas teóricas que podem sustentar o trabalho crítico. Poéticas do silêncio É conveniente declararmos que a presente tese é fruto de uma investigação iniciada ainda no mestrado, quando nossa proposta se voltou para a compreensão d’ O desvelar do silêncio no romance Coivara da Memória, de Francisco J.C. Dantas (2010), momento em que vislumbramos a relação de dominação social e discursiva sofrida pela cidade representada  Rio-das-Paridas , onde o poder da palavra era desfrutado por um grupo minoritário, enquanto a grande parcela populacional tinha a posição de sujeito falante interditada, em razão ou do seu gênero ou do lugar ocupado na sociedade. Analisamos, também, a trajetória existencial e o processo de silenciamento de três personagens que marcaram a infância do narrador-protagonista, as quais calaram e foram emudecidas por diferentes motivos. Agora, no doutorado, partimos para uma pretensão mais ousada, alargamos nosso corpus de pesquisa, englobando três romances publicados ao longo dos últimos dez anos da produção literária nacional. Tal ampliação ocorreu em virtude de constatarmos que as pesquisas sobre o silêncio abordam, em sua maioria, duas narrativas, destacando-se a supremacia da obra de Clarice Lispector e do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, como objetos de análise. Ainda, observando esses estudos de fôlego, ressaltamos a quase unanimidade na preferência por narrativas publicadas antes dos anos 2000; de imediato, percebemos uma fortuna crítica ainda incipiente a respeito das produções literárias do começo do século XXI. Estudar textos próprios da contemporaneidade nos levaria a uma contribuição 20 (mesmo que muito singela) para um futuro mapeamento da prosa ficcional produzida na primeira década do corrente século. A hipótese perseguida, nesta pesquisa, é que o silêncio não surge do nada; e, sim, é suscitado por forças externas que pressionam as personagens a bloquearem sua expressão verbal. Acreditamos que diferentes motivações geram distintos tipos de emudecimento, sendo que, em alguns casos, os seres ficcionais o utilizam como estratégia comportamental. A fim de comprová-la, primeiramente, selecionamos dez narrativas para, de modo breve, demonstrar como tal potência é representada em cada uma delas. Em seguida, selecionamos os romances A gaiola de Faraday (2002), de Bernardo Ajzenberg; Sob o peso das sombras (2004), de Francisco J. C. Dantas, e Ribamar (2010), de José Castello, para realizar uma análise com maior profundidade sobre essa problemática. Nesse sentido, objetivo geral desta pesquisa é investigar as diferentes manifestações do silêncio na Literatura Brasileira Contemporânea, demonstrando que ele apresenta-se por meio de nuanças heterogêneas. Almejamos, também, compreender as sensações e os comportamentos que são desencadeados quando o silêncio se instala em meio às relações interpessoais das personagens, em especial, das protagonistas. Cabe mencionarmos que, para fins de delimitação do nosso estudo, com o intuito de escaparmos do risco de nos perdermos no breu da ampla produção literária nacional, é fundamental estipularmos um corte temporal. Para isso, consideraremos como narrativas contemporâneas as que foram produzidas recentemente, em particular, ao longo da primeira década do século XXI. Assim, os textos escolhidos para fazer parte do corpus desta tese foram publicados entre os anos de 2001 e 2010. Nosso trabalho reflexivo será guiado por alguns questionamentos norteadores, como: De que maneira a personagem da Literatura Brasileira lida com o silêncio? Ela o desfruta? Deseja-o? Rejeita-o? Por quais motivos emudece? Calar lhe faz bem ou mal? Que sentimentos são desencadeados quando ele permeia os relacionamentos afetivos ou sociais? No entanto, dispensamo-nos de um levantamento exaustivo dos silêncios nas narrativas, procuraremos analisar os mais expressivos. Considerando que existem vários tipos e não apenas um silêncio, procuramos estabelecer conexões com o individualismo, a inadaptação, o poder, o medo e outras temáticas. Por isso, recorremos aos teóricos dos mais variados campos de estudo, como, por exemplo, da análise do discurso, da sociologia, da filosofia, da psicologia, da história e da psicanálise. Enfim, áreas que nos permitem entender os processos de construção do sentido do silêncio propriamente dito e interpretar as razões possíveis que o desencadeiam e as consequências que ele gera dentro de cada romance. 21 Diante do exposto, este trabalho está organizado em quatro capítulos. O primeiro é destinado tanto à revisão teórica sobre o termo silêncio quanto ao mapeamento de algumas de suas manifestações em romances nacionais. Com a finalidade de demonstrarmos o caráter plurissignificativo desse elemento, utilizamos os textos elaborados por David Le Breton, Walter Benjamin, Lourival Holanda, Santiago Kovadloff, Eni Puccinelli Orlandi, Michele Frederico Sciacca, George Steiner, entre outros, os quais, de alguma forma, se debruçaram sobre tal assunto em seus estudos. Feito isso, destacamos, no panorama da literatura contemporânea, um romance por ano (2001 a 2010) com o objetivo de provar que é possível vislumbrar distintos tipos de silêncios. No segundo capítulo, a análise recai sobre A gaiola de Faraday. Para perseguirmos a trajetória de aprisionamento das palavras do protagonista Enzo, torna-se imprescindível abordarmos questões relacionadas ao deslocamento/desajuste que afeta a subjetividade do homem contemporâneo, como o exílio, o autoexílio e a errância. Depois, refletimos acerca da recusa da comunicação do personagem principal para com os familiares e vice-versa, observando como ocorre a manutenção do silêncio. As intersecções entre silêncio, poder e dominação permeiam todo o terceiro capítulo, que tem como objeto Sob o peso das sombras. Os movimentos gerados pelos jogos de poder e os consequentes silenciamentos serão pontos de análise por meio do relacionamento do narrador-protagonista, Justino Vieira, com outras quatro personagens de seu círculo social. Nossa leitura não as dissociará de seu contexto socioeconômico, tampouco de seu espaço, porque, quando se concebe a literatura como forma de representação, lugar “onde interesses e perspectivas sociais interagem e se entrechocam”, nunca se pode “deixa[r] de indagar quem é” o sujeito representado, “que posição lhe é reservada na sociedade, e o que seu silêncio esconde” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.17). O quarto capítulo, destinado a Ribamar, articula as emoções do medo e da angústia ao silêncio que o narrador-protagonista, José, mantém diante da figura paterna, Ribamar. Posteriormente, argumentamos que o emudecimento do filho perante o pai também pode ser creditado a uma limitação inerente da linguagem, ao fracasso da palavra em expressar a subjetividade profunda. Também se fez necessário, devido à explícita intertextualidade com a Carta ao pai (1919), de Franz Kafka, percorrermos os pontos de ligação entre ambas as narrativas. No final da tese, encontram-se os Anexos. Trata-se de entrevistas realizadas com Bernardo Ajzenberg, Francisco J. C. Dantas e José Castello, no ano de 2014. As perguntas que realizamos foram, basicamente, as mesmas e partiram da curiosidade de saber como cada 22 um percebe a sua produção em meio ao panorama literário atual, bem como se reconhecem ou não o silêncio como elemento integrante de seus respectivos romances. Afinal, esta é uma das vantagens do trabalho com a literatura contemporânea, pois os autores estão vivos, circulam em festas e feiras do livro, ministram oficinas, têm perfis em comunidades virtuais, de modo o leitor tem a oportunidade de tornar-se “amigo” ou “seguidor”. As tecnologias facilitam o acesso aos escritores, os quais, através de seus depoimentos, influenciam, em maior ou menor grau, a leitura de seus textos. Assim, a presente pesquisa, Poéticas do silêncio: reflexões sobre romances brasileiros do século XXI, é um dos olhares possíveis lançados à Literatura Brasileira Contemporânea. Uma tentativa de interpretar como as narrativas representam essa presença ausente, investigar como as personagens sentem e fazem uso dessa potência e percorrer os motivos que as fazem eleger o silêncio como uma estratégia comportamental. 23 1. AS MÚLTIPLAS FACES DO SILÊNCIO 1.1 Reflexões sobre o termo O que é o silêncio? Ausência ou presença, ou os dois ao mesmo tempo? Há diferença entre estar em silêncio e ser silencioso? O silêncio significa? Opõe-se à linguagem? Inúmeras perguntas surgem ao nos depararmos com essa expressão não verbal, incômoda para nós, sujeitos da linguagem, seres da palavra. Se recorrermos ao dicionário da língua portuguesa, encontraremos a seguinte definição: “1. Estado de quem se cala ou privação de falar; 2. Interrupção de ruído; 3. Sossego, calma; 4. Para mandar calar ou impor sossego” (FERREIRA, 2005, p.636). Etimologicamente, silêncio provém do latim silentium, referido a silens, que significa o que se cala, silencioso, que não produz ruído, que está calmo, em repouso. A respeito do uso dessa palavra, Eni Puccinelli Orlandi8 (1995, p.35) ressalta que, na época clássica, não havia diferença de sentido entre sileo e taceo (calar). Contudo, sileo designava “tranquilidade”, “ausência de movimento”, por isso seu uso era empregado para se falar de coisas, da noite, dos ventos, enquanto silentium, que significava mar profundo e sem ruídos, era utilizado para referir-se a pessoas. Ainda a respeito da origem do termo, o antropólogo e sociólogo francês David Le Breton (1997, p.23) explica que a língua latina distingue duas formas de silêncio: silere, relacionado à solidão dos sujeitos – é uma reserva individual que não gera preocupação em ninguém –, e tacere, de caráter mais denso, refere-se ao movimento de oclusão dos indivíduos que provoca e incomoda os outros ou a si mesmo. O silêncio e a palavra mantêm entre si um relacionamento solidário, de complementaridade, uma vez que são os dois lados da mesma moeda. Um motiva o nascimento e a necessidade do outro. Palavras são entrecortadas por silêncio e vice-versa. Na comunicação humana, para que os sentidos sejam gerados e as mensagens sejam transmitidas, tão imprescindível quanto a palavra é a presença do silêncio que produz a pausa, o ritmo. Entre linguagem e homem se estabelece uma relação de dependência, um precisa do outro para existir plenamente. O ser humano, já dizia George Steiner (1990, p.68), na esteira de Hesíodo, é “um animal, uma forma de vida que fala”. Por isso, a “humanidade” do homem, a sua identidade, que pode ser declarada para si e para os outros, é um atributo oportunizado 8 Orlandi analisa o silêncio sob a perspectiva da Análise do Discurso. Porém, não é nosso intuito concentrarmonos nas tramas da linguística, mas, sim, extrairmos desse trabalho as reflexões que serão necessárias para compreendermos esse elemento polissêmico, paradoxal e ambíguo. 24 pela função da fala. Esse é o traço que separa o homem do animal, é a sua essência. Na química do sangue e no ciclo da vida, os primatas estão muito próximos dos seres humanos, os laços de parentesco são estreitos, mas apenas o homem tem a capacidade de organizar o passado, o presente e o futuro. Capacidade essa propiciada pelo poder da fala, pela palavra, pelo discurso (GUSDORF, 1970, p.7). No mundo prenhe de vida, repleto de cores, de sons e de odores, uma enorme massa de informações é formulada, propagada, recebida e compreendida em cada momento do processo vital. Mesmo em um ambiente sem palavras, as mensagens são comunicadas por meio de signos não linguísticos9. Assim, a linguagem é apenas um entre um imenso número de código expressivos, mas nem por isso menos importante; ao contrário, ela é um fenômeno único e próprio do homem. Nesse horizonte, o objetivo primeiro de qualquer atualização do enunciado é significar, até uma construção supostamente incoerente implica um determinado sentido, mesmo que a essência seja diferente para o emissor e para o receptor. Ainda que a oralidade discursiva presuma a significação, geralmente só as palavras enunciadas são incapazes de abranger o processo de comunicação interpessoal. Subjacente aos vocábulos, há o contexto, o implícito, o subentendido, o pressuposto, enfim, existe o silêncio. Destarte, esse elemento não é um nada, e, sim, a matéria significante por excelência; com ele, os sentidos nascem, visto que na vida em sociedade o “homem está condenado a significar. Com ou sem palavras” (ORLANDI, 1995, p.31). Apesar de o homem estar sempre produzindo sentidos, inclusive quando “se cala, não deixa de comunicar” (LE BRETON, 1997, p.24), observa-se no mundo clássico e cristão a importância da palavra, a primazia de tudo que pode ser falado e comunicado no discurso, sendo essa uma característica grega e judaica absorvida pelo cristianismo. Esse fato leva as formas sociais da cultura ocidental a relegarem o silêncio a uma posição secundária nos estudos da linguagem, geralmente atribuindo um sentido passivo ou negativo a ele, já que, na corrente dominante – nos estudos dos signos –, a linguagem (verbal) ocupa um lugar de excelência em relação à significação. Consequentemente, ocorre a redução através da qual “qualquer matéria significante fala” (ORLANDI, 1995, p.32), ou seja, todos os sentidos são transpostos para a linguagem. 9 Os seres vivos, além das estruturas elementares, contam também com uma grande gama de articulações: odores, gestos, colorações, comportamentos, sons, secreções, expressões corporais. Estas, isoladas ou em conjunto, comunicam uma mensagem, assinalam perigo ou solicitação, constituem um grupo ou uma unidade de informação que é transmitida. “A vida avança em meio a uma incessante rede de sinais”, afirma Steiner (1990, p.65), e a sobrevivência no mundo depende de como a criatura recebe esses alertas, da rapidez e precisão com que identifica os que são eminentemente vitais para si e para o grupo de que faz parte. Um organismo que não consegue decodificar com precisão os avisos, porque seus receptores estão insensíveis ou porque não os compreendeu corretamente, acabará eliminado, a morte será certa. 25 Edifica-se assim o “império verbal” nas nossas estruturas sociais. Este busca converter o silêncio em palavras, considerando o ato discursivo como a base da comunicação humana. Le Breton (1997, p.11) afirma que o século XX, sobretudo no mundo ocidental, foi assolado pela multiplicidade dos meios de comunicação, soterrado em uma produção escrita cada vez mais crescente. E, agora, no início do século XXI, com as novas tecnologias e redes virtuais de relacionamento (Facebook, Twitter, Instagram, entre outras), o que constatamos é uma verdadeira profusão das palavras que dizimam com a interioridade dos indivíduos. Estes, a todo o momento, precisam compartilhar publicamente seus sentimentos, suas emoções, inclusive suas atividades mais banais e rotineiras. Por conseguinte, evidencia-se um excesso no uso das palavras, uma verdadeira tagarelice, vazia e sem qualquer objetividade. Para Le Breton (1997, p.12), o “imperativo de dizer ‘tudo’”, que se alastra por toda a sociedade contemporânea, ganhou espaço em virtude do avanço das ciências, com o racionalismo, e também como consequência das práticas autoritárias que atravessaram o século passado, suprimindo violentamente, por um tempo, o direito à fala e à expressão: Na comunicação, no sentido moderno do termo, já não há lugar para o silêncio, há uma coacção da palavra, de ser obrigado a falar, de dar testemunho, porque a ‘comunicação’ é tida como a resolução de todas as dificuldades pessoais ou sociais. Neste contexto, o pecado é o comunicar ‘mal’ e, ainda mais repreensível, mais imperdoável, é ficar calado. A ideologia da comunicação assimila o silêncio ao vazio, a um abismo no seio do discurso, não compreende que, às vezes, é a palavra que forma a lacuna do silêncio. (LE BRETON, 1997, p.13) Dadas as distâncias teóricas que os afastam, Steiner (1988, p.30), de modo análogo à pesquisadora brasileira e ao sociólogo francês, também alerta para o fato de que não se deve cair no equívoco de apenas considerar a matriz verbal como a “única em que as articulações e o comportamento são concebíveis”. O silêncio também “fala” e “fala” muito, ele é um elemento polissêmico10 da linguagem, que, ao contrário do que muitos pensam, não remete a um vazio e, sim, a uma multiplicidade do dizer e do sentir. Neste ponto, o senso popular tem razão em garantir que “um silêncio vale por mil palavras” e seu sentido, assim como o das palavras, nunca é o mesmo. Sobre o caráter multiforme do silêncio, o filósofo argentino Santiago Kovadloff (2003, p.23) declara o seguinte: 10 A respeito da polissemia do silêncio, Orlandi (1995, p.49) assevera que “é a incompletude que produz a possibilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilidade. A linguagem empurra o que ela não é para o nada. Mas o silêncio significa esse nada se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidade de sentidos se apresenta”. 26 se é verdade que o silêncio expressa, também é verdade que aquilo que expressa nem sempre é igual, nem vale a mesma coisa. O silêncio pode ser, então, tanto o corolário excelso da lucidez, como a bruma irremediável na qual se dilui a aptidão – e às vezes a necessidade – de articular uma ideia ou uma emoção com a qual deixar para trás o mundo do previsível e do codificado. O silêncio pode adquirir força de verbo, de ação, sendo também um ato de reflexão, por exemplo. Ele tem a capacidade de revelar um estado de alma, ou escondê-lo. Dessa forma, apresenta diferentes significados em circunstâncias distintas. 1.2 Algumas faces do silêncio Sempre que as palavras faltam ou se ausentam, abrem espaços para que variadas conotações semânticas se instalem entre os interlocutores, que só poderão se mostrar positiva ou negativamente em decorrência da situação comunicativa em que se inserem. Theodor Reik (2010, p.19), em seu ensaio “No início é o silêncio (1926)”, indica uma vasta gama de significações para esse elemento, afirmando que ele pode ser opressor ou humilde, provocante ou pacificador, implacável ou indulgente, desaprovador ou aprovador. Os estudos desenvolvidos por Orlandi, Le Breton e Kovadloff percorrem essa mesma trilha aberta por Reik, visto que a primeira defende a existência de “silêncios múltiplos: o silêncio das emoções, o místico, o da contemplação, o da introspecção, o da revolta, o da resistência, o da disciplina, o do exercício do poder, o da derrota da vontade, etc.” (ORLANDI, 1995, p.44). O segundo sustenta que “há palavras e palavras, silêncio e silêncio” (LE BRETON, 1997, p.13), existindo diferentes formas de materialização, desde a interrupção da conversa, passando pelas políticas e disciplinas que impõem o aprisionamento das palavras, até o mutismo espiritual e o da morte. Por sua vez, o filósofo argentino (2003) realiza a distinção entre os silêncios da cura, o musical, o matemático, o monástico, o da pintura e o amoroso. Assim, o cessar das palavras concentra opostos: dependendo do contexto, pode significar cumplicidade ou ser um forte instrumento de oposição e resistência. Já diziam os gregos que o calar-se pode ser uma atitude de recusa tácita, porém pode ainda significar adesão a uma ideia ou proposição. De acordo com Lourival Holanda (1992, p.48), “o silêncio é uma forma de fala que se faz pelo assentimento ou pela refutação. Os gregos chamam isso antilogia: à existência de todo objeto se pode opor dois logoi”. No estudo sobre o movimento dos sentidos, Orlandi (1995, p.33) estabelece a diferença entre o “silêncio fundante” e a “política do silêncio”. A primeira é a matéria significante por excelência: “o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no 27 silêncio, o sentido é”. A segunda, de dimensão política, pode ser considerada como o silenciamento, pois envolve a problemática do pôr em silêncio, do assumir a palavra, tirar a palavra, de fazer dizer e obrigar a calar. Neste caso, ele tanto pode ser parte da retórica da opressão/dominação, como atuar na retórica do oprimido/dominado. É do conhecimento geral que, nas políticas totalitárias, o poder só exerce sua função se acompanhado de um determinado silêncio, o da opressão. Tal viés político se subdivide em: a) constitutivo, todo dizer apaga um sentido; b) local, a censura (ORLANDI, 1995). O constitutivo consiste no fato de que determinado ato linguístico pode, simultaneamente, enunciar e esmaecer a força da afirmação, posto que as palavras preenchem o espaço ocupado antes pelo silêncio. Essa comprovação, contudo, dissolve o caráter de sobreposição ao compreendermos que esse elemento não é a medida da sonoridade ambiente, muito menos vazio. Toda fala ou escrita produz silêncio, assim como todo enunciado assevera, enfatiza, ressalta um sentido, mas também exclui e cala outro. Na realidade, a tenacidade do silêncio revela mais do que cala, ou melhor, revela ao calar. O silenciamento local, a censura, é visível, sempre desempenhado por um poder explícito. É relevante ressaltar que o silêncio da censura não é sinônimo de ausência de informação, porém, é a proibição do dizer. Nessa conjuntura específica, não enunciar não equivale a não saber e muito menos se assemelha com o silêncio patológico do mudo. Portanto, a censura diz respeito às relações do ser humano com o dizível, inexistindo a possibilidade de autocensura, devido ao fato de que ela insere um “outro” no jogo discursivo, que se desenrola na relação do falar e ser impedido de se expressar. Estabelece-se, assim, a interdição do sujeito em certas formações discursivas, dados sentidos são coibidos, o que inviabiliza o direito do indivíduo de ocupar certas posições/lugares. A exploração do homem, dessa maneira, está alicerçada no arrancar-lhe a palavra, torná-lo “mudo” é o meio mais eficaz de reduzi-lo a nada, o que facilita o mando (HOLANDA, 1992, p.44). Ao impedir o exercício da palavra do outro, nega-se a possibilidade de almejar um destino diferente. A aceitação da realidade cruel e da dominação torna-se mais fácil, até mesmo pacífica. O escravo é a figura que melhor exemplifica esse estado de sufoco produzido pela dominação: ele é o próprio silêncio, sua sobrevivência exige que sua voz seja calada e que a voz alheia seja acolhida (HOLANDA, 1992, p.54). Com isso, a obrigação de silenciar se configura como uma forma de proteção à vida. Holanda defende (1992, p.43), de modo proeminente, que “reduzir alguém ao silêncio é matá-lo”, é anular sua identidade, impedir que o sujeito exerça os seus deveres e seus direitos, excluí-lo do círculo social. Nas sociedades patriarcais e de poder totalitário, o 28 silêncio pode ser uma tática, um esconderijo ou um porto seguro de quem não sabe e/ou é proibido de usar a palavra. Frente ao medo e à angústia, os sujeitos integrantes de um mundo duro e reificado precisam abafar/renegar a linguagem para garantir a sobrevivência. Diante disso, fica evidente a diferença entre o silencioso e o silenciado. O último tem algo a dizer, mas aprisiona, esconde ou é forçado a reprimir a expressão, o indivíduo cala como quem claudica, emudece e não homologa sua palavra a outrem. Esse mutismo pode ser considerado como o “silêncio da oclusão” (KOVADLOFF, 2003), porque os vocábulos são encobertos, renunciados, a enunciação até é possível, no entanto, é evitada pela imposição social, pelo temor ou por hábito. Já o silencioso não é vítima de nenhuma força exterior que o leva a calar, a taciturnidade é um estado geralmente constante e integrante de sua personalidade. Então, por mais que o ato de silenciar esteja entrelaçado à falta ou ao repouso do movimento da comunicação devido à ausência da palavra, em hipótese alguma se deve considerá-lo desprovido de sentido. Toda interrupção discursiva encontra-se prenhe de significações, que precisam ser interpretadas pelos indivíduos envolvidos nos jogos de interlocução. Estar calado é, pois, também uma forma de comunicar algo, de exigir atenção dos ouvidos habituados ao ritmo frenético da fala. Alguém que permanece lacônico pode somente estar quieto ou pode estar submerso no poço das angústias, abafando o seu desespero com o intuito de refletir uma aparência calma e tranquila. A respeito deste tipo de situação, Michele Frederico Sciacca constata que a dor física obriga a pessoa a gritar; contudo, o sofrimento espiritual é capaz de fazê-la mergulhar no silêncio. A agonia das esperanças estraçalhadas, das tristezas radicais, sufoca as palavras, as aprisiona dentro do ser. Perante o padecimento espiritual, os lexemas mostram-se insuficientes, senão “inúteis desafinados” (SCIACCA, 1967, p.44). Da mesma forma, no silêncio também meditamos, refletimos, nos concentramos e nos recolhemos nele, porque ele se apresenta como “um caminho de reencontro consigo próprio para voltar a encontrar o contato com o mundo” (LE BRETON, 1997, p.145). Todavia, essa perspectiva se aproxima da ótica oriental e dela queremos nos afastar; interessa-nos deter a atenção no homem ocidental, que, em meio a tantos estímulos, dificilmente defronta-se com condições favoráveis à contemplação. Isto posto, como os seres da linguagem lidam com o silêncio no dia a dia? O cessar das palavras, como explana Sciacca (1967, p.37), pode apresentar-se como uma opressão: nele, soam as vibrações de todos os remorsos, de todos os momentos em que nos eximimos de praticar o bem, ou de reagir para defender alguém; no silêncio, passam as 29 sombras da passividade que reclamam o bem não realizado. Na vida em sociedade, “evita-se o silêncio. Se alguém não tem nada a dizer, o outro fala” (REIK, 2010, p.19). Cria-se qualquer coisa para dele fugir, porque a interrupção dos vocábulos é um acontecimento negativo, gera mal-estar e desconforto. Desvia-se, constantemente, dos mutismos, em razão do poder que eles concentram, uma vez que os mesmos têm a capacidade de “nos colocar frente à nossa vida”. Um instante de silêncio pode gerar “uma recapitulação que obsessiona, oprime; uma espécie de palco no qual estão presentes simultaneamente todos os personagens da nossa existência” (SCIACCA, 1967, p.37). Nas diferentes situações cotidianas, como ajudar ou não ajudar, optar por se envolver ou não, escolher expor as opiniões ou silenciá-las, calar nunca é uma atitude de neutralidade. Ao contrário, “é uma tomada de posição” (SCIACCA, 1967, p.34), que sempre terá um fardo, um peso psicológico que não é encontrado em nenhuma palavra. Um momento de silêncio concentra a carga das existências, carrega todas as recordações, as presenças, as ausências, as esperanças e as desilusões. Além disso, como sujeito falante, ser detentor da linguagem, normalmente o homem não é munido de aptidão suficiente para suportar o mutismo alheio. Na vida em sociedade, precisa-se tanto do outro quanto de sua palavra, e “nada nos destrói mais seguramente que o silêncio de outro ser humano” (STEINER, 1990, p.71). Nada isola mais os sujeitos uns dos outros do que a atitude de simplesmente ficar calado. Entretanto, no universo contemporâneo, paradoxalmente, se, às vezes se foge do silêncio, em outras vezes isola-se nele. Perante a precariedade, cada vez mais intensa, dos relacionamentos humanos, jaz uma angústia emudecedora que não quer calar. Parece que tudo foi dito e, ainda assim, ecoa um laconismo sufocante e aprisionador dos seres em uma solidão corrosiva. Os indivíduos permanecem imersos em uma multidão de pessoas absortas no individualismo. O advento da modernidade, marcado pela fragmentação, pela ruptura e pela diluição ininterrupta, em que “a única coisa segura é a insegurança” (HARVEY, 2000, p.22), levou as sociedades a se estruturarem de maneiras bastante distintas e dinâmicas. A aceleração do ritmo de trabalho, da produção, da vida das pessoas, a descartabilidade das mercadorias que instiga o consumo, a fugacidade das relações proporcionaram ao mundo moderno uma leveza aparente. Entretanto, a fluidez tornou-se fonte de incerteza para todo o resto. A nova organização social conduz o homem a vivenciar várias mudanças que dela decorrem, estas têm grande impacto sobre a vida comum. Nos tempos atuais, quase11 nada é sustentável, 11 Embora o mundo seja assolado por uma instabilidade constante, algumas coisas permanecem, resistem ao tempo, especialmente em países subdesenvolvidos (como é o caso do Brasil) em que as temporalidades e realidades heterogêneas, e até mesmo contraditórias, coexistem dividindo um mesmo espaço. 30 quase tudo sofre rotineiramente transformações, de modo que a instabilidade tenta soterrar todo o resto. Socialmente, os laços humanos são afetados, o modelo do indivíduo com valor em si mesmo consolida-se, provocando o enfraquecimento dos vínculos interpessoais e da noção de direitos e deveres. O homem moderno, aos poucos, abandona o sistema de crenças e valores herdados da tradição cultural para consagrar a satisfação pessoal, como consequência, ocorre a desintegração do sujeito em relação à sociedade. Ele procura saciar suas necessidades, de maneira que o outro só adquire valor quando o beneficia diretamente. Richard Sennett12 (1988) constata que, com o desenvolvimento das cidades modernas, o domínio público, gradativamente, cede espaço ao domínio privado. Em especial, o crescente aumento de “estranhos” nas urbes fora o responsável por desenvolver um sentimento de medo entre os citadinos que, na tentativa de se protegerem, no desejo de passarem despercebidos uns dos outros, acabaram se fechando em si mesmos, abrigando-se nas profundezas do eu. Estar em público era uma ameaça, porque os sentimentos poderiam ser descobertos através de uma exposição involuntária das emoções. O comportamento antissocial, junto com a crença do indivíduo como valor supremo da sociedade colaboram para a confusão entre o domínio da vida pública e da vida privada, fazendo com que os assuntos públicos (cuja abordagem só deveria ser feita conforme os códigos de significação impessoal) fossem tratados em termos de sentimentos pessoais. Essa nova atitude é descrita como a materialização de uma forma de narcisismo13, em que o indivíduo imerge em si e, assim, enxerga e compreende a realidade como uma projeção das imagens do “eu”. A concepção narcísica da realidade gera um sentimento de indiferença a tudo o que não reflete o imaginário do “eu”. Esse fator leva Sennett a asseverar que o aumento contínuo dos níveis de expectativa criados pelos sujeitos, dificilmente alcançados, resulta em uma profunda insatisfação pessoal e de silenciamento das frustrações. O “eu” se torna, 12 Sennett aborda as dificuldades no convívio social e íntimo que tal movimento acarreta, expondo as alterações ocorridas na vida social desde a queda do Antigo Regime até a atualidade. Dentre os fatores que impulsionaram essa mudança comportamental, é possível destacar dois acontecimentos históricos: a queda do Antigo Regime e a ascensão da burguesia. Em decorrência deste último fator, no século XVIII houve um expressivo aumento da população nas cidades, distanciando os cidadãos que não conseguiram mais manter os padrões que os diferenciavam no sistema hierárquico-social do Antigo Regime. 13 O mito de Narciso, explica Sennett (1998, p.395), possui “um duplo sentido: a sua autoabsorção evita que se tenha conhecimento a respeito daquilo que ele é e daquilo que ele não é; esta absorção também destrói a pessoa que está engajada nessa situação. Narciso, ao se ver espelhado na superfície da água, esquece que a água é uma outra coisa, que está fora dele próprio, e desse modo se torna cego a seus perigos. Como distúrbio de caráter, o narcisismo é o próprio oposto ao autoamor. A autoabsorção não produz gratificação, produz ferimentos no eu; apagar a linha divisória entre o eu e o outro significa que nada de novo, nada de ‘outro’ jamais adentra o eu; é devorado e transformado, até que a pessoa possa pensar que pode se ver na outra – e, então, isso se torna sem sentido”. 31 constantemente, ameaçado por um sentido de vazio interior, que impossibilita tanto um relacionamento satisfatório com os outros quanto o desenvolvimento de diálogos plenos (naqueles em que, durante o ato de comunicação, as pessoas estejam com a atenção integralmente voltada ao seu interlocutor). Este é o ser representante da nossa contemporaneidade. Em consequência, os indivíduos envolvem-se menos com a comunidade, o que prejudica e enfraquece os vínculos de associação e de compromisso mútuo. Dessa forma, surge o império da reserva e do silêncio, situação ocasionadora, para Sennett, da morte do espaço público. Desse modo, os sujeitos, seja nos ambientes citadinos, seja nos espaços rurais, mergulham em sua subjetividade, emparedam-se em seus sofrimentos, as mazelas alheias não os interessam. O movimento de afastamento uns dos outros é o que lhes propicia a sensação de segurança. Zygmunt Bauman (2004, p.119) menciona que as pessoas permanecem fisicamente próximas, porém procuram distintas formas de isolamento. Na busca pela proteção, criam-se fronteiras imateriais para resguardar suas identidades, sendo a incomunicabilidade um dos meios de se manter a distância, pois se é impossível evitar proximidade alheia, ao menos se pode ignorá-lo, inibindo a troca de palavras. Convém enfatizarmos que, no mundo ocidental contemporâneo, motivados pela urgência do dizer e pela multiplicidade de linguagens, espera-se que os sujeitos estejam o tempo todo produzindo signos audíveis, portanto, visíveis. Por consequência, ocorre um desgaste, uma desvalorização da palavra: Palavras extinguiram imagens ou as ocultaram. Uma civilização de palavras é uma civilização atormentada. Palavras criam confusão. Palavras não são expressão. [...]. O fato é que palavras nada dizem, se assim posso dizer. [...]. Inexistem palavras para a experiência mais profunda [...]. (STEINER, 1988, p.72) Há uma exaustão dos recursos verbais nas culturas de massa e na política, o que faz com que o silêncio se apresente como um refúgio, uma alternativa quando “as palavras pronunciadas no meio urbano estão impregnadas de selvageria e mentiras” (STEINER, 1988, p.74). Na literatura, a escolha pelo silêncio também está vinculada ao abalo que a palavra enfrentou nos dois últimos séculos. Steiner salienta que a recorrência a esse elemento expressivo se configurou com o desenvolvimento dos estudos das múltiplas linguagens – musical, matemática, de sinais – e, principalmente, após a Primeira Guerra Mundial. Desencadeada por esses acontecimentos, a crença de que a linguagem verbal era capaz de 32 refletir sobre as coisas foi afetada, e a literatura passou a representar a “crise da palavra”14. Assim, os escritores que aderiram a tal concepção tiveram dois caminhos a escolher: tornar o seu idioma representativo da crise geral, tentando transmitir por meio dele a precariedade do ato comunicativo, ou optar pela retórica do silêncio. Essa crise da palavra aproxima-se do indizível delineado nos estudos de Walter Benjamin, este constatara uma fratura da memória na experiência dos soldados que regressaram do front, após a Primeira Guerra. No início de seu ensaio, “Experiência e pobreza”, menciona que fora evidente, naquele momento, “que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos” (BENJAMIN, 1993, p.115). O horror e o sofrimento que eles experimentaram nas trincheiras não podiam mais ser narrados por palavras. Para esse estudioso, a experiência traumática da guerra não seria algo transmissível “de boca em boca” (BENJAMIN, 1993, p.115), dado que a linguagem cotidiana seria incapaz de representar o choque e assimilar o trauma pela via de uma narrativa tradicional. O indizível é produto, então, de uma catástrofe – de um evento que provoca um trauma. Este, por sua vez, conforme Jeanne Marie Gagnebin (2009, p.110), configura-se como uma ferida que não cicatriza, ocasionada por acontecimentos (violentos ou recalcados) que impedem o sujeito de elaborá-los por meio da palavra. Desse modo, a irrepresentabilidade irrompe, pois a experiência catastrófica bloqueia as palavras, desencadeando a inexistência da possibilidade de mediação da dor, já que aquilo que se passa na subjetividade é da ordem do horror. Os indivíduos afetados pelo trauma convivem com a polaridade, “entre o viver e o lembrar. O silenciar alia-se, muitas vezes, ao viver” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.90). Nessa perspectiva, o calar-se se constitui como a única maneira de seguir em frente, aprisionar em forma de segredo – tudo aquilo que não é possível ser elaborado nem para si próprio – é uma estratégia de sobrevivência. Trauma, segredo e silêncio tornam-se reflexos um do outro. O segredo exige a existência de barreiras edificadas para proteger o indivíduo da dor, impedindo a confrontação com a ferida e com a angústia. Uma incessante circularidade perdura: preserva-se o segredo, visto que se padece; contudo, a aflição permanece, porque se retém o segredo. O portador daquilo que não se pode dizer transforma-se no próprio 14 Steiner (1990, p.76) afirma que essa crise ocorreu em nível mais profundo e mais consequente na Europa Central, especialmente em Viena e Praga, entre 1900 e 1925, com pensadores e escritores (como Karl Kraus, Franz Kafka, Morgenstern, Wittgenstein) que sofreram o terror gerado pela catástrofe da Primeira Guerra Mundial. A drástica crise da linguagem se concentra no fato de que “a mente perde a confiança no próprio ato de comunicação”, e o silêncio materializa essa crise do vazio e da morte da palavra. 33 prisioneiro daquilo que guarda. Com isso, o segredo, entrelaçado com o silêncio, não é o oposto à verdade e, sim, à transmissão. Enfim, perseguimos o raciocínio de diferentes pesquisadores tanto com a finalidade de apresentar uma visão mais precisa sobre o silêncio quanto com o objetivo de expor o caráter multifacetado desse elemento, o que nos propicia realizarmos análises com diferentes enfoques em cada narrativa selecionada para o corpus da presente tese. No entrelaçar das teorias, acreditamos que as reflexões propostas não se excluem, mas, sim, se complementam, demonstrando que o silêncio, além de não ser o vazio, também não surge do nada, ele é decorrência de uma série de outros fatores. 1.3 Manifestações do silêncio na Literatura Brasileira Contemporânea Espaço de manifestação verbal, o texto literário é elaborado como possibilidade de expressão de diferentes recursos narrativos, mimetizando tanto dramas individuais quanto denúncias de mazelas coletivas. A palavra se insere no contexto ficcional como meio de representação do mundo e do ser humano: “Se a presença do homem é, antes de tudo, a sua palavra, também é inelutavelmente a presença de seu silêncio” (LE BRETON, 1997, p.23). Dessa maneira, não podemos esquecer que o silêncio sempre atravessa as palavras, “que existe entre elas [...] que elas produzem silêncio” (ORLANDI, 1995, p.22). Na literatura, o silêncio tem muitos níveis, formas e modos, sendo que diferentes autores produzem narrativas em que sua força se concentra, justamente, na intensidade daquilo que a personagem não diz, no tensionamento do que o narrador deixa implícito, na sugestão ou na omissão presente entre os diálogos representados. A pluralidade do silêncio oportuniza também que sua interpretação ocorra a partir das mais variadas perspectivas teóricas. Diante de tais considerações, julgamos ser relevante demonstrar, mesmo que brevemente, que, em meio à multiplicidade da Literatura Brasileira Contemporânea, é perfeitamente possível destacar um romance por ano (2001-2010), no qual se pode visualizar a existência de, ao menos, um tipo de silêncio. Longe de querermos reduzir todas as peculiaridades e idiossincrasias dos textos selecionados, tampouco pretendendo restringi-los às formas expostas de silêncio, nosso intuito é investigar as motivações que fazem as personagens calar, as pressões que, de alguma forma, desencadeiam o aprisionamento da expressão verbal e repercutem em diferentes manifestações do silêncio. 34 O silêncio do encantamento e da rejeição afetiva Para sempre: amor e tempo, integrante da coleção Amores extremos, de Ana Maria Machado, lançada em 2001, explora a construção cultural do mito do amor eterno, discutindo questões relacionadas com a ética, a lealdade, a fidelidade, a traição e a passagem temporal. A narrativa dialoga com textos – desde tragédias gregas até letras de música popular brasileira – que abordaram a temática da eternidade do sentimento amoroso para descrever os dramas de casamentos diversos às voltas com os contratempos provocados pelo excesso de intimidade e de convivência. As coincidências que levam duas pessoas a se encontrar fazendo-as jurar ficarem juntas, as paixões avassaladoras que destroem com antigas promessas e os relacionamentos maduros são contemplados, através da voz irônica de um narrador intruso, em oito capítulos repletos de uma série de digressões temporais. Ao longo da trama ficcional, acompanhamos, em específico, a evolução e a consequente ruína de duas uniões estáveis formadas por Nelson e Susana, e por Antônia e Daniel. Aqueles se conheceram na década de 1950 em uma festa de formatura do curso de Agronomia, quando ambos ainda eram jovens inexperientes e nunca haviam sofrido os fulgores do coração. O sentimento nasce a partir da troca de olhares curiosos e dispensa qualquer palavra que o descreva ou que ouse nomear o sentimento que começava a se desenvolver. Depois de conversar com os pais da moça e com ela dançar a noite toda, Nelson oferece-lhe um ramalhete de miosótis, “o pequeno buquê valia por um pedido, tradução viva do nome da flor em inglês: ‘não esqueça de mim’. Nem precisava dizer essa frase. Estava implícita” (MACHADO, 2001, p.17). O amor à primeira vista entre os dois fora acompanhado por certo silêncio de encantamento e da cumplicidade dos amantes desejosos da presença um do outro, ansiosos em satisfazerem as necessidades do ser amado, esperançosos por compartilharem juntos uma vida longa e feliz. Um ano e meio após o contato inicial, eles se casam. O que era para ser um mar de rosas é destruído pela cruel realidade: as dificuldades financeiras, a interrupção da carreira profissional dela, as sucessivas gestações, as ocasionais bebedeiras dele, tudo contribui para que o fervor da paixão seja apagado pelo desgaste da convivência. O casamento de 30 anos desmorona quando o marido perde o interesse sexual pela esposa e envolve-se com Tânia, uma jovem com idade para ser sua filha. A mulher traída tenta resistir, salvar a união familiar, mas se a separação é inevitável, ao menos é possível não falar sobre o assunto. Como mecanismo de defesa, Susana contém as palavras e os surtos de lágrimas, ignora a rejeição como se isso a fizesse desaparecer; passa a “Manifesta[r] menos o que estava sentindo, [a] 35 escond[er] que seu coração era ‘um copo até aqui de mágoa’, como falava a canção. Agora engolia o choro” (MACHADO, 2001, p.115). Contudo, enclausurar o choro e os lexemas raivosos é algo quase que insuportável para a personagem; a escolha pelo silêncio lhe causa danos à saúde refletidos na fragilidade do aparelho digestivo, ou seja, ela tem certeza que as consecutivas cirurgias e problemas de digestão são ocasionados por não conseguir digerir a traição e tampouco verbalizar seu rancor. Por sua vez, o intenso relacionamento sexual de Nelson com Tânia não cumpre com todas as expectativas. O fogo da paixão perdura por um curto período; com a idade relativamente avançada, ele permanece esquecido em um leito de hospital, visto que a nova companheira precisa dividir-se na dupla jornada de trabalhar e cuidar do filho pequeno, não dispondo de tempo suficiente para visitá-lo. No fim da vida, Nelson sente o peso do enjeitamento; na conversa mantida com um entrevistador anônimo, deixa claro que o presente é dolorido, por isso nada quer dizer a respeito da sua atualidade frustrada. Reconhece que a única mulher que realmente amou foi Susana, mas, por orgulho, silenciou tal constatação. Apesar do remorso da separação e da consciência do abandono por parte de Tânia, jamais revelou diretamente seus sentimentos para a antiga amada, reprimiu todas as palavras de arrependimento. Antônia e Daniel trilham outros caminhos que conduzem ao mesmo ponto de chegada. Ambos adultos, com carreiras profissionais estáveis, experientes no que se referia às coisas do coração, já tendo passado por uniões conjugais infrutíferas, se conhecem na década de 1970. O princípio do relacionamento é marcado, simultaneamente, por uma intensa atração física e por um silêncio intuitivo provocado pelo deslumbramento, tanto que não precisavam pronunciar em voz alta os desejos, seus corpos previam a lascívia, da mesma forma que cada um entendia a necessidade de conservar sua independência sem que essa fosse sequer enunciada. Decidem morar juntos sem assinar nenhum papel, sem fazer juras eternas em templos sagrados. No entanto, a implacabilidade do tempo esfacela inclusive com os envolvimentos livres, desprovidos das tradicionais amarras do contrato matrimonial firmado em cartório. A combustão libidinosa enfraquece a ponto de Daniel sofrer de impotência sexual. A partir desse acontecimento, instala-se entre os dois um constante silêncio incômodo, conversavam a respeito de quase tudo, “Mas sobre o pênis não se falava. Para não piorar as coisas, achavam ambos. Nessas coisas não se fala, porque aí mesmo é que estraga tudo” (MACHADO, 2001, p.141). As personagens optam pela estratégia de ignorar o inconveniente na tentativa de amenizá-lo, é como se, ao não nomeá-lo e não torná-lo assunto de debate, ele não tivesse 36 existência real. De um lado, ele cala e não “enche de palavreado uma situação dolorosa” (MACHADO, 2001, p.142), porque o problema emerge apenas com a mulher legítima, o corpo masculino rejeita o ser que fora tanto desejado para regozijar-se em novos corpos. Por outro lado, Antônia, em um primeiro momento, apreensivamente, emudece por julgar que a iniciativa em discutir essa questão delicada deva ser do homem, receia que qualquer coisa dita soe como intromissão indevida; em um segundo momento, a dor da traição em saber das aventuras sexuais do companheiro acaba calando-a. O silêncio do encantamento e da cumplicidade inicial dos amantes, de maneira similar às emoções, também não resiste à passagem temporal. Transforma-se. O fogo da paixão não se mantém aceso por toda a eternidade. A chama que se apaga abre espaço para o silêncio da rejeição afetiva. Frente ao fim de um relacionamento acalentado durante anos, do qual se acreditava ser imortal, os amantes emudecem. O sofrimento do abandono provocado pela troca do parceiro, na narrativa de Machado, diferentemente das tragédias gregas com as quais dialoga, não vira raiva canalizada para o crime, a fim de expressar o ódio. Ao contrário, as personagens, representantes do universo líquido, condescendentemente controlam os arroubos emocionais, trancafiam as palavras que poderiam expressar o sofrimento; por nada dizerem, experimentam uma dor entranhada que implode com a subjetividade; uma vez que “o duro é quando o silêncio é a expressão de que algo importante acabou” (BRANCO, 2005, p.188). Para manterem a aparência de sujeitos fortes e, no caso da mulher, fugir do estigma público de ser taxada de “‘rejeitada’ ou mal-amada, ou ser acusada de estar somatizando histericamente” (MACHADO, 2001, p.116), elas encobrem a revolta por meio de um “Obscuro enigma” (MACHADO, 2001, p.115), incapaz de ser desvendado pelos outros. Homens e mulheres fecham-se em si mesmos, aprisionam tanto as lágrimas quanto as palavras de desilusão, com o intuito de não revelarem suas frustrações ou arrependimentos. Como diria o narrador, “Na vida real e moderna, entre pessoas que domesticaram as emoções primitivas porque se querem educadas e civilizadas, o caminho que resta ao sofrimento da rejeição é ser lentamente purgado em impotência, vivido o luto da perda, entregue ao tempo” (MACHADO, 2001, p.116) e, convertido em silêncio. O silêncio da inadequação e da socialização Berkeley em Bellagio (2002), de João Gilberto Noll, tem o campus da Universidade de Berkeley, as montanhas em torno do lago Como em Bellagio, as ruas alvoroçadas de Porto Alegre como espaços por onde o protagonista transita, errantemente, sem se sentir confortável 37 em território nenhum. O romance representa o desamparo do sujeito integrante do contexto líquido-moderno, que se esforça para encontrar um porto seguro, justamente em um mundo globalizado e excludente, por isso “se desloca para [se] manter fixo” (NOLL, 2002, p.36). As primeiras linhas da narrativa já denunciam o desajustamento da personagem, um homem de meia-idade, em decorrência da falta do domínio do idioma dos países pelos quais passa: “Ele não falava inglês. Quando deu seu primeiro passeio pelo campus de Berkeley, viu não estar motivado. [...]. Ele não falava inglês e se perguntava se algum dia arranjaria disposição para aprender mais uma língua além do seu português viciado” (NOLL, 2002, p.9). A trama ficcional vertiginosa, ora conduzida por uma voz em terceira pessoa, ora elaborada em primeira pessoa pelo protagonista, intercala, de forma não linear, as lembranças imaginadas e as reais de um escritor brasileiro, chamado de João. Este passa uma temporada na Universidade da Califórnia, em Berkeley, como professor visitante ministrando aulas de cultura brasileira. Em seguida, viaja para a Itália a convite de uma fundação norte-americana situada em Bellagio, com o propósito de elaborar um romance em uma residência de artistas. Regressa, posteriormente, à sua cidade natal. João é uma personagem que experimenta um autoexílio em meio a outros intelectuais, cuja subjetividade está em permanente deriva, assim como a sua identidade está deslocada geográfica, temporal, sexual e linguisticamente. Inadequado ao mundo em torno de si, o protagonista tem dificuldade de diferenciar os espaços (sem nunca conseguir perceber nitidamente se está de chegada ou de partida); pouco distingue a passagem do tempo (em razão de viajar para ficar alguns meses e apenas no retorno perceber que se manteve distante por mais de quatro anos); recusa-se a estabelecer um papel sexual fixo (relacionando-se com homens e com mulheres sem se autorreferenciar como homossexual ou bissexual). O desconforto latente o acompanha por todos os lugares e países, sem saber ao certo o que está fazendo e o que deve fazer consigo, vaga sem compreender por que se desloca, do mesmo modo que não fala a língua inglesa, dominante tanto na Califórnia quanto na Itália. Estranho a si mesmo, o professor constantemente se questiona sobre quem é: “eu [talvez] não seja um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo entre norteamericanos (embora em solo italiano)?” (NOLL, 2002, p.36). A estraneidade pode ser atribuída, de modo duplo, a uma espécie de colapso com a linguagem. Em primeiro lugar, o protagonista sofria de um “mutismo feito o mais total disléxico em língua inglesa ou em qualquer outra” (NOLL, 2002, p.24), dado que as palavras pareciam sempre insuficientes para expressar a verdadeira carga subjetiva. Mesmo em língua portuguesa, tinha a sensação de que os lexemas pronunciados distanciavam-se do caos a que pretendia aludir; em virtude disso, 38 acaba se isolando “numa masmorra anterior à lógica da frase” (NOLL, 2002, p.25). Em segundo lugar, não fala e se nega a aprender a língua dominante dos espaços pelos quais cruza, aprisionando-se no “cárcere do idioma do qual [...] não pretendia sair” (NOLL, 2002, p.26) para manter a gentil distância para com os outros. Se seguirmos a perspectiva traçada por Renato Cordeiro Gomes (2010), de que a língua é uma das marcas mais culturais e identitárias que o indivíduo tem, podemos considerar que a inadequação linguística de João reflete um desajuste com a própria identidade volúvel e inconstante, e, simultaneamente, com os territórios em que transita. Em descompasso com o espaço e com a posição ocupada, a personagem permanece trancafiada em um “alheamento convulso” (NOLL, 2002, p.25), materializado pelo silêncio. João está sempre em busca da palavra perfeita para se relacionar e, em não a encontrando em nenhuma língua, entrega-se a outra forma de comunicação e de encontro com o outro. O desejo de contato junto com o anseio em extrapolar os limites das práticas sexuais, maiores que os entraves linguísticos, originam uma socialização alicerçada no silêncio do toque e da experimentação corpórea. O sexo emerge sob a forma de um “ritual de poucas palavras, se é que existe alguma ainda a ser dita: para que palavras se esse silêncio entrecortado de respirações fora do ritmo é o suficiente” (NOLL, 2002, p.60) para os sujeitos produzirem sentidos. A verborragia é completamente supérflua perante a atração dos corpos sedentos de prazer, “se falar naquele instante [do toque nos genitais] pressupunha, como parecia uma animação até a extremidade de algum entendimento, se falar fosse sinônimo disso tudo, ah, eles os dois não queriam mais” (NOLL, 2002, p.15-16). O corpo se apresenta como um meio provocador de entendimento e desentendimento entre as personagens. A deriva, o descompasso espacial e identitário, e a necessidade urgente de socialização são os responsáveis por reinventarem as práticas de contato humano em que a palavra perde o protagonismo. É o que vemos na cena final, quando o narrador relata o contato entre Sarita – filha do companheiro do escritor – e uma menina muçulmana. Impossibilitadas de conversarem na mesma língua, no sentido estrito do termo, a comunicação ultrapassa a barreira lexical e se estabelece por meio do balbucio, da quietude do toque e do olhar: [...] Sarita disse oh, assim mesmo, oh, como se ainda não soubesse falar, virgem de semântica. [...]. OH!, como se estalasse o primeiro sentido da espécie, o espanto!, espanto diante do outro com o meu corpo, que podia estar aqui onde eu estou, e eu naquele espaço preciso que ela ocupa agora, oh!, é mais que espanto, ou menos, melhor, bem menos: designa a calma tentação que faz Sarita tirar do bolso um botão perdido, talvez de sua própria roupa, um grande botão vermelho [...], Sarita passava 39 o botão vermelho para a mão da outra menina que olhou pra mim não bem com um sorriso, mas olhou parecendo suspirar pacificada... (NOLL, 2002, p.103) Os seres que transitam no romance Berkeley em Bellagio encaram a linguagem com desconfiança, constatando a precariedade e a insuficiência dos vocábulos. O exílio experimentado por João inclui também o abandono das palavras, visto que ele se retira do convívio da expressão para viver do que lhe assoma na sua subjetividade, dizendo apenas o necessário à sobrevivência; permanece estranho a si mesmo, ao lugar e, por extensão, ao próprio idioma e ao idioma estrangeiro. Em contrapartida, o degredo linguístico não repercute em afastamento do contato humano. Se, por um lado, a língua apresenta-se como um entrave para o diálogo entre as personagens, por outro, o silêncio emerge, através do toque e da gestualidade, como forma mais eficaz para comunicar frente à necessidade urgente de socialização. Neste caso, o silêncio se configura como um traço de união; graças ao cessar parlatório, o hiato que separa os sujeitos pode ser superado, ou ao menos atenuado. O silêncio da aquisição da linguagem e do ofício de ghost writer Com Budapeste, de Chico Buarque, publicado em 2003, em meio à tematização de questões ligadas à relação entre realidade e ficção, a problemática da escrita e da autoria, do aspecto fragmentário da identidade, os jogos de espelho e do duplo, temos outra configuração do silêncio. José Costa, narrador-protagonista, Doutor em Letras, é um ghost writer que reside na cidade do Rio de Janeiro com a família. É casado com uma apresentadora de telejornal, Vanda, com quem tem um filho. Embora prefira o anonimato e a vida calma longe dos flashes, a vaidade, algumas vezes, lhe perturba o espírito. Sentimento ambíguo para a personagem: ao mesmo tempo em que se deleita ao ter conhecimento de que seus textos são apreciados, também, em um episódio específico, chega a chatear-se com a falta de seu reconhecimento. A relação paradoxal que mantém com a escrita sofre grandes abalos a partir do contato com a língua húngara. Quando regressava de um encontro internacional de ghost writer, em razão de problemas com o voo, José Costa é obrigado a passar a noite na cidade de Budapeste. Nessa ocasião, fascina-se com o idioma forte, sem conseguir extrair significado para nenhuma palavra (apesar da sua grande facilidade para idiomas), aos poucos, é seduzido por aquilo que se mostra inapreensível. Além do contato com a língua magiar, a permanência forçada na cidade também possibilita o encontro com Kriska, que, primeiramente, se torna sua professora 40 e, tempos depois, sua namorada. Inicia-se assim, por parte do narrador, uma série de idas e vindas entre as cidades do Rio de Janeiro e de Budapeste. Brandão (2010), ao realizar uma leitura sobre esse romance, defende que o traço expressivo é o constante deslocamento do narrador-protagonista, considerando o desvelamento da subjetividade como um processo em devir, que convoca para o palco o silêncio. Este é concebido como uma experiência da linguagem relacionada ao ato da escrita e das relações entre infância, experiência e história na contemporaneidade. A televisão, um dos equipamentos mais representativos da comunicação de massa, funciona na narrativa como o ponto inicial para a discussão a respeito da relação entre o homem e a linguagem, entre o dizer e o calar. A primeira cena de José, frente ao aparelho, no hotel estrangeiro, reflete o silêncio como ausência. Ele experimenta um sentimento de privação diante do noticiário que acompanha, tudo ecoa de forma ininteligível. O que está ausente não é o significado em si, pois pode ser deduzido por meio das imagens, mas o que realmente lhe faz falta é a linguagem, a capacidade do homem de gerar sentidos através da língua em uso. “Capaz de decifrar o significado, Costa é incapaz de produzir sentido” (BRANDÃO, 2010, p.139). José Costa, ao tentar aprender húngaro, revive o período de ingresso no universo linguístico, cujo componente essencial é o silêncio. Retorna à estaca zero, à origem da aquisição de uma nova língua. Nessa perspectiva, regressa à “in-fância”15, concebida como uma etapa seminal em que experiência e palavra se relacionam intrinsecamente: “a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância [...] produzindo a cada vez o homem como sujeito” (AGAMBEN, 2005, p.59). Giorgio Agamben (2005, p.63) sustenta ainda que a infância de modo exclusivo é, ao mesmo tempo, testemunho da cisão entre “infante” e “sujeito”, entre língua e discurso, remetendo a uma experiência que, continuamente, repete o ingresso do homem na linguagem. A experiência “in-fante” perdura no contínuo ir e vir do protagonista. Depois do primeiro contato com o idioma estrangeiro, marcado pelo tensionamento entre os lexemas e o silêncio, a motivação para o regresso àquele país é desencadeada através da revelação de que o filho do casal, uma criança com aparente afasia, emitia durante a noite sons vocálicos que nada mais eram do que a imitação dos sons produzidos pelo próprio pai, enquanto este dormia. Essa imitação é, na verdade, um reflexo automatizado, tendo em vista que nem José 15 Agamben (2005) explica que a infância não pode ser entendida somente como uma experiência individual, subjetiva, delimitada por um tempo cronológico da vida do homem, mas como uma experiência seminal para a constituição da história. O filósofo defende que no mundo contemporâneo a possibilidade de uma experiência originária é quase que inexistente, apenas vivenciada no ato de o homem ingressar na linguagem. 41 Costa nem a criança sabem o que as palavras pronunciadas significam. Tal reprodução aproxima-se a um balbuciar, e quando a criança inicia esse estágio da aquisição da linguagem, é capaz de “formar os fonemas de todas as línguas do mundo” (AGAMBEN, 2005, p.65). Desse modo, ao balbuciarem, pai e filho se encontram no estágio inicial da linguagem, capazes de compor fonemas sem significação, ficam presos a uma forma de silêncio. A partir do momento em que, de volta a Budapeste, Kriska dá as primeiras lições da língua para o namorado, é que a sua condição “in-fante” é assumida integralmente. Mesmo sendo apresentado a palavras dotadas de sentido, o protagonista era apenas “um homem gago aprendendo a falar guarda-chuva, gaiola, orelha, bicicleta. Kêrekport, kêrekpart, kerékpár” (BUARQUE, 2003 p.63). O ensino tradicional não possibilita a José Costa o aprendizado da língua, pois ele continua no estágio denominado de experimentum linguae16. Esse estágio somente é superado depois que retorna pela terceira vez à cidade, quando realmente abandona o Rio de Janeiro, ignorando os vínculos familiares e, definitivamente, entrega-se ao silêncio da aquisição da linguagem. Caladamente, José Costa transforma-se em Zsoze Kósta. O contato direto com o húngaro permite que a condição “in-fante” seja ultrapassada. Escutar as falas dos literatos do Clube das Belas-Letras, fixá-las na palavra escrita e submetê-las à revisão de Kriska fazem parte do processo de aquisição da língua estrangeira por que o protagonista passa. Entretanto, a metamorfose não rompe com outra barreira: a repetição do trabalho de ghost writer. Ao abrir mão de enunciar “eu”, de grafar o seu nome na capa dos livros que escreve, tanto no Brasil quanto em Budapeste, ele mantém-se preso à rede de silêncio imposta pela profissão escolhida. No entanto, esse jogo de recusa autoral e de permanência no silêncio que, de certo modo, preserva a identidade é paradoxal nos dois países. No Brasil, O Ginógrafo, autobiografia encomendada pelo alemão Kasper Kraber, atinge um sucesso inesperado e conquista a admiração de Vanda. José não suporta a glória do livro que escreveu, não aguenta o anonimato e revela para a esposa que é o verdadeiro autor, mas ela não acredita em nada. Já em Budapeste, a trajetória será semelhante. Na língua de outrem, escrevendo como se fosse outro, em outro gênero (o lírico), Zsoze Kósta renuncia os créditos dos Tercetos Secretos que escreve, atribuindo os poemas a Kocsis Ferenc. Chega a ler alguns versos para Kriska na esperança de que a professora-namorada reconheça o seu domínio linguístico, porém não obtém o prestígio esperado. Ao final da narrativa, a notoriedade que o protagonista, 16 Experimentum linguae, para Agamben (2005, p.12), é um movimento que se “funda somente na possibilidade de nominar os objetos [...], em que os limites da linguagem não são buscados fora da linguagem”. 42 contraditoriamente, almejara e rejeitara com a sua escrita anônima surge com a publicação de sua autobiografia intitulada Budapeste. Um texto escrito por outro ghost writer, apesar de, em público, negar a escrita, “O autor do meu livro não sou eu, me escusei no Clube das BelasLetras, mas todos fizeram festa e fingiram não me ouvir” (BUARQUE, 2003, p.170), o romance permanece como seu, a verdade carece de força para expor o silêncio da autoria. Buarque constrói uma narrativa alicerçada sobre o terreno do silêncio, das interrupções no discurso, das lacunas de uma história não linear. Nesse espaço, as questões de autoria, identidade, subjetividade e alteridade são tensionadas ao máximo através do conflito com a aquisição de uma nova língua e de uma profissão que exige o emudecimento autoral. O silêncio da solidão e do ressentimento “A solidão é a forma discreta do ressentimento” (TEZZA, 2004, p.9). Essa é a frase que abre a narrativa O fotógrafo, de Cristovão Tezza, publicada em 2004, prenunciando desde a primeira linha que a solidão e o ressentimento serão os sentimentos norteadores da condição e da trajetória das personagens. Entre os movimentos circulares e jogos de espelhos propostos pelo romance, o narrador-fotógrafo17, com sua câmera, registra o seguinte: os seres ficcionais são tomados pelo ressentimento que os faz solitários; por sua vez, a solidão desencadeia o silêncio gerador de ressentimento e assim sucessivamente. Durante um dia, na cidade de Curitiba, em tempos de eleições presidenciais, o foco da câmera registra os encontros desencontrados de cinco personagens que estão interligadas por um emaranhado de coincidências: o fotógrafo, sua esposa, Lídia, a qual se apaixona por Duarte, seu professor da universidade, que, é casado com Mara, a psicanalista de Íris, jovem que o fotógrafo é incumbido da tarefa de fotografar sem que ela perceba. O narrador-fotógrafo captura uma sequência de situações do cotidiano dos grandes centros urbanos, em que “os vínculos amigáveis estabelecidos dentro de uma comunidade” são corroídos pelo individualismo, onde o homem experimenta a condição solitária (BAUMAN, 2009, p.20). Todos os cinco sentem a solidão e o silêncio, às vezes de modo distinto, às vezes de forma bem semelhante. Em geral, as personagens não conseguem comunicar-se plenamente umas 17 Estamos diante de uma narrativa que é construída através do olhar de dois fotógrafos: o primeiro deles é o protagonista da história, um quarentão, jornalista, inseguro e insatisfeito pessoal e profissionalmente. Já o segundo é o narrador: munido de palavras, ele “fotografa” o fotógrafo e todas as personagens que o rodeiam, revelando os seus pensamentos, temores e anseios. Para melhor clareza sobre a questão da fotografia nesse romance, consultar a tese de Sheila Katiane Staudt, Retratos urbanos em romances do século XXI: uma releitura de Eles eram muitos cavalos, O fotógrafo e Satolep, defendida em 2015 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 43 com as outras, talvez nem consigo mesmas. Há balbucios, resmungos, a palavra sempre falta. Vivem sob um conflito constante entre o dizer e o calar, o pronunciar claramente as palavras ou mastigá-las baixinho: Íris: Você pensa que eu sou a Giselle Bündchen? – mas ela não disse. Quem sou eu para ter agência? A periferia das modelos, ciscando aqui e ali com um book na mão – mas também não disse. (TEZZA, 2004, p.31, grifos nossos) Mara: Todos os brasileiros são economistas – exceto Duarte, ela pensou, que de seis em seis meses perguntava: como estamos de dinheiro? Estamos bem, ela diria. De dinheiro estamos bem – isso ela não diria. (TEZZA, 2004, p.114, grifos nossos) Lídia: É outra coisa que quero mudar: de marido, quase ela disse em voz alta, como quem quer se livrar de uma sombra. (TEZZA, 2004, p.39, grifos nossos) Fotógrafo: Praticamente não ocupo espaço, mesmo com o peso um pouco acima da média, e ele sorriu, pensando em dizer isso em voz alta. (TEZZA, 2004, p.128, grifos nossos) A dissolução do diálogo é evidente em diversas passagens da narrativa. Entretanto, é nos relacionamentos familiares que a imagem do silêncio se intensifica. Tezza dá vida a uma “tensão surda” (2004, p.15), que se arrasta ao longo do tempo corroendo os matrimônios. O fotógrafo e Lídia não passam de “dois estranhos com uma filha no meio” (TEZZA, 2004, p.70); na casa onde moram o clima que prevalece é o do emudecimento: por não conseguirem confessar o desejo mútuo pela separação, acabam se isolando em um ressentimento recíproco e transformando-se em seres estranhos, que apenas compartilham o mesmo espaço. A própria filha do casal é produto e metáfora do deserto afetivo dos pais: “Uma criança solitária, ela calculou, imediatamente justificando: porque eu sou solitária e ele também é; além disso, somos silenciosos em casa. A criança absorve a atmosfera pelos poros” (TEZZA, 2004, p.109). O relacionamento de Duarte e Mara também é alicerçado na ausência de sentimentos e norteado pelo automatismo das ações, arrastando-se entre “Os períodos de distância e indiferença, os pequenos abismos de convivência, um pouco de tédio” (TEZZA, 2004, p.81). Na vida compartilhada dos cônjuges, há o convívio, a tolerância, mas o amor deixou de existir há algum tempo. Dissolução esperada, visto que “a sociedade concebe o amor, contra a natureza deste sentimento, como uma união estável e destinada a criar filhos. Identifica-se com o casamento” (PAZ, 1976, p.179) que não passa da “revelação de duas solidões que criam por si mesmas um mundo” (PAZ, 1976, p.180). 44 Em O fotógrafo, a solidão ergue-se como uma muralha que impede a efetividade da comunicação entre os casais. Frustradas, fragilizadas pelas farpas da convivência, as personagens utilizam o silêncio de diferentes formas: proteção que ameniza a dor das feridas, isolamento perante o mundo e o outro, um modo de transmitir a mensagem – o problema é que essa mensagem dificilmente é codificada e deixa no receptor uma sensação desagradável. Além do silêncio que permeia os relacionamentos interpessoais das personagens presas na dúvida de “Contar ou não contar?” (TEZZA, 2004, p.47, p.73), pronunciar alto ou resmungar, há outra forma de materialização desse elemento: a ruptura. São inúmeras as passagens em que o diálogo ou a narração são suspensos de maneira abrupta: Sentou-se no banco do corredor para fumar um cigarro, mas não havia mais cigarros na sua pequena bolsa, só o cheque e o cartão do banco e os documentos e o batom e - (TEZZA, 2004, p.35, grifos nossos) O orgulho feminino, ela corrigiu, depois de ter um homem que. Não. Fomos feitos um para o outro (TEZZA, 2004, p.201, grifos nossos) - Eu sei, Duarte. É que foi engraçado o jeito como você falou. Eu percebi que (TEZZA, 2004, p.62, grifos nossos) Temos a sensação de que sempre que o narrador ou a personagem ousa ultrapassar os limites do que pode ser pronunciado, há a ruptura, ou seja, o silêncio acontece em razão da impossibilidade de se representar a solidão em sua completude, até porque “a solidão é a profundeza última da condição humana” (PAZ, 1976, p.175). Portanto, a ruptura pode ser considerada como um modo de suspensão que “diz aquilo que as palavras não seriam suficientes para traduzir” (LE BRETON, 1997, p.75): a obscuridade dos sentimentos; a ausência do que, um dia, fez parte de suas vidas; as dolorosas perdas e privações. Por fim, é preciso lembrarmos que a fotografia em si pode ser considerada como um texto sem palavras, em que a imagem cala qualquer lexema. Assim é o romance de Tezza, os silêncios revelam os jogos de luz e sombra dos seres. Todas as personagens estão impregnadas de uma melancolia rançosa e escolhem o isolamento que as sufoca. Oprimem os ressentimentos com o desejo de, no momento certo, verbalizá-los, circunstância que jamais acontece e, por isso, se mantêm emudecidas. Esse aprisionamento as asfixia de tal modo que as leva a monólogos interiores, a emitirem vocábulos desconectados, em um misto vertiginoso de pensamentos e falas, desejos e frustrações que as impedem de transcender a solidão. 45 O silêncio da violência Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios 18, de Marçal Aquino, publicada em 2005, é uma narrativa sobre a força da paixão e da destruição que este sentimento gerou na vida dos amantes Cauby e Lavínia. Estruturada em quatro capítulos, ela é conduzida por três vozes: Cauby, o protagonista; Altino, um bancário aposentado; e um narrador onisciente em terceira pessoa. O pano de fundo é uma cidade inominada do interior paraense, que vive um período tenso de crescimento, tanto da economia quanto da violência, provocado pela retomada das atividades do garimpo. Sedução, sexo, desilusão, espera, ansiedade, medo, brutalidade e, finalmente, loucura alimentam a complexa trama de amores que se transforma a ponto do caos implodir e a desordem assumir o comando. Cauby, um fotógrafo paulistano, de 44 anos, motivado pelo financiamento de uma agência francesa para fazer um livro, desloca-se até o Pará com o objetivo de fotografar as prostitutas que (sobre)vivem em torno da extração de minerais. Por sua vez, Lavínia, 24 anos, é uma mulher que foge de casa por ter sido abusada sexualmente pelo padrasto, passando então a se prostituir. Ela casa-se com um pastor evangélico sessentão, chamado Ernani, após ser exorcizada por este religioso. O desejo incontrolável entre os amantes nasce logo no primeiro encontro, ocorrido na loja de fotografias de um chinês pedófilo. O caso extraconjugal inicia-se em seguida, perdurando por pouco mais de um ano. Ao longo do romance, acompanhamos episódios pontuais de violência, os quais complicam com a vida das personagens, alterando suas trajetórias e impondo o silêncio de modo cruel: Chang, o chinês, é eviscerado; Viktor Laurence, jornalista, suicida-se; Ernani é assassinado; Cauby, principal suspeito da morte do pastor, é apedrejado pelos fiéis e tem sua casa queimada; Lavínia é internada em uma clínica psiquiátrica e exposta a tratamento de choque. Debruçando-se sobre Eu receberia...19, Souza (2013, p.19) defende que “as personagens, muitas vezes silenciadas, existem num contexto de extrema violência, aprisionadas em seu passado e vivenciando um presente coberto de melancolia”. Para a pesquisadora, a coação linguística é representada, basicamente, de duas formas: “o silêncio sobre e o silêncio de” (SOUZA, 2013, p.49). Não obstante, há ainda as personagens que estão emudecidas, caso do fotógrafo, e aquelas que foram caladas, caso de Lavínia. Entretanto, a 18 Apesar desse romance não ter sido indicado a nenhum prêmio literário, a escolha deve-se ao fato da boa repercussão que a adaptação para o cinema teve. 19 Em vez de utilizar o título completo, relativamente longo, a partir de agora usaremos somente as duas primeiras palavras Eu receberia... 46 atenção da estudiosa recai somente sobre a ex-prostituta, ficando de fora da análise do não falar das outras personagens. Primeiramente, a jovem amante, aparentemente com transtorno de identidade 20, sempre fora muito fechada: “Em geral, Lavínia detestava abordar o passado. Significava reabrir feridas, revisitar um mundo de privações e violências” (AQUINO, 2005, p.97). Os traumas da infância e do tempo em que se prostituía a impedem de narrar sua existência. O silêncio dela, conforme Souza, ocorre no nível do foco narrativo. Essa personagem não tem voz, não lhe é dada a possibilidade de alcançar o discurso; seus dramas, receios, desejos apenas são descritos através da voz do narrador. Também, seus companheiros afetivos obrigaram-na a abafar uma parte de sua identidade, e o controle mais intenso a que fora submetida foi o tratamento psiquiátrico: “Ela não é mais Lavínia. Desde que chegou e puseram fogo no seu cérebro, ela deixou de ser. É outra. Em mais de um sentido. Trocou de pele. De alma. De nome” (AQUINO, 2005, p.223). Dessa maneira, a personagem é silenciada por dois modos de violência: sexual e psiquiátrica. Há, ao menos, ainda outras duas formas brutais de silenciamento, neste universo ficcional, que Souza não se deteve. A primeira refere-se ao caso de Chang e a segunda, ao de Cauby. O chinês abusava de meninos, embora todos na cidade tivessem conhecimento desses casos hediondos, ninguém ousava dizer algo, tampouco se atreviam a fazer denúncias às autoridades. Por que silenciar a pedofilia? Simplesmente pelo fato de que o chinês era agiota e detinha o poder do dinheiro em mãos, vivia emprestando qualquer quantia a quem quer que fosse, porém nunca se esquecia de cobrar. O silêncio que o envolve em um manto de proteção, conveniente com o ato ilícito, é produto do medo dos moradores de serem mortos. Em grupos onde a desconfiança é habitual, Le Breton (1997, p.80) assevera que o mais certo é jamais falar senão a propósito, assim o “silêncio é um modo de defesa, de domínio sobre si”. Todavia, uma personagem, Guido Girardi, fez a situação inverter-se, calou de vez o agiota ao retirar suas vísceras. A própria motivação para tal selvageria permaneceu obscura. Por fim, a condenação de Cauby ao emudecimento. O fotógrafo foi assolado por várias desgraças que aniquilaram sua vida para sempre. Se considerarmos que o silêncio é um instrumento “de poder, de terror, uma forma de controlar com mão de ferro” (LE BRETON, 1997, p.88), podemos afirmar que ele torna-se vítima desse instrumento, porque, depois de ser apedrejado pelos fiéis seguidores de Ernani, consegue sobreviver, mas não sem prejuízos: 20 Cauby utiliza formas diferentes para definir as identidades de sua amante: “a bela da tarde” (referência ao filme do diretor espanhol Luiz Buñuel, com Catherine Deneuve) ou Shirley, para a Lavínia profana e sedenta de sexo; e simplesmente Lavínia, para a jovem recatada e bem comportada. 47 perdeu para sempre o olho direito e também parte da audição. O que os fanáticos desejavam ao atacar o fotógrafo era, simbolicamente, apagar os rastros do sujeito que manchou a honra do pastor, com a intenção de ocultarem um passado recente. No entanto, os devotos falham, porquanto o protagonista vaga pela cidade como um fantasma que insiste em trazer à tona as lembranças que querem ser esquecidas, resta a ele ver menos e não ser visto; dizer, mas não ser ouvido: “A maioria evita me encarar. [...] fingem não me ver. Ninguém fala comigo, um voto de silêncio impera na cidade. Me ignoram [...]” (AQUINO, 2005, p.189). Cauby fora silenciado em dose tripla. Privado da palavra, impossibilitado de registrar o mundo pelas lentes da objetiva, ignorado pela comunidade, a personagem é subjugada por uma variedade de censura, visto que essa prática de controle da expressão configura-se por ser “uma obrigação de calar ou de ver aquilo que se diz desfigurado. Ao interditar todas as manifestações hostis, ela estrangula a palavra à nascença, acantonando-a ao mutismo” (LE BRETON, 1997, p.88). Dessa forma, o ato da comunidade de saquear e pôr fogo na casa do fotógrafo, com todas as suas fotografias e equipamentos dentro, é uma maneira severa de proibir que a sua seja proferida e ouvida, reduzindo-o à completa mudez. O silêncio do espectador e da covardia traumatizante Mãos de cavalo, romance de Daniel Galera, publicado em 2006, entrelaça duas histórias, fases distintas do mesmo protagonista: Hermano. Em um plano narrativo, é retratada sua trajetória dos dez aos quinze anos de idade, quando era conhecido pelo apelido de Mãos de Cavalo, as aventuras no bairro em cima das duas rodas de sua bicicleta, as tentativas de integração no grupo de amigos, as primeiras descobertas em relação à própria identidade e o comprometimento obstinado com os estudos. No outro plano, é apresentada sua vida como um cirurgião plástico de 30 anos, casado com Adri, pai de Nara, que, apesar de ser bemsucedido profissionalmente e ter uma união estável, põe em xeque suas escolhas no momento em que sai de casa para escalar o Cerro Bonette com um amigo. Entre estas duas tramas – claramente separadas por capítulos, os quais alternam episódios do passado relembrado com as ações do presente proposto –, existem duas linhas que costuram as histórias: o silêncio impregnado em sua personalidade (e também em suas ações) e o trauma vivenciado na adolescência, juntamente com as consequências que esse episódio causou ao longo de sua vida. Mãos de Cavalo fora um garoto fortemente influenciado pelo universo pop dos superheróis, inspirara-se nestes seres que cumprem à risca os parâmetros de poder, invencibilidade, 48 capacidade de superação. A vida dos heróis é complexa, dificilmente uma vitória ocorre sem luta, desgaste físico ou derramamento de sangue. A solidão é outro elemento recorrente, tanto que, quando os laços afetivos existem, são mantidos com muita dificuldade. Esses traços, o menino que adolesce tenta praticar, como se atuasse em um filme de aventura, estava sempre encenando. Nas situações controladas (simulações, campeonatos de bicicleta, corridas solitárias), exibe sua bravura, quer que sua performance seja vista, a dor não o intimida; ao contrário, dá-lhe prazer da mesma forma que o sangue o fascina. O desejo de acumular heroicas cicatrizes o impulsiona a superar o perigo, a ponto de automutilar-se. Contudo, nos momentos derradeiros que a vida oportunizou ao Mãos de Cavalo concretizar os atos de bravura desempenhados em suas fantasias, ele se acovardou. A coragem e o exibicionismo dão lugar a um espectador medroso ou a um ator passivo. Há três situações marcantes em que isso ocorre: durante um jogo de futebol no campinho, em que, depois de atingir propositalmente Bonobo com um calço e ambos caírem no chão, não é capaz de encará-lo, congela-se como uma pedra e não o desafia. Já na festa de Isabela, assiste de camarote a aniversariante ser desrespeitada pelo namorado, “todo mundo menos Hermano decidiu intervir ao mesmo tempo” (GALERA, 2006, p.117). Enfim, é pela sua covardia e omissão que vê Bonobo ser espancado até a morte, evento que o traumatiza. Nesses conflitos, o protagonista pensa em agir, imagina as ações que deve tomar e as consequências das mesmas, porém hesita sempre, nada faz e nada diz, observa o desenrolar da cena como se não fizesse parte do elenco. Hermano é um rapaz envolto em um mutismo21 do qual não consegue sair, os próprios amigos chamam a atenção para este fato: “O Mãos vai ser ator. Daqueles que não falam nada” (GALERA, 2006, p.60). É o seu emudecimento, materializado na falta de ação, que o impede de ser um herói admirado. Na mesma proporção que pensa em agir e nada faz, muitas vezes deseja falar, mas cala. Como acontece na relação com o Morsa, amigo que o protagonista somente o visitava em razão dos videogames que o outro tinha: “teve o desejo absurdo de voltar e pedir desculpas por alguma coisa que ele não sabia bem o que era. Como sempre, apenas seguiu pedalando” (GALERA, 2006, p.84). Introspectivo e solitário, o Mãos busca a sociabilidade, tenta integrar-se ao grupo de adolescentes do bairro, participar das festinhas e das incursões no mato. Simultaneamente, recusa a total integração; é o único que não bebe e nem fuma, em nome de uma “abstinência 21 Este traço da personalidade é herdado pela filha Nara, que até mesmo no nascimento, devido às complicações do parto, nasce quieta, sem chorar. E, com dois anos e meio, “Uma coisa era certa, ela havia puxado muito mais a ele do que à Adri no temperamento. Falava pouco, observava tudo e já tinha um jeito meio adulto de sofrer em silêncio [...]” (GALERA, 2006, p.73). 49 vitalícia de toda e qualquer substância que pudesse degradar o seu corpo” (GALERA, 2006, p.169); joga futebol para ser visto e não pelo prazer do jogo; nos passeios pelo Morro da Polícia, é uma companhia ausente. Resende (2008, p.123) caracteriza essa turma como “um grupo de adolescentes de Porto Alegre, agressivos, violentos e vivendo solidões partilhadas”. A covardia gera o silêncio e a passividade que distanciam Hermano dos seus ídolos. Entretanto, a fraqueza dele é diferente, afigura-se como a ausência da possibilidade de ação modificadora da realidade. O adolescente é incapaz de ajudar Bonobo, vítima da selvageria de oito jovens que o espancam até a morte. Esconde-se no mato, acompanha tudo a uma distância segura. Inapto para agir contra a agressividade real, novamente fica paralisado, o horror do que viu lhe provoca um trauma. Márcio Seligmann-Silva (2003, p.49) afirma que “A história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real”. Esse desencontro, por causa da sua intensidade, e muitas vezes do teor inimaginável, gera o mutismo no sobrevivente/testemunha. A experiência traumática pela qual Hermano passou desencadeia uma forma de silêncio. Contudo, o insuportável, o horror, o choque não foi ver o amigo morrer, mas sim descobrir a dimensão da insuficiência de sua coragem: “sentiu-se cúmplice devido a uma covardia que finalmente se mostrava inteira e que ele estava convencido a manter em segredo, pois não suportaria continuar vivendo se precisasse ostentar essa covardia dali para frente como uma cicatriz na testa” (GALERA, 2006, p.173). O adolescente só sobreviveu devido a sua falta de atitude, assim não pôde reelaborar o evento sem ficcionalizar. Como não havia testemunhas, ele encena uma reação destemida: bate em si mesmo, joga-se no chão, suja e rasga a camiseta e depois conta para os amigos a sua versão dos fatos. O silêncio, traço da personalidade solitária e do medo de enfrentar eventos-limite, estende-se ao longo de sua vida. Mesmo que, às vezes, lhe perturbe a subjetividade, ocasionando algum mal-estar, o protagonista jamais revela para alguém a experiência sofrida. Utiliza o emudecimento como um escudo que protege e, concomitantemente, esconde o déficit de sua valentia. O silêncio da meditação e do trauma Embora o deslocamento, a busca pelo pertencimento possível, a mobilidade em nível transnacional e todos os sentimentos desencadeados a partir de uma viagem 22 a um país 22 Sobre o deslocamento como eixo organizador dessa narrativa, sugerimos a leitura do artigo “Os sentidos da viagem em Rakushisha, de Adriana Lisboa”, de Gínia Maria Gomes, publicado no livro Escritas do eu: 50 estrangeiro possam ser considerados como o eixo narrativo fundante de Rakushisha (2007), é quase impossível não perceber o silêncio que aflora a cada virar de página. A própria contracapa do livro já antecipa esse fio condutor: “Com a delicadeza que marca sua obra, Adriana Lisboa constrói um romance preciso como um haikai – nenhuma sílaba falta. Em Rakushisha se ouve o sussurro do silêncio, da não palavra, do não-dito, aquele quase nada que é tudo”. A trama é tecida a partir de várias vozes e gêneros. Excertos dos diários de viagem, narrados em primeira pessoa, de Celina e do poeta japonês Matsuo Bashô (1944-1694) intercalam-se com um narrador em terceira pessoa. Celina e Haruki se conhecem, por acaso, no metrô do Rio de Janeiro, quando ela é seduzida pelos ideogramas do livro em japonês que o jovem carrega: os diários de Bashô. Contratado para ilustrar a versão traduzida do poeta nipônico, Haruki, descendente de japoneses que até então nunca havia se interessado pelas suas raízes, apenas aceita o trabalho por um sentimento à Yukiko, tradutora do livro para a língua portuguesa. Com viagem marcada ao Japão, por impulso convida Celina, que recém conhecera, para acompanhá-lo. Interligados pelas suas atividades silenciosas, independentes de palavras, visto que ela costura e borda e ele ilustra, partem juntos para o outro lado do mundo. O deslocamento geográfico de cada um tem sentidos diferentes: o ilustrador parte com o intuito de reencontrar o elo perdido, já a artesã anseia superar uma crise existencial, fazer as pazes com uma fatalidade: a perda de Alice, sua filha, em um acidente de carro sofrido pelo ex-marido, Marco. Entretanto, como ressalta Gínia Maria Gomes (2013, p.142), “essa busca em nenhuma das duas personagens est[á] explicitamente configurada, pois, enquanto Haruki tem um objetivo profissional [...], para Celina, esta se afigura destituída de motivações mais profundas, o que se nota por ter aceitado o convite de forma intempestiva”. Celina, no primeiro dia do diário, que coincide com o primeiro fragmento do livro, escreve: “Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil” (LISBOA, 2007, p.9). Ela, neste momento, deixa implícita a violência da catástrofe que a abalou, é preciso reaprender, é necessário seguir em frente. Mesmo que diga que andar não é uma tarefa difícil, nós, leitores, sabemos que essa atividade não foi fácil para ela. Andar equivale à tentativa de superação da perda, ao esforço de reorganizar a vida, de domar a dor e narrar o trauma. introspecção, memória e ficção (2013), organizado por Ana Maria Lisboa de Mello. Neste trabalho a pesquisadora também discute a estrutura do romance e a memória do trauma que constitui a subjetividade da protagonista. 51 Passados seis anos da morte de Alice, Celina até pode ter reunido as forças para seguir em frente, todavia, não consegue reelaborar sua desgraça, pois “em nenhuma das vinte notações que compõem o diário, ela confronta esse fato traumático e o verbaliza. Percebe-se que há algo a corroendo, algo que ela não consegue relatar. Algumas reflexões esparsas apontam para o seu sofrimento” (GOMES, 2013, p.149). Bernardo Carvalho (2000, p.238) sustenta que, “para o indivíduo, a catástrofe, na vida, é de fato a interrupção de uma comunicação (alguém próximo morre)”. A interação interrompida com a filha provoca um duplo bloqueio na mãe que não consegue soltar, livremente, as lágrimas tampouco as palavras sobre o ocorrido. Haruki e a protagonista viajam juntos sem revelarem os seus respectivos passados, são dois estranhos que compartilham a mesmo espaço. Contudo, não contam um ao outro as suas experiências, entre eles há “muito mais espaço, muito mais silêncio. Muito mais não-palavras do que palavras” (LISBOA, 2007, p.65). Celina não consegue narrar a sua dor, até porque ela exige “Que a dor se cale, se encolha, se submeta, se amordace, se domestique” (LISBOA, 2007, p.86). Em seu diário, essa personagem basicamente rememora os tempos amenos de uma relação familiar quase perfeita, em que a harmonia, a paz e a felicidade eram integrantes do cotidiano. Dos tempos difíceis, o que ela consegue escrever é sobre o sentimento de mágoa que a afastou de Marco, do toque do celular no dia fatídico do acidente, e do dia de aniversário de Alice, nada mais. A morte é, de certa forma, silenciada a tal ponto que ela compra sandálias zori para filha de sete anos. Conforme Marisa S. Maia (2005, p.157), “manter em segredo aquilo que não é possível de ser narrado, na maioria das vezes, nem para si mesmo”, é o único modo de continuar vivendo. “A memória traumática funciona como a incorporação, se dá pela ‘indigestão’, pela não compreensão; e, para sobreviver a ela sem o apoio do meio, é preciso, no mais das vezes, silenciar” (MAIA, 2005, p.157). Chegando ao Japão, Haruki segue viagem para Tóquio, enquanto a protagonista decide ficar sozinha em Kyoto. Nessa cidade, Celina sente-se acolhida, encontra algo diferente que a fez, aos poucos, reencontrar-se, encarar a dor e, de algum modo, superar o trauma: o silêncio. Entretanto, esse silêncio não é o da falta de domínio do idioma, é algo mais denso que emana dos ambientes. Algumas metafísicas orientais, como o zen-budismo, defendem que a alma ascende os obstáculos da matéria por meio de domínios de percepção transmitidos por um silêncio profundo (STEINER, 1988, p.30). Só adquire-se o conhecimento em si e de si através da prática da meditação, que pressupõe a ruptura das muralhas da linguagem. A quietude dos parques, dos museus e da casa que aluga é absorvida pela personagem, passando a ocupar espaço em seu corpo: “O silêncio era um lugar dentro do coração. O 52 silêncio encobria talvez o perdão necessário, o armistício, o silêncio era uma permanência. [...]. O silêncio reverberava entre os ouvidos de Celina” (LISBOA, 2007, p.104). Em diferentes momentos, ela e/ou o narrador mencionam a leveza desse elemento. Ficar sem companhia para conversar, empecilho também da língua, não é considerado algo negativo, ao contrário, é um fator que provoca o início de uma metamorfose na personagem: “Era curioso passar tantos dias sem falar praticamente nada. [...]. Sua voz parecia um casulo de borboleta dentro da garganta, operando alguma espécie de transformação interna. Sua voz parecia se equilibrar sobre aquela categoria delicada – o mínimo indispensável” (LISBOA, 2007, p.114). Podemos aproximar esse calar que equilibra a uma forma de meditação, devido ao fato da personagem abandonar os desejos e as aflições do dia a dia e passar a respirar o presente, o aqui e o agora, sem desejar estar em outro lugar. A transformação de Celina ocorre em data e lugar altamente simbólicos: dia 28 de junho, em Rakushisha. É nesse dia, data de nascimento da filha, que ela consegue romper o silêncio (de modo parcial) da dor e registrar, implicitamente, a morte: “Ao despertar meus olhos estavam secos. Hoje é o aniversário de Alice. Hoje Alice faria aniversário. Mas os aniversários de Alice acabaram quando ela fez sete anos” (LISBOA, 2007, p.117). Até o momento, a catástrofe da comunicação interrompida não havia sido elaborada, devido ao fato que Celina escrevia sobre a Alice viva e comprara as sandálias para a criança. Escrever é o princípio da libertação, pois “a quebra do silêncio é sempre restauradora do sentido da vida” (MAIA, 2005, p.157). A transformação iniciada com as palavras escritas se intensifica a caminho de Rakushisha, quando suas lágrimas presas ganham vazão diante dos elos desfeitos. Porém, conforme Gomes (2013, p.159), ainda é necessário frisar que é graças a voz de narrador em terceira pessoa, cuja posição alterna entre distanciamento e proximidade com a protagonista, que esta, “pouco a pouco, confronta o passado e a experiência traumática é atualizada”. Lisboa incorpora em Rakushisha o silêncio e o recolhimento desenvolvidos nos haicais de Bashô. Repleta de elipses e rupturas, a narrativa é capaz de provocar uma pausa para a reflexão, uma quebra com o ritmo alucinado do modo de vida contemporâneo. Nela, os diferentes silêncios – do trauma que provoca a dor, e da meditação que gera paz e equilíbrio – convivem de maneira harmônica, um espelhando o outro. 53 O silêncio da convivência insuportável Vozes, silêncios, ditos e não ditos estão presentes desde a primeira até a última linha de A parede no escuro, romance de Altair Martins, publicado em 2008. A precariedade das relações familiares no ambiente urbano é uma das temáticas exploradas nessa narrativa, que apresenta o cotidiano de personagens comuns (professores, estudantes, domésticas e aposentados), pedaços da realidade que, juntos, expressam a vida citadina, onde transitam os mais variados graus de culpas, mágoas, angústias, rancores, tristezas, agressões e frustrações. Os 48 capítulos que compõem a narrativa são conduzidos por diferentes narradores que assumem o discurso, entre um parágrafo e outro, para revelar a sua perspectiva sobre os fatos. Tem ainda a presença de um narrador em terceira pessoa que, raras vezes, toma a palavra, mas sem a intenção de organizar o relato. Entre essas múltiplas vozes, há duas que conduzem a narrativa de modo proeminente: são a do professor de Matemática Emanuel e a da estudante de Veterinária Maria do Céu. Duas personagens integrantes de núcleos familiares distintos que acabam tendo suas vidas afetadas pelo mesmo acontecimento: o atropelamento e o consequente óbito de Adorno, padeiro muito conhecido da pequena cidade de Pedras Brancas. O professor, na manhã do dia 5 de novembro, enquanto se dirigia à casa de seus pais, sob uma chuva torrencial de verão, não enxerga o homem que estava prestes a atravessar a rua para entregar o pão e o atropela. Com medo, o motorista foge sem prestar socorro à vítima. Emanuel e Maria do Céu têm seus caminhos cruzados não apenas por esse incidente, mas por uma série de elementos que os aproximam em seus dramas existenciais. Além de oriundos da mesma região, ambas as personagens não convivem harmonicamente com seus pais; no entanto, com as mães, conseguem conservar laços mais sólidos e afetivos. Os relacionamentos familiares e sociais desses dois jovens são permeados pelo silêncio. Ao longo da narrativa, há uma série de imagens obscuras que sugerem um relacionamento incestuoso entre a estudante de Veterinária e seu pai, fato este que, provavelmente, foi o responsável por tornar impossível a comunicação verbal entre os dois: “Cresci, e meus olhos passaram a te dizer coisas que eu já não podia. A mãe sem entender por que nos distanciamos” (MARTINS, 2008, p.195). A crise da relação instaura a ruptura, as palavras não são capazes de transmitir a experiência, uma vez que “aquilo que se vê pode ser transposto em palavras; aquilo que se sente pode ocorrer em um nível anterior à linguagem ou fora dela” (STEINER, 1988, p.41). Os sujeitos fecham-se, e o afastamento atinge o grau máximo quando a jovem sente-se novamente ameaçada pela figura paterna: “Nas últimas 54 semanas, quando passei a desconfiar que tu voltarias a engordar os rios, concluí que fugir era o jeito” (MARTINS, 2008, p.195). A barreira do silêncio é quebrada quando a situação se torna insustentável, fazendo com que o anúncio do rompimento seja pronunciado. Maria do Céu, não suportando mais o calar, sente a necessidade de dizer, de repetir que a convivência é insustentável. Adorno rebate a revelação com uma palavra violenta que é proferida no escuro. Embora seja sempre citada, essa palavra nunca é revelada, fica no âmbito do indizível, sua carga semântica não permite que quem a ouviu possa reproduzi-la novamente, porque a despedida gerou uma espécie de “crise da experiência” (BENJAMIN, 1993, p.116), foi um evento traumático para as mulheres da casa que não conseguem elaborar o que ouviram. A palavra pronunciada permanecerá sempre escondida, abafada tanto pela mãe quanto pela filha. O que evidenciamos é uma relação de proteção marcada pelo silêncio, isto é, Maria do Céu não comenta com sua mãe sobre a palavra que recebeu naquela noite, da mesma forma que Onira, sua mãe, ao ser questionada sobre esse fato, não revela a verdade. O fechamento de ambas é uma forma de proteção mútua, calando a verdade dolorida elas acreditam que estão evitando o sofrimento alheio e impendo que o próprio padecimento seja amplificado. De modo próximo, Emanuel também sofre com o silenciamento de Fojo, seu pai. A relação entre esses dois sempre fora conturbada, o filho conhece muito cedo o lado cruel e atroz do progenitor, que o ensinara a matar os gatos que entravam no pátio, para cobiçar os canários que criava. Além disso, certo dia quando o jovem ainda era criança, por ter urinado no colchão, foi humilhado e apanhou de arame farpado; na busca de proteção, entrou em um dos viveiros. O menino, nessa ocasião, é a metáfora dos pássaros, os quais, diante da perseguição, acabam caindo na armadilha do caçador; assim, o pai o prende durante a tarde toda. O enfrentamento entre ambos ocorre no silêncio, haja vista que Fojo deixa-o sozinho por algum tempo, só voltando mais tarde. Mesmo sem pronunciar nenhuma palavra, o menino entende que deve pedir desculpas para poder ser liberto, porém resiste, demonstra que só pediria clemência se o outro quebrasse o silêncio primeiro; como isso não ocorre, ele continua preso. Contudo, não é apenas fisicamente que o garoto permanece enclausurado, sua expressão verbal também é aprisionada: “Na sede que eu sentia, de tanto engolir o que me faltava dizer, eu pensando em gritar mais uma vez” (MARTINS, 2008, p.161). Fojo representa a figura máxima de autoridade, é o pater-famílias dotado de poder ilimitado naquele microcosmo; e se a criança apanhou de arame farpado por não ter acatado as ordens paternas, pronunciar a sua insatisfação pode ser uma falta bem mais grave. Por isso, cruzar o portão de entrada da casa paterna, estar frente a frente com o seu torturador e revelar 55 que não apenas matou um homem, como também lhe faltou coragem para socorrê-lo, são tarefas penosas e complexas para o jovem. Emanuel até tem o desejo de contar a verdade: a todo o momento, quando está diante de sua família imagina-se revelando os fatos, chega a fantasiar as possíveis reações de cada um. Porém, como um canário, torna-se novamente uma vítima do ardiloso aprisionador, já que, ao entrar na casa paterna, sua mãe conta-lhe que o marido prestou socorro ao padeiro e também viu o carro do atropelador, mas que guardará segredo, dado que “tem coisas que é melhor fingir que a gente não vê” (MARTINS, 2008, p.108). Em A parede no escuro, Martins revela, de modo agudo, a quebra dos laços familiares, a dificuldade da comunicação, o afastamento e o desamparo dos seres no ambiente citadino. O silêncio que se instala entre as relações familiares é reflexo de uma convivência insuportável, ora escolhido pelas personagens como uma arma de ataque ao outro, ora apresentado como o refúgio mais seguro contra a ameaça externa, no caso, os próprios consanguíneos. O silêncio da frustração Outra vida, de Rodrigo Lacerda, lançado em 2009, retrata duas horas e quinze minutos da vida de um casal, com sua filha de cinco anos, que aguarda embarcar no ônibus que os levará de volta à pequena cidade litorânea de onde saíram anos antes. O livro é dividido em doze capítulos, alguns deles trazendo como subtítulos a marcação de horas e minutos (7:15, 8:05, 8:25 até 9:30), enquanto outros fazem referência às personagens ou aos acontecimentos (“O parto”, “O homem”, “A mulher”, “A filha”). O tempo transcorrido na rodoviária, abarrotada de passageiros em uma sexta-feira, é extremamente tenso, constituído por um jogo de espera: a mulher receia a chegada iminente do amante que pretende desmascarar o caso e impedir a viagem; o marido deseja a redenção profissional e pessoal junto aos parentes; a menina somente aguarda. A narrativa é conduzida pela voz de um narrador em terceira pessoa, que submerge nos pensamentos de todos os integrantes do universo representado para desvelar um casamento constituído por rancores e humilhações. Nenhuma das personagens é chamada pelo nome, como se uma parte da identidade de cada uma estivesse apagada/anulada pelas picuinhas diárias, reduzidas ao papel social que desempenham: o chefe, o deputado, a sogra, o sogro, a gerente. Na metrópole, a permanência da família não é mais sustentável, o principal motivo que a empurra de volta ao solo natal deve-se ao fato de que o marido, ex-funcionário de uma estatal, desejando suprir os gastos dispendiosos da mulher, quebrou seu código de 56 conduta e aceitou ser subornado. Frente à perseguição no trabalho e ao processo, ele decide colaborar com as investigações. Acreditando que a vida em um ambiente interiorano poderia trazer a paz e o retorno de sua dignidade, resolve mudar-se com a esposa e a criança. As horas que antecedem o embarque se configuram como um momento de recapitulação de suas vidas pregressas, um exame silencioso das brigas que tiveram e das que calaram. A interação verbal entre os familiares é quase nula, sendo que cada um experimenta o mesmo intervalo cronológico de um modo diferente: a criança conserva uma neutralidade. “A mãe, por sua vez, engole a raiva, ora resignada, ora agressivamente. E quanto ao pai, desde o início do escândalo mergulhado em tristeza, ele se agarra para não afundar, à ideia do renascimento no passado” (LACERDA, 2009, p.69). Nas rememorações dele e dela, destacam-se o descompasso de expectativas, o excesso de ressentimentos e as miúdas mesquinharias que se acumularam no decorrer dos anos compartilhados. Tanto o homem quanto a mulher se sentem desconfortáveis com o clima gerado entre os dois, abalados por uma sensação de aprisionamento em que as cobiçadas alternativas de liberdade diferem para um e outro. Todavia, o desgosto, o desprezo e a amargura nunca são proferidos em voz alta, ao contrário, permanecem restritos à interioridade e ao pensamento de cada ser. Completamente opostos na hierarquia social, nas ambições e na personalidade, o casal se conheceu no início da vida adulta, o que os uniu foi uma gravidez inesperada. Ele, filho de um açougueiro, oriundo de uma “humilde condição financeira e cultural” (LACERDA, 2009, p.30), não quis avançar nos estudos fazendo curso superior. Era “silencioso e travado, aflito com o tamanho do próprio corpo – e portanto transmitindo uma inquietação profunda, [...] ou sufocando essa inquietação com um jeito cerimonioso” (LACERDA, 2009, p.105). Como seu salário era insuficiente para manter os desejos da mulher, ele acaba aceitando participar de um esquema de corrupção, o qual é descoberto. Já ela, proveniente de uma família tradicional, que, no passado, tivera uma rentável salina, porém, com o tempo, fora à falência. De comportamento intempestivo, os traços marcantes da mulher eram “sua autoestima, seu orgulho e sua teimosia” (LACERDA, 2009, p.45). Na capital, a esposa almeja e consegue um bom trabalho, mas isso é pouco, pois ambiciona estudar, conhecer novas pessoas, frequentar bares, realizar viagens ao exterior, exibir um status elevado, comprar cosméticos que retardem o envelhecimento. A fuga para a praia é uma solução apenas ao homem que anseia por uma existência sem atribulações, com mais tempo dentro de casa. A mulher, em contrapartida, criada a partir de hábitos arraigados na lógica do consumo, não compactua com a decisão. A “viagem feita a contragosto, deixa-a naquele estado de tensão permanente” (LACERDA, 2009, p.15). 57 Julgando estar sendo torturada por uma decisão alheia, ela escolhe uma forma peculiar de revidar o seu flagelo: agride o marido com o silêncio. Isto é, embora a passagem esteja comprada, as malas prontas, a esposa adia a confirmação de seu voto de lealdade, prolonga o sofrimento do companheiro sob a possibilidade de não embarcar no ônibus. O nervosismo a impede de ficar quieta, tamborila os dedos no balcão da lanchonete, afasta-se da família em direção a uma revistaria, mas não fala, incapaz de enunciar a dimensão do sentimento raivoso que a acomete: Dentro dela explode uma recapitulação mórbida dos acontecimentos das últimas semanas – a humilhação feita ao marido pelos colegas de trabalho, as decepções que sua ingênua malandragem provocou, a raiva que sentiu ao ouvi-lo dizer que ela também era culpada, ainda que indiretamente, pelo que havia feito, a demissão forçada que ela teve de pedir, a estúpida entrega do dinheiro e a confissão à polícia, o empacotamento das coisas, o apartamento vazio... (LACERDA, 2009, p.48) O emudecimento reflete a carga de decepção que a personagem carrega. No entanto, o marido confunde esse calar e essa agitação com a ansiedade pela hora do embarque. Consequentemente, no embate de forças entre o casal, as palavras cedem o espaço para que contracenem os gestos aflitos, os olhares enfurecidos, os monossílabos ininteligíveis, os suspiros de desacordo, descarregando a emotividade contida. A introspecção masculina, embora seja mais passiva e abnegada, também esconde um fardo dolorido de desilusão. O correr dos anos no ritmo frenético da cidade grande desgastou a parca motivação, desinteressou-se pelo trabalho, a euforia conjugal foi diminuindo na mesma proporção do crescimento da filha. “A cobrança dentro de casa, a revolta surda contra o chefe e o desânimo com o emprego foram envenenando-o, turvando sua capacidade de ser feliz” (LACERDA, 2009, p.58). Submisso ao temperamento da esposa, acostumado a ceder a vez aos outros por receio de ser considerado covarde, com relativa dificuldade para expressarse, a lassidão instala-se no espírito do funcionário público que sufoca toda mágoa, “mergulh[ando] num pântano de questionamentos” (LACERDA, 2009, p.64). Os minutos passam e o enfrentamento calado amplifica-se. Homem e mulher, estrategicamente, escolhem o silêncio como um manto encobridor da humilhação dele e da raiva dela. Entretanto, o desaparecimento da criança em meio à multidão provoca o fim do acúmulo de tensão feminina. O ódio reprimido eclode em forma de violência desmedida, ela o agride física (com chutes, socos e arranhões) e verbalmente. Sem compreender a perda do equilíbrio, o esposo procura acalmá-la, mas tudo em vão. Durante a discussão, ela revela o caso extraconjugal que mantinha com o chefe do cônjuge. 58 Depois de ambos trocarem insultos e ofenderem-se, o silêncio retorna com força total. O dano está feito, o reencontro da menina não atenua o distanciamento do casal. Nenhum dos dois é capaz de romper com a barreira silenciosa para indagar o que acontecerá, como serão suas vidas futuras. Levando sua mala, ela segue o esposo com a filha até a plataforma de embarque. Todavia, não entra no ônibus, tampouco verbaliza sua decisão: “‘Você fica?’, o marido pergunta com segurança. A mulher responde afirmativamente, balançando a cabeça” (LACERDA, 2009, p.177). Qualquer explicação é dispensada, desnecessários são os pedidos de desculpa. A separação se concretiza sem a exigência das palavras. Incompatíveis em suas ambições, insuficientes um para o outro, as personagens ensimesmadas de Lacerda permanecem reclusas em seus próprios interesses individuais. A mulher, insatisfeita com o comodismo do marido; o homem, enfastiado com a ambição da esposa. Além da criança, o que mais cresceu entre os cônjuges foi o silêncio da frustração de uma vida ambicionada e nunca concretizada. O silêncio do traidor Para concluirmos o mapeamento dos romances atravessados pelo silêncio na primeira década do século XXI, elegemos do ano de 2010 a narrativa Nada a dizer, de Elvira Vigna, que tem como ambientação as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. O enredo da história é simples: um casal sexagenário, integrante da classe média, sem problemas financeiros e com filhos adultos, vê sua relação estável de mais de 30 anos ser ameaçada por um adultério praticado pelo marido Paulo com N., 20 anos mais nova. No decorrer de um ano, a mulher traída, cujo nome não é revelado, além de inventariar as perdas e os danos do caso extraconjugal, investiga as motivações de cada um dos envolvidos, discutindo também as possibilidades de entendimento amoroso no universo contemporâneo. Todo o caso é apresentado a partir do ponto de vista da figura traída 23, esta, insatisfeita com as negativas do companheiro, reconstitui todos os encontros e conversas com um rigor ímpar, a ponto de expor uma verdade tão precisa que a palavra do marido é desnecessária, não há mais o que ele dizer. Através de uma escrita, que se aproxima formalmente do gênero diário, a narradora inicia o seu inventário com o dia “16 de novembro”, primeiro encontro dos amantes no motel Sândalo. O avanço temporal é retratado por meio da sequência de dias, 23 Sobre a inovação, dada a temática da traição nesse romance, sugerimos a leitura do ensaio de Cristiane da Silva Alves, “Do caso ao acaso: uma leitura de Nada a dizer, de Elvira Vigna”, publicado no livro Século XXI: perspectivas para a literatura brasileira (2015), organizado por Gínia Maria Gomes. 59 rompido apenas por um título específico “A casa”; depois disso, há o regresso para “O dia 29 de novembro”, seguido de “O dia 30 de novembro”. O grande momento se desenrola entre o período “Do dia 7 de dezembro ao dia 8 de março”, pelo fato de ser nesse intervalo que muitos silenciamentos e aflições do romance são representados. Quando as feridas parecem cicatrizar, a narradora suaviza a obsessão, e as datas convertem-se em meses (um “Agosto” e “Setembro” vagos). A exatidão das cenas reconstituídas e a precisão nas descrições, em partes, se devem ao fato de a narradora ter realizado diversos cursos de roteirista e sempre estar imaginando filmes. Não podemos deixar de mencionar que a mulher traída explica que fora o traidor, depois de três meses de reservas, quem, relutantemente, contou-lhe como as coisas aconteceram. Entretanto, não temos acesso à voz de Paulo; quem domina o discurso é a mulher, é ela quem pinta os eventos com as cores que bem deseja, tanto que parece ter consciência que, às vezes, usa cores fortes demais, o que acaba por ampliar a dimensão dos acontecimentos: “São coisas muito pequenas, essas, e que, quando contadas, são aumentadas indevidamente pelo simples fato de serem postas em palavras” (VIGNA, 2010, p.47). Dessa forma, o relato esmiuçado confronta-se com o mutismo de Paulo. Enquanto a esposa procura, desesperadamente, enfrentar os problemas, o marido utiliza a tática do silêncio como refúgio: “Paulo sempre achou que, se ele não falasse a respeito de algum assunto e, principalmente, se ele não pensasse muito a respeito, o tal assunto não existia” (VIGNA, 2010, p.45). Através de Paulo, temos a representação de um emudecimento que facilita a vida: se esclarecer é uma tarefa complexa, o melhor é ignorar e seguir em frente. Por meio desse par amoroso, Vigna dá expressão a um casal de forças opostas e complementares: ela é toda fala, a voz que anseia a preservação do dizer, enquanto ele é todo mudez, o silêncio que deseja a manutenção do calar, “porque havia também a saída fácil de que ele não tinha mais nada a me dizer e não gostava de ficar se repetindo” (VIGNA, 2010, p.76). Tal movimento de opostos na direção do dizer e do falar é ilustrado inúmeras vezes ao longo da narrativa, assim como são muitas as tentativas de comunicação da esposa com Paulo. “Não sei” (VIGNA, 2010, p.73) passa a ser o início de frase mais comum do marido, que demonstra impaciência e falta de vontade diante da insistência feminina. Em contrapartida, quando ele enuncia algo, a narradora é incapaz de lhe passar o poder da palavra, o que transforma o romance, segundo Maria Salete Daros de Souza (2013, p.1), em uma “circularidade quase monofônica e de silenciamento da voz masculina, tendo a protagonista personalidade e voz atuante”. 60 A anulação da voz do companheiro também pode ser relacionada à escolha do ponto de vista da narrativa, pois Vigna (2010, s/p) afirma em entrevista que “homens héteros, brancos, de classe média têm muito pouco a dizer”, além de que uma “personagem que não pensa, que não tem angústia, não é um[a] personagem bo[a] para ser narrador. E o homem da história era assim” (VIGNA, 2010, s/p). Para a autora, os homens não conseguem falar sobre a banalidade de suas vidas, a noção deles de poder ou de masculinidade os impossibilita tanto de assumir a sua fragilidade quanto de admitir que não tem nada de fantástico para contar. Isso faz com que reproduzam discursos em que sempre são heróis, como alguém que viveu algo único. O discurso de Paulo, a que o leitor tem acesso pelo filtro da esposa, é vazio, repleto de lacunas, recheado pelo silêncio, reproduzindo o comportamento masculino. Essa personagem ocupava duplamente uma posição confortável: não sofre a dor amorosa e tem seu comportamento apoiado pelo ideário machista. Contudo, a descoberta do caso extraconjugal ao mesmo tempo em que devasta a narradora, fazendo-a reavaliar toda a sua existência, também arrasa Paulo, pois este tem sua privacidade invadida e destruída pelas buscas da esposa que, finalmente, entende que ele “não tinha mais voz ou pensamento. Ele era o que tinha sobrado dele” (VIGNA, 2010, p.98). Depois da escavação, da confissão forçada, a devastação. Paulo fora completamente reduzido a uma mudez que, ironicamente, havia elegido, ficara oco, “nem mesmo frases dos outros, nas letras de música, essas frases de outrem que tão facilmente parecem nos emprestar um sentido profundo sobre nós mesmos, ainda que momentaneamente. Nem essas ele tinha mais” (VIGNA, 2010, p.98). Enfim, a frase “Nada a dizer”, que intitula a narrativa, poderia ser o que a narradora presume como a única resposta do marido traidor. Mas também poderia ser uma resposta válida em algum dos tantos interrogatórios da esposa. Afinal de contas, como Paulo poderia desviar-se de tantas evidências? Como se defender dos indícios incriminatórios, como: os emails trocados com N., as aparições de fotos de letras de músicas no computador, as coincidências das datas e horários das viagens de Paulo e de N. e da escolha, justamente, de um hotel que o casal sexagenário também frequentava. Ao traidor, frente às provas acusatórias, resta o apenas o silêncio. 61 2. A GAIOLA DE FARADAY: O DESLOCAMENTO QUE APRISIONA AS PALAVRAS 2.1 Bernardo Ajzenberg e os apontamentos críticos sobre A gaiola de Faraday Bernardo Ajzenberg, nascido na cidade de São Paulo, em 1959, formou-se em Jornalismo pela Fundação Cásper Líbero (1983), trabalhou em diversos veículos de comunicação24. É escritor, tradutor25 e jornalista. Como ficcionista, publicou sete romances: Carreiras cortadas (1989); Efeito suspensório (1993); Goldstein & Camargo26 (1994), Variações Goldman (1998); A gaiola de Faraday27 (2002); Olhos secos28 (2009); e Minha vida sem banho 29 (2014); e ainda escreveu o livro de contos Homens com mulheres30 (2005), Em entrevistas concedidas, Ajzenberg afirma que, em virtude de sua personalidade fechada e retraída, a escrita passou a fazer parte de seu cotidiano desde muito cedo. Em torno dos 11 anos, escrevia histórias para ele mesmo em uma agenda, como uma maneira de preencher o espaço aberto pela solidão. Na fase adulta, durante o período da ditadura militar, com o envolvimento em grupos políticos, a energia criativa foi canalizada para a elaboração de panfletos e documentos. Engajado na militância política, integrante de uma organização trotskista, o autor foi deslocado para Paris em 1983, retornando ao Brasil dois anos depois. Em razão de uma “crise político-pessoal muito profunda, por uma série de desentendimentos e revisões pessoais” (AJZENBERG, 2009 B), largou a política e voltou-se para a literatura e o jornalismo. A literatura, para ele, apresenta-se como um contrapeso ao jornalismo, porque o texto literário, por não ter prazo definido de entrega, permite que a escrita seja aprofundada e saboreada, possibilitando “uma descarga de sentimentos” (AJZENBERG, 2009 A). Ainda, na literatura, “você não precisa ter um texto necessariamente límpido. Não precisa responder a todas as perguntas. Pelo contrário, é até bom você pôr no texto algumas dúvidas e 24 Desde 1976, trabalhou em publicações como Veja, Gazeta Mercantil, Última Hora e Folha de São Paulo. Foi ombudsman da Folha, entre 2001 e 2004, e coordenador-executivo do Instituto Moreira Salles de 2004 a 2008, e diretor-executivo da Cosac Naify de 2010 a 2014. 25 Traduziu para o português mais de 30 obras literárias, obtendo, em 2010, o reconhecimento da crítica através do prêmio Jabuti pela tradução de Purgatório, de Tomas Eloy Martinez. 26 Em 2011, as narrativas Efeito suspensório e Goldstein & Camargo foram reunidas e publicadas pela Editora Rocco em um único livro, sob o título Duas novelas. 27 Recebeu, em 2003, o Prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras. 28 Em 2010 foi finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. 29 Vencedor do prêmio Casa de Las Americas, em 2015 30 Em 2005 foi finalista do Prêmio Jabuti. 62 interrogações que façam o leitor se colocar, ele próprio, atrás de respostas” (AJZENBERG, 2009 B). Em contraposição, o texto jornalístico precisa obedecer a uma série de regras técnicas (a fluidez do texto, a clareza das ideias, a hierarquia das informações, a objetividade, o equilíbrio, a veracidade, etc.) e tem prazos fixos e delimitados de entrega. A partir do romance Goldstein & Camargo, começam a aparecer as origens judaicas 31 de Ajzenberg, até então sufocadas, pelo motivo de o escritor ambicionar tornar-se um integrante da sociedade, independentemente de seu berço cultural. Com o passar do tempo, porém, sente a necessidade de explorar e trabalhar com essas questões abafadas. Mesmo vivendo no Brasil, país caracterizado pelo sincretismo religioso, e sendo ateu, foi impossível renegar as origens culturais judaicas. Chegou o momento em que ou enfrentava essa contenção de sentimentos ou sua “literatura não ganharia autenticidade, não ganharia carne, sangue, corpo. Mais do que um estilo propriamente” (AJZENBERG, 2010 A). O judaísmo em sua obra, como ele próprio destaca, aparece como “traço cultural, humores, como expressão de um humanismo marcante” (AJZENBERG, 1998), e não como religião. Ajzenberg, em entrevista concedida para a presente tese, considera que sua produção literária pode ser associada a uma corrente estética “de caráter urbano-psicológico que procura fundir passado e presente numa perspectiva cosmopolita”, sempre tendo como unidade geográfica a cidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que se vincula à produção da “segunda ou terceira gerações de imigrantes [judeus] oriundos da Europa central” (AJZENBERG, p.227). Para construir essa literatura pulsante, capaz de desnudar a alma humana, o escritor imerge nas profundezas dos relacionamentos pessoais, os quais “São problemáticos demais. Misteriosos, cheios de hipocrisia, mentiras, fingimento, ódios, coisas que fazem parte da vida tanto quanto o amor, a sinceridade, a amizade” (AJZENBERG, 2009A). A contemporânea dissolução do sujeito é retratada através de personagens carentes de certezas, deslocadas de si mesmo, em descompasso com o mundo, como ele próprio revela: Meus protagonistas, desde Carreiras cortadas, são de fato bússolas carentes de manutenção. Buscam rumos, sentidos. Raramente encontram uma saída. A condição de seres que vivem em uma megametrópole estimula essa sensação, que se espalha, também, para os relacionamentos familiares e/ou pessoais, sempre colocados em risco por atitudes humanas negativas. Apesar do humor que, acredito, aparece nessas obras, elas, no fundo, expressam os impasses desses protagonistas. (AJZENBERG, p.227) 31 Tornando-se um fio narrativo recorrente que, às vezes, é trabalhado com maior ênfase, através de personagens que vivem o conflito identitário de pertencer a dois mundos como Márcio Goldstein, de Goldstein & Camargo; Leon Zaguer, de Olhos secos; ou Célio e seu pai Wilson Waisman, de Minha vida sem banho; ora com menor realce, como é o caso de Cecília, de A gaiola de Faraday. 63 Embora os 26 anos de produção literária de Ajzenberg já lhe tenham rendido prêmios, a crítica acadêmica sobre sua obra é quase inexistente, o que justifica a relevância do presente estudo, em particular, acerca d’A gaiola de Faraday. Durante o período de rastreamento32, não foi encontrada nenhuma tese ou dissertação que tenha elegido, como corpus de análise, essa narrativa, somente resenhas referentes aos seus romances e entrevistas com o autor. Se, por um lado, essa escassez legitima nossa pesquisa, por outro lado, restringe parte de nossa bibliografia. Manuel da Costa Pinto (2004, p.11), com o intuito de apresentar um panorama da literatura brasileira contemporânea, seleciona trinta poetas e trinta prosadores, e entre eles destaca Ajzenberg. Pinto defende que na ficção nacional contemporânea é perceptível o aumento das narrativas de ambientação urbana, que representam, de modo geral, o desajuste provocado pela cidade por meio do “isolamento e da vulnerabilidade do sujeito moderno” (PINTO, 2004, p.82). Tais textos dão especial relevo aos cataclismos sociais, como miséria e violência, e comportamentos aberrantes, especialmente o uso de drogas e obsessões sexuais. No entanto, os textos literários do escritor paulista, segundo Pinto, situam-se na contramão dessa prosa urbana: mesmo que o ambiente quase sempre seja a cidade de São Paulo, o sangue exposto e as fatalidades físicas propagadas na periferia são inexistentes na obra de Ajzenberg. As personagens desse romancista são construídas como indivíduos comuns, pertencentes à classe média, vivendo a monotonia cotidiana, abaladas por sequências de frustrações que afetam “as subjetividades inconciliáveis, as grandes comoções não são admitidas  somente uma lenta asfixia, a brutalidade silenciosa das relações afetivas” (PINTO, 2004, p.131). Na perspectiva de Pinto (2004, p.132), a capacidade de Ajzenberg de expor as deformidades no que é familiar atinge o ápice em A gaiola de Faraday, por meio deste romance é demonstrado que a “marginalidade” pode ser sentida não apenas pelo viés social ou econômico, todavia, especialmente pelo “sentimento de inadequação que viceja entre as quatro paredes da frágil realidade doméstica”. Dessa forma, a cidade moderna na prosa de Ajzenberg apresenta-se como um espaço onde o homem tem a possibilidade de optar pelas referências culturais que lhe são convenientes e projetar sua própria vida, “tendo como única esfera social obrigatória o instável núcleo familiar” (PINTO, 2004, p.132). 32 O rastreamento foi realizado não somente sobre os estudos referentes ao romance A gaiola de Faraday, mas também ao conjunto da obra como um todo, nos principais bancos de teses e dissertações, como o da CAPES, do Domínio Público, da UNICAMP, da USP, da UFRGS, da PUC-RS, da UNB. 64 Os sentimentos de estraneidade e de inadaptação também são analisados por Carneiro (2005). Este encaixa A gaiola de Faraday na vertente literária que retrata as “errâncias do indivíduo na cidade pós-utópica”, coloca em cena os sujeitos anônimos, mais precisamente “não-heróis” (CARNEIRO, 2005, p.309). Ajzenberg dá voz a personagens “Inadaptadas, estrangeiras no próprio país, [que] não deixam rastros por onde passam, [que] não têm memória (ou dela abriram mão), nem projetos futuros” (CARNEIRO, 2005, p.309). Para Carneiro (2005, p.150), dados os desdobramentos distintos, A gaiola de Faraday apresenta uma série de pontos em comum com o conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. Tanto no romance quanto na narrativa curta, as figuras paternas optam por abandonar seus respectivos lares, apesar de ficarem por perto vivendo uma “existência incômoda”. Esse hiato desencadeia em suas esposas o desejo de que seus maridos não regressem. Além disso, em ambos os textos, é “sob o signo da loucura que tudo se dá” (CARNEIRO, 2005, p.150). Esses protagonistas são considerados loucos por seus familiares, contudo a insanidade é relativizada aos leitores. A despeito das grandes diferenças, em especial do cenário e do tempo histórico, Carneiro (2005, p.150) argumenta que Rosa e Ajzenberg trataram da mesma temática “a de ser estrangeiro dentro da própria casa”. A gaiola funciona no romance como uma metáfora, a qual, segundo Carneiro, revela as diversas prisões relegadas ao protagonista, que, por sua vez, se organizam em camadas de círculos. A casa é o primeiro círculo que cerceia o “não herói” em um confinamento familiar; São Paulo é o segundo, uma gaiola maior e mais perversa. O próprio herói, como um círculo menor, encontra-se preso dentro das grades que ele mesmo ergue. É esse o olhar de Carneiro lançado para A gaiola de Faraday. Na resenha intitulada “Os prisioneiros”, o pesquisador demonstra que as personagens da narrativa estão “presas na gaiola dos laços familiares, [...] movendo-se no círculo fechado de suas vidas miúdas, curvadas cada qual sobre seus próprios segredos, tentando adivinhar o passo do outro para, assim, ensaiar o contra-ataque” (CARNEIRO, 2005, p.151). Em nenhuma das resenhas sobre A gaiola de Faraday, a problemática do emudecimento do protagonista foi sequer tangenciada, tampouco foram averiguadas as motivações que o levaram a abandonar o lar e o impulsionaram a buscar refúgio no silêncio. 2.2 Autoexílio e errância: a fuga da palavra Em A gaiola de Faraday, Ajzenberg representa o drama do homem contemporâneo desenraizado de seus vínculos, devastado pela precariedade, vítima da fragilidade dos laços 65 humanos na grande cidade moderna. Dividido em 15 capítulos, apenas numerados, o texto é arquitetado pela voz de um narrador em terceira pessoa que estabelece uma distância oscilante com a matéria narrada, isto é, às vezes aproxima-se tanto das personagens que desvela seus respectivos fluxos de consciência por meio de um discurso indireto livre; outras vezes, distancia-se tanto delas que as ações e os pensamentos das mesmas se tornam uma incógnita para o leitor. A narrativa, situada temporalmente no ano de 1992, abrange o período dos poucos meses em que Enzo continuara vagando errantemente pelas ruas de São Paulo. Embora contenha alguns recuos temporais, ocasionados pelas reminiscências das personagens, a narrativa se desenrola linearmente. A gaiola de Faraday33, experimento desenvolvido pelo inglês Michel Faraday, no ano de 1836, consiste em um dispositivo de blindagem eletroestática, espécie de para-raios ultrapotente, composto por uma malha de cabos de cobre instalados em volta de determinada superfície, com antenas nos lugares mais altos. Pelas extremidades da superfície, descem novos cabos que, interligados a outros, subterrâneos, canalizam e diluem qualquer tipo de descarga elétrica. O principal objetivo desse emaranhado metálico, semelhante a uma gaiola, é proteger objetos sensíveis postos em seu interior. É esse invento que, simbolicamente, Enzo tenta construir para preservar sua família. No entanto, de maneira fatal, não obtém êxito, sendo que tal fracasso altera sua identidade. O ponderado engenheiro civil, de 46 anos, transforma-se em um homem perturbado, instável e grosseiro após perder o trabalho e passar por uma série de desventuras. Só então consegue ter a perspectiva exata da mediocridade de sua existência. Cansado da vida frustrada, opta pelo autoexílio. Ao amanhecer do dia 21 de fevereiro de 1992, deixa, na cozinha, o seguinte bilhete: “Não me procure, Queila. O dinheiro você sabe onde pegar. E.” (AJZENBERG, 2002, p.65). Dessa forma, o engenheiro escapa da gaiola que ele próprio criou. O único indício deixado preza pela economia de palavras: nada de explicações, nenhum pedido antecipado de desculpas ou a acusação de culpados. Ainda que curto, o bilhete 34 revela o anseio pela 33 34 Em nossos anexos, na página 234, encontram-se três imagens ilustrativas desse invento. Os bilhetes vagos deixados em momentos de fugas ocupam um lugar de destaque na produção de Ajzenberg. Em romances, como Carreiras cortadas e Goldstein & Camargo, eles também apareceram em situações semelhantes à de Enzo. Na primeira narrativa, posteriormente a um período de tensão familiar, o pai de família, Idário, retorna ao lar e encontra “A casa vazia, sem a mulher e os filhos, mero bilhete dos três dizendo que não suportavam viver do lado de quem fora responsável por todos os acontecimentos que culminaram com a morte de Getúlio, o melhor amigo da família” (AJZENBERG, 1989, p.110). Já na outra narrativa, a personagem Márcio Goldstein, depois de reencontrar um amigo de infância que estava para ser indiciado por homicídio, decide assumir o caso como advogado e partir por tempo indeterminado, deixando à esposa “apenas um bilhete por debaixo da porta do apartamento, dizendo que ia viajar mas sem esclarecer para onde nem por quanto tempo” (AJZENBERG, 1994, p.60). 66 liberdade, sugere tanto a dedicação do homem de prover e proteger os seus das descargas inesperadas, e aponta para a única preocupação que Queila, sua esposa, sempre teve: o dinheiro. Nessa família que tentou blindar, ele nada mais é do que um estranho: a esposa tornara-se imune, “era algo morto, um cadáver disposto ao lado” (AJZENBERG, 2002, p.11); com o filho, não dialogava; quanto à filha mais nova, apenas lhe escreve uma carta que não é entregue. Abalado pelo sentimento de inadequação ao núcleo familiar, o protagonista julga ser um resto, a imagem que constrói de si mesmo é a de um sujeito refugado pela própria família: “Fui sobra, especulava, desde criança, um molar escancarado, à mercê” (AJZENBERG, 2002, p.40). Assim, como um resíduo descartado indevidamente, ele vaga, desnorteado, pelas ruas da grande São Paulo sem destino e sem projeto, deixando para os que ficaram um misto estranho de preocupação e alívio. Tragado pelo desalento, o pássaro fugitivo transforma-se em um fantasma que voa a esmo por sua cidade. Cabe mencionar que Ajzenberg retira do livro Um terno de pássaros ao Sul, de Fabrício Carpinejar, o seguinte poema, o qual serve de epígrafe para a sua narrativa: Chega de seguir vendados pelas mãos macias da neblina. Descobri tarde: tua única residência é distanciar-se de casa. Desembaraçar-me do excesso de estar onde não sou. (CARPINEJAR) Este funciona como uma chave de leitura, antecipatória das linhas gerais que costuram o texto, visto que os poemas da coletânea transmitem a fragmentação do eu e a perda de referências sofrida pelo filho, que vê seus pais se divorciarem. Inconformado pela decisão do patriarca que abdica do seu posto social e familiar, o eu lírico, por estar envolto no breu da conturbada e vã busca pelo progenitor, procura superar a solidão desencadeada pela partida inesperada. Entende que a figura paterna, desgarrada, somente ajusta-se no espaço longe de casa. Essa situação de distanciamento mimetiza o desalento do sujeito contemporâneo preso na moderna percepção de estar no mundo sem estar, sem ter lugar, abalado pelo sentimento de 67 não pertencimento, de permanecer em desajuste com o espaço que ocupa; enfim, de ser estrangeiro em qualquer parte da terra, de estar desterrado em seu próprio país. O sentimento de desajuste, de não fixação, como explica Pierre Ouellet (2013, p.145), é sintomático dos tempos atuais, nos quais as populações gradativamente têm, por diferentes motivos (culturais, políticos, econômicos), menos estabilidade: o homem vive em deslocamento. […] Os lugares do homem não são mais fixos nem protegidos. O homem vive desabrigado. Ele não tem mais lugar próprio onde se sinta ‘em casa’ — como diz a preposição chez, do francês antigo chiese e do latim casa. Não há mais casa em que ele possa alojar sua ideia de homem nem sua própria pessoa, desalojada em toda parte. Em A gaiola de Faraday, da mesma forma que a figura paterna retratada por Carpinejar, o protagonista também procura abrigo longe de sua residência, opta por se manter em deslocamento, por viver desprotegido, escolhe a instabilidade e a insegurança como morada. Decidido a pôr um fim na existência pacata, resolvido a livrar-se de todas as amarras sociais, foge de casa motivado pela ingênua ambição de escapar do marasmo que se tornara seu cotidiano. Abandona o domicílio enquanto todos estavam dormindo. Inicialmente, corta de modo brusco os laços que ainda restavam, rompe provisoriamente a comunicação com os seus familiares. Desenraiza-se do espaço físico que delineava os traços da identidade de pai, marido e filho para vagar na provisoriedade dos albergues. Embriagado pela pulsão da errância, escolhe uma espécie de exílio. Inquietante aventura do deslocamento humano, de forma geral, o exílio 35 é considerado como um evento cujo significado primeiro é espacial: atravessar, sair, evadir, deixar um lugar para fixar-se (mesmo que por tempo indeterminado) em outro. Não obstante, é o afastamento territorial do lugar de onde se pertence que traz consigo a ideia de perda, de desenraizamento. Logo, “exilado” e “desterrado” são lexemas de etimologia próxima, pois dizem respeito à perda de algo próprio ou que pertence naturalmente à pessoa: a terra, a pátria, o país natal, o lugar de origem (MARTÍNEZ, 2007, p.14-15). O exílio é o emblema da condição humana desde a experiência primordial de Adão e Eva, uma temática recorrente que apresenta distintas representações em todos os períodos históricos. Ulisses, Édipo, Loth, Ruth e Jesus são alguns exemplos que ilustram a reincidência da imagem do exilado como arquétipo da cultura ocidental. Carregado pela conotação de 35 O termo exílio, conforme esclarece Maria José de Queiroz, provém etimologicamente do latim exilium “(de exsilium, ii,deriv. de exsilire - exsalire, saltar fora), desterro, degredo” (1998, p.21). Maria Victoria Martínez (2007, p.14) chama a atenção para o fato de que o termo “exílio” teria sido utilizado, especialmente, entre 1220 e 1250 para designar-se aos desterrados por ordem real, por manifesta hostilidade do poder. 68 castigo36 e punição, Edward Said (2003, p.47) lembra que o exílio, “irremediavelmente secular e insuportavelmente histórico, é produzido por seres humanos para outros seres humanos, é uma condição criada para negar a dignidade e a identidade das pessoas”. Mesmo que não tenha sido imposto expressamente, o exílio sempre está relacionado à pressão de uma força exterior, seja de um regime governamental, de uma forma determinada de política, seja de uma ameaça concreta à vida. Porém, é necessário lembrar que há diferentes tipos de exílio “impostos ou voluntários. Ato de obediência a agentes externos, ditados por vontade soberana ou por interesses superiores, ou ato de consciência-resposta a opção íntima, irrefutável” (QUEIROZ, 1998, p.31). O próprio Said (2003, p.46), ainda que se detenha sobre a concepção de exílio como punição política contemporânea relacionada diretamente ao nacionalismo e às desavenças por ele provocadas, não deixa de reconhecer que esse processo pode se manifestar sob um modo subjetivo, como um estado espiritual de solidão, de incompreensão em um meio estranho, de isolamento e deslocamento. A pesquisadora Nubia Jacques Hanciau (2007, p.3) chama a atenção para o fato de que a conotação “exilar” não pode ser atrelada exclusivamente ao viés de deixar a pátria; muitas vezes consiste, sim, em “nela estar – ou sentir-se – aprisionado”. Nesse sentido, o referido termo é revestido de uma série de outras significações não espaciais: social, linguística, psíquica, de modo que o afastamento do “espaço perseguidor” é a resposta mais adequada ao aprisionamento no ambiente que causa mal-estar, ou seja, o indivíduo não suporta o meio em que vive e se desloca para outro, onde crê que se sentirá melhor, podendo se materializar através da forma de marginalização, exclusão voluntária ou imposta. Sob essa perspectiva, Hanciau (2007, p.3-4) expõe a dupla tipologia para o evento do exílio: de um lado o exílio exterior, a ruptura com o território da origem e as dificuldades da integração em uma civilização diferente, encarnada na figura do estrangeiro; do outro o exílio interior ou interno (psíquico e físico); e pode ainda comportar – na visão crítica ou literária – uma troca espacial sem que intervenha o deslocamento de lugar; o que muda de caráter aqui é o próprio espaço. Tal noção de exílio interior também é analisada por Paul Ilie (1981, p.10), o qual toma como base o período ditatorial de Franco na Espanha para propor um olhar do exílio como 36 Queiroz (1998, p.22) esclarece que, nos livros sagrados, o exílio está ligado à ideia de “Castigo pelas faltas praticadas – por aqueles que traíram a aliança divina, preterindo-a por conluios políticos e mancomunações inconfessáveis [...], por quantos recorreram à violência e à fraude [...]; pelas faltas de todos – a imoralidade e a idolatria [...], responsáveis pela transformação de Jerusalém em cidade depravada”. Embora esteja associado, nessas narrativas, ao castigo, o exílio sempre almeja um “bem maior: o perdão”, a remissão do pecado e a renovação da aliança com Deus. Sobreleva observar que, entre os gregos, o castigo do exílio “não se encontrava no barco nem na estadia em mar tormentoso, mas na privação do lar para o descanso da volta” (QUEIROZ, 1998, p.41). 69 condição mental. Assim, o deslocamento espacial adquire caráter secundário frente ao que se passa na subjetividade de um indivíduo ou de um grupo, já que a separação do país de origem não representa apenas a ausência de contato físico com o espaço, é simultaneamente um conjunto complexo de sentimentos que abala e isola quem foi expulso. Desse modo, percebese que o exílio é, antes, mais uma condição mental do que material, responsável por deslocar as pessoas e sua forma de vida; então a natureza dessa ruptura é mais profunda, o que leva Ilie (1981) a considerar a localização geográfica como um elemento secundário. Nessa linha de raciocínio, o processo de exílio iniciaria no subconsciente do sujeito que se encontra em dissonância com o grupo. Isso permite conceber que uma coletividade ou um indivíduo pode estar excluído, e, portanto, exilado antes mesmo do deslocamento espacial ter ocorrido. Viver em descompasso com os acordes traçados pela maioria causa desequilíbrio, faz com que se busque aderir a valores não reconhecidos pela ideologia dominante. Aquele que sente a desarmonia, que escolhe princípios divergentes, vive em exílio, por mais que permaneça dentro das fronteiras territoriais de seu país. O indivíduo passa a ter, antes do deslocamento espacial, um sentimento de desajuste, de estranhamento, responsável por fazê-lo se sentir como uma engrenagem que não se ajusta ao conjunto do sistema. Aos poucos, esse grupo ou sujeito é tomado por uma força que lhe faz expor sua diferença, isto é, o exilado, além de passar a expressar objetivamente o seu novo ideário, também se reconhece como estranho diante da maioria, com quem não compartilha de seus novos princípios. Desse modo, a relação desarmônica entre a interioridade do indivíduo e o grupo (também ao espaço) em que está inserido encontra uma de suas expressões mais nítidas exatamente na figura recorrente do exilado: aquele cuja caracterização é conflitante em relação ao ideal homogeneizador de qualquer comunidade e, por isso, é levado a perpetuar a experiência do deslocamento. Assim, quando nos referirmos ao exílio, em relação ao romance de Ajzenberg, não estaremos considerando-o como a ação política de banir alguém de sua pátria, de expulsar, arrancar de suas raízes e mandar para longe, o que a caracteriza como uma prática coercitiva determinada por um poder externo, no caso, do poder de Estado. Ao contrário, estaremos adotando a perspectiva de um ato voluntário de isolamento do convívio social, por iniciativa do próprio homem que se afasta. Contudo, mesmo voluntário, tal ato conserva um fundo de violência, materialização de uma forma radical de exclusão, fruto, não raras vezes, de uma pessoa desorientada, angustiada diante da situação de desajuste que abala suas estruturas. 70 O exílio, defende Ouellet, é mais do que uma imagem representativa do nosso relacionamento com o tempo e o espaço, em que o ponto de encontro é o movimento, porquanto tornou-se a nova condição da contemporaneidade. Vivemos em uma era na qual a posição de deslocado ultrapassa o caráter metafórico para referir-se à nossa “dificuldade de ocupar plenamente o lugar e nossa época, de aí permanecer e residir de outra forma que não a de estrangeiro, sem mais sentimento de pertencimento a uma história e a um território de onde nos sentimos expulsos...” (OUELLET, 2013, p.146). Na madrugada em que Enzo concretiza sua partida, ele cumpre um ritual de despedida que o converte em errante. A escolha pela fase do dia, o amanhecer, pelo fugitivo, é bastante reveladora. Por ser o estágio inicial do dia, representa o nascimento, o começo da jornada de 24 horas, o que pode refletir a procura de uma nova vida, de realização humana, de paz, de transformação. A mudança é composta por um somatório de atitudes. Ao acordar, o protagonista “desfizera-se do pijama empapado de suor cheirando azedo da noite nãodormida, calçara com lentidão as meias e o tênis – parecia dar ao surrado Adidas a última chance de recusar o serviço –, vestira o conjunto de jogging cinza” (AJZENBERG, 2002, p.7). A opção lexical do narrador é forte, a personagem não troca meramente de roupa, mas desfaz-se do pijama, o verbo desfazer tem como sinônimos “inutilizar (-se), desmanchar (-se), anular (-se), diluir (-se), desatar (-se), transformar (-se)” (BUENO, 2005, p.222). Se levarmos em conta “que a identidade pode ser associada metaforicamente à ideia de roupagem” (PORTO, 2007, p.143), é possível concebermos o ato de deixar o pijama e escolher o “jogging” como uma troca identitária: o homem que desperta estaria desprendendo-se da antiga personalidade “azed[a]”, anulando o laço de intimidade que o prendia à privacidade do lar, desatando-se do elemento rançoso “empapado” de dejetos de nitrogênio e secreções corporais expelidas durante noites de insônia, provocadores da sensação de mal-estar em relação ao espaço disfórico do lar. Para a nova jornada, a personagem não escolhe um tênis novo que seja capaz de suportar eventuais percalços do caminho, entretanto, opta por um “surrado Adidas”, talvez pelo fato de este ser velho e, assim, experiente em andanças. Além disso, a cor do jogging revela os indícios da sua personalidade, posto que o cinza, segundo o estudo sobre as cores desenvolvido pelo físico Paulo Soares (1997), está relacionado tanto à independência quanto a evasão, é a cor do desejo de separar-se de tudo, de se conservar à margem e de fugir dos compromissos impostos. Não menos emblemático é o lugar onde a personagem inicia sua transformação: o banheiro. Sabe-se que este é o espaço domiciliar de maior grau de privacidade e isolamento, 71 de higiene e limpeza. O banheiro, nesse momento da narrativa, cumpre com sua função simbólica, uma vez que é nele que o protagonista, além de trocar de roupa, também lava e observa seu rosto. Considerando que a água tem propriedades purificadoras, o ato de lavar-se coincide com o desejo de eliminar as impurezas (a velha existência), ou seja, Enzo deixa a identidade que não lhe é mais atraente escorrer pelo ralo para que uma nova possa surgir. Depois de limpo, era chegado o momento da contemplação solitária; reparara “no excesso de cabelos, no emaranhamento das sobrancelhas; apalpara as rugas” (AJZENBERG, 2002, p.8). Esse autorretrato é realizado no escuro, como se ele não fosse capaz ainda de enfrentar o novo eu: “Era um outro, um outro sem retorno” (AJZENBERG, 2002, p.8). O pai de família permite que o Outro (até então submerso nas profundezas de seu Eu) brote, cresça e ganhe vida, adotando assim a performance inesperada da partida. Purificado, metamorfoseado, está pronto para desprender-se. Todavia, antes de deixar em definitivo a casa, retorna, para confrontar pela última vez seus familiares. Observa cada um na intimidade do sono profundo: Queila, Lúcio e Celinha. O embate calado causa desconforto: o homem que foge treme, soluça, é tomado por arrepios e suores. Em sua despedida silenciosa, é incapaz de dispensar algum afago para os que abandona. Não ousa romper com os muros erguidos em torno da privacidade para anunciar a todos sua deserção. Chega a falar com Celinha, contudo, como a filha dormia, o diálogo não se estabelece. Embora as palavras sejam pronunciadas, elas não são alvo da atenção do receptor; portanto, são jogadas ao ar, desperdiçadas no silêncio do amanhecer. Em contrapartida, os objetos são dignos de carinho: “beijara a escova de dentes” (AJZENBERG, 2002, p.8), “acariciar[a] a madeira da porta” (AJZENBERG, 2002, p.9), o que revela a intensidade do fechamento do sujeito em si mesmo, uma característica dessa família (e, em especial, do fugitivo), cuja comunicação é demasiadamente precária, quase inexistente. Em suma, dentro dessa lógica individualista, os objetos são dotados de um valor maior que as pessoas, ou ao menos com os bens materiais é possível estabelecer um relacionamento mais íntimo do que com os próprios familiares. Exilar-se em silêncio para asilar-se no silêncio, esta é uma das movências realizadas pelo protagonista. O rompimento com a comunicação estende-se a outras personagens do círculo social, não só à família, como, por exemplo, ao jornaleiro, seu conhecido de anos, o qual encontra quando estava partindo para um futuro incerto: “Em circunstâncias normais Enzo o aguardaria para cumprimentá-lo, pegar o exemplar, perguntaria do tempo, cilindradas da moto, a quantidade de pessoas que na rua recebiam o jornal dele. Optou por ignorá-lo” (AJZENBERG, 2002, p.9). As circunstâncias são outras. A personagem está se banindo, sua 72 subjetividade está alterada. Convém mencionar que o exílio é uma “forma de invalidar a palavra, reduzindo-a ao silêncio, por causa do afastamento. [...]. Um silêncio de reprovação ou de punição castiga o culpado, mantendo-o afastado, numa espécie de morte civil, definitiva ou provisória” (LE BRETON, 1997, p.91). Foi Enzo que optou pelo autoexílio, pelo afastamento e pela morte simbólica, por consequência, ele mesmo impõe como castigo a redução ao silêncio, passando a ser, simultaneamente, carrasco e vítima. Se a transformação ocorrera no banheiro e a reversão ou o arrependimento já era inviável, o desdobramento identitário se completa quando a chave da casa é jogada fora. O desertor se livra do elemento que poderia propiciar o retorno. Arremessa-a em um terreno abandonado, liberta-se do objeto que simboliza o peso de uma existência. Está pronto para encarar a nova jornada, só leva consigo o jogging cinza, o velho Adidas e uma sacola. Ele tem a coragem de fazer o que as outras personagens de Ajzenberg almejaram e não conseguiram concretizar37. No entanto, que direção seguir? Para onde ir? No primeiro capítulo, o narrador já expõe a falta de direção do protagonista, que, sem rumo certo, “Olhou para um lado e para o outro. Tanto fazia!” (AJZENBERG, 2002, p.8). Chega a hora de partir, de pôr-se a caminho, e Enzo não sabe qual percurso escolher. Impossível não lembrar, nesse momento, dos célebres versos do poeta espanhol António Machado (1997, p.78): “Caminante, no hay camino/ se hace camino al andar”. É nisso que a personagem parece acreditar, em só permanecer a caminho – um trajeto que desconhece a imobilidade e a fixação –, a fim de poder chegar a ter respostas, porque: “Se alguém lhe perguntasse qual o cerne do projeto, não saberia responder com clareza. [...]. Execute um projeto sem saber por quê, e você verá que, no final, a explicação surge, de um jeito ou de 37 Ajzenberg dá vida a personagens à deriva em um oceano de angústia, fracasso, frustrações, desencanto, melancolia, que os fazem desejar tornar-se outras pessoas ou estar em outro lugar. Michel Mafessoli (2004, p.172) explica que o homem conserva, muitas vezes adormecido, um desejo pela aventura e, quando os problemas da alma se agudizam, esse desejo acorda, pois “la necesidad que tiene el alma de realizarse, de desprenderse de lo que es demasiado familiar, de huir, de emprender nuevas aventuras, de explorar ‘orientes’ nuevos orientes”. Essa necessidade existe em Juliano, de Carreiras cortadas, que sentindo o peso da “insatisfação árida”, (AJZENBERG, 1989, p.52), percebe que é preciso “mudar de identidade, mudar de personalidade, sumir” (AJZENBERG, 1989, p.58), “sente vontade de escapar, de exilar-se em forma de sax nas faixas de um disco de baladas dos anos 50 [...]. Outro tempo talvez suportável” (AJZENBERG, 1989, p.134). O impotente Líbero Serra, de Efeito suspensório, imergido em um casamento esgotado, depois de brigar com a esposa, Michal, pensa em fugir: “Na calçada, raciocinei: não volte para casa; vida à razão! Nada se repetirá” (AJZENBERG, 1993, p.16), porém a hesitação, traço marcante de sua personalidade, o impede de concretizar a decisão. Goldstein, de Goldstein & Camargo, “sempre quis ser o que não era” (AJZENBERG, 1994, p.8), vivendo sob o imperativo de dizer sim, atormentado por viver entre dois mundos (judeu e cristão). Na adolescência, como outros tantos judeus, viaja para Israel, diferentemente dos companheiros, não ajuda na colheita da laranja; ao contrário, vaga pela Europa, permanecendo lá por mais de seis meses sem saber direito para onde ir. Já na fase adulta, chega a sair de casa, mas acaba voltando. Em contrapartida, Leon Zaguer, de Olhos secos, na fase adulta, destroçado pela solidão, com a filha e a mulher morando em Buenos Aires, sequer consegue almejar a possibilidade de fuga, já que, segundo ele, “Eu não tenho mesmo lugar nenhum para ir” (AZJENBERG, 2009, p.157). 73 outro, para justificá-lo” (AJZENBERG, 2002, p.17). Caminhar na incerteza exige coragem e ousadia, o que destoa da imagem convencionalizada da figura do engenheiro civil, racional e calculista. O projeto na construção possui um papel fundamental na qualidade do produto final, visto que constitui a primeira entre as principais etapas da produção, sendo o definidor da direção da obra. Construir, além de empilhar tijolos ou montar estruturas metálicas, é uma missão elaborada que exige análise de cálculos, detalhamento estrutural, tomada de decisões. Nesse momento, são realizadas as escolhas que direcionam e definem a obra. Não obstante, Enzo, como engenheiro civil, vai de encontro a esse raciocínio, parte de casa sem metas estipuladas. Tal partida sem planejamento, muito provavelmente, pode ser creditada ao fato de que ele está desempregado, portanto, desprovido da obrigação de cumprir, rigidamente, horários e seguir roteiros. Assim, perambular sem um norte e sem expectativas pelas ruas é uma busca incerta, entretanto necessária, é esperar o inesperado38, ser seduzido pelo porvir incerto e imprevisível. Uma circularidade que amplia o vazio da personagem que se desnudou de todos os laços sociais. O fato de Enzo apenas querer executar o projeto sem saber a finalidade, sem ter metas estipuladas, um trajeto predefinido ou o desejo de um destino imaginado, aponta para uma forma de errância. O errante39, para a pesquisadora Rachel Bouvet (2010, p.318), desconhece para “onde seus passos o levarão”, tendo em vista que ou está buscando alguma coisa ainda incerta, “e nesse caso ele se deixa facilmente distrair pela paisagem, pelas palavras; seu olhar se orienta para frente, para o desconhecido, para o horizonte”; ou está fugindo, nesse caso, “o movimento marcante de seu percurso é o ponto de partida, [...] que virá assombrar sua memória, de maneira lancinante, carregado de penas, de sofrimentos, de rancores ligados aos motivos da ruptura”. A errância acarreta ruptura, com um lugar ou com um grupo. Esse movimento pode ser realizado por um indivíduo solitariamente ou por uma comunidade; todavia, prevalece a ausência de um itinerário fixo. Em síntese, o percurso errático é imprevisível, facilmente toma forma de trajeto solitário, sem roteiros preestabelecidos, inventado ao caminhar. De engenheiro civil para errante, essa é a travessia realizada pela personagem que rompe com os laços familiares para se entregar a um caminho sem direção predeterminada. 38 Segundo Edgar Morin (2004, p.17), “esperar o inesperado” é a mensagem transmitida por Eurípides que o século XXI precisa ouvir, uma vez que, para o autor, o “século XX descobriu a perda do futuro, ou seja, sua imprevisibilidade [...]. Uma grande conquista da inteligência será poder ver-se livre da ilusão de predizer o destino humano. O porvir permanece aberto e imprevisível”. 39 Bouvet (2010, p.317) defende que a principal diferença entre nomadismo e errância se concentra na noção de percurso. O nômade “sabe aonde vai, segue um traçado já conhecido, ou em parte, um itinerário conservado na memória da tribo”. Esse itinerário repetitivo só é alterado em função do esgotamento dos recursos naturais, dispersos pelo caminho, que guiam a comunidade. O errante é o seu contrário. 74 No início de sua jornada, chega a viajar para uma cidade escolhida ao acaso, cujo nome sequer importa-se em saber: Naquela manhã, depois de atirar as chaves no terreno baldio, e durante dias, Enzo andou sem rumo, quilômetros intermináveis pela cidade. Na rodoviária, recordava agora, escolhera um guichê ao acaso, viajara nem sabia para onde; hospedara-se num hotelzinho sem nome, passeando por praças com coretos incolores. Bebeu água como se fosse o melhor suco. Andou a cavalo como não fazia desde muitos anos, até topar com a mecha de Gisele. (AJZENBERG, 2002, p.66) Ainda que encontre Gisele, uma jovem dentista com quem inicia um relacionamento amoroso, o envolvimento é insuficiente para imobilizar o errante. Sem raízes, com os vínculos destruídos, Enzo não encontra ancoragem nem fixação em lugar algum. Ao se mudar para o apartamento da namorada, leva só a sacola que o acompanhara no dia da partida. Mesmo residindo por alguns meses com a nova companheira, é incapaz de preencher os espaços a ele destinados com objetos pessoais, porque as gavetas “Continuavam vazias, como as havia preparado quando decidiu convidá-lo a morar com ela [Gisele], o mesmo forro de papel e os envelopes de cheiro-verde. Enzo não carregava pertences o bastante para ocupar aquela mobília” (AJZENBERG, 2002, p.86). Símbolo do desprendimento, o vazio das gavetas reflete o desejo de manutenção da mobilidade. Lembremos que o errante se deixa distrair pela paisagem, haja vista que o horizonte é o seu guia levando-o a vagar sem direção. Depois de viajar, antes e durante o namoro com a dentista, a principal ocupação de Enzo é percorrer as ruas da cidade, saborear o gosto do percurso incerto: O albergue lhe parecia frio e distante, claustrofóbico. Poderia entrar no metrô, recuperar-se olhando no subterrâneo um mapa, uma vitrine, esquadrinhar o tabloide gratuito. Procurar um sebo nos arredores da Sé, talvez fosse a melhor saída: deixar-se engolfar pelo odor material de livros raros, mercadoria rediviva de itinerário obscuro. Saborear essa embriaguez sem termo nem custo, quem sabe, lhe daria alento. As pernas, porém estavam entre a fraqueza e a preguiça. Era impossível caminhar. Depois de girar lentamente várias vezes a mesma pedra de calçada, disposto a dependurar-se num galho de árvore se assim alguém determinasse, acabou curvado, lábios secos, num banco da República. (AJZENBERG, 2002, p.34) Desassossegamento errático, a personagem deriva, alheia às pretensões de um eu desejoso de vitória. A nova atitude, destoante do padrão da sua profissão, de não avaliar antecipadamente as perdas e os ganhos da sua escolha, exibe o tamanho da angústia atordoante, não há lugar onde se sinta confortável. Conjuntura essa representativa do homem contemporâneo, que, conforme Ouellet (2013, p.147), não consegue se reconhecer mais no 75 território que ocupa, “o deslocado não está nunca em seu lugar”, estrangeiro no próprio espaço que escolheu. O estrangeiro, para Julia Kristeva (1994), afasta-se da antiga noção do intruso responsável pelos males da cidade e passa a se encontrar dentro de nós mesmos, é a nossa face sombria, “o espaço que arruína a nossa morada, o tempo no qual se afundam o entendimento e a simpatia, começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e comunidades” (KRISTEVA, 1994, p.15). Ao tecer reflexões sobre o sentimento de estraneidade, Mauro Maldonato (2004, p.30) defende que o estrangeiro “é a cifra de um incomensurável não pertencer, de um impossível sentir-se em casa, de um incorrigível estar em outro lugar”, sendo sempre aquele indivíduo que está “mareado em terra firme”. Apropriando-nos das palavras de Maldonato, Enzo está mareado em terra firme. Quando em casa, quis partir; longe de sua residência, o desejo de estar em outro lugar não é amenizado. O albergue onde passa as noites protege unicamente o corpo, deixando a alma desamparada, potencializando o mal-estar. Desnorteado, o ser que vaga a esmo circula a pé pelas mesmas ruas, escolhe seu “abrigo a céu aberto” (AJZENBERG, 2002, p.85) na região da Paulista. Durante o dia, repete o trajeto de ir e vir várias vezes ao mesmo lugar, tendo como ponto de ancoragem o vão livre do Masp, de onde, sem objetivo predefinido, conta seus passos, como se existisse à margem do que lhe era convencional. Um antípoda de si mesmo. A pulsão da errância seduz Enzo. Michel Maffesoli (2004, p.19) trata o desejo de errância como a “sede del infinito”40, que aparece como resposta ao tédio existencial “cuando no es el hambre, es el aburrimiento o la desesperanza que nos mata”. Logo, tal pulsão seria a resposta para um universo que não satisfaz mais o sujeito, em um mundo uniformizado “renace el deseo de ‘otro lugar’” (MAFFESOLI, 2004, p.112), como uma necessidade de exprimir revolta contra a ordem estabelecida. Nesse sentido, fica a dúvida: o que motivou a personagem representada (um homem maduro, pai de família, com casa e profissão) a tomar tal decisão? Contra qual ordem estaria manifestando sua revolta expressa na fuga de casa e na interrupção do diálogo com seus familiares? Qual foi a discordância que o levou ao exílio e ao silêncio? Além do fato de que ele “Estava farto de mentir e ouvir mentiras” (AJZENBERG, 2002, p.65), cansado de uma vida imersa em falsas aparências, não podemos citar uma única 40 Maffesoli recorre à expressão “sede del infinito” desenvolvida por Durkheim, para defender que o homem pós-moderno estaria tomado pela pulsão de errância que transparece na não fixação em uma profissão, em uma identidade, em uma família e também em um sexo. Uma “sede del infinito” que põe em movimento as estruturas das sociedades. Uma busca do Graal, da aventura, do invisível, daquilo que não se sabe direito o que é, contudo, mesmo assim, deseja-se. 76 causa, e, sim uma sucessão de “inúmeros e imprecisos turbilhões” (AJZENBERG, 2002, p.10), que, juntos, abalaram as estruturas desse frágil engenheiro. É preciso explorar a ironia carregada por Ajzenberg com a escolha do nome Enzo, que significa “senhor da casa”, “o que governa a casa”, “o que vence”, “gigante” (GUERIOS, 1994, p.78). O protagonista d’A gaiola de Faraday, em razão de estar sem emprego, encontrase incapacitado de cumprir financeiramente a missão que seu nome prenuncia. Ele perdeu o trabalho cerca de seis meses antes de fugir, isto é, no segundo semestre de 1991. Portanto, o tempo narrativo retrata ficcionalmente a grave crise econômica e social que abalou o Brasil no Governo Collor (1990-1991), quando “o expressivo corte nos postos de empregos e o incremento das taxas de desemprego” deixaram mais de um milhão de pessoas na rua, só em São Paulo (PACHECO FILHO, 1992, p.1). O trabalho é um dos elementos mais relevantes para os processos de identificação dos sujeitos. O ordenado recebido permite manter ou não o status social, assim o vínculo empregatício é o responsável por delinear parte da identidade dos indivíduos, em especial a representação econômica. Nesse sentido, estar excluído do universo trabalhista nos tempos atuais, longe de um episódio provisório, afigura-se como uma condição equivalente a “ser recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer ‘economicamente inativo’. Ser excluído do trabalho significa ser eliminável, classificado como descarte [...]” (BAUMAN, 2009, p.23). Aos primeiros indícios de desorientação que julgam estar atrelados ao desemprego, os familiares tentam consolar Enzo: – A recessão bate em todo mundo, Enzo – dissera Mariza poucos meses antes, após a demissão do cunhado. – Você não é a única vítima, ainda mais na construção civil. – É isso — complementava Júlio. – É isso. Mas Enzo ignorava o discurso. O desemprego, considerado por todos momentâneo, no caso dele, explicava mal a desorientação. (AJZENBERG, 2002, p.30) Embora o narrador explicite que o desemprego “explicava mal” a causa do comportamento estranho de Enzo, sabemos que esse foi o responsável pela aceleração do esfacelamento conjugal. Eliminável no trabalho, o engenheiro também é um objeto inútil no casamento e na família. Com Queila, compartilhou “anos de vida morna” (AJZENBERG, 2002, p.17), regada com doses de traições eventuais, como a com duas orientais que resulta no atropelamento e invalidez permanente de um lixeiro. Ele busca em outros corpos, além da satisfação de seus desejos, também a vitalidade e a beleza que não encontra mais na esposa, visto que, ao descrever as outras mulheres, chama a atenção para os belos corpos jovens: 77 “Aquela bunda que você agarra e aperta com gosto... [...] Aqueles peitos cheinhos que você pega e faz ela inclinar a cabeça [...]” (AJZENBERG, 2002, p.28-29). Diferente é a companheira que deu a luz aos seus dois filhos, pois o tempo deteriorou o corpo, como o próprio Enzo explica para o irmão em uma carta: “duvido muito que a Mariza tenha os peitos caídos como são os da Queila” (AJZENBERG, 2002, p.89). A infidelidade junto com a crise financeira transforma o amor em descaso, levando o casamento ao naufrágio. A comunicação entre o casal é complexa, a existência passa a boiar entre “as incessantes gritarias” e “o silêncio a cada dia mais insuportável na mesa do jantar” (AJZENBERG, 2002, p.111). Se os berros são a expressão máxima do desacordo, o silêncio é o reflexo da indiferença, do cansaço das querelas cotidianas, das farpas da convivência que consomem as personagens: “A dor física nos faz gritar; os sofrimentos espirituais nos recolhem ao silêncio; quando se desabafam e se consolam gritando, são sentidos mais emotivamente do que espiritualmente” (SCIACCA, 1967, p.45). O relacionamento falido é metáfora de uma bomba prestes a explodir, pois o marido foge “de um homicídio anunciado. Não sabemos quem cometeria, mas ele acabaria por acontecer sob as barbas e as peles caídas de todos nós” (AJZENBERG, 2002, p.13). A convivência com a esposa é intolerável, assim como a intimidade com os filhos não se estabelece. Enzo, Lúcio e Celinha são estranhos que dividem o mesmo espaço. Entre pai e filhos não há pontes, cada um está distante concentrado em sua margem, sem a intenção de cruzar a fronteira rumo ao outro. Com a filha, alvo de surras inexplicáveis, segundo o irmão, não há nenhum contato, apesar de esta ter sido a única pessoa a quem ele observou com carinho no dia de sua partida. Com o filho, o afastamento é mais drástico, apenas fica sabendo coisas da sua rotina quando começa a segui-lo. A dissolução dos laços afetivos, o distanciamento irreversível, o individualismo que corrói a estrutura familiar e leva ao total silenciamento das personagens, que passam a não ter nada a comunicar umas às outras, são perceptíveis no cartaz elaborado para procurar Enzo: ‘Desaparecido. Em 21 de fevereiro de 1992, em São Paulo. Quarenta e seis anos de idade. Pele clara. Olhos castanhos (ninguém da família lembrava que ele tinha olhos verdes?). Cabelos castanho-escuros’. Por que agiam assim? Onde acharam aquela foto? Nem ele se reconhecia nela! (AJZENBERG, 2002, p.12) Dessa forma, o lar é o ambiente mais radical de desencanto. A aridez dos vínculos interpessoais serve de mola propulsora tanto para a travessia solitária do errante pelas terras do nada quanto para o emudecimento de Enzo, que se nega a quebrar o silêncio para se 78 aproximar de seus familiares. Perceber que seus consanguíneos sequer lembravam a cor dos seus olhos provoca-lhe a perda de qualquer ilusão; não se reconhecer na foto revela o distanciamento da imagem conservada pela família e a construção subjetiva da personagem sobre si mesma. A desilusão se torna mais um dilaceramento identitário que repercute no aprisionamento de suas palavras. No entanto, foi o abalo do suicídio de uma antiga namorada judia, Cecília, o estopim para a sua fuga. Lembremos que a catástrofe, na vida cotidiana, como menciona Carvalho (2000, p.238), é a interrupção da comunicação com alguém devido à sua morte. A exnamorada se impôs um silêncio duplo, já que, com um tiro na cabeça, teve coragem de “sumir de vez” (AJZENBERG, 2002, p.44), abdicando verdadeiramente da vida e das palavras. Calou-se para sempre e ocultou a causa de seu ato extremo, devido ao fato de ter partido sem “carta nem bilhete. [...]. O recato, mistério rígido, mas com surpreendentes contrapesos” (AJZENBERG, 2002, p.43). A impotência frente ao silêncio absoluto da morte, a qual incide na incomunicabilidade com a personagem que tanto amou, atormenta Enzo. Este se questiona várias vezes sobre os reais motivos que a levaram a pôr fim à própria existência. Supõe que ela nunca se recuperara da condenação de não germinar a vida em razão de uma menopausa precoce. A catástrofe da incomunicabilidade impulsiona o protagonista (que já estava em uma posição incômoda, refugiado em um exílio interior, sofrendo o estranhamento de não pertencer ao espaço) a desenraizar-se, rompendo com o confinamento individual e com o diálogo com os familiares. Se Cecília foi impávida ao sumir, ele escolhe apenas desaparecer, refugiar-se no silêncio, bloquear provisoriamente a comunicação com os seus. Kristeva (1994, p.37) explica que “é a explosão do recalcamento que conduz o estrangeiro à travessia de uma fronteira rumo ao exterior”. Maffesoli (2004, p.146) argumenta que a vagabundagem é a manifestação do desejo de quebrar o compromisso de resistência, o anseio pela aventura, a fascinação de se perder ou de perder, a atração pelo vazio, e, em especial, o desejo de liberdade irrompe “cuando todo se esclerosa o codifica, la evasión se vuelve una necesidad”. É exatamente essa a reflexão que Ajzenberg nos leva a fazer. No lar, espaço privado burguês por excelência, ambiente destinado à realização do homem, onde a felicidade deveria ser o sentimento exalado, surge o desejo de busca. A casa que deveria abrigar acaba enclausurando a personagem. O relacionamento entre os familiares é insustentável, cada um encontra-se engaiolado em sua privacidade. Além de a comunicação ser precária, a notícia do suicídio apenas potencializa a necessidade de evasão de Enzo. A vida cotidiana o persegue até implodir a insensatez da 79 viagem sem meta, paisagem da alma assolada, desconcertante assombro da passagem do “homem normal” (AJZENBERG, 2002, p.126) ao homem sem sentido, desvendando os segredos daqueles que não têm fixação, daqueles que partem para não voltar; e, mesmo se voltam, não têm nada para agregar. Após sair de casa com o objetivo de habitar uma espécie de terceira margem, protegido pelo anonimato e pelo silêncio, o protagonista encontra-se isolado, aquém de qualquer imposição e fora dos limites das convenções. Enzo tivera os seus papéis sociais negados, até mesmo a posição de filho é ocupada com estranhamento e desconforto, dessa maneira parte em busca de espaço que lhe propicie, simultaneamente, liberdade e realização, asila-se no silêncio. Em uma sociedade estabelecida, conforme Maffesoli (2004), qualquer forma de vida regrada requer algum tipo de resistência. No trabalho, na igreja ou no próprio seio familiar, os sujeitos estão presos a imposições, a uma espécie de politicamente correto do cotidiano, das quais não pode divergir, sob pena de serem submetidos ao tribunal social, expondo e arriscando o status quo. A partida de Enzo expressa justamente a pulsão por uma vida dissociada de regramentos preestabelecidos. Ao fugir, ele tanto declara o seu grito silencioso de basta quanto abandona as balizas protetoras que o resguardavam do Outro interior, livrando-se, de uma só vez, dos laços familiares, da culpa de deixar inválido um homem, da frustração de não manter o lar, da angústia frente ao suicídio da ex-namorada, e das palavras. A fuga do protagonista coincide com seu silenciamento, ao afastar-se do ambiente disfórico do lar também se distancia da possibilidade de estabelecer diálogos plenos com a esposa e o filho, recusando-se a verbalizar os conflitos que abalam sua subjetividade prefere emudecer. Elege o silêncio e as ruas como abrigo para sua identidade dilacerada. 2.3 A recusa da comunicação: a repulsão individualista O afastamento perdura por um curto período, depois de perambular errantemente, de trocar os hotéis baratos por albergues, a família com a qual Enzo tentou romper os laços funciona como um ímã que o atrai, que o seduz e o convida a transformar-se em voyeur, a desempenhar o papel de plateia do elenco que abandonara, passando a existir em uma espécie de terceira margem: Perturbava-o a dor – antes sinalizada, agora sentida – de ter seguido a mãe às escondidas sem remorso. Ao contrário de semanas antes quando seguiu Lúcio na saída da faculdade – ocasião em que a cabeça latejava, como se a violar com covardia os bolsos do rapaz, 80 como se percorresse com cinismo, furtivamente, as páginas de um diário secreto –, seguir a mãe na Peixoto Gomide fora como bisbilhotar um estranho. Nenhum malestar. Enxergá-la assim, distante, à beira da indiferença, concluiu Enzo – esse era o motivo da agitação no peito. (AJZENBERG, 2002, p.65) Entre o prazer e o mal-estar, a vontade de espionar prepondera. Uma das ocupações do desempregado, durante o seu autoexílio, foi seguir à distância a mulher, a mãe e o filho. Como um espectro, protegido pelo muro do anonimato, sem sair do poço das palavras não ditas em que se metera, vigia os que ficaram, sem ser visto. Tal comportamento vai ao encontro da argumentação exposta por Bouvet (2010, p.318) de que o errante, quando está em movimento de fuga, o ponto de partida se transforma em uma espécie de fantasma que assombra a memória, não o deixando esquecer os sofrimentos relacionados à ruptura. Em A gaiola de Faraday, o movimento é quase que inverso: o ponto de partida é a família, só que esta não persegue o fugitivo, e sim, é observada por ele que permanece “de olho aberto. Eu vejo tudo. Eu sei de tudo” (AJZENBERG, 2002, p.126). Enzo nada fala, em virtude de estar abrigado pela barreira do silêncio interposta entre si e os outros. Nos momentos de bisbilhotagem, os rancores e a memória ligada ao rompimento sempre emergem de alguma maneira: ao se aproximar da mãe, imaginou-se Ladrão. Se quisesse, roubaria a bolsa Louis Vuitton num passe de mágica – a velha não demonstrava condições de resistir. Ganhou a bolsa de você, lembra, pai?, dialogava Enzo com o vento na ladeira. Nos quarenta anos de casamento, e eu perguntava ‘Bodas de quê, pai?’, só para ouvir ‘de merda, filho, bodas de merda!’. Grande pai! (AJZENBERG, 2002, p.64) Além das farpas da convivência e de um casamento corroído pelo tempo, o tom irônico revela o relacionamento problemático entre pai e filho, que acaba sempre emergindo nas rememorações do protagonista, narradas através do discurso indireto livre conduzido pelo narrador. Assim como outras lembranças desagradáveis, resgatadas pelas reminiscências do engenheiro que saboreia sua solidão e rumina silenciosamente os rancores relacionados à partida. Mesmo que Enzo escolha viver à margem, vagar errante em direção a um alhures qualquer, protegido pelo silêncio próprio da posição de espectador, sem estabelecer comunicação com os pais, a esposa ou os filhos, é com o irmão, Júlio, professor universitário do curso de Pedagogia, que ele tenta várias vezes travar contato, através de ligações e cartas. Isso demonstra que o engenheiro, apesar de estar mergulhado em uma forma de exílio, não assumiu totalmente a condição de estrangeiro descrita por Maldonato, ou seja, daquele que precisa deixar a memória, cortar toda e qualquer raiz, migrar, tendo em vista que, se algo o 81 detivesse, “tornaria a cair no antigo vício da identidade que se espelha em si mesma. Migra, o estrangeiro. E ao migrar desmancha qualquer vínculo com a saudade e a tradição [...]. Seus adeuses não deixam rastros nem memórias” (MALDONATO, 2004, p.31). Com essa personagem é diferente, ainda que ela deseje dissolver os laços, de modo paradoxal, não consegue extinguir todos, porque resiste a essa liberdade difícil e tenta reatar ao menos a comunicação com o irmão. Não obstante, as tentativas fracassam, uma vez que o professor, seis anos mais velho, “jamais deixou de encarar a existência de Enzo como um estorvo” (AJZENBERG, 2002, p.30). Desde a infância, a relação entre ambos foi porosa, permeada por disputas, nas quais o inconsequente e desregrado irmão, na perspectiva de Júlio, sempre se sobressaía, enquanto o primogênito fechava-se em um ostracismo ressentido. Conforme este, os problemas do caçula eram irrisórios perto dos seus. Afastado de todos, sentindo o peso do sacrifício escolhido, o engenheiro, na busca de um confidente que pudesse amenizar o aniquilamento da solidão, esforçando-se para reencontrar o conforto de um abrigo seguro (ainda que provisório), procura ultrapassar a fronteira delineada por ele e pelo irmão. Porém, Júlio não tem interesse em reconstruir as pontes deterioradas, ao contrário, cruelmente deseja, com todas as forças, que o caçula desapareça: Por que o idiota não desaparecia em definitivo? Por que teimava em azucrinar a vida do irmão mais velho, como se Júlio já não tivesse as próprias e insistentes rugas para suportar? [...]. [...]. E assim raciocinava: ‘Caia fora, irmão! Caia fora!’, e repetia a exclamação, baixinho, ‘por favor, caia fora’, como já fizera inúmeras vezes, ao longo dos dias ou antes de adormecer (um mantra), no carro, na sala dos professores. ‘Mas caia fora decentemente, de uma vez por todas, não em partes. Pare de hesitar. Pare de ficar esperando empurrões dos outros, Enzo. Por que não desaparece de uma vez por todas, aberração da natureza?’ (AJZENBERG, 2002, p.27) Repulsão individualista, Júlio alega ter problemas suficientes para resolver, assim o irmão não faz parte do universo com o qual ele deva se preocupar ou perder tempo. O laço de parentesco fora incapaz de gerar um vínculo de afinidade entre os dois, até porque, embora sejam semelhantes, os lexemas “afinidade” e “parentesco” são distantes em sua essência. De acordo com Bauman (2004, p.41), o primeiro vocábulo é uma “escolha, diferentemente da sina do parentesco, uma via de mão dupla. Sempre se pode dar meia-volta”, enquanto o segundo se refere a um vínculo “indiscutivelmente sólido, confiável, duradouro, indissolúvel”. Entretanto, a existência de um não implica a existência do outro. As ações de Júlio demonstram que se é impossível desintegrar a “sina do parentesco” quando a afinidade é nula, ao menos se pode tentar preservar à distância o parente indesejado. 82 E é isso que faz quando mantêm em sigilo todas as notícias recebidas do consanguíneo ou quando se recusa a estabelecer o diálogo com ele. Dessa forma, Enzo, que, ironicamente, escolhe interromper a comunicação com a família, acaba também provando de seu próprio veneno, isto é, torna-se vítima do castigo do silenciamento imposto pelo irmão, visto que, das duas vezes em que telefona para o primogênito, somente na segunda ocorre a interlocução. Durante a tentativa do primeiro contato, o professor limitara-se a apenas ouvir, sem prestar atenção, e, após algum tempo, simplesmente desliga o telefone, cansado de escutar o fluxo das frases desconexas do desempregado. Na segunda ligação, a comunicação não é amistosa. Júlio, para conservar o caso extraconjugal que passa a ter com a cunhada, é ríspido com o interlocutor, deixando explícito que aquele que abandonou o lar deve sumir de vez, parar de perturbar os que ficaram e mostra-se disposto a fazer qualquer coisa para que seu desejo se realize, para que o outro permaneça restrito ao silêncio que escolhera: – Some de vez, Enzo – diz Júlio, ao telefone. – É o melhor que você tem a fazer. Cai fora, vai para o interior, pega um ônibus, vai para o Nordeste, Enzo. Se joga de uma ponte. Você e tuas fantasias, tua imaginação louca. [...]. Faz o que você quiser, caralho. Mas some, Enzo. Some de vez. [...]. – Eu te ajudo se precisar. Te dou dinheiro. Faz a tua vida, caralho! Ninguém de nós merece o que você está fazendo, esse jogo. (AJZENBERG, 2002, p.127-128) Nesse sentido, Júlio representa o típico homem da sociedade de consumo, que, para Bauman (2004), tem como meta a satisfação única e plena de seus próprios interesses, e que, por estar imbuído apenas na procura da sua felicidade, apresenta uma grande resistência de amar o próximo. Antes de ajudar o outro, questiona-se: “por que devo fazer isso? Que benefício me trará?” (BAUMAN, 2004, p.97). Realmente, auxiliar o irmão a voltar, entregar para a cunhada a carta que lhe foi confiada, repassar notícias de Enzo para a família não são atividades que lhe trariam benefício. Ao contrário, acarretariam perdas, pois o regresso do caçula poderia ocasionar o fim do seu relacionamento sexual com Queila. Le Breton (1997, p.114), em seu estudo sobre o silêncio, esclarece que, em função das situações e dos indivíduos nelas envolvidos, determinadas coisas são próprias de serem enunciadas, já outras não, isto é, na lógica da comunicação, tão importante quanto saber o momento em que é preciso falar e sobre o quê, é saber distinguir “quando convém calar e acerca de quê”. Júlio, em razão de seus interesses, consegue fazer a distinção sobre o que pode ou não ser dito, uma vez que “evitara tocar na questão de Enzo. Sab[endo] que era isso que Queila queria lhe falar” (AJZENBERG, 2002, p.54), bloqueia toda a possibilidade de esse assunto fluir. Dessa maneira, o primogênito desenvolve um silêncio egoísta, que está voltado 83 para si mesmo. Não cala para proteger a cunhada-amante ou os sobrinhos, silencia para garantir que a sua satisfação pessoal seja conservada. Nesse caso, o silêncio não é sentido como um peso nem uma opressão externa, e sim, é cuidadosamente mantido como uma estratégia que visa à concretização dos desejos daquele que cala. Convém enfatizar que, no universo individualista contemporâneo, cada sujeito está preocupado somente com o que lhe diz respeito, com aquilo que, objetivamente, pode alterar de maneira substancial sua vida. Situação mimetizada de forma ímpar pela narrativa, posto que, quando Enzo liga para Júlio a fim de contar os seus dissabores e elaborar seu desespero, somente ele fala, rompendo assim com um código de civilidade: – Estou apavorado, Júlio – era, sem dúvida, a voz de Enzo. — [...]. O que devo fazer, irmão? O Jackson, o irmão da Gisele, Júlio, o adestrador, sabe? Me fez uma ameaça. Não quer me ver mais na casa, não quer que eu veja a irmã e ameaçou acabar comigo... Júlio tentou interrompê-lo, mas Enzo falava sem parar. – Não me seguro mais, irmão. Um dia ainda adoto o procedimento daqueles sujeitos americanos que do dia para a noite pegam uma arma e saem matando gente por aí, principalmente a família, Júlio: arrumo um revólver, uma metralhadora de quinta mão num boteco de periferia, e entro na casa antes do amanhecer, pego todos na cama: Queila, Celinha, Lúcio, incluiria o Bilé na dança também, assim os latidos acabariam de uma vez por todas. Mas antes eu acerto esse filho de uma puta, esse Jackson, irmão, ele com todos os cachorros malditos dele. E pronto. Quem sabe, para ficar o quadro completo, dou um tiro em mim mesmo depois de concluída a matança, hein! Já pensei nisso, irmão, confesso que foi em momentos de certa insanidade. Mas a tentação foi tão grande que deixou sobras, eu e as malditas sobras, hein! [...]. (AJZENBERG, 2002, p.124) Nos tempos atuais, regidos pela tirania da intimidade, a incivilidade é, de acordo com Sennett (1988, p.324), “sobrecarregar os outros com o eu de alguém. É um descenso de sociabilidade para com os outros criado por essa sobrecarga de personalidade”. Segundo suas reflexões, os indivíduos incivilizados “são aqueles ‘amigos’ que necessitam dos outros para entrarem dentro dos traumas diários de suas próprias vidas, que dão pouca importância aos outros, a não ser como ouvidos onde derramarem suas confissões” (SENNETT, 1988, p.324). É essa a atitude ficcionalizada pelo protagonista. Na passagem selecionada, ele se mostra tão ensimesmado quanto Júlio, em virtude de ligar não porque está com saudades e se importa com a vida do primogêntio, muito menos para obter informações da família que abandonara. A ligação poderia ter sido realizada para qualquer outra pessoa, inclusive para um desconhecido, uma vez que o errante bloqueia o espaço de interação, impossibilitando o desenvolvimento do diálogo pleno, porque Enzo impõe a sua presença, descarregando todos os temores que o afligem. Mesmo que o exilado inicie com a interrogação “O que devo fazer, irmão?”, ele não está em busca de respostas ou de opiniões alheias, tanto que a palavra do 84 professor é simplesmente ignorada, suprimida pelo turbilhão de frases pronunciadas. O questionamento parece ser apenas uma forma dele tentar organizar o seu pensamento em voz alta, de elaborar seu desespero relegando o irmão ao silêncio. Os relacionamentos amorosos no mundo contemporâneo líquido enfrentam dilemas avassaladores. De um lado da balança, os compromissos por tempo indeterminado são alicerçados sobre o pilar “até que a morte os separe”, o que pode causar insegurança por parte dos contratantes e se apresentar como ameaça em potencial às mudanças exigidas por um futuro desconhecido e incerto. Do outro lado, explica Sennett (1988, p.318), ainda sobrecarregamos as uniões íntimas com os anseios de “segurança, de repouso e de permanência. Quando as relações não conseguem suportar essa carga, concluímos que há algo de errado com o relacionamento, ao invés de reconhecermos o que há de errado com as expectativas não declaradas”. As reflexões de Bauman (2004, p.28-29) convergem para o mesmo sentido, ao afirmar que os envolvimentos afetivos visam “em primeiro lugar e acima de tudo, [à] segurança – em muitos sentidos: [à] proximidade da mão amiga quando você mais precisa dela, [ao] socorro na aflição, [à] companhia na solidão [...]”. A representação romanesca d’A gaiola de Faraday parece espelhar essa lógica, em razão de que, no momento em que Enzo abandona o lar, deixa Queila exposta à insegurança, entregue ao desamparo, desvelando a fragilidade dos laços matrimoniais, haja vista que o tempo investido no casamento não trouxe a felicidade almejada. A segurança, o repouso e a permanência perdem o brilho de outrora, revelando a precariedade matrimonial, em que nenhum dos cônjuges é capaz de verbalizar um para o outro as suas frustrações. O marido consegue, por meio de um discurso abafado, somente escrever as expectativas não declaradas de economia, de harmonia e de equilíbrio: Os gatos, por que aquela tua mania de querer criar gato em casa? Arranhando os móveis, fazendo a gente gastar dinheiro com carpetinhos ou brinquedinhos para os bichanos! [...] E os quadros? Por que na nossa casa eles estavam sempre tortos e assimétricos nas paredes? Por que sempre havia uma rendinha a menos nos braços das poltronas e dos sofás? (AJZENBERG, 2002, p.75) A esposa, indignada com a saída fácil do marido (fuga), decide decretar o fim da união estável: “– Não quero nunca mais ver a cara dele” (AJZENBERG, 2002, p.57). Entende que se a escolha foi de Enzo, é fundamental que ele arque com as consequências de seu ato: “– Falando sério, Júlio. Você precisa fazer o que me prometeu. Eu não vou aguentar mais. A decisão foi dele. Ele sumiu, ele deu esse pontapé. Dane-se. Que assuma até o fim” 85 (AJZENBERG, 2002, p.59). Ao não querer ver nem falar, Queila relega o cônjuge ao silêncio. Mais uma vez, o protagonista é forçado a permanecer na exclusão em que se refugiara. A esposa fica abalada por um curto período com o término do relacionamento conjugal, todavia, rapidamente se recupera. Ajzenberg representa um fato bastante corriqueiro, já que perder o marido nunca foi o fim de tudo – “Maridos, mesmo na antiga Grécia, são temporários. Perdê-los é, sem dúvida, doloroso, mas tem cura” (BAUMAN, 2004, p.43) –, e Queila encontra no cunhado o consolo que necessita. Há um espaço social e afetivo vago que urge ser preenchido com quem se tem à disposição: “– Não tem ninguém em casa, Júlio. Pensei muito. Vem aqui. Não quero mais perder tempo. Eu sei o que você quer. Não sei se o que eu quero é a mesma coisa, mas pode ser parecido...” (AJZENBERG, 2002, p.74, grifos nossos). A fluidez dos laços é uma das marcas dos envolvimentos íntimos/sexuais modernos, afetados pela cultura consumista que estimula a escolha pelo produto pronto para o uso, que preza pela satisfação imediata e incentiva a busca pelo prazer instantâneo sem espera para saciar os desejos. A falta de diálogo na relação conjugal não é apenas um atributo dos relacionamentos de Enzo. Júlio destina à mulher, Mariza, um tratamento frio e desprovido de palavras, muito semelhante ao que mantém com o caçula. O professor, ao mesmo tempo em que constata o quanto seus conhecimentos eruditos e sua carreira acadêmica são vazios, acompanha seu casamento desmoronar. O “relacionamento amorfo” (AJZENBERG, 2002, p.95) entre o ele e a lojista (psicóloga de formação) parece ter sido edificado sobre o alicerce da indiferença. Júlio culpa a esposa, incapaz de se comover diante dos “miasmas de seus queixumes, emitidos todo dia ao espelho, ignorados por Mariza” (AJZENBERG, 2002, p.27-28). A afinidade de outrora, uma ponte que guiava a um reduto seguro, inapta para sobreviver às mesquinharias cotidianas, enfraquece ao longo da convivência de mais de vinte anos, convertendo-se em um individualismo compartilhado, o qual é sentido, de modo mais acentuado, nos instantes em que precisa de alguém para discutir assuntos sérios: Ousou inquirir Mariza a respeito, mas da mulher, julgava ele, só vinham frases pré-fabricadas, conceitos de jornal, televisão, motoristas de táxi. Não que Mariza fosse ignorante ou desinformada. Simplesmente, como ele próprio viria a descobrir mais tarde, também ela mantinha os seus interesses pessoais – e dialogar com o marido sobre um assunto distante como aquele não fazia parte deles. (AJZENBERG, 2002, p.25) Os universos de cada um são distantes e aproximá-los está fora de questão, os interesses pessoais demarcam as fronteiras que os separam. Bauman (2004, p.47) defende 86 que, em qualquer tipo de envolvimento afetivo, é impossível saber, “pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída”. No caso de Júlio e Mariza, viver juntos se configura como “um beco sem saída”. O casal, longe do filho, fica livre da representação dos papéis sociais e dos diálogos ocos, emitidos para preencher os vazios intersonoros, permitindo que as máscaras descolem dos rostos. Cada um aprisiona para si mesmo as palavras de desacordo, deixando o tédio permear o ambiente: “Sabiam do peso do silêncio, mas não se hostilizavam” (AJZENBERG, 2002, p.94). O silêncio mantido entre o casal mimetiza a corrosão do tempo, refletindo a insatisfação dos habitantes do mundo líquido, acostumados com a velocidade, com a transitoriedade que subestima os compromissos a longo prazo, devido ao caráter sólido e durável. O casamento do professor com a psicóloga, como a grande parcela das uniões íntimas contemporâneas, parece estar alicerçado sobre o que Sennett (1988, p.21) denomina de “lógica de um padrão peculiar de troca mercantil”. Quer dizer, as pessoas permanecem próximas enquanto é possível estabelecer uma revelação recíproca, até o momento em que se pode saber algo novo a respeito umas das outras. Contudo, chega o estágio em que o câmbio se esgota, a partir do instante em que o fluxo das revelações perde a força. Quando a vazão da “troca comercial chegou ao fim, quase sempre o relacionamento acaba. Esgota-se porque ‘não há mais nada a dizer’, cada um acaba aceitando o outro ‘como um fato dado’. O tédio é a consequência lógica da intimidade nessa relação de troca” (SENNETT, 1998, p.23-24). Da mesma forma, a incomunicabilidade que afasta Júlio e Mariza desnuda a precariedade dos laços afetivos, ninguém tem mais nada a acrescentar ao outro, o interesse desapareceu, as trocas são impossíveis. O manto de silêncio que se interpõe entre os cônjuges converte-se em uma “paz insossa” (AJZENBERG, 2002, p.94), não gerando mal-estar tampouco sofrimento. No entanto, as personagens o sentem como um “decreto obscuro que, cedo ou tarde daria forma a um ponto final” (AJZENBERG, 2002, p.94). Sem ter o que dizer um ao outro, o silêncio revela a falência da união conjugal. O relacionamento, como um produto que perdeu a validade, deteriora-se pouco a pouco através das agruras diárias: – Dedico essa bosta a você – respondeu Júlio. – O cheiro é um presente para você. Não é qualquer pessoa que tem o privilégio de conhecer o cheiro das minhas merdas. Mariza ficou quieta sob o chuveiro. – Pronto. Conseguiu estragar o meu banho – retrucou depois de desligar a água – Parabéns! 87 Júlio, sentado no vaso, folheava um jornal. Em vez de prestar atenção nos textos, porém, pensava que talvez tivesse se excedido. Embora fria e na sua opinião apostando no desgaste do casal, Mariza não merecia aquele tratamento. Ele exagerara no cinismo. A mulher se embrulhou no roupão e saiu do banheiro. Nada se disseram até o jantar. (AJZENBERG, 2002, p.95) A longa convivência entre Júlio e Mariza estilhaça até mesmo os momentos que deveriam ser de extrema privacidade, como tomar banho e fazer as necessidades fisiológicas. Essa circunstância é representativa do fato de que “As pessoas são tanto mais sociáveis quanto mais tiverem entre elas barreiras tangíveis, [...]. Aumentem o contato íntimo e diminuirão a sociabilidade” (SENNETT, 1988, p.325). Isto é, no dia a dia, as máscaras que se forjam em diferentes situações e os rituais de cortesia são as responsáveis por impedir que se conheça a verdadeira pessoa. Não obstante, na proporção em que os relacionamentos se tornam mais íntimos e próximos, as máscaras tendem a cair, desnudando as identidades e relegando a um segundo plano a mesura; como acontece com Júlio, que, por preguiça de procurar outro banheiro, força a esposa a sentir o “cheiro de suas merdas”. O eu exposto é uma ameaça ao outro, posto que “cada indivíduo é em certa medida uma câmara de horrores, as relações civilizadas entre os indivíduos só podem ter continuidade na medida em que os desagradáveis segredos do desejo, da cobiça ou inveja forem mantidos a sete chaves” (SENNETT, 1988, p.17). A intimidade, longe de gerar o respeito à privacidade, é o algoz que a aniquila, oferecendo terreno para que as raízes do silêncio se desenvolvam, uma vez que é a única expressão possível entre um casal que não tem mais nada para trocar, tampouco tem plateia (filho) para agradar. Compartilhar uma vida de mais de vinte anos é a chave que destranca a porta da câmara de horrores de Júlio, que, mesmo reconhecendo o exagero e o cinismo, fora incapaz de romper com o bloqueio da comunicação para proferir palavras arrependidas ou enunciar um pedido de desculpas. E mais um abalo sofre o casamento, em razão de que ele, além de expor a mulher ao cheiro de suas entranhas, também fora capaz de manter relações sexuais quase que à força com ela, enquanto pensava no corpo da cunhada. O casamento, até então civilizado, desmorona: Mariza mantinha distância, não escondia viver à beira da indiferença. Adormecia e despertava ao lado dele, mas era como se assistisse a um monólogo interpretado pelo marido, representação tediosa. Desde o episódio do sexo em Águas de São Pedro, após o qual Júlio teve a certeza de que a mulher lera seus pensamentos, tudo entre os dois só fazia piorar. Não fosse a presença de Paulo, na casa, a deterioração se exporia de modo ainda mais franqueado, restando ao casal apenas definir os termos e o cronograma de separação. (AJZENBERG, 2002, p.122) 88 A indiferença é o muro erguido por Mariza. É interessante chamarmos a atenção que, apesar de ter o seu momento de prazer (banho) arruinado e quase ser violentada41, ela não permite que a raiva exploda em palavras. Ao contrário, escolhe uma arma talvez mais astuciosa: o silêncio da revolta que encobre suas emoções. A comunicação, que entre o casal já não era satisfatória, torna-se inexistente, visto que a mulher assiste ao “monólogo” interpretado pelo marido. O aprisionamento das emoções pelo silêncio é um fenômeno do homem moderno, individualista e narcisista que, segundo Sennett (1988), procura somente sentir-se admirado, esforça-se para manter uma aparência intocável, sem que essa imagem tenha necessariamente relação com a realidade em que vive. O sujeito contemporâneo se apresenta em uma “tentativa cada vez maior de retrair de todo o contato com os outros, de se proteger pelo silêncio, até mesmo de parar de sentir a fim de não demonstrar sentimentos” (SENNETT, 1988, p.320). Através dos casais Enzo e Queila, Júlio e Mariza, a narrativa de Ajzenberg encena o complexo drama que afeta os relacionamentos íntimos, os quais, em um mundo marcado pela impetuosa “individualização”, não passam de “bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro” (BAUMAN, 2004, p.8). Cada indivíduo está voltado unicamente para sua própria subjetividade, as relações de troca esgotam-se com o correr dos dias, levando-os a se emparedarem na reclusão das palavras não ditas, dos desacordos nunca enunciados e dos desgostos sempre reprimidos. Aliás, esse é um traço recorrente na produção do escritor paulista: os casais que contracenam em seus romances42 são marcados pelo desencanto, vivem sob os véus da 41 “Surpresa com a abordagem do marido, afastou-se ostensivamente. Júlio insistiu. Mais excitado ainda, levava a imagem de Queila a se mover na cabeça. [...] Mariza ameaçou sair da cama, afastando-se, quase a ponto de cair no chão [...] acabou cedendo. De olhos fechados, deixou as pernas serem trançadas pelas pernas do marido. Curvou-se” (AJZENBERG, 2002, p.96). 42 Para sustentar nosso argumento, destacamos um exemplo de cada romance. Em Carreiras cortadas, Juliano, ainda que seja solteiro e tenha relações sexuais com diferentes mulheres, mantém um relacionamento há anos com uma jovem em especial, porém o sexo sacia somente o corpo, não abranda a alma: “Com Marlene o ritual não é de prospecção. Encontram-se sempre no apartamento dela [...] transam sem trocar palavras durante horas. Tomam banho. Ele se veste, dá um beijo de despedida e parte. Toda vez, também, Juliano mal deixa o edifício e já é absorvido por um turbilhão de insensatez provocado pela total insatisfação após seguidas rodadas de gozo” (AJZENBERG, 1989, p.27). Em Efeito suspensório, Líbero Serra e Michal vivem sob uma “atmosfera insuportável”, marcada pela “harmonia perversa” de uma “remissão individual”. Ambos são infiéis. Ele tem um caso com uma colega de trabalho, enquanto ela envolve-se com o sócio do marido. Os dejetos da cachorra, acumulados pela cozinha, são o símbolo do esfacelamento da relação  “quanto mais aumentava nossa convivência, maior era o tempo em que os excrementos de Tilde se acumulavam ressecados no chão” (AJZENBERG, 1993, p.75). Em Goldstein & Camargo, mesmo depois de compartilhar sete anos de vida conjugal, Rebeca é incapaz de compreender as mudanças de comportamento de seu marido, apenas desencantadamente lhe obedece: “Goldstein não admitia anticoncepcionais, explicou-me Rebeca, e ela, apesar de pensar diferentemente e ter outros planos, não teve forças para se impor, ou não quis se impor, ela mesmo não tinha certeza a respeito. [...]. Sentada na poltrona, Rebeca não parava de falar de suas desilusões [...] 89 discórdia, da precariedade, da frustração e da incompatibilidade; são personagens imersas em suas individualidades, incapazes de interagir de modo pleno. As uniões (e, por extensão, os relacionamentos entre pais e filhos) assemelham-se a vulcões na iminência de explodir. De acordo com o Programa Entrelinhas, na obra de Ajzenberg (2010), o mais próximo é justamente aquilo que é estranho e/ou está mais distante. O próprio escritor explica que isso se deve ao fato de essa ser a perspectiva pela qual ele encara os relacionamentos interpessoais, pois “sempre esta[mos] a beira de uma decepção, a linha que separa a sanidade da loucura não é tão clara, não é explícita. Às vezes se passa do limite e nem se percebe”. Enfim, se Enzo parte para o autoexílio, escolhe romper a comunicação com a família (exceto com o irmão); também é indiretamente forçado por Júlio e Queila a flanar pelo espaço, a cumprir a pena que escolheu. Tanto a esposa quanto o irmão, além de impossibilitar a sua volta, escolhem como castigo a ele a privação da palavra, recusando-lhe a comunicação. 2.4 A manutenção do silêncio: segredos enclausurados Enzo desvencilha-se da velha identidade e de seu ambiente familiar para assumir o lugar de Outro. Em uma espécie de jogo identitário, deixa a proteção de sua casa para se abrigar em albergues, espaços onde transitam “extraviados, foragidos, mendigos ou delinquentes – uma centena de pessoas, na maioria homens” (AJZENBERG, 2002, p.38). É nesse território, marcado pela precariedade – posto que revela tanto a condição de desamparo quanto o vazio de um futuro incerto dos que ali se refugiam, depósito impuro de sujeitos descartados pela sociedade, espaço onde os indivíduos excluídos do espetáculo social podem transitar –, onde o protagonista conhece Gisele, uma jovem dentista que prestava, nas manhãs de quinta-feira, serviço semivoluntário ao local. A imagem de um homem com o rosto barbeado, roupas perfumadas, apesar de simples, de andar altivo, chama a atenção da dentista, uma vez que destoa das outras evidentemente amava o meu sócio mas não sabia com exatidão quem ele era” (AJZENBERG, 1994, p.62). Em Olhos secos, depois de vinte anos de casamento, nada mais aproxima Leon e Estela: “Sexualmente, nada. Intimidade? Apenas daquele tipo referente às coisas menos importantes. Cumplicidade? Idem. Socialmente os interesses se desencontravam. Culturalmente, zero, ele se dizia. [...]. O que os mantinha juntos, então, se a filha, outro motivo possível, àquela altura já nem morava mais com eles? [...], Leon via Estela como uma especialista imbatível: uma capacidade impressionante de agredir em milésimos de segundo” (AJZENBERG, 2009, p.78-79). O afastamento é tão expressivo que ele mora em São Paulo e ela, em Buenos Aires, apesar de não ter sido oficializada a separação. Em Minha vida sem banho, os anos em que Flora Soihet e Wilson Waisman estiveram casados foram insuficientes para que um vínculo verdadeiro aproximasse o casal. A separação, na perspectiva da mulher, apenas materializa o distanciamento em que estavam inseridos: “– Seu pai nunca me mereceu, sabia? Nossa separação foi apenas formalizada porque, na verdade, nunca estivemos juntos, ele sempre foi um egocêntrico, só pensa nele...” (AJZENBERG, 2014, p.92). Queixas interessantes, já que Flora, durante todo o seu casamento, manteve um caso extraconjugal com o melhor amigo do marido. 90 “personagens desarticulad[a]s” (AJZENBERG, 2002, p.39) do abrigo temporário. Kristeva (1992, p.11), ao dissertar sobre a problemática do estrangeiro, lembra que a sedução emanada do desconhecido provém do “discernimento dos traços do estrangeiro, que nos cativa, ao mesmo tempo nos atrai e repele”. O albergado encena o jogo entre o Mesmo e o Outro, embaralhando pistas. O estrangeiro participa do grupo do Mesmo ao frequentar o abrigo, sem perder o charme da diferença de ser o Outro, em razão de que “Adentrara a saleta de cabeça erguida – quando todos traziam o incômodo no rosto. [...]. Exibia firmeza na voz” (AJZENBERG, 2002, p.39), reforçando o anseio de novidade na jovem, habituada à mesmice dos albergados. Por conseguinte, é a sua aparência de estrangeiro, daquele que traz no corpo os traços de não pertencimento ao lugar, a grande responsável por seduzir Gisele e fazê-la convidar o desempregado para morar junto, depois da terceira sessão ortodôntica. Se a união é rápida, a separação também o é. Representação dos tempos líquidos, em que os sujeitos, acostumados com a facilidade de se “desconectar” das pessoas, são incapazes de manter um relacionamento duradouro. As uniões se misturam e se condensam em laços momentâneos, flutuantes e volúveis, consumidos pela rapidez com que o desejo é saciado: “as pessoas vêm e vão, as oportunidades batem à porta e desaparecem novamente logo após serem convidados a entrar” (BAUMAN, 2004, p.41). Podemos defender que o silêncio desintegrador do casamento de Júlio e Mariza também é o elemento que põe fim à relação entre Enzo e Gisele, ainda que se materialize de forma diversa. Nesse novo relacionamento, os segredos são mantidos. O engenheiro desempregado não se revela nunca por vontade própria. Envolto em um “radical silêncio” (AJZENBERG, 2002, p.87), ele divide apenas o mesmo espaço físico do apartamento de Gisele; entretanto, o seu passado remoto e recente, as suas origens continuam abafadas. É como se, ao calar o passado, conseguisse fazê-lo desaparecer, comportamento motivado, talvez, pela ilusão da possibilidade de que “Se as coisas não são ditas, permanecem na sombra, não adquirem relevo e desaparecem sem deixar rastro” (LE BRETON, 1997, p.114). Com o passar dos dias, o silenciamento se expande a ponto de bloquear qualquer troca de palavra entre os namorados: “Havia duas semanas não se falavam. Sabiam que o silêncio é um bem e um direito. Nenhum confronto ocorrera para provocar a distância. Aconteceu. Horários e ausências e – Gisele sabia – a vontade dele não declarada” (AJZENBERG, 2002, p.85). A oclusão verbal, agora, não é fruto do desgaste, o tempo de convivência havia sido demasiado curto para que a aspereza e amargura germinassem. O silêncio, nessa circunstância, funciona como uma muralha que protege a privacidade de cada envolvido, 91 edificada naturalmente, sem motivações claras, o que traz como consequência a separação dos sujeitos. A dentista compreende que o gradual aumento do tempo de Enzo na rua, somado ao não preenchimento das gavetas vazias, só pode denotar o fim do relacionamento. A jovem fracassa na tentativa de ancoragem do namorado, pois a força transgressiva do engenheiro é mais forte que o envolvimento amoroso. A hospitalidade, explica Maffesoli (2004, p.24), às vezes, tem em vista o anseio de fixar, o que significa domesticar e dominar, e o protagonista não se deixa apreender por completo, conserva sua natureza errante de não “pode[r] se entregar a filosofias, a visões alentadoras, à emotividade de ligações duradouras, a moradas estáveis” (MALDONATO, 2004, p.31). Na busca por respostas ao mutismo do namorado, ela vasculha os pertences guardados na sacola de viagem, encontrando apenas “dois pares de meia e uma camiseta, um lápis com a ponta quebrada, uma esferográfica de plástico” (AJZENBERG, 2002, p.86). O despojamento é imprescindível para aqueles que se entregam às vagabundagens e seus afins, sendo sempre necessário “depojar-se do acúmulo de bens a fim de libertar-se dos entraves que poderiam dificultar sua errância” (PORTO, 2007, p.133). Assim, os parcos itens simbolizam a transitoriedade dessa personagem desenraizada, reflexo da fluidez do indivíduo que se desfez tanto dos vínculos, como também dos objetos materiais e está livre para perambular por onde quiser. Todavia, é em um fundo falso da bolsa que Gisele encontra muito mais do que poderia imaginar: um termo de rescisão de trabalho, documento que justifica como ele consegue sobreviver sem emprego; e duas cartas com conteúdos perturbadores, visto que esclarecem a situação civil, revelam a existência dos dois filhos e denunciam o comportamento desvirtuado de Jackson – irmão da dentista, adestrador de cães, supostamente um pedófilo. Enzo não tem coragem de manifestar cara a cara as suas inquietações, continua mestre em esconder, mesmo ciente de que “Guardar segredos dói” (AJZENBERG, 2002, p.13). Frente às palavras represadas, a escrita apresenta-se como a válvula de escape para suas emoções43, e é por meio de três cartas que os sentimentos transbordam. Para a personagem 43 Nos romances de Ajzenberg, é muito comum as personagens escreverem cartas, bilhetes e até mesmo diários, os quais, muitas vezes, funcionam como uma maneira de amenizar a solidão, como Leon, de Olhos secos, explica em seu diário de viagem: “Era uma maneira de não me sentir sozinho. Nada de sentimento de vítima, hein! [...]. À medida que me vi sozinho, procurei não quedar-me sozinho” (AJZENBERG, 2009, p.165). Já a personagem Ítalo, de Carreiras cortadas, escreve um diário para passar o tempo e contar histórias para seus descendentes: “Vou escrever alguma coisa. Assim passo o meu tempo quando a sapataria está sem movimento, como agora. Vou contar algumas coisas aqui. Vou também contar histórias. Meus netinhos, os descendentes vão ter aqui um livro para conhecer os antepassados” (AJZENBERG, 1989, p.64). Por sua vez, em Minha vida sem banho, os três narradores escrevem com objetivos mais ou menos próximos: Célio escreve “Em busca de algum entendimento e de uma espécie de libertação e pela exposição dos meus torpores, engolido pela necessidade de não repetir em minha vida as experiências malogradas daqueles dois Ws e de minha própria mãe” 92 que fugira das palavras, escolhera o abrigo da distância e do segredo, e fora relegado ao silêncio pelo irmão e pela esposa, a escrita é a forma encontrada para romper com o mutismo e dizer o que não se tem coragem de enunciar em voz alta. Agindo assim, de maneira semelhante à Fedra, que escreve a Hipólito tudo aquilo que não se atreve a falar: “Três vezes tentei conversar contigo, três vezes minha língua calou impotente, três vezes o som veio morrer em meus lábios. O pudor deve, dentro do possível, misturar-se ao amor. Aquilo que não ousei dizer, o Amor me ordenou escrever, e às ordens que o Amor dá é perigoso desobedecer” (OVÍDIO, 2003, p.66). A primeira carta, deixada aos cuidados de Júlio, é destinada a mulher. Quanto à construção composicional, o texto tem destinatário e endereço, bem como uma breve saudação inicial, “Oi, Queila” (AJZENBERG, 2002, p.75), e uma despedida final, “Te deixo por aqui, Queila.” (AJZENBERG, 2002, p.77); separada em dois parágrafos disformes, um curto (nove linhas) e outro longo (80 linhas). Quanto ao conteúdo, no primeiro parágrafo, Enzo narra sua decadência profissional: de engenheiro civil desempregado para lavador de pratos pelo período de uma semana. É interessante mencionarmos que, inicialmente, há certo tom afetuoso, já que se dirige à ex-companheira pela expressão “minha querida” (AJZENBERG, 2002, p.75). Contudo, o carinho cede espaço à exposição das farpas da convivência. Fica nítido, através dos questionamentos por ele realizados, que o tempo de vida em conjunto, por causa da intimidade entre o casal, gerara desconforto. Em seguida, expõe os dotes de Gisele e revela o novo envolvimento amoroso, realizando um contraponto entre o sentimento de afeição pela dentista e o sentimento de rejeição pela assessora de imprensa, o que se nota ao caracterizá-la como uma placa bacteriana44. Descreve ainda Jackson e seu quarto, anuncia as febres inexplicáveis que afetam seu corpo e menciona o suicídio de Cecília. Nessa estrutura assimétrica junto com o conteúdo jogado, como um fluxo de consciência, transparece a instabilidade emocional que acomete o sujeito enunciador. Já a segunda e a terceira cartas, estruturalmente, carecem de endereços e de destinatários – no entanto, os receptores seriam Celinha e Júlio, respectivamente –, de saudações e de desenvolvimento (ambas são escritas em um só parágrafo). Considerando as ausências composicionais, aparentemente, esses textos foram escritos sem a intenção de serem entregues, configurando apenas um registro descompromissado da rotina. Desse modo, (AJZENBERG, 2014, p.188); Marcos escreve com a intenção de entender-se melhor - “Preciso falar de mim para mim mesmo” (AJZENBERG, 2014, p.17) - e assim aliviar o peso do que foi até o momento silenciado, pois explica que “ao escrever aqui [diário], agora, percebo o quanto isso me faz bem” (AJZENBERG, 2014, p.49). Por fim, Débora utiliza a escrita como forma de extravasar os sentimentos contraditórios que lhe afetam a alma. 44 “Você [Queila] era um pouco isso, uma placa, quer dizer, de longe, de fora, parecia apenas feia e inocente. De perto, porém, eram bactérias que formavam a sua mente” (AJZENBERG, 2002, p.77). 93 podemos afirmar que a escrita se torna mais um exercício de autoterapia, uma forma de busca de alívio, na qual as emoções derramam o mal-estar, revelam o desconforto, denunciam a angústia aprisionada pelo silêncio a que se autoimpôs a partir da escolha pela errância. Na carta para a filha, Enzo registra que comprou de presente para a menina uma placa de prata com símbolos judaicos, uma vez que estes o fizeram lembrar-se de Cecília. Em seguida, o emissário resgata uma criatura incômoda de sua infância, o cão Rabinho, que o fazia sentir-se mal em razão da indiferença para com o dono. A lembrança do cachorro com toda sua carga negativa, de modo inconsciente, desvela que até mesmo o animal de estimação da família o rejeitara. Imediatamente, o movimento da escrita retorna à relação com a filha, e as palavras do protagonista demonstram a tentativa pretérita de estabelecer um vínculo afetivo: Celinha, quando você era pequenina, de berço, eu às vezes acordava no meio da noite só para ir até o teu quarto. Precisava ver o teu sorriso [...]. Precisava sentir o quanto você confiava em mim cegamente, a quantidade de amor que estava depositada nas suas mãozinhas também gordotas. Fazia questão de trocar as tuas fraldas pelo menos uma vez por dia. Porque o tempo voa, sabia? [...]. E eu não podia perder, deixar aquilo passar. [...]. Eu sabia, Celinha, que aqueles teus olhinhos eram cada dia mais diferentes e que um dia, talvez daqui a alguns anos, ficarão mais diferentes. Ficarão porque você vai crescer, [...] vai mudar teus olhos como o papai mudou os dele, como a mamãe, como o Lúcio também mudou, sabia? Teus olhos, Celinha, vão continuar muito bonitos, mas eles não vão deixar nenhuma pessoa perceber isso. Terá que ser uma pessoa especial. Muitas vezes eles vão se esconder, vão parecer feios, até. (AJZENBERG, 2002, p.88) Note-se que a tentativa paterna de erigir uma ponte para com a filha é realizada quando Celinha era bebê, quando ainda existia uma relação de dependência biológica. O pai demonstra ter clareza de que os laços são frágeis à passagem temporal, que as pessoas não ficam iguais para sempre, que as identidades se transformam. Vivemos em “tempos fluídos”, para utilizar a expressão de Bauman (2000), as identidades não são mais fixas nem estáveis, a oferta do dia é tornar-se quem você deseja ser. Assim, a alteração do eu é metaforizada na imagem dos olhos, que, muitas vezes, é “utilizad[a] como símbolo do conjunto das percepções exteriores, e não apenas da visão” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.654). Para Enzo, os olhos mudam. Embora belos, forjam uma feiura que podemos conceber como proteção do indivíduo, um limite entre o eu e o Outro, uma forma de impedir que a intimidade se estabeleça e de provocar a deterioração das pontes construídas. O emissor termina a carta com um enunciado completamente desconectado: “Por favor, aí é do curso do Abraão, aquele que dá curso de pão?” (AJZENBERG, 2002, p.88). Por sua vez, será o conteúdo da terceira carta, na perspectiva da personagem Gisele, o mais perturbador, e, por isso, causará desconfiança da namorada acerca da sanidade mental do 94 protagonista. Nas primeiras linhas, Enzo preocupa-se em contar ao irmão que a ex-esposa queria obrigá-lo a fazer vasectomia, espécie de garantia de que não amaria nenhuma outra mulher. Nesse momento, o amor recalcado aflora novamente no discurso, mais uma vez o enunciador elabora sua relação com Cecília, fazendo um contraponto com Queila. Depois, o foco recai sobre o comportamento sexual do adestrador de cães. A sua presença imponente e ameaçadora, junto com o anseio de controlar e de tornar o outro obediente são os fatores que intimidam e coagem o desempregado. O emissor escreve que, certa noite, flagrara Jackson se masturbando enquanto segurava uma foto da irmã, quando criança; não obstante, o mais aterrador foi, ao invadir o quarto do outro, encontrar, em uma das gavetas, uma caixa com fotos, “todas de rapazes, adolescentes, todos nus e excitados, de pau duro, para te deixar claro. [...]. E havia também de meninas, muitas. Nuas. [...]. Se fossem paus de cachorro, eu ainda não me surpreenderia tanto!” (AJZENBERG, 2002, p.91). Julgando que o rapaz fosse pedófilo, Enzo tenta, em meio a todos os retratos, identificar Lúcio ou Celinha, sem obter êxito em sua busca, uma vez que grande parte das imagens era somente de genitálias. A carta é concluída com o desabafo sobre seu estado físico e psíquico: “Estou exausto, irmão...” (AJZENBERG, 2002, p.92). O gênero discursivo45 carta pessoal é um substituto do diálogo, configurando-se como uma forma de interação social quando lida e respondida: um eu escreve para um tu com o objetivo duplo de transmitir mensagens e obter respostas. Nesta narrativa, as cartas, por não serem entregues a seus destinatários, não cumprem de modo satisfatório tal interação. A primeira, escrita à mulher, é lida e retida por Júlio; enquanto a segunda e a terceira são encontradas e lidas por Gisele, que também não as entrega a ninguém46. Desse modo, apesar de Enzo almejar estabelecer o contato com o Outro, forças exteriores impedem que o diálogo 45 Gênero discursivo é aqui compreendido segundo a conceituação de Mikhail Bakhtin (2000, p. 279), para quem a linguagem é um fenômeno social, histórico e ideológico. Nesse sentido, o autor define os gêneros do discurso como formas estáveis de enunciados elaborados de acordo com as condições específicas de cada campo da comunicação verbal. Essa definição remete à situação sócio-histórica de interação que envolve o tempo, o espaço, os participantes, a finalidade discursiva e o suporte. Os gêneros discursivos são, portanto, vários modelos de enunciados em particular, os quais circulam socialmente, tornando possível a existência da fala e da escrita, uma vez que não haveria como produzir um novo enunciado a cada momento, sem haver qualquer referência a isso. Esses são constituídos por três elementos principais, a saber: “conteúdo temático, estilo e construção composicional” (BAKHTIN, 2000, p. 279). 46 A problemática de cartas não entregues e lidas por outras pessoas que não os destinatários já havia sido trabalhada por Ajzenberg em seu terceiro romance, em que Márcio escreve para Pasquali, porém, como as cartas permanecem arquivadas no computador do emissário, quem as lê é o seu sócio Paulo Viena Camargo. Este as intitula de “cartas apócrifas” (AJZENBERG, 1994, p.133) por não terem sido impressas, nem enviadas, e por apresentarem a versão de Márcio, que muitas vezes destoa da “realidade” expressa por outras personagens. Já no último romance, Minha vida sem banho, essa questão retorna sob nova forma. As cartas e os registros do narrador Marcos Wiesen, com frequência, são destinados a Flora, do mesmo modo que o e-mail por ele escrito; entretanto todas são encaminhadas pelas mãos do próprio remetente para Célio, em virtude deste, supostamente, ser seu filho. 95 seja construído. Assim, seus textos não passam de monólogos silenciados por interesses particulares: Júlio teme que seu caso extraconjugal seja abalado; Gisele, descrente das revelações sobre o irmão, prefere acreditar que o namorado esteja louco. É como se a dentista estivesse escolhendo banir as palavras do companheiro para a categoria do silêncio expressa por Orlandi (1995, p.53) como “esse caso não existe”. Michel Foucault (2008, p.12) explica que, nos procedimentos de controle, seleção, organização e redistribuição dos discursos, há uma disparidade entre razão e loucura que rejeita a expressão verbal do louco47. Até o século XVIII, a palavra do louco – justamente por não dizer o esperado – não era ouvida, sua voz inefável era sufocada; a partir da modernidade, sua palavra começou a circular, todavia ainda não está plenamente incluída, tendo em vista que sempre há elementos ligados com o desejo e o poder que controlam o discurso. Enzo não enuncia o que é esperado que ele pronunciasse sobre Jackson, ao contrário, expõe a face desvirtuada do adestrador, da mesma forma que, nas outras cartas, quase sempre escreve o que não se deseja ouvir: a rejeição, a precariedade dos relacionamentos, os desacordos com a forma do corpo físico dos outros (da mulher, em especial). Por isso, é taxado de louco por diferentes personagens: Gisele: – [...]. Pois bem, seu Júlio, para ir direto ao ponto: quem está louco, de verdade, é o seu irmão. (AJZENBERG, 2002, p.99) – Ele está fora de controle mental. [...]. Gosto dele, pode acreditar. Gostei dele desde o primeiro dia, no albergue. Mas agora está estranho. Preciso de ajuda, uma orientação. Não sei se é verdade o que ele escreve. (AJZENBERG, 2002, p.100) Jackson: – Anda dizendo um monte de asneiras, o idiota do seu irmão. Ele está pirado, professor. E eu não vou deixar que ele complique a minha vida nem a da minha irmã. (AJZENBERG, 2002, p.105) Júlio: Talvez o adestrador de cães estivesse certo. Tudo o que Enzo dizia, desde o seu desaparecimento, eram mentiras, fantasias. Inventara coisas sobre Gisele, sobre todos, sobre Lúcio, sobre a pedofilia, sobre a agressividade de Jackson. O lugar mais adequado para ele, como aventara o irmão de Gisele, não seria mesmo uma clínica psiquiátrica? (AJZENBERG, 2002, p.128) 47 O louco, noção recente na história da humanidade, é aquele cujo discurso é impedido de circular como os outros, já que, “mesmo que o papel do médico não fosse senão prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na manutenção da censura que a escuta se exerce. Escuta de um discurso que é investido pelo desejo, e que se crê carregado de terríveis poderes. Se é necessário o silêncio da razão para curar os monstros, basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece” (FOUCAULT, 2008, p.13). 96 As palavras do louco são perigosas, logo é fundamental que se controle esse discurso, que sua circulação seja interditada. Nesse ponto, o narrador nos expõe uma variedade de jogo de poder, mais precisamente a lógica do “silêncio local”, desenvolvida por Orlandi (1995, p.76), que consiste em uma manifestação producente do silêncio sob a forma mais frágil do sistema, ou seja, a censura. Na narrativa em questão, os elementos opressores/dominantes (Júlio e Gisele) interditam a voz presente nas cartas, sufocam-na, calam-na, cerceiam sua circulação. A propósito, é o jogo de omissão que determina o movimento das personagens que nada querem decidir, ou melhor, por não quererem ter seus interesses comprometidos, permanecem em compasso de espera. O protagonista é censurado em razão de estar sempre evidenciando o que precisa ficar reprimido, preso na garganta durante anos, meses ou dias, devido às regras de conduta ou à falsa polidez cotidiana. Na tentativa de compreender esse silenciamento que leva à escrita, lembremos das palavras de Edmond Jabès (1990, p.57): “Hacer un libro podría significar cambiar el vacío de escribir por escribir el vacío”. Para Enzo, em analogia, escrever as cartas pode significar trocar o silêncio de escrever por escrever o silêncio. A palavra escrita do emissário é o reflexo de seu vazio, uma forma de tornar mais suportável o castigo do exílio. Provavelmente, o protagonista escreva pelo motivo de estar carente48, atirado ao abandono, sentindo a necessidade de exibir a dimensão de sua precariedade, para assim, talvez, tornar-se o centro das atenções e, quem sabe, ter de volta alguma proteção perdida. É possível que o conteúdo das cartas seja duvidoso, em razão de ter passado pelo filtro deformador das emoções. Verdade ou pura imaginação? Ambas as coisas. Ele sai dos limites de sua rotina para descobrir a alteridade, posto que os deslocamentos favorecem o prazer pela vagabundagem, ao mesmo tempo em que “propiciam a capacidade fabulativa não só por instalarem um 48 No romance Goldstein & Camargo, a personagem Paulo Viena Camargo acaba realizando uma verdadeira teorização sobre a “mania milenar de escrever” (AJZENBERG, 1994, p.12), ao buscar compreender a capacidade criativa de seu sócio, Márcio, e a dissonância entre o que se julga verdade (versão dos outros sobre Márcio) e o que se concebe como ficção (versão de Márcio segundo ele mesmo) expressa nas “cartas apócrifas”: “Recurso para dialogar consigo mesmo, vá lá! Mas é tão radical como infalível o mecanismo deformador em ação nos segundos vividos entre o que se pensa e o ato de transportá-lo para o papel? Qual verdade, aquém da interpretação, se pode encontrar nesses milhões de linhas, redigidas sob efeito de um humor momentâneo em quartos desarrumados, por vezes malcheirosos, ou sobre mesas de bar cheias de gordura, tão ou mais desarrumadas que os próprios quartos? Não posso deixar de ver nisso, uma espécie de exibicionismo mal disfarçado, uma vontade de ver o conteúdo desses cadernos localizado por outros para que esses, encontrando ali os sofrimentos e a eventual banalidade de quem neles redigiu, busquem fazer com que este se sinta mais protegido. Escreve-se, enfim, porque se tem muita carência, essa é a verdade. E a julgar pela quantidade de diários íntimos espalhados pelo mundo – crescente na mesma proporção que diminui o número de vozes nos confessionários, a carência é infinita... tão infinita que, também com Goldstein aprendi a concluir assim, para expor-se, acabará por invadir – e isso já começou – as próprias novas tecnologias” (AJZENBERG, 1994, p.12). Muito provavelmente, Enzo cumpre com essa lógica defendida pela personagem Paulo Viena Camargo. 97 distanciamento crítico entre o que vê e o que é visto, como também por estarem vinculados a novas experiências” (PORTO, 2010, p.75). Enzo não pertence ao universo privado do qual fazem parte Gisele e o irmão, o que lhe permite avaliar negativamente o comportamento de Jackson, da mesma maneira que rompeu com os antigos vínculos e agora, graças ao afastamento físico e emocional, pode discorrer sobre seu passado de modo crítico. Solidão ou insanidade? Pouco importa, o certo é que, se o bilhete de despedida é sucinto, reflexo de uma personagem que se desnudava da velha identidade, abandonando o eu cansado da frustrada vida cotidiana para assumir o posto do Outro calado e errante, as cartas, em contrapartida, são relativamente longas, desabafos ininterruptos desse novo ser que vestiu a roupagem do silêncio, contudo não se ajustou a ela como esperado. Mudança identitária evidenciada pelo próprio irmão: “Escrever nunca fora o seu forte, engenheiro, habituado a cálculos e desenhos. Em seu exílio, porém, aquela era a única forma de expressão disponível” (AJZENBERG, 2002, p.74). Se Gisele é incapaz de cruzar as muralhas do silêncio em que Enzo se enclausura, tampouco Lúcio obtém êxito na tentativa de fazer o pai livrar-se dos véus nebulosos do não dito. Na rua, entre as andanças incertas, uma das ocupações do desempregado, durante o seu autoexílio, fora seguir a distância o filho. No entanto, bisbilhotar caladamente os familiares se transforma em uma atividade paradoxal, uma vez que, se, de um lado, traz alento à solidão, por outro lado, intensifica esse sentimento, forçando-o a conviver com os segredos descobertos, nem sempre agradáveis. Conforme Le Breton (1997, p.116-117), “todo o indivíduo tem uma zona de sombras. Mas há um consenso sobre o facto de que apenas ele está habilitado a decidir aquilo que quer tornar público a seu respeito”, por isso se estabelece uma linha divisória entre o que se pode mostrar e o que se deve esconder. Ao seguir o filho, o protagonista rompe com essa linha imaginária e o que acredita ter descoberto o atordoa profundamente. Certa noite, ao vigiar Lúcio durante a saída da faculdade, é surpreendido ao testemunhar uma movimentação que, para ele, jamais seria previsível: o universitário encontra-se na rua com outro rapaz e dirigem-se juntos para um hotel barato. Quando saem, Enzo segue o acompanhante do filho, interpela-o e marca uma conversa. O encontro com o suposto garoto de programa Wellington desestabiliza o pai, que, primeiro, tenta interrogar o jovem sobre o envolvimento com o filho; em seguida, suplica por qualquer informação; por fim, sem obter nenhuma resposta elucidativa, acaba chorando. O desempregado perde o controle de sua aflição e foge “da choperia sem dar chance ao rapaz, como se encará-lo depois de se declarar pai de Lúcio fosse assumir a si próprio, Enzo, como o filho desnorteado” 98 (AJZENBERG, 2002, p.35). Acovardado, o engenheiro permanece em silêncio. Desconfiar que o filho seja homossexual e saber do seu sofrimento é um martírio tão grande que chega a cogitar a ideia de conversar com Queila. Não obstante, sair das malhas do aprisionamento das palavras, posição que ocupa relativamente de modo confortável, significa pôr fim à liberdade, configurada na fuga. Se, nas sessões de espionagem, Enzo não se revela ao filho, quando Lúcio o encontra e com ele trava contato, as barreiras do mutismo não são totalmente transpostas. Após meses de procuras vãs, o universitário defronta-se com o pai. Porém, o reencontro é desprovido do brilho imaginado, porque o desgaste físico corroera a aparência do progenitor: “os cabelos desgrenhados, a barba por fazer, o olhar perdido” (AJZENBERG, 2002, p.110); “Não tinha a aparência escancarada de um doido, certamente não, um desgraçado abandonado ao léu, na certa não, mas para Lúcio, pouco se distanciava disso” (AJZENBERG, 2002, p.111). Essa descrição revela mais uma movência do protagonista, de errante para vagabundo, em virtude deste ser “desapegado de seu corpo e o utiliza[r] como campo de batalha para suas desavenças com a sociedade” (SCHOLLES, 2007, p.660). Percebe-se que a personagem já não conserva mais as características que chamaram a atenção de Gisele: o olhar altivo, o corpo perfumado e o rosto barbeado; ao contrário, o exílio interior, que afetou antes sua subjetividade, agora deixa marcas impressas em seu corpo: emagrecera consideravelmente, estava descabelado, suado. Embora não se parecesse com um “doido”, agiu como tal. Mesmo abatido, o pai bombardeia o filho, expondo uma série de frustrações até então represadas: fala do complexo de rejeição de que fora vítima pelo seu progenitor, para quem os carros eram mais importantes que os filhos; expõe o fracasso da gaiola de Faraday que tentou fazer para proteger a família; conta sobre o desespero frente ao suicídio de Cecília; atordoa o jovem com um interrogatório que lhe parece sem sentido: – Qual é a relação entre a mãe e o teu tio? – Como assim? – Vou perguntar só mais uma vez, Lúcio: qual é a relação entre a mãe e o teu tio? – Bom, não sei, pai... – Não sabe... – Não sei... são cunhados, ora... – Não sabe... – Não sei, pai. Nesse momento, Enzo deixou as lágrimas correrem pelo rosto. (AJZENBERG, 2002, p.118) 99 O questionamento insistente do engenheiro é incompreensível para o garoto, haja vista que nada é indagado de modo claro, o que ele deseja saber prevalece no âmbito do não dito. Aparentemente, Enzo ambiciona ser entendido sem ter que incorrer na responsabilidade de dizer. Dessa forma, o protagonista faz uso do implícito, que se afasta do silêncio, pois, neste recurso argumentativo, sente a necessidade de dizer as coisas de modo que pareça não terem sido ditas, havendo uma dependência “com o dizer para significar”, e pode-se sempre renunciar à responsabilidade do que foi entendido (ORLANDI, 1995, p.67). A insistência na pergunta sugere que o desertor sabe sobre o envolvimento sexual entre Queila e Júlio, e, mais uma vez, as emoções extravasam diante das palavras impronunciadas. Entretanto, a tentativa de solidariedade do filho para com o pai é frustrada, em virtude de a possibilidade de refazer os laços ser inexiste frente aos tapumes que escondem a verdade e protegem as personagens. Em meio à discussão, Enzo cobra respostas para as dúvidas que não enuncia, insinua ter conhecimento das verdades escondidas, mantém em aberto as suspeitas, conserva a interrogação de forma implícita: – Sei, sei. Você não está sozinho. Você tem obrigações... – Não sou só eu que deve ser cobrado. É o mundo inteiro. Sua mãe também. E você também me deve algumas verdades. Você pensa que eu sou idiota... – Do que você está falando? – Você sabe do que eu estou falando. Você sabe das verdades que nunca me trouxe, ora, claro que sabe. Você não tem o direito de ficar bancando o cínico, Lúcio. Não tem... [...] – Não sei do que você está falando. Além disso, o assunto é você pai. Quem sumiu de repente foi você. Quem está bancando o louco é você... Você vive de fantasias... (AJZENBERG, 2002, p.119) Enzo desafia a intratabilidade das perguntas e a indigência das palavras, é incapaz de ultrapassar a fronteira da impotência do dizer, assumindo, dessa maneira, sua derrota. Nenhum dos dois cede para revelar-se por inteiro, enclausurados que estão em seus segredos. No jogo de cobranças, as acusações ficam encobertas, da mesma forma que as respostas se mantêm aprisionadas. Durante a discussão, a comunicação falha e a despedida só ocorre mediante a garantia de que o silêncio será preservado: “– Tudo fica entre nós – pede Enzo. – Ninguém deve saber que você me viu, Lúcio. É a única coisa que te peço, eu suplico” (AJZENBERG, 2002, p.120). A fuga, o anseio pela liberdade, o refúgio no silêncio apresentam-se como solução somente no início da aventura errante, quando Enzo ainda estava seduzido pelo desejo de vagar, maravilhado pelo anseio de ser, apropriando-se das palavras de Maffesoli (2004, p.34), uma “piedra rodante”. Sem destino certo, o protagonista deixa nítido que a liberdade 100 conquistada, através da fuga de casa e do asilo no silêncio, é uma conquista que pretende manter intacta: ‘E prezo acima de tudo o meu direito de ir e vir, garantido pela nossa egrégia corte de preceitos constitucionais, como você sabe. Já penso em obter um habeas corpus preventivo, aliás. Porque sei que vocês são loucos, capazes de tudo [...]. Sei da vulnerabilidade que a rua cria, Júlio. Da distração que a liberdade gera, como se não nos aceitasse integralmente a não ser após inúmeras provas, batismos de fogo, como se diz. [...]. Quero ter salvo-conduto para circular ou permanecer em paz nas ruas, nas praças, na via pública, como se diz, sempre que possível aqui mesmo em São Paulo – se não, não faz sentido ao menos por enquanto –, fazer o que bem entender em praça pública, dormir, correr, seguir uma mulher por quilômetros até, seguir um homem de calças manchadas e sapatos brilhantes cujo destino será um edifício sinistro. Vomitar’. (AJZENBERG, 2002, p.55) Todavia, parece que a vulnerabilidade é mais forte que o desempregado. Temos a sensação de que na rua ele também continua deslocado. O silêncio, e a consequente liberdade, longe de trazer o alento necessário e ser a saída tranquila para os seus problemas, desencadeia, além da distração, sentimentos de desorientação, tristeza, medo, insanidade. O narrador oferece pistas de que, mesmo longe do espaço disfórico da casa, o engenheiro civil é perseguido pelo mal-estar que lhe afeta o corpo (em forma das febres constantes, tremores, vômitos) e o espírito, já que é somente quando Enzo se deitou na cadeira da dentista (no albergue) que “Pela primeira vez sentia-se à vontade desde que atirara as chaves por cima do muro do terreno baldio” (AJZENBERG, 2002, p.39). A liberdade em excesso do estrangeiro que se desfaz de todos os laços produz o efeito contrário, conforme Kristeva (1994, p.19-20): o absoluto de estar “‘completamente livre’ [...] chama-se solidão. Sem utilidade ou sem limite, ela é o tédio ou a disponibilidade supremos. Sem os outros, a solidão livre, [...] destrói os músculos, os ossos e o sangue”. Em perspectiva semelhante, Queiroz (1998, p.57) expõe que o exílio, propulsor da perda e do desarraigamento, vincula-se intimamente aos males da ausência, dos quais o mais recorrente nos escritos dos exilados é a solidão, concebida como o sentimento mais devastador. Enzo acaba sofrendo do mal que ele próprio foi em busca. A falta de ter com quem conversar e o drama de estar sozinho, muito provavelmente, são as razões que desestruturam a personagem, que, atordoada, liga para o irmão a fim de confessar que “O período de sumiço alegre, parece, [que] terminou” (AJZENBERG, 2002, p.124). 101 A solidão do desterro, conforme Queiroz (1998, p.35), é a responsável por gerar outro grande mal: a dor do desejo de retornar para a casa49. Cremos que é esse sentimento que arrebata Enzo no final da narrativa, haja vista que, no último capítulo, de modo muito nebuloso, ele volta a casa: Quando voltou – nada nas mãos, um rasgo na calça e outro na camiseta verde –, a porta estranhamente aberta, à espera dele. E não havia ninguém na casa. Ansioso, um tanto zonzo, descabelado, viu apenas que o aguardava – feito fantasma listrado, suspenso na escadaria – o pijama empapado de suor, o mesmo pijama de sempre. Sentiu vontade de alcançá-lo. Sabia que seu corpo se encaixaria perfeitamente nele e que depois iria descansar. (AJZENBERG, 2002, p.129) A forma romanesca de A gaiola de Faraday é tramada de modo circular, uma vez que o capítulo inicial narra o “ritual” de fuga do protagonista, enquanto o final representa seu retorno. Contudo, o regresso é profundamente perturbador e enigmático, o narrador não deixa claro o que realmente acontece com o engenheiro, se este regressa fisicamente à sua casa ou se tudo não passa de um delírio. Seja alucinação, seja retorno real, chamamos a atenção para a estruturação do contraponto entre partida e chegada: Enzo sai de casa com o corpo limpo e com uma sacola de viagem, a garoa que refrescava o ar e tocava o rosto da personagem sugere, pela sua simbologia, que a fuga alcançaria um mínimo de realização/sucesso, visto que “É um fato evidente o de que ela [a chuva] é o agente fecundador do solo, o qual obtém a fertilidade dela” (CHEVALIER GUEERBRANT, 2009, p.235). Nesse momento, a casa está cheia, ainda que a mulher e os filhos estejam dormindo, o fugitivo tem de quem se despedir, mesmo que não faça isso de modo convencional (anunciando sua partida, dando abraços e deixando palavras de conforto a quem fica). Já o regresso é marcado pelo despojamento e pela precariedade. O brilho preanunciado no momento em que o desertor cruza pela porta de entrada pouco depois perde o vigor. Enzo nada traz nas mãos, o que acumulou foram os rasgos na roupa, o cabelo desgrenhado e o cansaço, sinais do abandono em que esteve imerso. Dalcastagnè (2012, p.129) expõe que, em virtude de o espaço ser constitutivo da personagem de ficção contemporânea, pode-se ler “nas marcas de seu corpo seus deslocamentos. É em seu corpo, afinal, que se inscrevem os lugares 49 A pesquisadora Queiroz (1998, p. 35) recorre ao estudo do médico francês Johannes Hoffer para exemplificar esse mal causado pelo exílio. Hoffer, em 1688, diagnosticou que todos os rapazes suíços que precisavam deixar a sua aldeia para estudar ou para submeter-se a tratamentos médicos eram abatidos por uma tristeza avassaladora; no entanto, quando regressavam às suas respectivas casas, ficavam, como se milagrosamente, curados. Assim, Hoffer denominou a doença como “‘mal do exílio’: a dor de querer voltar para casa” (Queiroz, 1998, p.35). Depois de algum tempo, descobriu-se que essa “doença” não era própria dos Alpes, nem típica da Suíça, pois se apresentava em todas as partes do mundo com homens e mulheres que necessitavam deixar seus lares. 102 por onde andou, e aqueles que lhe são reservados”. O protagonista deslocou-se de uma posição definida, atirando-se ao lugar ocupado por aqueles que perambulam anônimos nas grandes metrópoles. Seu corpo denuncia as ruas, os albergues por onde circulou, impossibilitado o retorno à casa que não é mais capaz de abrigá-lo. O herói decadente, ou melhor, o “não-herói” – para usar a categorização de Carneiro (2005, p.309) – que abandonou a casa, agora se vê abandonado, esquecido, porque ninguém o aguarda e nem há plateia para saudá-lo. Todavia, estranhamente, o que o espera é o “pijama empapado de suor”, justamente aquele do qual se “desfizera” e que agora sente vontade de vestir novamente. A imagem onírica de uma casa vazia com um “pijama pendurado no ar” (AJZENBERG, 2002, p.129), junto com o anseio de usá-lo de novo, representa, em nível metafórico, o desejo de retorno da personagem à antiga identidade, de despir-se do Outro em que se convertera para apropriar-se do eu renegado. Em contrapartida, esse processo de reapropriação do eu perdido já não é mais possível, em razão de que o indivíduo “que parte não é nunca o mesmo: na travessia há perdas, reterritorializações e transfigurações. O caminho do meio é a terceira margem que consiste justamente no procedimento de deslocamento” (CAPAVERDE, 2007, p.252). Depois de meses de errância, sua identidade se dissolveu, não pode mais ocupar o posto de pai, esposo e engenheiro, tampouco parece querer continuar como errante. Enzo navega entre esses dois mares. E o pior é que, concomitantemente, não pode alcançar o pijama suspenso no ar e é impedido de continuar a entrar na casa, dado que uma voz masculina lhe anuncia: “– Sinto muito, senhor, mas, visitas, só com o corretor” (AJZENBERG, 2002, p.129). A casa estaria à venda? Talvez seja possível acreditar que a casa estivesse à venda e que alguma pessoa realizasse a sua manutenção exatamente na hora em que Enzo decidiu regressar. Entretanto, não podemos esquecer que “a porta [estava] estranhamente aberta, à espera dele”. Essa imagem insinua uma armadilha, o pássaro fugitivo é atraído para seu antigo ninho para ser preso em uma gaiola: A voz, dessa vez mais enérgica, repetiu as palavras de antes – ‘sinto muito, senhor...’ –, e ele mais uma vez notou que ela não estava sozinha. Esta casa é minha, pensou em dizer. Uma luz girava sobre um carro cuja cor não lhe parecia definida. De repente viu se agigantarem três ou quatro homens de uniformes imprecisos. Logo já não tinha dúvidas de que caminhavam, arfantes e sóbrios, em direção a ele, com objetos nas mãos. (AJZENBERG, 2002, p.129) 103 Policiais? Por quais motivos o protagonista seria preso pela polícia? Quais seriam as acusações que justificariam seu encarceramento? Abandono do lar, vagabundagem ou invasão de propriedade privada? Esse argumento é insustentável; não obstante, se tomarmos por base os julgamentos de Jackson, Gisele e Júlio que creem na insanidade mental de Enzo, é perfeitamente aceitável conceber que o carro com sinalizador rotativo giroflex é uma ambulância. E os homens de uniformes imprecisos são enfermeiros que o internarão em uma clínica psiquiátrica; assim, os objetos indefinidos podem ser tanto a camisa de força quanto os aparelhos de choque. Raciocínio pertinente, até porque essa foi uma ideia do irmão, arquitetada como a melhor solução para afastar o caçula: excluí-lo em definitivo dos olhos familiares para que todos tivessem paz, ou seja, a internação apresenta-se como o meio mais eficaz de silenciá-lo, tendo em vista que o discurso de um desequilibrado mental é desprovido de valor ou tem pouca credibilidade. Desse modo, o retorno a casa consolida duplamente a manutenção do silêncio. Se, por um lado, o protagonista será calado ao ser internado, por outro, ele não ousou transpor a muralha do emudecimento que o protegia: apesar de ter pensado em dizer que a casa lhe pertencia, nada falou. O regresso ao lar não traz a Enzo a paz almejada, tampouco o liberta da gaiola da incomunicabilidade, em que tanto se refugiara quando fora obrigado a permanecer. Trata-se de uma personagem estilhaçada entre dois mundos, de uma identidade aniquilada que não encontra seu lugar, muito menos consegue enunciar seu desajuste. Uma vez desprendido, jamais poderá prender-se novamente. Nem em sua residência, nem na rua o alento necessário é alcançado, pois o acolhimento lhe é sempre negado. O protagonista encontra-se à beira de um precipício, diante de amarguras passadas e carente de esperanças futuras. O discurso romanesco de Ajzenberg representa, por meio desse engenheiro errante e introspectivo, o drama do homem contemporâneo que vive desabrigado. A porção de terra embaixo de seus pés, assevera Ouellet (2015, p.148), é o único território capaz de alojar esse sujeito signo da contemporaneidade. O deslocado encontra-se entre um passado extinto e um futuro carente de expectativas, imerso em um “presente sobrecarregado de ausências, esburacado pelos lugares abandonados” (OUELLET, 2015, p.148), espaços que nunca lhe serão ofertados. Dessa forma, Enzo pode ser considerado como um emblema desse sujeito que não encontra ambiente algum onde se sinta em casa. Ainda que não deixe o seu país, muito menos troque de estado, adota uma forma de exílio interior e, também, realiza uma troca espacial ao abandonar a proteção e a segurança de seu lar para vagar pelas ruas de São Paulo. 104 Em sua apoikia50 moderna, experimenta diferentes sensações, passa por um turbilhão de mudanças comportamentais, que vão do ápice da realização à depressão profunda, no entanto, é incapaz de fugir da gaiola do silêncio em que se aprisiona. O deslocamento de Enzo é o grande responsável por fazê-lo isolar-se em sua solidão, entregar-se à instabilidade e ao silêncio. O desajustamento no interior da família traduz-se sob a forma do impulso de abandonar a aparente estabilidade de sua vida e do desejo de passar de uma posição reconhecida em seu meio social (de pai de família e engenheiro, mesmo desempregado) à instabilidade da posição do errante. Insurgindo-se contra o conformismo de uma existência alicerçada em pilares pouco sólidos, mas que lhe propiciavam um mínimo de certeza, sentindo o gosto amargo de não conseguir coincidir plenamente com seu decadente lugar no campo de prestígio social, dá o grito de basta ao sedentarismo domiciliar a que estava preso. Enfim, Enzo nada teve de vencedor, gigantes foram os sentimentos de inadequação, vazio, estranhamento. Longe de ser o “senhor do lar”, a melhor alternativa foi fugir, abandonar a antiga identidade, romper os laços para refugiar-se no silêncio. Não obstante, essa foi realmente uma escolha? Talvez o mais correto fosse defendermos que sujeito errante, ao abandonar a casa e a família, apenas assume a desreferencialização que sofreu: estrangeiro em sua própria casa, descartado pelo mercado de trabalho, destituído do posto de provedor do lar, suprimido da posição de marido, abalado pela catástrofe do suicídio de Cecília, excluído pelo próprio pai e culpado por invalidar um homem. Viver à margem, embrenhado no silêncio é a única saída para o indivíduo desorientado. “No silêncio palpita dócil a renúncia, a aceitação, o sacrifício. O silêncio é martírio, obediência. É dobrar livremente a cabeça para aceitar. É sufocar na garganta todas as palavras para fazer uma vontade” (SCIACCA, 1967, p.25). O engenheiro civil, iludido pela vontade de ser livre, renuncia às palavras. Calar as angústias e frustrações é uma forma de “proteção eficaz, que nada revela de si e que o envolve num véu através do qual ele espera tornar-se invisível, inaudível, poder passar entre as malhas de uma realidade que o apavora. Proteção também contra si mesmo, um ser já ferido pela intrusão original dos outros, e que leva também a recusar a linguagem” (LE BRETON, 1997, p.105). Contudo, o sentimento de estraneidade de Enzo não é amenizado com a partida de casa, o silêncio – porta de liberdade através da corrosão dos vínculos sociais e familiares – 50 Apokia, explica Queiroz (1998, p.41), é o “termo grego para designar a experiência negativa de separação e distância do lar”, sendo que desde a antiga Grécia “a felicidade do retorno não encontra epílogo no desembarque”. 105 com o passar dos meses, transforma-se em uma prisão de onde ele ambiciona fugir, visto que escreve cartas, tenta comunicar-se com o irmão, percebe que o tempo feliz da vida à margem acabou e, sobretudo, em sua declarada vontade de exterminar com a família e com o Jackson, ambiciona a presença de uma testemunha “para assistir ao fato de que eu então estaria deixando de ser esse homem sumido que sou, voltando para a condição de homem normal, mesmo que na cadeia” (AJZENBERG, 2002, p.126). 106 3. SOB O PESO DAS SOMBRAS: O PODER QUE IMPÕE SILÊNCIO 3.1 Francisco J. C. Dantas e os apontamentos críticos sobre Sob o peso das sombras Francisco José Costa Dantas nasceu em 1941, no Engenho Salgado (SE), propriedade de seus avós maternos, onde viveu sua infância. Quando adulto, não abandonou a vida frugal da roça e o contato com os bichos. Atualmente, vive na fazenda Lajes Velha, situada na zona rural do interior de Sergipe. A trajetória acadêmica do romancista fora promissora, após concluir o curso de Letras na Universidade Federal de Sergipe (UFS), dedicou-se à obra de Osman Lins, durante o mestrado cursado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), defendendo, em 1981, a dissertação intitulada Anotações à margem de O fiel e a Pedra. Já no doutorado, realizado na Universidade de São Paulo (USP), enveredou-se pelas reflexões em torno do gênero feminino, e, em 1990, defendeu a tese A mulher no romance de Eça de Queiroz. Foi professor de Literatura na UFS e, no momento, está aposentado. O prestígio no cenário nacional e o consequente reconhecimento foram conquistados por meio de sua obra literária. Estreou, em 1991, com o romance Coivara da memória51; em 1993, lançou Os desvalidos52; em 1997, veio a público Cartilha do silêncio53; em 2004, escreveu Sob o peso das sombras54; 2005 foi o ano de Cabo Josino Viloso; e, em 2012, publicou Caderno de ruminações55. No ano de 2000, a notoriedade do escritor ultrapassou as fronteiras nacionais, porque fora convidado pelo Spanish and Portuguese Departament of the University of California para ministrar um curso de Literatura Brasileira em Berkeley. Aclamado pela crítica literária, Dantas é considerado um dos maiores ficcionistas contemporâneos, tendo recebido, em 2002, pelos serviços prestados à cultura brasileira, a homenagem do Circuito Cultural do Banco do Brasil. Dono de uma escrita artesanal, entrelaçada por palavras gestadas com cuidado, o próprio Dantas menciona que o ato de escrever funciona como um bálsamo para a alma, pois lhe pacifica o espírito em virtude dos livros terem, para ele, caráter terapêutico. Quem o procura em busca de uma literatura fácil, de ritmo frenético, ficará desapontado, visto que seu trabalho é denso, realizado com esmero: “Não sei escrever samba em uma caixa de fósforos. O que faço exige muita preparação. Vivo a expectativa do que vai acontecer” (DANTAS, 51 52 Escolhido, em 1991, pelo Jornal de São Paulo como romance destaque do ano. Indicado ao Prêmio Jabuti de 1994. 53 Romance que recebeu, em 2000, o Prêmio Internacional da União Latina de Literaturas Românticas, na Itália. 54 Indicado, em 2005, aos prêmios: Jabuti, Portugal Telecom, Zaffari & Bourbon e Estadão Cultural. 55 Indicado, na categoria Melhor Livro do Ano, ao Prêmio São Paulo de Literatura de 2013. 107 2012, p.1). A preparação e a expectativa aliam-se a uma literatura comprometida; o escritor utiliza as letras como forma de protesto voltando-se para as minorias relegadas à escuridão, apresentando um “mundo que ninguém vê ou que ninguém viu no passado, para tentar iluminar um pouco o sentido disso, que nunca foi posto em pauta” (DANTAS, 2014, p.1). A prosa de Dantas desvela “uma minuciosa análise psicológica da consciência arruinada e fraturada das gentes nordestinas em decadência” (FACIOLI, 1997, p.4). O palco onde as “gentes nordestinas” contracenam suas mazelas gira sempre em torno do eixo Sergipe, Bahia e Alagoas, com destaque para a provinciana Rio-das-Paridas, a qual representa os pequenos vilarejos herdeiros do antigo Brasil escravista, compondo um fidedigno universo em que impera a força política do mais forte, portanto, as tradições são impostas e autenticadas através do posicionamento e prestígio social da personagem ou do núcleo familiar a que pertence. Neste eixo espacial, Léo Schlafman (1993, p.1) explica que “todos os seres são marcados pela fatalidade, por desajustamento entre sonho e realidade. Paira, sobretudo, uma atmosfera de irreparável desgraça – sem dó nem piedade”. A preocupação do sergipano com sua região e com os problemas enfrentados pelos desvalidos é inquestionável, toca em pontos relevantes ligados ao social, extrapolando o caráter regional para atingir o universalismo. Em suas narrativas, retrata os grandes dramas do ser humano: o ódio, o amor, o medo. Questionamentos filosóficos emergem nas reflexões dos despossuídos, demonstrando que os fantasmas da existência assombram todos os lugares – da agitada metrópole à tranquila província. Em meio a uma prosa centrada na análise psicológica das personagens submetidas a rígidas estruturas sociais de mando e desmando, do autoritarismo propriamente dito, irrompe o silêncio. Como um gás mortal, ele alastra-se rapidamente pelos ambientes, sufoca as personagens que o inalam, provocando os mais diferentes efeitos tóxicos, entre eles a anulação, o medo, a frustração; em outros casos, a rebelião ou até mesmo a contemplação. Em entrevista para a presente tese, Dantas (p.230) esclarece que o silêncio, constante em sua produção, deve-se ao fato de que Por aqui, imperou o Coronelismo e ainda há um rescaldo de suas sequelas. As pessoas são subtraídas, desconfiadas, evitam se comprometer pela fala. Não havia diálogo entre marido e mulher; entre pais e filhos; entre patrões e empregados; condições propícias para a proliferação da impostura. De forma que os nossos livros são, em certa medida, tributários desse ambiente que, a esta altura, está relativamente modificado. 108 Ao eleger uma região que, tradicionalmente, fora mantida pela rígida lógica machista patriarcal como contexto a ser representado, é coerente que o mutismo, produto das relações de poder, também se torne elemento recorrente em sua produção literária. Silêncio e poder, uma dupla indissolúvel nos seis romances publicados até o momento. É interessante destacar que a entrada de Dantas na “confraria rarefeita dos romancistas”, como ele próprio afirma, foi relativamente tardia: [...] estreei aos cinquenta anos por escrúpulos, por um sentimento de dignidade diante da literatura. Só aí me senti em condições de passar à confraria rarefeita dos romancistas. E olhe lá! Não muito confiadamente. E sempre me pergunto, sem nenhuma modéstia: será que não estou sendo presunçoso? [...] alguma voz oculta me puxava as orelhas de sobreaviso. Daí eu ter me dado esse tempo todo. (DANTAS, 1995, p.8) Apesar de ter-se dado “esse tempo todo”, sua estreia como romancista fora aclamada pelos críticos literários, que lhe concederam, logo de início, um lugar de destaque no panorama da literatura brasileira. Nomes como José Paulo Paes, Alfredo Bosi e Benedito Nunes56, chamaram a atenção para a vertente regionalista e para o viés proustiano concentrado em seus romances. Desse modo, sua obra emerge na contramão da produção literária atual, isto é, embora haja uma vasta pluralidade de “tons e temas” (RESENDE, 2008, p.18), o espaço da narrativa nacional é “essencialmente urbano” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.110). A grande cidade é o pano de fundo frequente na maior parte da prosa contemporânea, em contraponto aos pequenos vilarejos, que permanecem quase esquecidos. Assim, o prosador sergipano, de acordo com Dalcastagnè (2012, p.110), “aparece mesmo como uma voz isolada dentro de um contexto literário que não se quer mais regionalista”. Nesse mesmo sentido, Schøllhammer (2011, p.37) argumenta que os romances de Dantas fazem parte da vertente do “realismo regional”, sem fazer dessa ligação uma característica que reduza seu valor literário, a qual sobrevive desde a década de 1930 sem se abalar frente a críticas e ataques57. Por sua vez, estudiosos como Antônio Donizeti Pires (2005, p.64) defendem que a escrita de Dantas “não é apenas uma profissão de fé regionalista, mas demonstra que o diálogo crítico com a tradição, a reflexão sobre a literatura e o fazer literário, em suas 56 A respeito da fortuna crítica da obra de Dantas, é interessante ler o ensaio “Um olhar (enamorado) sobre a obra de Francisco J. C. Dantas”, em que Maria Lúcia Dal Farra realiza uma espécie de compilação da recepção dos romances de Dantas por diferentes críticos literários. 57 Schøllhammer (2011, p.37) explica que o regionalismo foi duramente atacado por Diogo Mainardi, que propôs um programa de destruição da literatura regional nos textos “Polígono das secas” (1995) e “Contra o Brasil” (1998). 109 dimensões cultas e populares, vincam nitidamente sua obra romanesca”, ao mesmo tempo em que marcam também o alto teor de complexidade. O próprio Dantas (p.229) assevera que, em meio às narrativas que apresentam personagens deslocadas, com conflitos identitários, oscilantes entre o pertencer e o não pertencer ao espaço que ocupam, sua prosa apresenta-se associada a uma linha mais conservadora “tanto no torneio da frase como na abordagem dos conteúdos”. Diante da qualidade e da notoriedade apontadas pela crítica, os estudos mais densos e específicos sobre a obra do prosador sergipano crescem ano após ano. Atualmente, temos à disposição duas teses, oito dissertações e vários artigos científicos que têm como corpus de análise as seis narrativas publicadas. Em específico, acerca de Sob o peso das sombras, há apenas uma dissertação e dois artigos, textos estes que abordaremos com a finalidade de mostrar algumas temáticas trabalhadas em relação a esse romance e de demonstrar como o nosso trabalho deles se afasta. Maria Luiza de Oliveira Andrade defendeu em 2010, pela UFS, a dissertação A memória na ficção de Francisco Dantas: cenas da narrativa e do narrador pós-moderno. Objetivando compreender como a memória é construída e representada de modo a metaforizar a tradição, a pesquisadora realiza a análise da forma fragmentada de narrar as memórias nos romances Coivara da memória, Cartilha do silêncio e Sob o peso das sombras. A respeito deste último, o centro de reflexão do estudo recai sobre a força desconstrutora da ironia impregnada no discurso do narrador-protagonista, Justino Vieira, que insere tanto a Faculdade Rural de Mitologia quanto a cidade Rio-das-Paridas “no redemoinho do tempo e de uma memória individual atravessada pela memória social” (ANDRADE, 2010, p.28). Nessa perspectiva, o narrador, através das críticas mordazes, intensificadas pelo tom zombador, faz uma série de desmistificações: da família, dos doutores ocupando as cadeiras acadêmicas, da modernidade e do progresso que transforma os pequenos vilarejos. O entrecruzamento das memórias do tempo passado distante e recente, e do presente vazio, conforme Andrade (2009, p.61), “apresenta o conflito entre o intelectual e o popular”. A própria denominação Faculdade Rural de Mitologia funciona na narrativa como um espaço de fantasia de um saber desprovido da aura mítica. O termo “rural” incide na condição da sociedade contemporânea, em que a expansão universitária chega até as pequenas localidades. Contudo, esse saber, por estar demasiado distante da realidade local, rapidamente é desacreditado. O desvendamento do falso brilhantismo do diretor Jileu Bicalho, por parte de seu secretário, marca a reflexão irônica sobre o lugar dos intelectuais. 110 Para Andrade, essa narrativa rompe com a barreira que distancia o universo erudito do mundo comum: a academia é representada como um ambiente medíocre, os discursos vazios da “grei pensante”58 são satirizados, os desprestigiados sebos se tornam a fonte tanto de letrados quanto de simples subalternos e as produções ficcionais deixam de ser elaboradas no reduto acadêmico, passando a serem escritas entre as buzinas dos carros e o noticiário dos telejornais. Por conseguinte, quando o narrador critica os intelectuais, está ironizando o complexo sistema que estipula “quem irá usufruir ou não do saber. Assim, o professor doutor Jileu Bicalho Melão representa [...] o poder acadêmico institucionalizado freando o discurso do indivíduo comum e da massa sobre esse saber” (ANDRADE, 2009, p.65). Já Maria Lúcia Dal Farra (2012, p.48) destaca, em suas reflexões, que as narrativas de Dantas, além do caráter artesanal com a linguagem, perfazem-se também pelo registro e pela busca da propagação dos “ofícios e das artes do Nordeste Brasileiro – aqueles vivos ou mortos, olvidados ou caídos em desuso, aviltados, ultrapassados ou tendentes à dissolução”. Para ela, a razão maior da obra do escritor sergipano é “desocultar” a vida dos não heróis nordestinos, visto que seus romances tendem “a reconhecer o estatuto meritório do ofício e das artes desses pobres diabos [...], meio de vida hoje ultrapassado pela técnica de produção capitalista e desdenhado pela sociedade consumista e massificante” (DAL FARRA, 2012, p.48-49). Neste artigo, “Artes & ofícios nos romances de Francisco J. C. Dantas”, Dal Farra realiza uma leitura das atividades profissionais de algumas personagens dos cinco primeiros romances do autor, procurando desvendar as metáforas das “artesanarias” expressas nos trabalhos de teor manual. A respeito de Sob o peso das sombras, o olhar se detém sobre Justino Vieira e Leopolda. A professora defende que a ocupação de secretário do Departamento de Mitologia é a responsável por transformar o narrador em um memorialista em busca de justiça, uma “espécie de patético escritor apocalíptico e vingador da ética e da moral perdidas” (DAL FARRA, 2012, p.52). Paralelamente, o exercício da leitura de grandes clássicos junto com sua natureza jornalística permite à personagem discutir as problemáticas do “ofício romanesco” e compor uma prosa de “feitio mestiço” (DAL FARRA, 2012, p.52), já que altera diferentes gêneros discursivos. Em contrapartida, o trabalho de Leopolda não é destacado propriamente pelo teor artesanal, e, sim, por ser uma versão atualizada das antigas 58 Expressão utilizada por Justino Vieira para satirizar o diretor: “Intitulava-se um raro exemplar dessa grei pensante que alardeia se imolar pela cultura [...]. Como tantos outros professores, acostumara a viver de palavras vazias, de sistemas inaplicáveis” (DANTAS, 2004, p.207). 111 carpideiras. O ofício que ela cumpre é dotado de uma dupla face, posto que oscila entre manter a vida e organizar o ritual da morte (DAL FARRA, 2012, p.53). Por sua vez, o artigo “A opressão em Sob o peso das sombras” (2010), de autoria de Deidiane de Jesus, ambiciona descrever como ocorrem os processos de opressão e submissão, e as relações hierárquicas de poder materializadas nos diálogos entre as personagens Justino Vieira e Jileu Bicalho. Essa pesquisadora chega a tangenciar a problemática do silêncio, concebendo-a como uma maneira de o diretor oprimir o secretário, que sempre permanece submisso. De forma ponderada, as discussões que faremos aproximar-se-ão desse raciocínio, até porque já havíamos demonstrado – em nossa dissertação – a natureza versátil do silêncio em Dantas, que pode servir ora como arma de ataque, ora como instrumento de proteção. Todavia, afastar-nos-emos, em certo sentido, do argumento proposto pela pesquisadora por o considerarmos reducionista, uma vez que as duas personagens, ao serem analisadas, são descoladas de seus respectivos papéis socioculturais. É como se os comportamentos e as atitudes delas fossem eminentemente individuais e não guiados socialmente, como é possível perceber na conclusão do texto: Toda essa emblemática de uma vida calcada pela submissão, opressão e fracasso se configura através das atitudes, ou falta de atitude de um homem, Vieira, que resiste a qualquer forma de reação aos infortúnios da vida. Todo o diálogo de Bicalho e Justino nos faz crer que, na verdade, a opressão que permeia essa relação é muito mais alimentada por Justino do que imposta por Bicalho. Vieira, seja por conveniência, seja por ausência de atitude, prefere se sentir oprimido a enfrentar as situações. (JESUS, 2010, p.10) Afirmar que a opressão constituinte do relacionamento das personagens é alimentada pelo protagonista, o qual prefere manter-se oprimido por falta de atitude, é um julgamento intenso e simplista. Fica explícito que a estrutura político-social, em que as personagens estão inseridas e a conjuntura cultural do universo ficcional foram completamente ignoradas. A representação literária de Dantas é marcada por uma expressiva abordagem histórico-regional. Mesmo que a narrativa seja ambientada nos corredores universitários da Faculdade de Mitologia, que a modernização e o progresso com as grandes chaminés das fábricas tenham chegado a Rio-das-Paridas, a cultura tradicional insiste em perpassar os domínios da modernidade, protelando as transformações. Nessa sociedade, o sistema de poder assimétrico entre os indivíduos resiste à temporalidade, a cultura do autoritarismo sobrevive por intermédio dos resquícios do coronelismo e do apadrinhamento, configurados nas arcaicas relações de ordem empregatícia e social. No cenário representado, o arcaico e o moderno se 112 interpenetram, conformando uma amálgama temporal. Portanto, é quase impossível se fazer uma leitura que desconsidere a força que a sociedade tradicional, autoritária e hierárquica exerce sobre os sujeitos representados e seus respectivos lugares de fala, sendo que esse será o nosso objetivo, vislumbrar de que forma o poder desencadeia o silêncio como estratégia comportamental e como as personagens o sentem. 3.2 Dominação e obediência: como funciona o poder A trama narrativa de Sob o peso das sombras tem como narrador Justino Vieira. Este, na primeira pessoa, relata sua história desde a infância humilde em uma pequena fazenda, passando pelas agruras sofridas durante o tempo em que ocupara o cargo de secretário do curso de Mitologia, as aflições de ser rebaixado para o setor de almoxarifado (cinco anos antes de se aposentar), até as vicissitudes ocasionadas pelo câncer compreendem o assunto do romance. Afastado do trabalho em razão do tratamento de saúde, sentindo as sombras da morte a lhe rondar, atira-se à escrita como válvula de escape diante do fim que se anuncia. Dessa maneira, a narração cumpre um triplo propósito: preencher os dias ociosos, distrair-se da doença e aliviar a certeza de um futuro pouco auspicioso. Na tentativa de conciliar seu “velho anseio de jornalista com [...] [seus] novos pruridos de escritor”, o narrador opta por um gênero “bastardo” (DANTAS, 2004, p.44), capaz de abarcar a crônica, o jornalismo, o diário, a sátira, a narrativa em primeira e em terceira pessoa. O ex-secretário se deixa envolver por uma série de flashbacks que recuperam distintos níveis temporais, intercalando acontecimentos recentes e remotos em um vaivém inconstante. Com isso, a narrativa se perfaz em uma dinâmica entre passado e presente, pois o que almeja o narrador é a interação consciente e verbal daquilo que foi e sofreu como personagem. Tratase, então, da revisão da experiência passada, que lhe propicia reviver as situações transcorridas, levando-o pelo confronto temporal a tecer considerações e reconsiderações sobre os fatos lembrados. Consequentemente, a ambientação romanesca é móvel, oscilando entre a cidade Rio-das-Paridas e o vilarejo do Alvide, espaços nos quais os elementos oligárquicos não foram alijados e onde os modos de vida herdados do Brasil Colonial insistem em manter seu antigo prestígio. O romance é organizado em 36 capítulos sem títulos, em que acompanhamos o desenrolar de subenredos relacionados ao protagonista: a história das figuras que lhe serviram de esteio, espécie de antepassados; o relacionamento complexo com seu Diretor; o 113 envolvimento com a cunhada, que também é sua comadre; a luta contra o câncer; o processo de escrita. O contexto histórico representado não é totalmente preciso. A narração é retrospectiva, vista e filtrada pelo presente de Justino Vieira, o qual se encontra no ano de 200059; mas, poucas vezes é possível identificar o período histórico-temporal referente aos acontecimentos resgatados. Recolhido em sua casa, doente, frustrado por não ter se tornado jornalista, tampouco tendo seus esforços reconhecidos, a escrita desse narrador é impregnada de amargura e atravessada pela ironia. Dantas coloca-nos cara a cara com uma personagem que permanecera oprimida por toda existência, aprisionada pelo silêncio, “como um sujeito sem voz para agir ou protestar” (DANTAS, 2004, p.37). E, agora, não desperdiça a oportunidade de exibir as falcatruas que permeiam as instituições públicas brasileiras, de registrar as palavras abafadas de toda uma vida fadada ao insucesso. Entrega-se a um ativismo ruidoso e frenético de escrita, como se as palavras pudessem espantar o silêncio absoluto que o ameaça e “esfriar as ideias funerárias” (DANTAS, 2004, p.78). Dessa maneira, o ponto de vista assumido e defendido por esse narrador é o da margem, tanto que se apresenta como “um sujeitinho diminuído” (DANTAS, 2004, p.44), um simples “servidor miúdo” (DANTAS, 2004, p.44). No decorrer dos anos em que ocupou o cargo de secretário, ele menciona que fora condenado pelo seu Diretor, Jileu Bicalho Melão, a viver sob o signo da submissão. Entretanto, a relação de dominação e o consequente emudecimento não se restringem somente ao ambiente profissional do protagonista, ecoam também no relacionamento íntimo-amoroso travado com a cunhada, Leopolda. A narrativa desenvolve-se, então, entre questões existenciais e políticas, as quais destacam interpelações de natureza humana no confronto do homem com o meio social. As memórias libertas de Justino Vieira também cumprem uma espécie de função política, tendo em vista que o narrador pretende transmitir suas experiências desafortunadas a um grupo de jovens desfavorecidos como ele fora em sua infância, sempre chamado afetuosamente de “meus rapazes”60. O ex-secretário espera que elas sirvam como uma compilação de conselhos, espécie de manual de sobrevivência: “Com votos de que tenham menos atribulações e melhor sorte” (DANTAS, 2004, p.75), enfim, é o “testamento que deixa[a]” (DANTAS, 2004, p.81) para os indivíduos que, como ele, fazem parte da “laia dos rejeitados” (DANTAS, 2004, p.117). 59 Dedução possível em virtude de o protagonista acompanhar, pela televisão, as comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil. 60 A primeira vez que expressão “meus rapazes” é utilizada no texto é na página 31, depois seu uso passa a ser recorrente ao longo da narrativa, como podemos constatar nas páginas 59, 87, 185, 192, 197, 223, entre outras. 114 Os diferentes sistemas de representação – entre eles, a narrativa – refletem e propagam condutas ideológicas específicas. Como explica Dalcastagnè (2012, p.8), a literatura brasileira, desde as suas origens, é um “território contestado”, onde o que está em questão “é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele”. Isso significa que a ficção participa de um processo ideológico, visto que, na sua representação simbólica da realidade, difunde ideias particulares sobre questões étnicas, de classe social e de gênero. No caso específico do Brasil, enfatiza a pesquisadora, o campo literário é um espaço em disputa, conformado através de uma permanente tensão, onde os negros, as mulheres, os homossexuais e os trabalhadores de grupos menos favorecidos são excluídos. Há escritores já “autorizados”, que se posicionam no lugar dos marginalizados falando por eles, e existem aqueles que provêm “das margens do campo literário, [e] tentam inscrever nele sua perspectiva e sua dicção” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.21). Por conseguinte, a estudiosa supracitada defende que, na ampla produção literária contemporânea, “é marcante a ausência quase absoluta de representantes das classes populares” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.18), sejam eles escritores, personagens ou narradores. Desse modo, os textos narrativos nacionais podem ser caracterizados “como sendo a classe média olhando para a classe média” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.18), o que reforça uma ordem hierárquica que silencia os despossuídos. Diante do panorama traçado por Dalcastagnè, Dantas apresenta-se como um contraponto/exceção, porquanto, em Sob o peso das sombras, a realidade simbólica é reproduzida a partir da posição socioeconômica ocupada pelo narrador: um homem, por volta dos 67 anos, que se considera como representante das classes desfavorecidas, olhando por um viés amargurado para a classe que, em seu círculo social, seria superior. Tal posicionamento implica na criação de uma hierarquia invertida, na qual Justino Vieira, que sempre esteve às margens e fora silenciado, agora se encontra no centro do discurso e aparece como a norma, enquanto os demais são a diferença a ser explicada e criticada. É sobre o protagonista, desde sua infância, que as ações dos outros se desenvolvem. Do primeiro ao último capítulo, acompanhamos a trajetória de passividade e de medo do mesmo, que constrói seu discurso sob a perspectiva da vitimização, do injustiçado que sofreu uma espécie de perseguição gratuita por parte de seu diretor. É imprescindível afirmarmos que nossa análise se desenvolverá a partir dessa ótica, o narrador em primeira pessoa norteará os nossos passos. Não obstante, faz-se necessário explicar que os julgamentos por ele emitidos não se mantêm estáveis do início ao fim; ao longo de sua escrita, ressalvas são feitas. Em alguns momentos, motivado pela amargura, e até mesmo pelo ciúme, o tom é rancoroso, inquisitório, o que faz com que as imagens construídas sobre determinadas personagens e 115 situações sejam marcadas pela negatividade. Amainado o rancor, em outras circunstâncias, e, certamente, sentindo a morte se aproximar, o tom se ameniza; o discurso de outrora é, de certo modo, desconstruído, outra face dos fatos nos é exposta, esta menos austera. As primeiras frases registradas por Justino Vieira são exemplares da condição de desigualdade a que estava submetido, como secretário do Departamento de Mitologia. Nelas, o narrador antecipa o clima de tensão, desconforto e opressão constante ao longo dos quase trinta anos de relacionamento com o Diretor Jileu Bicalho: - Com licen-en-ça... Bons-dias, Professor Jileu Bicalho. O Diretor não dá o ar de si, imóvel como um boneco. Inclinado sobre a escrivaninha, onde descansa mãos e antebraços, todo ele se resume, de ombros espalhados, na página aberta onde detém o olhar. Nem as orelhas, aliás imensas, ficam de fora, não se prestam a me ouvir. Essa falta de atenção é um mau começo que me arrepia a moleira já escaldada. Mas, cativo de minha subalterna condição, só me resta curvar-me ao desafio. (DANTAS, 2004, p.9) Note-se que a discreta gagueira do secretário indica um tom receoso, acanhado, um posicionamento humilde frente à impassibilidade do Diretor. As primeiras tentativas de estabelecimento de diálogo fracassam. É como se o subalterno fosse invisível e, por isso, o superior o ignora, não o ouve. Para a personagem que tem “a moleira já escaldada”, o silêncio funciona como um dispositivo que avisa sobre a ameaça adjacente. Esse narrador, que tece os primeiros contornos para a conjuntura de dominação de que fora vítima, explicita que, em virtude de seu posicionamento no quadro hierárquico, “minha subalterna condição” nada pode fazer. Há o reconhecimento do outro como ocupante de um cargo superior, frente ao qual a única saída é “curvar-[se] ao desafio”, domar os instintos e aceitar os efeitos do poder. Nesse sentido, poder e dominação são dois lexemas complementares que, na narrativa de Dantas, associam-se a um terceiro: o silêncio, posto que, conforme afirma Orlandi (1992, p.104), “já é bem conhecido o fato de que o poder se exerce acompanhado de certo silêncio”. Porém, vamos por partes. Iniciemos pelo poder que, para Max Weber (1991, p.33), significa “toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Por conseguinte, a dominação situa-se na possibilidade “de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (WEBER, 1991, p.33); e a disciplina seria a obediência pronta, automática a certa ordem, dentro de um grupo específico de pessoas. Em síntese, a conjuntura de dominação é a capacidade de um indivíduo e/ou um grupo exercer a autoridade sobre o(s) outro(s). Em muitos casos, para que essa capacidade de mandar atinja a obediência necessária, é essencial utilizar diferentes meios de coação (psíquicos ou físicos). 116 No centro das relações sociais, esculpidas pelas lutas, para que se desenvolva uma relação de dominação, é imprescindível a existência de dois polos distintos: os que mandam e os que se sujeitam. Weber explica que é a crença na legitimidade dos dominadores o elemento que motiva os dominados a “curvarem-se” (para utilizar o verbo do narrador), os quais precisam ter “o mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse na obediência” (WEBER, 1991, p.139). Os motivos que levam à submissão são múltiplos e variáveis, envolvendo desde motivações racionais até os hábitos inconscientes. Dependendo da forma que assume, Weber (1991, p.143) menciona que a dominação pode ser tradicional, carismática ou legal. A primeira é exercida por um senhor ou patriarca: todos os demais são seus servidores, súditos, que prestam obediência à pessoa por respeito, em virtude da tradição de uma dignidade individual. A segunda se assenta sobre o “carisma”, isto é, um atributo pessoal em nome do qual se conferem ao sujeito caracteres sobrenaturais; a obediência ao líder carismático se dá devido às suas qualidades peculiares. Por fim, a dominação legal tem na burocracia61 o seu alicerce, de modo que a obediência se presta não à pessoa, em função de direito próprio, e sim à regra, que se conhece competente para designar a quem e em que extensão se há de obedecer. A problemática da obediência e da legitimidade também é desenvolvida por Pierre Bourdieu (2001), contudo, pelo viés do “poder simbólico”. Este, para o sociólogo francês, é uma força invisível, que somente pode ser exercida com a cumplicidade dos indivíduos, os quais estão sujeitos a ele. O poder simbólico é algo quase mágico, uma vez que “permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido” (BOURDIEU, 2001, p.14). Percebe-se a presença da necessidade de legitimação do poder pelo outro para que seu exercício surta efeito. O reconhecimento do poder simbólico de uns sobre os outros dependerá, essencialmente, da quantidade de capital que cada ser detém, e da posição ocupada no campo social e simbólico. Quer dizer, a estrutura social, para Bourdieu (2001, 2008), é concebida como um sistema hierarquizado de poder e de privilégios, definido tanto pelas relações materiais/econômicas quanto pelas relações simbólicas/culturais entre os indivíduos. Nesse horizonte, os agentes estão distribuídos no espaço de acordo com o peso relativo e com o 61 Para Weber (1991, p.143), os princípios fundamentais da burocracia são a Hierarquia Funcional, a Administração baseada em Documentos, a Demanda pela Aprendizagem Profissional, as Atribuições oficializadas e o exigido Rendimento do Profissional. 117 volume global de diferentes espécies de capital. O lugar ocupado pelos sujeitos, no interior dessa estrutura, é produto da desigual distribuição de recursos e poderes dentro da sociedade. Por recursos ou poderes, Bourdieu (2008) distingue o capital econômico (renda, salários, imóveis), o capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), o capital social (relações sociais que podem ser capitalizadas) e, por fim, o capital simbólico (conhecido como prestígio, status). Assim, a posição, privilegiada ou não, ocupada por um grupo ou indivíduo, e seu poder serão definidos pelo volume e pela composição de um ou mais capitais adquiridos e/ou incorporados ao longo de suas trajetórias. O conjunto desses capitais seria compreendido a partir de um sistema de disposições de cultura (nas suas dimensões material, simbólica e cultural, entre outras), denominado de habitus62, sendo que as distâncias sociais passam a ser inscritas no corpo, na linguagem e no tempo. Já a análise de Foucault (1979, 2009) sobre o poder não se restringe à obtenção e à detenção desse avatar por muitos desejado. O poder é concebido como um conjunto de práticas sociais, um jogo de forças instáveis em constante movimento. Não é uma dádiva, um objeto natural ou um atributo que se possua ou não; e, sim, relações de força das quais não se pode fugir. É como uma teia que se alastra por todos os lados, está em todos os espaços sociais: O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 1979, p.183) Para este teórico, o exercício do poder põe em debate a questão da relação entre os indivíduos, porquanto é um modo de ação de uns sobre os outros. Tal práxis não acontece, obrigatoriamente, pela renúncia a uma liberdade, por uma transferência de direito ou em nome de um consenso. Aquilo que define uma relação de poder é uma forma de “atuar que opera em cima de sua própria atuação”, articulando-se sobre dois elementos “que ‘o outro’ [...] seja 62 É possível encontrarmos, nos estudos sociológicos de Bourdieu, diversas formulações para o conceito de habitus. Na presente tese, utilizamos esse termo no sentido de um conjunto de disposições adquiridas, produzido por “esquemas” de percepção e de ação que orientam os agentes a apreender seu lugar no mundo social, percebendo tal lugar como natural. O habitus é um princípio gerador e unificador que traduz um estilo de vida, escolha de pessoas, de bens e de exercícios, operando também como fator de distinção, “geradores de práticas distintas e distintivas [...] são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e divisão entre gostos diferentes” (BOURDIEU, 2008, p.22). Por exemplo, a comida que um operário ingere ou o esporte que pratica não são os mesmos de um empresário, as variadas atividades transformam-se em diferenças simbólicas, em signos de individualização. 118 reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (FOUCAULT, 2009, p.243). O exercício do poder pode suscitar desde mortes até abarcar ameaças, ainda que essa não seja a sua natureza: Ele não é em si mesmo uma violência que, às vezes, se esconderia, ou consentimento que, implicitamente, se reconduziria. Ele é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidades onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita, ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações. (FOUCAULT, 2009, p.243) Portanto, a vida em sociedade permite, o tempo todo, que alguns indivíduos ajam sobre a ação dos outros. Percebemos esse fenômeno ocorrer entre as personagens de Sob o peso das sombras, porque, nessa narrativa, as relações de poder travadas diariamente são registradas pelo olhar de Justino Vieira. 3.3 Jileu Bicalho: os movimentos do poder e os consequentes silêncios Dos 36 capítulos que compõem o romance Sob o peso das sombras, onze integral e outros sete parcialmente são destinados para narrar o relacionamento do protagonista com Jileu Bicalho Melão. Ao longo desses 18 capítulos, a imagem do Diretor sofre drásticas alterações. O narrador constrói essa personagem como um algoz, um superior com sede de poder, sempre bem disposto a humilhar os subalternos, para, em seguida, recuperar cenas em que o dessacraliza, expondo o lado frágil e vulnerável daquele que fora seu maior opressor. É como se Justino Vieira, depois de anos de convivência e rancor represado, realizasse uma vingança por meio do discurso ficcional. Quando o protagonista começara sua carreira como secretário na Faculdade Rural, Jileu Bicalho não somente integrava o corpo docente do curso de Mitologia havia alguns anos, como também desempenhava a função de diretor. Desse modo, na estrutura político-social acadêmica, já era detentor de um considerável capital simbólico que legitimava seu poder e permitia a dominação. Ambos se conheceram, justamente, em uma época de suas vidas na qual ocupavam cargos opostos: diretor e secretário. 119 Em contrapartida, para conquistar uma posição de destaque na escala hierarquizada e obter a obediência dos demais, o Diretor teve que percorrer um longo caminho. Enfrentou as redes de poderes a fim de edificar uma imagem reconhecida, visto que “o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 1979, p.X). Embora o percurso apresentasse alguns obstáculos, não desistiu, “era homem imbatível, era ambicioso. Tinha metas a cumprir” (DANTAS, 2004, p.239). Podemos afirmar que o diploma de doutor em Mitologia foi o primeiro facilitador, pois os “títulos escolares dão acesso a posições dominantes [...], institui[ndo] fronteiras sociais” (BOURDIEU, 2008, p.37), sendo capitais culturais reconhecidos. Os portadores destes se transformam em pessoas “separadas dos comuns mortais por uma diferença de essência e, assim, legitimados para dominar” (BOURDIEU, 2008, p.38). Entretanto, em uma sociedade como a brasileira, dominada pelas relações pessoais, a pessoa sempre está acima do indivíduo (DAMATTA, 1997, p.219), desse modo, não basta ter um título, é preciso ter um padrinho. Situação essa representada por Jileu Bicalho, que se apresenta ao curso de Mitologia munido de uma carta de recomendação assinada pelo Bispo, tornando-se, dessa maneira, professor sem prestar concurso público. O apadrinhamento constitui-se, na conjuntura social do Brasil, como um importante mecanismo de poder, em especial “nos setores chamados de médios e altos da nossa sociedade o conhecimento do mundo e a entrada no universo de trabalho são dados pela relação importante com um mediador” (DAMATTA, 1997, p.241). Iniciada a carreira como docente, Jileu Bicalho deseja se tornar escritor. Envereda-se pela poesia. A princípio, a lírica é utilizada como uma estratégia para obter a confiança dos superiores e conquistar um espaço privilegiado através das relações interpessoais63. Os poemas e acrósticos, em tom de “bajulação declarada” (DANTAS, 2004, p.234), eram todos destinados para colegas que ocupassem posições institucionalmente prestigiadas. Inclusive, em razão do lisonjeio demasiado, é repreendido pelo Reitor com “um bilhete enérgico, de gente ofendida, mas ao mesmo tempo fino e educado, onde lhe pedia contenção. Que o poupasse, ordenava-lhe: – É uma questão somente de recato [...]. Me entenda, por favor. Contenção é uma qualidade que ajuda muito [...]” (DANTAS, 2004, p.234). A polidez das 63 O narrador destaca outras estratégias que o professor utilizou para obter uma posição, como por exemplo, “Antes da Direção, ansiando pra se firmar mais ligeiro, por legítima convicção de que nossa trajetória é muito curta, Jileu começou se achegando com as mãos carregadas de profanas oferendas aos conselheiros e titulares: livros, cocadas, jornais. Todo santo dia portava um presentinho. Dissolvia-se em sorrisos. Adivinhava o aniversário de todos. A voz era doce e submissa, prontificada a tomar novo rumo, mal ele suspeitasse, no rosto do interlocutor, algum sinal de enfado. Insinuava-se delicado e prestativo, sondava o fulano, anotava suas preferências até descobrir-lhe o ponto fraco – e então o mimoseava” (DANTAS, 2004, p.254). 120 palavras do homem que se mostra cortês é dotada de uma função social, carregada de pretensão, envolvida no jogo múltiplo das relações de poder; já que “os signos não são só signos de comunicação, são também signos de autoridade” (BOURDIEU, 2000, p.57). Hierarquicamente, o Reitor, dispondo de uma posição mais elevada, cerceia a expressão do subalterno. As palavras legitimadas pelo cargo do enunciador estão impregnadas de reprovação, os signos revelam uma sobreposição de poder. Este é o primeiro silenciamento imposto ao professor. O poeta se sente injuriado e incompreendido, todavia não cala por completo a veia lírica. Apenas altera seu comportamento, reconhecendo a autoridade do Reitor, obedientemente, abafa as bajulações, deixando de escrever para colegas e passando a investir a sua força criativa nas éclogas. Com isso, reúne a sua produção literária em forma de coletânea, editada com o título O cristal nacarado. Esperando ser glorificado, envia exemplares de seu livro a revistas especializadas e jornais: A princípio, saltitando de ansiedade, aguardou que os jornais da Bahia e de Sergipe, inclusive o nosso O Correio Matutino, o inserissem na confraria das letras atrás de uma bem fundamentada apreciação augusta; depois, uma crítica erudita e honesta; mais tarde, bastava-lhe um comentário encimado por seu retrato; por fim semanas depois, antes de se revoltar, soluçava atrás de um mero palpite. [...]. Jamais teve de volta uma única palavra, nem mesmo mera alusão desaforada. (DANTAS, 2004, p.237) O silêncio é total. Nessa época, Jileu Bicalho, embora fosse “afilhado” do Bispo, “não era bem relacionado” (DANTAS, 2004, p.237), estava ainda carente de capital social, excluído do círculo daqueles que detém uma posição de destaque nas redes de poder. Enjeitado pela mídia, o doutor rebela-se, passa a subestimar todos os poetas, criticando-os indiscriminadamente. As farpas que lança são as armas de ataque, meio encontrado para revidar o menosprezo que sofrera. O gênero lírico é totalmente asfixiado, haja vista que a personagem queima todos os exemplares d’O cristal nacarado. A dedicação volta-se ao gênero científico, A ética dos deuses ou A salvação do Brasil é o segundo livro escrito. O professor deposita todas as esperanças nessa publicação, inversamente à primeira vez, não envia exemplares a ninguém. Distribui, pessoalmente, os convites para o lançamento. No entanto, o capital social já maior, em virtude de, naquele momento, ocupar o cargo de Diretor, é insuficiente para que o sucesso ocorra. Poucas pessoas comparecem e a venda não se concretiza: 121 A partir dessa noite, Jileu Bicalho revogou-se a tal ponto que, por anos e anos, ninguém soube que fim dera à edição de A ética dos deuses. Foram dois mil exemplares! Não consta que fosse exposto na prateleira de alguma livraria. Somente durante obra de um mês, falou em conspiração. Meteu o pau nos medalhões que lhe temiam concorrência. Mas, como era inteligente e compreensivo, logo depois, numa ligeireza dos diabos, amainou. Era perigoso falar de gente forte. Afinal, começara a ser sensato. A botar a cabeça no lugar. (DANTAS, 2004, p.245, grifos nossos) A revolta contra o infortúnio dos livros que sequer foram expostos, repelidos à escuridão do anonimato, faz de novo Jileu Bicalho bradar sua indignação. Contudo, nesse caso, o narrador nos leva a crer que a personagem, mesmo ocupando uma posição de destaque, está subordinada, em uma rede de poder, a uma “gente forte”, que não pode ser afrontada. É como se o Diretor se submetesse a uma “rarefação” 64 discursiva, na qual o indivíduo tem consciência de que não há a permissão de dizer tudo o que deseja, que não se pode falar de tudo em qualquer momento e quem quer que seja não tem o direito de afirmar qualquer coisa65 (FOUCAULT, 2008, p.9). Apesar da revolta, sensatamente, escolhe o silêncio. Afinal, carece de poder para enfrentar os “medalhões”, neste momento, é ele quem ainda tem que obedecer. O contexto mimetizado dos primeiros anos do exercício de diretoria de Jileu Bicalho coincide com o período da ditadura militar brasileira (1964-1985). O regime ditatorial caracterizou-se pela violação generalizada dos direitos humanos, cerceou a liberdade de expressão infligindo a censura e sedimentando a cultura do medo. No decurso dessa efervescência política, o Diretor buscou, de modo esperto, proteger-se com uma conduta ideológica oscilante: Vivia a se proclamar um paladino da democracia, cujo retorno anunciava, como se fosse um anjo promissor. No entanto, à socapa, mais de uma vez desaparecia daqui para discursar nas comemorações do 28º BC, em Aracaju; uma ordenança de farda verde-oliva vinha apanhá-lo num carro blindado, de vidros escuríssimos, que só andava em disparada. (DANTAS, 2004, p.257) 64 Expressão de Foucault (2008, p.37), que diz respeito ao fato de que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas”. 65 O colegiado do Departamento de Mitologia também é obrigado a sujeitar-se a uma variante de rarefação discursiva, porquanto, na eleição para o posto de diretoria, a escolha do nome para o candidato ao cargo fora uma determinação do Bispo. Os ânimos se agitam, os professores ofendem-se, Serafim Leitão opõe-se, todavia, imediatamente é reprimido: “– Sente-se aí, seu esquentado! O Bispo é o Bispo, temos de engolir. Além disso, o país estremece sob a ditadura – lhe completaram. – É conveniente ficar de bico calado” (DANTAS, 2004, p.255). Nesta advertência, o tom de censura é explícito, demonstrando que o ambiente acadêmico é dominado por relações de força que extrapolam os limites institucionais. O silêncio da censura, explica Orlandi (1995, p.110), “não significa ausência de informação, mas interdição. Nesse caso não há coincidência entre não-dizer e não saber”. Dessa forma, os professores sabem que o candidato indicado não é o mais qualificado para a função, porém são impedidos de manifestar sua contrariedade. O silêncio é uma ordem, tendo em vista que a interdição é imposta tanto pelo poder da palavra do Bispo quanto pela ditadura. 122 Nem de direita, nem de esquerda. Na perspectiva tramada pelo narrador, Jileu Bicalho envolve-se em um jogo duplo, silenciando sua real posição, age conforme a conveniência de cada espaço: nos corredores da faculdade, defende a democracia; perante os militares, é a favor da ditadura. A dubiedade do Diretor aproxima-se ficcionalmente do comportamento, antes dos anos de chumbo (1968-1974), da grande parcela da intelectualidade brasileira, em que “eram visíveis as manifestações críticas ao governo, embora também se fizessem presentes expressões, senão favoráveis, ao menos complacentes com o sistema político em vigor ou com a ordem vigente” (REIS, 2000, p.47). Sobre esse período, o historiador Daniel Aarão Reis (2000, p.51) explica que a classe média “estava disposta a reivindicar e a denunciar, mas não a ponto de arriscar-se em um vale tudo de vida ou morte”. Declarar-se contra, sem se expor abertamente, é a estratégia utilizada pelo professor em suas aulas, pelo fato de que “ele costumava atirar [palavras] contra a ditadura, em uma ou outra aula. (Aulas para o seu grupinho, aulas de porta fechada, esclareça-se)” (DANTAS, 2004, p.292). As “aulas de porta fechada”, representativas do clima de repressão, configuram-se tanto como uma forma de falar contra o poder quanto um modo, mesmo ilusório, de manter em sigilo o posicionamento político. Abafa-se a ideologia defendida, como um meio de salvaguarda, a fim de não sofrer represálias. Com o Ato Institucional nº 5, entre os anos de 1968 e 1974, ocorreram prisões, censuras, intimidações e torturas de toda ordem. As Forças Armadas estavam presentes em todos os lugares, inclusive nos ambientes universitários, onde se infiltraram olheiros imbuídos na tarefa de vigiar e delatar docentes e alunos subversivos. Através da personagem Jileu Bicalho, Dantas retrata de modo singular esse momento político, visto que o professor fora delatado por um espião, pois portava um livro intitulado De Marx a Cristo. Chamado para prestar esclarecimentos, ele soube, astuciosamente, livrar-se do inquérito policial militar, explicando que o exemplar, presente do Bispo, na realidade, era sobre a doutrina cristã. Não obstante, a intimação o coage: [...] vítima desse mero engano que durara apenas horas, [...], que não rendeu sequer um processo arquivado, não mostrou cara ofendida, nem se queixou a ninguém. [...]. Levara um susto danado e não queria brincadeiras com a farda verdeoliva. Se manteve anos e anos de bico calado, aparentemente resignado. [...]. [...]. Se alguém lhe tocava de raspão na injustiça que sofrera naquela hora apertada pelas sombras, Professor Jileu Bicalho sorria sem vontade, refrescava a raiva presa. Nunca fez a mais leve insinuação de que ficara agastado. No entanto, sua conduta posterior nos leva a confirmar que só se mantivera calado porque aquele chamado lhe sabia a cruel intimidação, lhe doera como uma pisada antecipada. Fora lido como um aviso de mau agouro! (DANTAS, 2004, p.305) 123 Receando o poder militar, Jileu Bicalho mantém-se calado ao longo dos anos de chumbo da ditadura. Nessa época, sabe-se que muitos eram os torturados, mortos e desaparecidos, provavelmente por esses motivos seu silêncio e sua suposta resignação funcionaram como garantia de vida e não como mera escolha. A estratégia comportamental do Diretor é compatível com o argumento defendido por Le Breton (1997, p.81) de que, em um grupo em que a desconfiança é habitual, a ponderação meticulosa daquilo que convém ser dito, o controle da palavra, que desencadeia o equilíbrio das emoções, são o escudo que impede o sujeito de “ficar descoberto”. O temor que o obriga a reprimir suas palavras também o impele ao exílio voluntário: “se mijando de medo, abalado com a possibilidade de uma sindicância para remexer nos seus podres” (DANTAS, 2004, p.292), ele parte por quatro meses para Lisboa. No regresso à pátria, Jileu Bicalho é arrebatado por uma nova ambição: ser vereador. Através de um discurso eloquente, concedido a um jornal local e transmitido via televisão, ele forja uma elevada imagem de si mesmo, defendendo que na Europa fora reconhecido como um pesquisador distinto, participando de vários círculos de estudos. Consequentemente, por supor ocupar uma posição de “ilustre intelectual”, não poderia filiar-se a um partido qualquer, teria que ser um grupo único e próprio, em que seria o Chefe político. Difunde, assim, o PPPP (Partido Popular dos Pobres e Preteridos)66. Entretanto, na hora de legalizar a criação do mesmo, dentro dos prazos estipulados pela Justiça Eleitoral, depara-se com uma rede de poder da qual não fazia parte: Essa nova peripécia do ilustre Mestre, decorrida em Brasília, num cenário labiríntico e insondável, fedorento e ao mesmo tempo surrealista, na verdade, dera em nada. Vejam aí o que não cabe na cabeça de um grande pesquisador! Pois partir de Rio-das-Paridas, sozinho, com uma mão na frente e outra atrás, para fundar um Partido! Apesar do bom relacionamento na área intelectual, o Professor Jileu Bicalho nunca se soubera tão miúdo. Fosse outra pessoa, voltaria arrasada. Mas sequer se abalou. Era um forte. (DANTAS, 2004, p.299) Afastado do território acadêmico, o capital cultural e social do professor é insuficiente para a abertura dos caminhos da política. Faltam-lhe tanto o capital político67 quanto um padrinho para lhe abrir as portas. Podemos defender que, desprotegido, Jileu Bicalho depara66 O narrador explica que o PPPP passa a ser conhecido como Partido Popular dos Parasitas e das Putas. O “capital político”, de acordo com Bourdieu (2001, p.31), é outro “princípio de diferenciação” que “assegura a seus detentores uma forma de apropriação de bens e de serviços públicos [...], [e] se adquire nos aparelhos dos sindicatos e dos partidos, transmitem-se através de redes de relações familiares que levam à constituição de verdadeiras dinastias políticas”. 67 124 se com “a passagem dramática de um universo marcado pelas relações e moralidade pessoal para um mundo minado pelas leis gerais e universalizantes, sempre aplicadas para quem não tem mediadores” (DAMATTA, 1997, p.245). Fazendo uso das metáforas desenvolvidas pelo antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1994, p.30), longe da Faculdade Rural, o Diretor está fora de casa (onde é reconhecido como pessoa, tratado com distinção), permanecendo, assim, entregue aos perigos de Brasília, que é a rua, espaço do anonimato, cuja violência se materializa pelo fato de não ser tratado com distinção. Na rua/Brasília, o docente é recebido como um indivíduo, sem privilégios, desprovido de laços de amizade, tendo o pedido de criação de partido negado. A refutação é dolorida, o poder da Lei Eleitoral age sobre Jileu Bicalho fazendo-o se curvar a ponto de ter que se inscrever como candidato em um partido de baixo prestígio. A recusa e o sentimento de humilhação são silenciados pelo Diretor, ou melhor, são encobertos por palavras, dado que, ao ser questionado por um adversário sobre a inexistência do PPPP, ele responde da seguinte maneira: – Ora... ora... meu inteligentíssimo correligionário! Claro está que PPPP é somente nome fantasia. Assim como um remédio que se compra e não há vestígio dos componentes no nome comercial. Aliás, estive em Brasília, semeei a ideia, e todos estão fazendo a mesma coisa. Até nisso, a nossa terra é frutífera. A princípio, não nego que fui contestado por uns macabeus ignorantes. Acionaram até a Justiça! Quando, porém notaram que estavam agindo como uns parvos antediluvianos, retiraram a queixa. (DANTAS, 2004, p.301) A verdade ocultada demonstra a conduta ardilosa da personagem, cujo discurso é reproduzido graças ao que Justino Vieira “desarquivou” (DANTAS, 2004, p.301) da memória. Embora não possamos confiar cegamente neste narrador em primeira pessoa, ocupante de uma posição deliberadamente oposta à de sua personagem, o fato é que não podemos ignorar que as palavras proferidas pelo professor servem de mantos que protegem o seu segredo. Com o espírito retorcido, o candidato a vereador fornece pedaços de informação, rompe parcialmente o silêncio, jogando com o poder de manipular os vocábulos age em benefício próprio, esconde a vergonha de ter que se submeter à filiação de um partido menor. Com poucos votos, vence a primeira candidatura e na segunda fica como suplente, assumindo o cargo graças a manobras políticas. Apesar de tantas imposições ao silêncio, Jileu Bicalho, dentro do ambiente acadêmico ficcionalizado, conquista o poder simbólico, considerando que o processo de obtenção do mesmo iniciara com a vitória para o cargo de diretor e se intensificara com a eleição para membro da Câmara Municipal. A dominação é legitimada pelos cargos ocupados e pelos 125 habitus (usar traje importado e de grife com suspensório italiano, vangloriar-se da diversidade de leituras e da ampla biblioteca particular) conservados, que o afastam dos demais professores e servidores no quadro hierárquico. A trama narrativa tecida pelo secretário diminuído é conduzida de modo a demonstrar que o superior, aparentemente, sempre conservara o prazer de demarcar a distância sociocultural que os separava. Dessa forma, Justino Vieira, nos dois primeiros capítulos, imbui-se da tarefa de narrar os contatos iniciais com seu chefe, travados na primeira semana de trabalho, quando a hostilidade gratuita por parte daquele que detém o poder é mais explícita. Nas duas primeiras vezes em que Jileu Bicalho chamara o secretário até a biblioteca do curso, o clima fora tenso. Apesar de ter solicitado a presença do subalterno, o narrador afirma que fora recepcionado com um “silêncio impenetrável” (DANTAS, 2004, p.10), capaz de ferir as “regras de civilidade” (DANTAS, 2004, p.11). Concentrado na página de um livro, o superior sequer se move, permanecendo impassível por um extenso período como “um general feito de pedra” (DANTAS, 2004, p.13). Justino Vieira espera uma reação amistosa; entretanto, nenhum aceno lhe é dispensado até que, desgastado pela indiferença, pergunta ao superior no que poderia ser útil, não recebendo propriamente uma resposta: “O Diretor levanta a mão, mas não os olhos. Vejam bem. Ainda não. Por três vezes, a palma estendida avança e recua com os dedos em riste na minha direção, sinalando que aguarde... aguarde...” (DANTAS, 2004, p.15). O gesto, nesse momento, toma a vez das palavras. A comunicação, observa Sciacca (1967, p.39), engloba a expressão corporal, na qual o “gesto é um sinal mais alusivo e idealizante do que as palavras”. A mão, levantada três vezes, transmite uma mensagem: Justino Vieira atrapalha o leitor. Notemos que os olhos imóveis são importantes demais para se distraírem, ao contrário das mãos, que, dispensáveis para o ato da leitura, podem estabelecer uma interação sem prejudicar ou interromper a outra atividade. O laconismo de Jileu Bicalho, narrado por um “servidor miúdo” que se apequena frente ao superior, aproxima-se do que Sören Kierkegaard (1964, p.80) denomina de “silêncio demoníaco”. Tal forma de aprisionamento das palavras é a mais cruel, uma vez que nele o sujeito tem a possibilidade de falar, de expor o que sente ou pensa, nenhuma força exterior o oprime; no entanto, simplesmente, o indivíduo se nega a verbalizar seus pensamentos. O Diretor, ao recusar a comunicação direta, apesar de não mencionar o conflito, faz com que seu interlocutor o reconheça. O nada dito soa ao modo de um ataque, paralisa a vítima que, desconcertada, sente o silêncio como uma ameaça. Como nada é enunciado, não há do que se 126 defender: “Estou perplexo! Quase a ponto de suplicar que ele desembuche logo, acabe com essas reticências torturantes” (DANTAS, 2004, p.30). A súplica retida desnuda a dimensão do mal-estar que o emudecimento alheio provoca em Justino Vieira. O calar do diretor lhe calcina a alma, fazendo-o crer que é alvo de “uma tática terrorista” (DANTAS, 2004, p.17, p.216), que tem por objetivo aniquilá-lo68. O domínio da palavra e do silêncio, defende Le Breton (1997, p.79), é uma característica da autoridade institucional: “Ao calar-se, o homem de poder procura prodigalizar uma imagem melhor de si mesmo, com o fim de construir o seu poder”. A imagem elaborada pelo narrador para Jileu Bicalho vai ao encontro dessa lógica, permanecendo mudo e ignorando o secretário ele potencializa sua posição hierárquica. O desconforto do protagonista diante do mutismo do diretor é, portanto, típico das relações de poder, nas quais os superiores, quando nada dizem, “introduz[em] uma posição penosa de espera, a repercussão de uma subordinação difícil de contornar. Ao calar-se, o outro manifesta pleno poder da sua posição, deixa a sua vítima na dúvida sobre o que lhe convém fazer, reduze-a à impotência” (LE BRETON, 1997, p.80). A comunicação entre ambos, apesar de ser desprovida de palavras, como em qualquer troca linguística, é permeada por relações de força entre os interlocutores. Bourdieu (2000, p.23) explica que, em toda interação verbal, há, além de um código que sustenta a mensagem, “uma relação de poder, na qual o emissor dotado de uma autoridade social mais ou menos reconhecida dirige-se a um receptor que reconhece mais ou menos essa autoridade”. Nesta narrativa, a tensão de forças opostas é transmitida através do jogo do silêncio: de um lado, o Diretor impõe sua autoridade por meio do mutismo; por outro lado, o secretário, preso à sua condição subalterna, reconhece caladamente a soberania alheia. Ainda faz-se necessário enfatizarmos que Jileu Bicalho fora obrigado a silenciar nos momentos em que era o elemento frágil nas redes de poder. Não obstante, quando ocupava uma posição privilegiada, como em uma espécie de vingança, subjugava os fracos com seu silêncio intimidador. Com isso, o narrador desconstrói a imagem mitificada do homem culto como o mais civilizado. Desvela que o ambiente universitário apenas reproduz a lógica 68 Convém mencionarmos que essa estratégia demoníaca é utilizada, de maneira semelhante, em outras duas circunstâncias, quando a convivência entre ambas as personagens já havia assumido contornos de intimidade. A primeira ocasião se refere ao momento em que Justino Vieira solicita ao professor a leitura e o respectivo parecer sobre um artigo que escrevera. Com o texto em mãos, o docente, drasticamente, altera o seu comportamento, “todos os dias, o homem chegava e saía impenetrável. Cabeça longe. Bico calado” (DANTAS, 2004, p.193). A outra situação reporta-se à aula, supostamente improvisada, de “Dialectologia dos Deuses”, em que cada aluno precisava pronunciar a mesma palavra de forma diferente. Os estudantes gracejam, exibem-se e o protagonista, que assistia às aulas, solta uma gargalhada. Jileu Bicalho ofende-se com a descompostura do secretário a ponto de cortar o relacionamento dentro do departamento, colocando uma datilógrafa para mediar a comunicação entre os dois: “queria que eu sentisse o silêncio como uma ofensa. De certeza. [...]. O sabichão estava convencido de que essa espécie de calada hostilidade me afetava” (DANTAS, 2004, p.215). 127 perversa da sociedade organizada em classes, não estando livre das relações díspares de poder. 3.4 Dominação amorosa: Leopolda, a ceifeira das palavras Se as palavras dominação, silêncio e subalternidade são as que melhor definem o relacionamento de Justino Vieira com Jileu Bicalho, elas também podem servir para delinear o relacionamento do protagonista com a cunhada/comadre, Leopolda. Certa vez, enquanto discorria sobre o processo composicional de Coivara da memória, Dantas (1992, p.4) mencionou que, nos diferentes episódios marcados pelo patriarcalismo através das relações díspares entre os sexos, “toda a compaixão do livro vai pras mulheres, todos os personagens que são brutos são homens. Então, é um livro a favor das mulheres”. A partir desse romance, inicia-se o comprometimento do romancista com o universo feminino que, em cada nova narrativa, potencializa-se. Como destaca Sidiney Menezes Gerônimo (2008, p.32), a “exploração da mulher pelo mundo de homens aparece aos narradores masculinos como uma injustiça, como se estes quisessem anunciar a aurora de novos tempos, em que se conseguem vislumbrar novos horizontes para a feminilidade”. Se em Coivara da memória os homens são brutos, em Sob o peso das sombras, grande parcela masculina – Jileu Bicalho, Josino Viloso, Justino Vieira e Padre Barbarino – conserva o germe da covardia. Em contraposição, Leopolda 69 é a expressão da coragem e da esperteza. A beleza física, “A firmeza das pernas, o roliço dos braços, a lisura da face” (DANTAS, 2004, p.71), desmente os 52 anos da cunhada. A aparência corporal conservada confronta-se com sua trajetória existencial atribulada. Contrariando as determinações sociais impostas ao seu gênero70, “escolhera o marido sozinha, contra o consenso de amigos e familiares, jamais daria o braço a torcer” (DANTAS, 2004, p.59). Esta atitude71 rompe com uma prática secular 69 Essa viúva, encantadora pela força e resistência, encontra-se no mesmo nível moral das outras mulheres construídas por Dantas, a exemplo da Avó e da Bisavó, de Coivara da memória; Dona Senhora e Arcanja, de Cartilha do silêncio; Maria Melona e Maria Bonita, de Os desvalidos, e Analice, de Caderno de ruminações. Tais personagens não se resignaram com os excessos de autoridade masculina, e cada uma, à sua maneira, ludibriou o estereótipo social predeterminado à condição feminina. 70 A fim de evitarmos mal-entendidos, é importante afirmarmos que, embora em alguns momentos, seja imprescindível tocar em questões referente a gênero, não é nosso objetivo realizar uma definição do “feminino” por meio da oposição ao “masculino”, ou ao que quer que se lhe equivalha. Trata-se, antes, de uma tentativa de iluminar a análise sobre uma personagem feminina – Leopolda – e o seu lugar no espaço da narrativa. 71 Leopolda, apesar dos distanciamentos histórico-sociais representados entre as narrativas Sob o peso das sombras e Cartilha do silêncio, repete a mesma atitude de Dona Senhora. Entretanto, no contexto fortemente patriarcal de a Cartilha do silêncio, essa conduta foi considerada como uma afronta profunda ao grupo familiar do esposo, porquanto as mulheres é que eram escolhidas pelos pretendentes, e não o contrário. Além disso, a elas cabia apenas aceitar a decisão paterna, não tendo o direito de demonstrar o desejo sexual pelo marido, como 128 conservada pela sociedade tradicional, na qual o matrimônio consolidado sempre fora um compromisso familiar, um acordo, mais do que um aceite entre os futuros cônjuges (FALCI, 2001, p.256). A jovem, inversamente à irmã Damarina, que tivera o casamento arranjado pelo Padre Barbarino, supera as artimanhas do sacramento por encomenda, em que a mulher, especialmente nas gerações mais remotas, “é representada como mercadoria que entra no mercado matrimonial para ser avaliada e negociada por homens” (GERÔNIMO, 2008, p.66). Leopolda não permite que a coisifiquem; contrariamente, ela é quem avalia a mercadoria, uma vez que elege para marido um lojista, Fanvinho Almeida, possuidor de uma prestigiada posição social, oriundo de uma família respeitada. O burlamento dos jogos de poder que envolviam os arranjos nupciais reflete o enfraquecimento do patriarcalismo na cidade de Rio-das-Paridas. Todavia, a audácia não gera bons frutos. O catolicismo fervoroso fora ineficiente, porque não impedira que o vício pelo jogo corrompesse a alma de Fanvinho Almeida, o que, simultaneamente, o levara à falência e desnudara a fortaleza que era a esposa: Ninguém lhe ouvia uma palavra contra o marido, uma queixa contra a vida. E não pensem que andava de olhos baixos ou aparentava estar resignada com a desgraça. Não rapazes! Mostrava-se sempre soberana, de semblante altaneiro, acima das contingências que todos lhe lamentavam. É como se nos dissesse que a vida estava em ordem, seu casamento ia bem. (DANTAS, 2004, p.59) Dois pontos merecem destaque na citação: o silêncio e a altivez corporal. Leopolda aceita soberbamente seu fado, demonstra ser resistente para coibir – aos olhos do narrador – o arrependimento de sua ousadia, se é que ele existe. Não se lamenta, nenhuma palavra é lançada contra o marido, utiliza como estratégia de embate aos lamentos alheios um silêncio dissimulado. Calando seu infortúnio, ela esconde suas feridas, o que facilita suportá-las, pois “O silêncio não reprime as emoções e agressões, mas as domestica, impõe ordem sobre elas. Com o falar, as emoções sempre de novo são remexidas, com o silêncio elas podem assentarse” (GRÜN, 2004, p.21). Já a posição corporal, por ela assumida, espelha uma identidade feminina que vai de encontro aos habitus sociais tradicionalmente convencionalizados. Isto é, as sociedades em geral e, de modo acentuado, as que vivem sob a dominação masculina (como é o caso de Rio-das-Paridas), legitimam para ambos os sexos diferentes expressões Dona Senhora demonstra por Romeu, seu cônjuge: “Mulher que pede homem não passa de uma égua a relinchar de apetite” (DANTAS, 1997, p.39). 129 corporais72: são monopólios dos homens os usos públicos e ativos do corpo, como “fazer frente a, enfrentar, frente a frente, olhar no rosto, nos olhos, tomar a palavra publicamente” (BOURDIEU, 2014, p.33); enquanto as mulheres precisam renunciar, de alguma forma, o uso do próprio corpo, como andar com os olhos baixos, voltados para o chão. Diante da falência financeira, toda a sociedade representada espera que a personagem desmorone, que, envergonhadamente, baixe os olhos em sinal de enfraquecimento; contudo, isso não acontece, a cunhada era “mulher quase viril” (DANTAS, 2004, p.58). Tal vigor atinge o apogeu perante o suicídio de Fanvinho Almeida. Decidida a prestar, com enaltecimento, as últimas homenagens, a viúva empenha as joias e enfrenta as cristalizadas normas religiosas que se recusam a abençoar o corpo dos pecadores: “Leopolda bateu o pé e conseguiu missa de corpo presente, celebrada pelo nosso próprio Bispo” (DANTAS, 2004, p.59). Valendo-se dos monopólios ativos dos dominadores, ela consegue, sagazmente, dobrar não apenas as leis seculares, como também fazer com que um superior religioso cumprisse os rituais fúnebres. A garra amplifica-se. Sem a sombra protetora masculina e desprovida de recursos financeiros, Leopolda resiste, permanece casta, recusa ajuda da irmã, buscando solitariamente manter o seu sustento: “continuou a se comportar como uma dama, mas trabalhando como uma máquina. Voltou a lecionar Geografia no ginásio [...] e tornou-se bordadeira, virava noites de bastidores nos joelhos” (DANTAS, 2004, p.59). O trabalho até pode ser um fardo cruel, visto que consumia os dias e as noites, no entanto não reclamava de nada, conservava o mesmo silêncio soberbo, gerado durante a derrocada do marido. O narrador nos oferece uma sucessão de elementos que contribuem para aumentar a força dessa personagem. Por conseguinte, as ações de Leopolda não guardam nenhuma característica do comportamento frágil do sexo feminino. A imagem construída por Justino Vieira, cujo fascínio e desejo pela comadre são intensos, ultrapassa os discursos estereotipados dos gêneros, aqueles que concebem a mulher como desigual e hierarquicamente inferior em relação ao homem (FALCI, 2001, p.242). A cunhada se desvencilha de todas as amarras sociais destinadas ao seu sexo, utilizando instrumentos de 72 Bourdieu, em seu estudo A dominação masculina, defende que as aparências biológicas e os efeitos das dicotomias (masculino – feminino e dominadores – dominados) são produtos de um longo processo coletivo de socialização do biológico e biologização do social, que produzem e reproduzem posições corporais para cada gênero e/ou classe que os sujeitos devem adotar. “A educação elementar tende a inculcar maneiras de postar todo o corpo, ou tal ou qual de suas partes, a maneira de andar, de erguer a cabeça ou os olhos, de olhar de frente, nos olhos, ou pelo contrário, abaixá-los para os pés etc., maneiras que estão prenhes de uma ética, de uma política e de uma cosmologia” (BOURDIEU, 2014, p.46). 130 poder, como a valentia, a altivez, a resistência. Mesmo desprovida de capital econômico ou social, dela emana um poder simbólico capaz de dobrar até as sólidas leis eclesiásticas. É importante expormos que esses caracteres distintivos são apresentados logo no início da narrativa, mais precisamente no quarto capítulo. Consideramos que essa é uma estratégia discursiva do narrador, já que, ao construí-la como uma personagem superior, dotada desde a adolescência de traços dominantes, ele está justificando antecipadamente a submissão da qual será vítima. O laço de sangue ou o compadrio são ineficazes para que Leopolda mantenha um relacionamento íntimo com os familiares. Porém, a enfermidade é o elemento que a atrai ao lar dos Vieira. Quando Damarina adoece, a irmã reaparece e cuida da doente até a morte. Providencia, também, todos os serviços funerários: desde a preparação do corpo até a missa e a sepultura. Findo o trabalho sepulcral, ela desaparece. Justino Vieira sente vontade de pedir que a cunhada fique, chegando ao ponto de procurá-la: Mais uma vez, desejei oferecer-lhe o meu teto, mas tinha medo das más-línguas, pavor de que ela descobrisse segundas intenções no meu propósito de servi-la. Meses depois, num dia em que amanheci mais açodado, fui a ela resolvido, não podia mais conviver com uma incerteza e difusa esperança. A incerteza me maltratava. Bati na porta. [...]. Ao me defrontar com aquele semblante que tanto podia sobre mim, esmoreci. As frases calorosas, que eu tanto ensaiara, se sumiram. Minhas mãos esfriaram subjugadas por uma força silenciosa que só as personalidades bem dotadas conseguem transmitir. Meus nervos quiseram recuar, mas a voz titubeante adiantou-se: – Leopolda... a casa é grande. Onde come um, comem dois. – Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz! [...]. Vindas de Leopolda, essas palavras ostentavam convicção, uma gravidade extraordinária. [...], elas foram suficientes para me paralisar a língua e a vontade. Ouvi-a calado, com um sabor de desfeita e reprimenda. (DANTAS, 2004, p.62) A citação exemplifica três etapas que norteiam os constantes enfrentamentos entre estas personagens ao longo da narrativa. Primordialmente, o cunhado sente-se atraído pela comadre; entretanto, tal interesse sexual é reprimido tanto em razão dos princípios católicos cristãos – posto que considera pecaminoso o relacionamento entre os dois – quanto pela preocupação com a manutenção da moral e bons costumes, uma vez que teme o julgamento alheio. Em segundo lugar, há o embate entre o que se quer dizer e o que se diz de fato. A presença de Leopolda é tão intensa, dela emana um poder simbólico que cerceia a expressão do outro. Frente à pessoa desejada, Justino Vieira aprisiona as verdadeiras palavras, cala seu sentimento. O apelo afetivo converte-se em um simplório convite prático de auxílio financeiro, porque “as pressões do desejo dissolvem a palavra como recurso suficiente de 131 compreensão e expressão” (KOVADLOFF, 2003, p.164). Em terceiro lugar, as palavras proferidas pela comadre tolhem de vez a expressão do admirador, que, introspectivamente, recolhe-se ao seu universo interior. Portanto, nos diferentes momentos de tensão frente ao ser amado, veremos que o seguinte roteiro se repetirá com certa estabilidade por parte do protagonista: avaliação dos julgamentos alheios, embate entre o que ambiciona dizer e o que diz de fato, silenciamento diante das respostas de Leopolda. Exatamente quando o câncer começa a roubar as forças de Justino Vieira, obrigando-o a enclausurar-se em casa, Leopolda, como uma sombra reanimada do passado, ressurge na vida dele. A presença da cunhada expande-se pela casa, assumindo a posição de elemento dominante. A relação de poder, que permite a ação da mulher sobre a ação do homem, opera pelo sistema de diferenciação73: ela está saudável e ele está enfermo. Na realidade, a cunhada age sobre o silêncio74 e sobre a passividade do outro. Instalando-se no quarto de visitas75, começa a reorganizar e limpar a casa: troca móveis de lugar, areja as salas, vai ao supermercado. Assume o controle da residência e, por extensão, manda também no proprietário: “Passou logo a me fornecer ordens, questionando a minha conduta de doente, como se acabássemos de fechar um tácito acordo em que ela mandava e eu obedecia.” (DANTAS, 2004, p.64). Justino Vieira, motivado também pela esperança de um relacionamento sexual 76, aceita o “tácito acordo” sem impor uma só palavra de oposição. Tal consentimento representa que o amor é a outra face da dominação, exerce um misterioso poder sobre os homens, os quais são abalados pelos arroubos da paixão, encantados pela magia obscura que os fazem “esquecer dos deveres ligados a sua dignidade social, determinam uma inversão na relação de 73 Foucault (2009, p.245) explica que as relações de poder se alastram no conjunto da rede social, materializando-se de formas múltiplas. Toda possibilidade de ação sobre a ação dos outros opera por “sistema de diferenciações”, “diferenças jurídicas ou tradicionais de estatuto de privilégio; diferenças econômicas na apropriação de riquezas e dos bens; diferenças linguísticas ou culturais; diferenças na habilidade e nas competências, etc.”. 74 Entre tantas ocorrências que Justino Vieira cala-se perante a cunhada, destacamos a cena em que Leopolda, a fim de arejar a casa, livra-se das coisas desnecessárias, vendendo inclusive a cadeira onde os filhos do protagonista se alimentaram. Ele revolta-se sem nada falar: “Tornei a ficar aborrecido, mas não lhe manifestei o meu desgosto. Enfim, eu a aprovava ou desaprovava? Como me reconheço nesse sujeito instável!” (DANTAS, 2004, p.64). 75 Ao instalar-se no quarto de visitas, Leopolda demarca claramente o distanciamento para com o dono da casa, pois este é “Um cômodo para pessoas de muita cerimônia” (DANTAS, 2004, p.63); e revela implicitamente que sua estada será temporária. 76 O narrador confessa que acalentara, por muito tempo, o desejo pela cunhada, chegando a procurá-la ainda quando a esposa era viva: “Morto o marido, eu pensava, ela agora está desimpedida. É uma mulher sozinha e carente. Uma mulher que precisa de apoio. [...] [raciocinava] se não é minha, se não me quer, não será de mais ninguém” (DANTAS, 2004, p.172). Esse comportamento reflete a ineficácia dos valores católicos e burgueses que Justino Vieira procura conservar, visto que o casamento, como uma instituição, não consegue exercer o monopólio das relações sexuais entre homens e mulheres. E agora, dividindo o mesmo teto, embriagando-se com o perfume da amada, a paixão volta a lhe queimar o corpo. 132 dominação; inversão que, na ruptura da ordem comum, normal, natural [de que o homem deve dominar] é condenada como uma falta contra a natureza” (BOURDIEU, 2014, p.154) Não obstante, nos primeiros dias, o que mais o irrita são os pedidos de dinheiro para a compra de mantimentos, por acreditar ser um abuso. Estes pedidos fazem-no crer que ocupa uma posição superior em relação à cunhada, uma “criaturinha necessitada, mal paga” (DANTAS, 2004, p.65). Encolerizado, julga que a comadre aproxima-se apenas para aproveitar-se financeiramente, presumindo que a hóspede será uma presença dispendiosa. Muitas são as suposições raivosas elaboradas apenas mentalmente, sem que nunca sejam enunciadas. O protagonista, nestas circunstâncias, incuba um modo perigoso de silêncio: o do “deixar-se roer por dentro, que mais tarde pode levar [a] perigosas explosões das agressões represadas” (GRÜN, 2004, p.32). Porém, a gestação desse emudecimento revolto rapidamente é abortada, pois “bastava Leopolda circular os olhos de mel pelo meu rosto, para que eu me encolhesse, envergonhado” (DANTAS, 2004, p.65). O olhar77 da amada concentra uma intensidade capaz de combater a irritação do protagonista, fazendo-o se recolher em um silêncio tímido que escapa ao risco de produzir um sério desentendimento por não controlar suas palavras. O doente tenta enfrentar caladamente a intrusa dominadora, busca refrear sem ofender. Na tentativa de afirmar a legitimidade da posição de dono da casa, ele desenvolve uma estratégia de combate, contracenando uma performance pateticamente viril: “Nesses dias que me pareciam decisivos pra mostrar-lhe o seu lugar, eu cruzava com ela e virava a cara. Pisava no chão com força, temperava a goela, me fazia de estorvado. E, ela, nem chite!” (DANTAS, 2004, p.66). O silêncio da revolta, expresso através do gesto impotente, configura-se como uma estratégia de insubmissão fracassada. Justino Vieira tem a liberdade de falar com a cunhada, até de mandá-la embora, afinal, a casa é dele. No entanto, com o corpo carcomido pelo câncer e debilitado pela medicação, carece de qualquer elemento que legitime seu poder, suas ações são fracas. A autoridade forjada não é reconhecida por Leopolda. Ela é o ser com saúde e beleza, estes são os mecanismos de poder que o fazem obedecê-la e permanecer emudecido para não ofendê-la. Os dias passam, a convivência ameniza a irritação. A comadre apresenta-se sempre prestativa e cuidadosa: prepara dietas balanceadas, vai à farmácia, monitora o horário da medicação, controla o tempo que este fica exposto ao sol, providencia os papéis da 77 O olhar que provoca o silêncio também é expresso em outras passagens: “Nesta hora, Leopolda me lançou o olhar com uma penetração tão funda, que me deixou paralisado. Foi a última vez que lhe reclamei alguma coisa. Por pura delicadeza, ela me deixou ali com a última palavra e virou-me as costas sem fazer a menor objeção” (DANTAS, 2004, p.67). 133 aposentadoria dele, incentiva-o a reivindicar seus direitos previdenciários, chega até mesmo a presenteá-lo com uma tradução de Onetti. Assim, as sombras da desconfiança, as suspeitas de aproximação interessada se dissolvem, permitindo que o sentimento amoroso de Justino Vieira aumentasse na mesma proporção de seu silêncio amoroso: “Aprendi, e a que custo! Que, mais das vezes, os tumultos que geram e se consomem no silêncio são o fogo do inferno. Ah, se eu conseguisse me abrir com Dona Leopolda! Não, não. Já não vai adiantar” (DANTAS, 2004, p.224). A impossibilidade de abrir-se com a cunhada pode estar relacionada ao fato de que, no território turbulento das emoções a palavra perde a hegemonia, dado que o indecifrável impresso no desejo dissolve com qualquer a possibilidade do signo linguístico ser composto por uma real significação. Afinal, “amar é surpreender-se mudo, no mundo, determinado pelo indizível do sentimento” (KOVADLOFF, 2003, p.176). A cunhada, precisando agilizar a documentação da pensão, que lhe era de direito, ausenta-se por alguns dias. O tempo de distanciamento é útil para que o enfermo avalie o que se passa em sua subjetividade. Dessa maneira, quando a amada regressa, as palavras trancadas reúnem a força necessária, e o protagonista, finalmente, enuncia: “ – Leopolda – falo com emoção, quase mergulhando nos seus olhos –, é muito bom estar em sua companhia. Não sabe como senti a sua falta. É um conforto... É um descanso viver assim a seu lado...” (DANTAS, 2004, p.264). Todavia, as palavras entusiasmadas não surtem o efeito esperado, a mulher desejada, em vez de alegrar-se com a amabilidade, reprime-o de modo áspero: – Está me fazendo a corte, Justino? – A voz irônica interrompeu o tom indagativo e, com crueldade, sibilina, passou a me cobrar algum difuso e remoto erro imperdoável. Rodou o pulso e ergueu o indicador em minha cara: – Você... que nunca me enxergou! Que sempre me preteriu! Arremata assim endurecida, autoritária, dá uma rabanada e levanta-se, arrepanhando a saia! Vai trancar-se no quarto de visitas onde até agora se mantém. (DANTAS, 2004, p.264) O dito cede espaço para o não dito, configurando um momento de libertação do que estava represado. O desagravo de Leopolda, em forma inquisitiva, sugere que ela também nutriu alguma esperança. Acusar o outro de nunca tê-la enxergado revela que a mesma se mostrou, quis ser escolhida por ele. O diálogo desmascara o tensionamento de forças antípodas, reproduzindo as relações de poder: em um polo inferior, concentram-se as palavras afáveis, enquanto, no polo superior, encontram-se as palavras rancorosas. Neste embate, a intensidade dos vocábulos ressentidos é legitimada através da performance adotada da enunciadora, tendo em vista que são acompanhadas pelo tom de mágoa, de interrogatório e 134 afronta gestual. Desse modo, as palavras coléricas se apossam de um poder que interdita as amorosas. O embate gera um silêncio de surpresa por parte do protagonista, e, pode-se dizer, um silêncio raivoso, por parte da cunhada. Leopolda impõe sua palavra de ordem, domina a cena, é o agente ativo nesta rede de poder. Resta a Justino Vieira aceitar a condição de submissão, uma vez que, incapaz de compreender o não dito impregnado no que foi dito pela cunhada, ele não reage. Se considerarmos que os laços entre sexualidade e poder são intrínsecos – seguindo a perspectiva traçada por Bourdieu (2014, p.38) de que “as posições e os papéis assumidos nas relações sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociáveis das relações sociais que determinam, ao mesmo tempo, sua possibilidade de significação” –, é plausível defendermos que o posicionamento das personagens, de dominador e dominado, cristaliza-se quando os dois entregam-se, pela primeira vez, à volúpia: [...] lutando contra a enxaqueca, com a boca seca de desgosto, senti vivamente a lavanda de Leopolda me penetrar pelas narinas. Era a primeira vez que aquele perfume me enchia o quarto de modo tão forte e numa hora da noite adiantada. Essa fragrância chegara como um chamado de posse, um obscuro convite logo reiterado pela porta que começou a ranger devagarinho. [...]. Para cegar meus olhos incrédulos, Leopolda avança na ponta dos pés, levitando como uma virgem. Chega caladinha, põe as mãos sobre o lençol e acomoda-se a meu lado! Ajeito-lhe o travesseiro para que apoie a cabeça [...]. Ela me devolve e, num silêncio cheio de promessas, acomoda a cabeça no meu peito. [...]. Em silêncio, estamos além de todas as barreiras, não careço de palavras, nos mantemos abraçados. A mão direita, enlouquecida por anos e anos de espera, apanha a sua cabeleira sob a nuca, faz ziguezagues à toa, desce circulando as espáduas [...]. (DANTAS, 2004, p.267) A relação sexual, como explica Bourdieu (2014, p.38), apresenta-se “como uma relação social de dominação”, alicerçada no princípio de divisão fundamental entre o masculino/ativo e o feminino/passivo. Tal princípio expressa o desejo masculino de posse, de dominação e o desejo feminino de subordinação. Nesse sentido, a representação do contato sexual dessas personagens inverte a lógica expressa pelo sociólogo francês. A cunhada age sobre a passividade do dono da casa, é ela quem detém a libido dominandi no decorrer de todo o ato sexual; transformando-se na personagem dominante que invade o ambiente do outro, que tira a roupa, deita-se na cama e, inclusive, exerce o mando: “‘não pare, Justino, não pare’” (DANTAS, 2004, p.268). Com isso, ela assume a esfera da masculinidade, sendo o elemento ativo que ambiciona a posse. Sobra ao protagonista a tarefa de fazer o que lhe é esperado como homem, cumprir com sua missão mesmo sem entender o seu “apetite desvairado” (DANTAS, 2004, p.269). Destarte, ele é a metáfora da condição feminina da 135 passividade e de subordinação. Perante o desejo, os corpos se entendem em uma linguagem aquém das palavras, em que qualquer signo linguístico é dispensado devido à incapacidade de traduzir o arroubo que se passa na subjetividade profunda. Concluído o ato sexual, os papéis atenuam-se temporariamente. Após o mando e o gozo, vem o choro. Leopolda liberta lágrimas e soluços, contudo, não fala. O silêncio acompanhado pelo pranto atordoa Justino Vieira, porque nada se pode saber acerca dos pensamentos daquele que se “recusa em entrar na comunicação, isto é, em participar no mundo simbólico das palavras” (LE BRETON, 1997, p.104). Diferentemente das outras vezes, em que simplesmente calara diante da amada, presumindo que a cunhada arrependerase da iniciativa, ele resolve confortá-la: – Se você está arrependida, minha filha, se foi uma insensatez, uma hora de tontice, tudo bem. Não vamos complicar a sua vida. Tudo volta à estaca zero. [....].Ou se preferir que essa nossa intimidade fique só entre nós dois, tudo bem! Eu entendo! Há a sua reputação a zelar. Não quero ferir sua respeitabilidade. [...]. Ninguém vai saber de nada. Nós podemos despistar... (DANTAS, 2004, p.207) Ironicamente, o amante fala para oferecer o silenciamento. A coragem de pronunciar suas palavras diante do ser ativo provém, contraditoriamente, da sua covardia, da hipocrisia pequeno-burguesa que preza pela manutenção das aparências. Em nome de uma falsa respeitabilidade/moral, o prazer pode ser usufruído, desde que seja escondido, desde que permaneça restrito à esfera privada. A tentativa dissimulada de silenciamento, ofertada por Justino Vieira, falha. Leopolda reassume o papel ativo, apropria-se da posição discursiva dominante para enfrentar o cunhado: – Despistar! Você sempre foi um frouxo, Justino, e nunca vai se emendar. [...]. E agora, depois que me humilho, que taco fogo no derradeiro farrapo de meu orgulho, você se achega pra me falar em despistar... Você devia era ter vergonha, Justino! [...]. Pois me propor esse acordo imoral! Seu bunda-mole! Esqueceu que somos viúvos, Justino? [...]. Nunca me importou a língua dos vizinhos, você sabe. [...]. E agora me vem você, um homem desta idade, a me incutir a filosofia do despistar. [...]. Pensa que não sei como você enganava Damarina? Que é diplomado em despistar? Fosse eu a traída, largava você aí de lado. Você é um homem, Justino? Ou é um chuchu se delindo... afogado na própria água choca? (DANTAS, 2004, p.270-271) Leopolda exibe-se, e é construída pelo narrador, como uma mulher resistente por natureza que, despreocupada com as falsas aparências, ao curvar o orgulho para satisfazer o desejo corpóreo, recebe como recompensa uma ofensiva proposta de pacto sigiloso. A conduta íntegra, conservada ao longo da vida, legitima sua autoridade para julgar o cunhado. 136 Detendo o poder da palavra, a mulher ofendida desvela a máscara do amante: um homem frouxo, sem iniciativa, adúltero, covarde, preocupado com sua imagem. As ofensas e as palavras de baixo calão, integrantes da tática de acusação, servem como instrumentos que otimizam a intimidação. Justino Vieira até tenta replicar; no entanto, o jogo de forças é desigual, qualquer vocábulo que ouse proferir soará como falso ou dissimulado. Demonstrando estar ciente de que, nas práticas sociais da língua, “o bom uso da palavra consiste no saber que certas coisas têm que ser caladas fora dos momentos em que será lícito ou vantajoso dizê-las” (LE BRETON, 1997, p.114); resta-lhe apenas o silêncio dos derrotados: “Calei, calei que não sou besta” (DANTAS, 2004, p.272). Continuar com a discussão poderia causar, além do mal-estar de ter sido desmascarado, o afastamento do ser amado, o que provocaria o fim da satisfação carnal que recém principiara. O envolvimento sexual e a convivência diária são insuficientes para criar um clima favorável à confissão dos sentimentos. Justino Vieira, decidido a reconhecer sua inferioridade e, destarte, louvar a pessoa de Leopolda, chama-a até o escritório. Não obstante, por conferir ao seu discurso um tom solene, acaba intimidando a comadre, que interrompe a arguição, preferindo não ouvi-lo. Tal recusa, que se aproxima da indiferença, cerceia as palavras do amante, visto que, “para poder falar é preciso ter alguma coisa a dizer ou um interlocutor interessado para ouvir aquilo que se diz e responder” (LE BRETON, 1997, p.40). E o protagonista está desprovido desse interlocutor, obrigado a permanecer enterrado no silêncio amoroso: De forma que esta vida é mesmo engraçada... Tive ou tenho Leopolda em meus braços, Leopolda inteirinha. Em espírito, carne e osso! Mas... pelo visto, vou levar para a cova as palavras de todos os minutos, de todas as horas, de todos os dias; as frases que passei a vida arranjando das mais bizarras maneiras, sempre insatisfeito; frases que, anos e anos, projetei nas minhas ânsias, esquentaram meu sangue, formigaram minha cabeça. Incessantemente. Vezes que estive a ponto de explodir. (DANTAS, 2004, p.335) Ardilosamente, Leopolda pede para Justino Vieira assinar uma apólice de seguro que lhe beneficiaria. O cunhado, como sempre, de modo taciturno, hesita, pensa que é um abuso; todavia, arrepende-se em seguida dos maus juízos acreditando que afetivamente é correspondido. Depois dos papéis legalizados, a ilusão cai por terra. A cunhada afirma que seus “serviços” (DANTAS, 2004, p.358) não são mais úteis, por causa que a doença estacionara e, agora, precisava seguir com a sua vida. Em seu lugar, deixa Agripina, uma jovem natural do vilarejo de Alvide, que será a nova enfermeira. A mesma conduta dominadora dramatizada no momento da sua chegada é reencenada em sua saída, a 137 superioridade exala de todos os poros da personagem: “A postura autoritária, gritante, inabordável. Falou com calma, [...]. E decidiu tudo sozinha. Despótica. Tirana. Autoritária. Não me concedeu oportunidade de rebatê-la” (DANTAS, 2004, p.358). O fim era iminente. As primeiras suspeitas que Justino Vieira acalentara sobre os motivos da reaproximação da cunhada, aparentemente, confirmam-se, já que, no final das contas, o dinheiro foi o valor mais importante, os cuidados se metamorfosearam em mercadoria. Porém, cansado, desencantado, com o coração estilhaçado, o protagonista nada diz, o que assevera que o “Silêncio não significa não termos emoções. Mas tentarmos fazer com que as emoções se acalmem” (GRÜN, 2004, p.22). A submissão e a obediência são mantidas frente ao elemento dominador, o receio de ser alvo de desaforos e represálias o limita discursivamente: “A seguir, mais dono de mim, ainda balbuciei um arremedo de súplica na intenção de não perdê-la de meus olhos. Mas tive medo de outra regulagem, de que me lançasse lama na cara” (DANTAS, 2004, p.360). O narrador-protagonista é assolado por um sentimento de logro perante o tempo, só restando a ele uma resposta: silenciar. 3.5 Outras sombras taciturnas: o aprendizado do silêncio A dominação e o silenciamento a que Justino Vieira se sujeita perante Jileu Bicalho e Leopolda incitam-nos ao seguinte questionamento: por que o protagonista se submete? Acreditamos que a resposta pode ser encontrada na sua infância e adolescência. Entre as diversas personagens resgatadas pela memória do narrador-protagonista, há duas que, ao longo das suas rememorações, recebem atenção especial. São elas o tio paterno, Divino Melenguê, e o padrinho, Padre Barbarino. Ambas, representantes de polos opostos dentro do universo ficcional, contribuíram substancialmente para a conformação da identidade de Justino Vieira, que teve os passos norteados e as escolhas guiadas pelos ensinamentos transmitidos por esses dois homens. Abandonado pelo pai, órfão de mãe, o protagonista passa a infância sob a tutela do tio Divino Melenguê, consanguíneo que, simultaneamente, aprendera a admirar e compreendera a inviabilidade de seguir seu exemplo de valentia. A coragem e a retidão do tio eram os pontos fortes de seu caráter, atributos herdados da família, haja vista que provinha de “uma estirpe às direitas, raça que primava pela rudeza” (DANTAS, 2004, p.158). Embora fosse um sujeito abonado, com alguns animais e dono da pequena fazenda Romã de Riba, Divino não era rico. Ao contrário, para complementar a renda e prover o sustento da família, precisava fabricar mercadorias de pau ou de couro para vendê-las na feira 138 de Contendas do Papudo. Dentro da sociedade de classes mimetizada pelo romance, Melenguê pode ser considerado um herdeiro daqueles que, na época do Brasil Colônia 78, não se ajustavam bem nos extremos da escala social; não podendo ser empregadores e tampouco almejando ser assalariados, são repelidos pela instabilidade característica da economia e produção brasileira, a qual nunca lhes possibilita a fixação em bases seguras. Legatário ficcional dessa categoria indefinida socialmente, Melenguê não é patrão nem empregado. Entretanto, o parco capital econômico não é sinônimo de prestígio social reduzido, uma vez que, diante das condições de penúria a que estavam expostos os habitantes do interior do Alvide, esse morador “era olhado com a inveja que todo pobre remete a um homem remediado” (DANTAS, 2004, p.163). Divino era portador de um poder simbólico legitimado por três elementos: pelo relativo capital cultural 79, pela lealdade para com os outros e pelo senso de justiça. Tais elementos, juntos, fazem com que os vizinhos o reconheçam como uma espécie de autoridade, respeitando-o a ponto de ninguém “rir diante dele” (DANTAS, 2004, p.159). Por ser uma personagem de conduta reta e justa, ele é incapaz de privilegiar-se por meio da “liderança natural” (DANTAS, 2004, p.163) emanada pela sua figura. Desconfia dos líderes políticos que se beneficiam da ingenuidade do povo e, por isso, não compactua com eles: Mas não ia com deputado, não ia com vereador, nem com os cabos eleitorais, justo porque era uma gente descarada que conversava demais, que vivia a iludir o povo, fazendo promessas [...] não aceitava propostas de sair de casa em casa catando votos de homens e mulheres. Os políticos não se conformavam com essa recusa. Ele queria se fazer por conta própria, sem aval de deputado ou de patrão. (DANTAS, 2004, p.163) O tio teme o pathos excessivo da palavra dos políticos. De forma análoga a muitas personagens nordestinas de nossa literatura nacional, as quais, segundo Holanda (1992, p.56), desconfiam dos “efeitos da eloquência, pois sabe[m] [que], quando quer convencer, o orador 78 Durante esse período, apenas dois grupos tinham suas posições bem definidas hierarquicamente: os senhores e os escravos. Todavia, entre os poucos dirigentes e a vasta massa trabalhadora, comprimia-se, conforme Caio Prado Junior (2011, p. 122), uma terceira categoria que se avulta com o tempo, daqueles indivíduos que não se encaixam plenamente em nenhum dos dois polos sociais, homens livres “de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias”. 79 Além da fazenda e da coragem, a leitura e a escrita foram os bens que o pai do tio lhe deixara como herança. É interessante destacarmos que no romance Cabo Josino Viloso, que também tem como narrador Justino Vieira, os dotes e caracteres distintos de Divino Melenguê são igualmente enfatizados em muitos momentos, sendo que até mesmo o delegado Josino, por ser analfabeto, recorria a essa personagem sempre que necessitava escrever ou ler algo: “Ao catatau da Constituição Brasileira, um toro de papel contraditório e ilegível, ele preferia ouvir de tio Melenguê a Carta de Declaração dos Direitos Humanos ou alguns versículos do Evangelho” (DANTAS, 2005, p.75). 139 oscila entre a verdade e a volúpia verbal”. Por conseguinte, o orgulho em não trocar favores, a ambição de vencer sozinho, é o primeiro erro cometido por Divino. Ele simplesmente ignora as velhas artimanhas que sustentam, secularmente, a estrutura social brasileira, em que as relações de trabalho são produto de um conjunto complexo de laços sociais guiados por valores como a intimidade, a consideração e o apadrinhamento. O pequeno proprietário rural, ao menosprezar esses princípios, acaba ficando exposto aos mais diferentes riscos. Perigos que ele sofre na carne. Motivado pelo desejo de assentar praça na polícia, com o objetivo de “tentear um começo de ordem para o Alvide [...], [e] botar a sua terra pra frente” (DANTAS, 2004, p.161), o dono da Romã de Riba se desfaz dos bens e parte. Ingenuamente, lança-se sozinho, sem sequer um “bilhetinho de um deputado! Quebrou a cara logo na chegada” (DANTAS, 2004, p.163). Em uma verdadeira peregrinação, em busca da nomeação, o candidato a homem da lei passa por Contendas do Papudo, por Feira do Santana, e só quando chega em Salvador, percebe que seu sonho dificilmente se realizaria. Através do seu malfadado empenho, Dantas desvela a crueldade do sistema de relações sociais, regido pela lógica do apadrinhamento. As andanças de Divino confirmam que, naquele universo representado, mesmo que a personagem seja portadora de qualidades distintivas, valorizada dentro de sua comunidade, a entrada em um sistema social no qual não é conhecida e sem a ajuda de ninguém equivale a se tornar um indivíduo; isto é, um sujeito anônimo, exposto às leis universais e impessoais. Vale mencionarmos que os mediadores ou padrinhos amenizam as adversidades interpostas pela “vida” (DAMATTA, 1997, p.242), em especial para aqueles que ocupam as posições mais baixas na escala social. Ironicamente, o tio do protagonista somente consegue a lotação, visto que um vereador de sua cidade natal intercede80 por ele, agindo como uma espécie de padrinho. No entanto, o sonho se transfigura em pesadelo. Divino passa a ser vítima de assédio sexual por parte de um superior, o Tenente Elesbão: Quando finalmente admite que está sendo tratado como uma menina, o corpo inteiro arrepia e ele vai ao Elesbão na ponta das botinas, com o juízo rebelado. Não fala quase nada, que as palavras que lhe brotam da cabeça tem vergonha de nomear a nojeira daquele troço que a sua cabeça, por mais de uma semana, se recusa a aceitar... (DANTAS, 2004, p.164) 80 Contudo, essa intercessão não pode ser considerada propriamente um apadrinhamento, já que ambas as partes não estavam de acordo: “Tio Melenguê não era um homem de promessas, o outro sabia. Mas os políticos vivem a saltar de lado a lado, e julgam as pessoas por si mesmos. Este, conhecia o prestígio e a boa reputação de Tio Melenguê, o homem mais falado do Alvide, e não lhe faltava esperança de arranjar naquele domicílio uns votinhos” (DANTAS, 2004, p.163). 140 Para um sujeito duro, que sempre procedera com firmeza e sequidão, perceber que é cobiçado por outro homem é algo abominável que permanece na esfera do indizível. Um silêncio de pudor ofendido e de revolta materializa-se a ponto de bloquear qualquer palavra que tenha a capacidade semântica de nomear os sentimentos de nojo e de vergonha, experimentados pela personagem. O emudecimento é um modo simbólico de réplica ao insulto sofrido. A raiva perante a honra ofendida faz com que Divino ignore a posição superior do Tenente e o ameace: “– É me encostar a mão... Seu Tenente... e lhe tanjo nas arcas do inferno...” (DANTAS, 2004, p.165). Melenguê desrespeitou a ordem hierárquica, deixou de reconhecer a autoridade de Elesbão legitimada pela farda, e, por essa razão, é no outro dia punido. Diante do público militar, o Tenente manda, aos berros, que o insubordinado passe o ferro em sua túnica. O soldado nada responde, decidido a voltar para casa, fecha-se em si mesmo, restringe-se a cuspir “ira pelos olhos, a ponto de calar os mais afoitos” (DANTAS, 2004, p.165). O calar-se, como garante Le Breton (1997, p.84), “é uma forma extrema de defesa, em que se equilibram vantagens e inconvenientes. Aquele que se cala, sem dúvida não se entrega, mas dá a impressão de ser mais perigoso do que é”. Realmente, o subordinado é mais ameaçador do que parece, posto que, desmentindo a pequenez física que o aproxima de um “engasgo de gente” (DANTAS, 2004, p.167), ele lava sua honra ultrajada com a morte do tenente. A lealdade, a pureza dos desejos sinceros de levar o progresso e a ordem para seu vilarejo, “a postura inviolável” (DANTAS, 2004, p.171), enfim, todos os seus atributos positivos não lhe foram suficientemente úteis para enfrentar o contraditório sistema social do qual era integrante. Inversamente a Jileu Bicalho, que soube movimentar-se de acordo com as susceptibilidades que se apresentaram ao longo de seu caminho, Melenguê careceu de flexibilidade, de malandragem e de esperteza para encarar as situações-limite, para fechar os olhos diante das injustiças e aceitar a ordem estabelecida pelas relações de dominação. Além de preso, o tio é espancado. Segundo a narração de Justino Vieira, isso o faz perceber tanto a ineficiência de seus esforços quanto a arbitrariedade das ações dos representantes da Lei. Compreende a estrutura desigual em que está inserido, a predestinação que acomete as pessoas de seu “calete” (DANTAS, 2004, p.167), aprende que o destino de classe não pode ser alterado. Decepcionado, constata que um homem simples como ele, desprovido de grandes posses e de um padrinho para abrir as portas, é apenas uma peça de pouca importância para a engrenagem do sistema de poder. 141 Em contrapartida, Divino era dono de uma natureza indomável, a submissão não fazia parte de sua personalidade, uma vez que “Não fora feito para conjurar obediências, para meter a cabeça no cabresto de alguém” (DANTAS, 2004, p.171). Violando as relações de poder, consegue fugir no decorrer do translado para uma penitenciária, regressando para a fazenda Romã de Riba. Devido aos boatos de que a polícia de Paulo Afonso estaria procurando-o, ele permanece, por algum tempo, restrito à fazenda. Apenas fica o tempo necessário para recuperar-se. Cicatrizados os ferimentos, não se intimida em comparecer, semanalmente, na feira do Alvide. Até porque o delegado Josino Viloso era seu conhecido e fazia vistas grossas para a presença do foragido. Apesar de saber que a proteção do delegado é parcial, Divino não dá mostras de medo aos outros representantes do poder. O caso das faquinhas é um exemplo da manutenção dessa personalidade indômita: certo dia, ao chegar à feira, o tio deixa o sobrinho vigiando os caçuás e sai. Durante sua ausência, um sujeito joga para dentro dos cestos um saco, o menino acredita que estejam sendo vítimas de alguma emboscada. Nesse momento, para investigar o ocorrido, chega um policial que, de forma arrogante, derrama todo o conteúdo do receptáculo no chão. A decepção é nítida, são apenas facas artesanais e não armas de fogo. Sentindo-se humilhado publicamente, Melenguê ignora, mais uma vez, a autoridade legitimada pela farda e reage: Tem de tirar satisfação. Mede a insolência do soldado, e indaga, como quem atira uma pedrada: – Ô, Seu Praça... donde lhe vem essa soberba... a minha ferramenta espalhada assim no chão?! Fala pregando os olhos no policial com tanta força que o povo todo recua. A voz metálica tinia numa petulância que jamais vi em alguém. [...]. – O dever de minha farda é investigar, seu paisano – responde-lhe o soldado já caindo fora, incrementando as passadas, coçando a cabeça com certa humildade. [...]. Meu tio não temia nada. Era um homem de enfrentar até um destacamento. (DANTAS, 2004, p.173-174) Divino não se curva, conserva sempre ares de superioridade. Esse posicionamento firme é representativo da problemática de que, na realidade, o poder como um atributo fixo e eterno de uma só pessoa não existe. O que existe são práticas ou relações sociais de poder que permeiam todos os meios sociais e funcionam em rede. Assim, não é algo que um sujeito detém o tempo todo, deve ser entendido antes como uma tática, manobra ou estratégia (FOUCAULT, 1995, p.251). Chamamos a atenção para o fato de que Melenguê age sobre a ação do militar com o objetivo de intimidá-lo, de demonstrar que não reconhece a farda como símbolo de autoridade, a qual deva ser obedecida bovinamente. 142 Tão marcante quanto a bravura era o silêncio conservado pelo tio. Seu caráter taciturno era muito próximo dos animais: “[...] se portava como um bicho: não mostrava nenhum entusiasmo. Preferia emudecer a uma pergunta, suprimir o que tinha a dizer, do que titubear alguma dúvida. E não gostava de evasivas [...]” (DANTAS, 2004, p.178). Um comentário arguto de Holanda (1992, p.71) sobre Fabiano, de Vidas secas, pode ser estendido a essa personagem de Dantas81: o silêncio “é a couraça de dureza que o defende da própria fragilidade”. Não obstante, que fraqueza teria esse bravo homem que, mesmo fisicamente pequeno, tem aptidão para enfrentar representantes da ordem e matar a facadas outro homem? A fragilidade, podemos inferir, consiste tanto na inocência de acreditar que era possível melhorar as condições do povo sem apadrinhamentos, quanto no receio de se deixar iludir pelas palavras, especialmente dos políticos que conseguem “levar a gente no papo” (DANTAS, 2004, p.158), ludibriando a todos com promessas. Após o caso das facas, Melenguê passa a frequentar semanalmente a feira, em busca do dono daqueles objetos. Com a exposição demasiada, o tio acaba por se tornar vítima de uma suposta cilada, pois aparece sem vida, atado em cima de seu cavalo. A morte é considerada pela polícia como suicídio, porém o sobrinho desconfia dessa versão. Cremos também que o silêncio absoluto da morte é a punição destinada a Divino em razão de sua soberba, pelo afrontamento ao poder legitimado, por enfrentar o “esqueleto hierárquico” (DAMATTA, 1997, p.218), não permanecendo no seu devido lugar, por jamais deixar-se submeter. Os juízos de Justino Vieira sobre o tio oscilam ao longo do processo narrativo. Em muitos momentos, parece que o narrador realiza uma apologia à coragem e à rigidez daquele, desejando ser tão vigoroso quanto o antepassado. Já em outras ocasiões, na tentativa de demonstrar que a valentia é inútil contra a força das práticas sociais convencionalizadas e das relações de poder, explicita que a conduta de Divino merece admiração, entretanto, é exemplo de “qualidades que se devem evitar” (DANTAS, 2004, p.347), as quais não podem ser repetidas no cotidiano. Afinal, como o próprio narrador questiona, “Mas, convenhamos, coragem, de que serve? Se no pano de nossa sociedade, ser inteiro como um bicho é se botar a perder?” (DANTAS, 2004, p.347). Melenguê começara, na infância do protagonista, a repassar lições sobre o valor da coragem, da altivez. Homem de “solidez áspera, [de] rudeza silenciosa” (DANTAS, 2004, p.159), que não explodia por meio de palavras raivosas, contudo, como um animal maltratado, 81 Não ignoramos a distância social ficcional que separa essas duas personagens e as condições em que se desenvolve o silêncio de cada uma delas. 143 “sofria para poder conter a ponto de rosnar” (DANTAS, 2004, p.160) Transmitira a mensagem de que é sempre preciso manter a dignidade, conservar a natureza, não se dobrar aos mandos e desmandos alheios. Todavia, com a morte desse exímio professor, aqueles ensinamentos foram encerrados abruptamente pelo Padre Barbarino, que passa a ser o responsável pelos cuidados do órfão, transformando-se em padrinho e assumindo, também, o posto de mestre do garoto. Sob a tutela desse religioso, Justino Vieira inicia outro aprendizado, capaz de remodelar sua identidade, alicerçado sobre os princípios do silêncio e da obediência. Barbarino Vieira era parente do avô do protagonista e, concomitantemente, na condição de clérigo, o consanguíneo mais importante da família. “Diplomado em boas maneiras” (DANTAS, 2004, p.11) e educado, o padre está inserido em uma camada hierárquica relativamente elevada do quadro social representado, tendo em vista que o poder eclesiástico sempre esteve ao lado dos vencedores nas relações sociais, afigurando-se como um dos principais instrumentos de dominação (FAORO, 2001). A primeira providência tomada por Barbarino é converter à fé católico-cristã o afilhado pelo batismo. Este sacramento, no universo romanesco em questão, desempenha um papel metafórico de tentativa de morte e de renascimento. O menino de outrora é enterrado, ou melhor, silenciado, já que o padre “subtraiu o nome Melenguê da certidão” (DANTAS, 2004, p.177). Este ato de subtração insinua a imposição de um apagamento identitário, é como se todo o lado pecador e rebelde, ensinado pelo tio, precisasse ser esquecido. Batizado, com a certidão de nascimento renovada, o garoto se torna outro, pronto para ingressar em um novo treinamento: o do silêncio e da submissão. A criança, ignorante das táticas de poder, suspeita que a subtração do sobrenome tenha ocorrido por motivos religiosos: “será que Tio Melenguê havia se matado, e por isso perdera o merecimento de sua religião? Decerto, Tio Barbarino admitia a danação de sua alma suicida, e queria, de alguma forma, apagar de mim o nome contaminado” (DANTAS, 2004, p.177). É óbvio que o padrinho queria eliminar o nome contaminado, mas, certamente, por outras razões. Ainda que residisse em Rio-das-Paridas, o padre, ao que tudo indica, tinha conhecimento da personalidade rude e pouco maleável daquela personagem, além de que a morte de Divino, supostamente, envolvia jogos de poder, o que deixava tanto o sacerdote quanto o afilhado em uma situação vulnerável. Embora a cidadezinha estivesse em processo de modernização, é perceptível que havia uma esfera arcaica e patriarcal que permanecia latente, na qual os medalhões, para vingar a honra ofendida, utilizavam como armas a opressão, a violência e a maldade. Destarte, o apagamento é um mecanismo de proteção 144 imposto pelo religioso contra o perigo iminente, haja vista que, com um nome novo, os sujeitos perseguidos, como postula Ernest Cassirer (2000, p.70), são capazes de se subtraírem da ameaça, na medida em que atraem, de certa forma, um “eu” diferente, cujo envoltório os torna irreconhecível. O novo caminho apresentado pelo Padre Barbarino opõe-se, em completo, ao que o afilhado percorrera antes. O processo de purificação de Justino Vieira é desenvolvido por meio de lições que exercitavam a paciência, a tolerância, a resignação e a humildade. Dessa forma, o padre reprisa, ficcionalmente, a consagrada missão religiosa, propagada nas origens da colonização brasileira, na qual os ensinamentos eclesiásticos eram “elementos de transição da vida selvagem para a civilizada” (FREYRE, 2003, p.218). O narrador revela que Desde o princípio, todo o santo dia, Tio Barbarino predizia martelando no meu ouvido: sem humildade cristã, sem renegar a soberba, você vai continuar um peloco depenado. E um homem sem futuro. Não ganha nem para se vestir. Você tem de se dobrar. É uma condição sine qua non. (DANTAS, 2004, p.107) A natureza indômita de Justino Vieira é soterrada pela submissão. O peso da tradição o oprime, fazendo com que a longa história de dependência e exploração do povo nordestino se repita inclusive no fim do século XX. O pupilo é condicionado a seguir o hábito ancestral “de se dobrar” perante os poderosos. Podemos defender que Padrinho Barbarino, devido aos ensinamentos transmitidos, é uma reconfiguração representativa dos antigos jesuítas, os quais melhor desempenharam, na perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda (1995, p.39), o princípio duplo da disciplina e da obediência. Para esses primeiros religiosos, a centralização do poder era atingida por intermédio da obediência cega, único atributo “político verdadeiramente forte”. O princípio duplo, instrumento basilar de dominação, era o fundamento do ensino que objetivava lapidar o comportamento considerado selvagem, tornando o ser apto para o trabalho e o convívio social. Dos jesuítas emanava a vontade tanto de mandar quanto de que as ordens fossem cumpridas (HOLANDA, 1995, p.40). Tais estratégias de ensino são identificáveis nas ações que o padrinho pratica sobre as ações do afilhado. Outro ponto que aproxima o clérigo dos ancestrais jesuítas82 é o estímulo para o desenvolvimento intelectual. Sob seus domínios, ensina ao afilhado o latim e exige a leitura como uma prática assídua, uma vez que: 82 Freyre (2003, p.216) explica que os “padres da Companhia aqui chegaram sem nenhum propósito de desenvolver entre os caboclos atividades técnicas ou artísticas; e sim as literárias e acadêmicas”. 145 Tio Barbarino [...] só me punha nas mãos obras de piedade e edificação cristã [...]. Para ele, que me oferecera a Imitação de Cristo, e que cansou de me recriminar os romances que eu pegava na biblioteca, um moleque nas minhas condições só devia fazer leitura da Vozes ou da Paulinas, só devia enxergar o trabalho, os deveres, a obrigação... Textos profanos? Mas de jeito nenhum! De forma que eu carecia de mais experiência, de amadurecimento nos relacionamentos, de ter na língua alguma palavra amável para agraciar os superiores. (DANTAS, 2004, p.198) A pretensão de abafar até mesmo as preferências literárias do protagonista, não consentindo que a leitura seja experiência de fruição, é um claro esforço de nulificação, porque toda imposição acarreta uma redução do sujeito (HOLANDA, 1992, p.63). O crivo de seleção dos livros é religioso, a prática é fundamentalmente interessada, devendo servir como ampliação lexical, a fim de o adolescente demonstrar obediência aos que ocupam uma posição de destaque na escala social. A exigência em fazer com que o jovem tivesse “na língua alguma palavra amável para agraciar os superiores”, somada à atitude de apagar o sobrenome da certidão de nascimento revelam, de modo implícito, que o eclesiástico também estava exposto às relações de poder em que era o elemento subjugado. Dessa maneira, Dantas retrata a sobrevivência de uma conjuntura secular, tendo em vista que, como quase sempre sucedeu, desde as origens do Brasil, a submissão dos religiosos decorre da dependência financeira de algum coronel ou grande proprietário rural. Perante a tentativa de o padrinho incutir no afilhado o desejo pela missão sacerdotal, a natureza do protagonista resiste pateticamente: “ – Se não tem mesmo vocação pra o celibato, é casar, meu filho. Damarinda é de família lustrosa, vai facilitar as coisas pra você” (DANTAS, 2004, p.57). Mais uma vez, Justino Vieira é calado. A posição social dos sacerdotes lhes garante uma autoridade incontestável, como representantes de Deus na terra. Encarnando um poder impalpável e espiritual, Barbarino se reveste de uma autoridade absoluta, decidindo inclusive o destino do protegido. Este, como um bom aluno que aprendera a obedecer e a silenciar, aceita sem resistências a mulher que lhe é escolhida. Desse modo, a religião católica configura-se, no contexto do romance, como um instrumento de dominação e de silenciamento. A igreja, considera Bourdieu (2000), é uma das armas mais fortes utilizadas para assegurar a ordem da sociedade; consequentemente, solidifica-se em um dos pilares em que se assenta a relação hierarquizada entre os sexos e entre a sociedade. As instituições religiosas, detentoras do capital simbólico, podem, mediante representações, de linguagens e da palavra autorizada, manipular tanto a produção simbólica quanto impor normas de condutas. Se o tio é a coragem punida com o silêncio, o padrinho será o silêncio que conserva a vida. Divino Melenguê oferecera a coragem e a resistência como elementos identitários ao 146 sobrinho. Em contrapartida, o monopólio do poder religioso difundido pela figura do Padrinho Barbarino, através de uma série de cerceamentos, inculcou em Justino Vieira o habitus da resignação calada, o qual passara a ser o traço marcante de sua identidade. 3.6 Justino Vieira: do silêncio da impotência ao silêncio da resistência Justino Vieira, humilhado pelo Diretor, dominado por Leopolda, conserva, antiteticamente, o germe da coragem abafado pela resignação. Se “vieira” é um tipo de “molusco acéfalo” (DANTAS, 2004, p.21), não podemos deixar de esclarecer que é também “uma espécie de concha” (AULETE, 1980, p.4222). Então, “vieira”, ao remeter à concha, metaforiza o hermetismo do protagonista, a frequente oclusão sobre si, presentificado nos seus contínuos silêncios de sentidos oscilantes. Entre outros fatores, há de se considerar a importância do complexo social sertanejo representado na formação da identidade da personagem Justino Vieira. Oriundo de um árduo meio social, em que uma das regras que se impõe é a da luta pela vida, o Alvide, situado ficcionalmente no interior da Bahia, é o vilarejo, ignorado pelo governo e esquecido pelo correio, onde o protagonista nasceu. Lugar “de resignações” (DANTAS, 2004, p.113), povoado por desvalidos condenados a passar “a vida ali mesmo, na desmonda dos roçados com as mãos duras ou no pastoreio dos bodes, ou em qualquer outro servicinho rudimentar. [...] numa existência escassa de meios, fenecida de maiores esperanças” (DANTAS, 2004, p.84). Este espaço interiorano é a representação de um Brasil em que os valores do passado persistem e parecem não querer ceder lugar aos novos princípios de uma modernidade que se anuncia, relutando em se democratizar. Era uma vila de uma precariedade drástica, onde os habitantes buscavam estratégias para sua sobrevivência, em meio à inospitalidade do clima e às assimetrias sociais do sertão. O sobrenome “Vieira”, de conformação tradicional, passa a conotar um espaço de questionamento, pois incide na descendência desses seres esquecidos, marcados pela dureza, de vozes ceifadas: “Uma gente que não sabia se remeter à súplica, ao lamento. [...] [para quem] qualquer forma de queixume era proibida” (DANTAS, 2004, p.100). Não obstante, o desejo de migrar move o protagonista desde a adolescência; a vontade de não repetir a predestinação de sofrimentos, privações, injustiças é a mola propulsora que o faz ambicionar a partida. Pelas mãos do Padre Barbarino, aos 13 anos, Justino Vieira tem a oportunidade de abandonar suas raízes, apurar seus conhecimentos e desfrutar dos prazeres da cidade, ainda 147 que provinciana: a fartura da comida, a roupa de qualidade, a luz elétrica para ler à noite, ruas calçadas, um trabalho digno. Colocando-se discursivamente na condição de representante da massa de excluídos, pretendendo ser a voz dos desamparados – daquelas vítimas de uma violência social resultante dos efeitos de uma modernização excludente –, em sua juventude, Justino Vieira acalenta a ambição de ser jornalista. Escrevia para O Correio Matutino, denunciando as mazelas sociais com o pseudônimo de Albuquerque. Aspirava ter suas palavras reconhecidas, ver o seu nome estampado nas páginas dos jornais, como aquele “que levantou a bandeira por esta causa nobre!” (DANTAS, 2004, p.42). Nem mesmo a força histórica do sobrenome tradicional é ouvida: “Decepção total. Nunca esse tal Albuquerque teve de volta senão o mesmíssimo silêncio” (DANTAS, 2004. p.43). O universo jornalístico o impele ao aprisionamento das palavras empolgadas e defensivas, convertendo-se em mais um meio que o obriga a nulificarse. Essa nulificação fora iniciada com o Padre Barbarino, que o ensinara a se calar, consequentemente, inserindo o afilhado no universo da exploração, visto que, como defende Holanda (1992, p.43), a ação de arrancar a palavra do sujeito incorre a limitá-lo ao nada, o que propicia a obediência. Dessa forma, quando o protagonista assume o posto de secretário no curso de Mitologia, sua conduta já estava pré-moldada para aceitar os mandos e desmandos dos superiores. No entanto, a natureza herdada de Tio Melenguê não fora subtraída em absoluto. Nos primeiros contatos com o Diretor, Justino Vieira sofre, sua subjetividade oscila entre o dobrar-se e o revoltar-se. Frente ao silêncio intimidador de Jileu Bicalho, que se petrifica como se fosse uma estátua, o secretário simplesmente pede licença e, sem esperar a liberação, sai “pisando duro, aborrecido, puto da vida” (DANTAS, 2004, p.22). A performance corporal é o único meio de transmitir sua contrariedade, o gesto desnuda a posição subalterna na hierarquia funcional concentrada na impossibilidade de se exprimir verbalmente. Promete para si mesmo não retornar mais àquele lugar. Porém, os ímpetos de valentia, pouco depois, são afrouxados: “Que história é essa de não voltar a pisar ali? Qual secretário que pode se permitir a tal luxo? Enfrentá-lo, assim, no peito, de igual para igual, ave-maria! Seria virar um mané-besta. Seria praticar uma loucura!” (DANTAS, 2004, p.24). É perceptível, na fala de Justino Vieira, um sentimento de amargura proveniente do reconhecimento do seu lugar na escala social representada. O secretário – natural de uma terra seca, composta por pessoas calejadas pelo trabalho duro, uma gente excluída, ignorada pelo governo e, por isso, abaixo da linha da pobreza – receia que, ao enfrentar o Diretor, acabe não apenas sendo demitido, como também se transmutando em mais um sujeito desvalido, igual 148 aos seus conterrâneos. Desse modo, ao mesmo tempo em que a natureza áspera do sertanejo arde, impulsionando-o a ação, o polo domesticado lhe contém, feito um dispositivo acionado automaticamente. O ímpeto de revolta esgota-se, a submissão sempre emerge, sem neutralizar a afronta taciturna vinda de fora. O temor institucional – de perder a gratificação do cargo de secretário – é um intimidador poderoso, dotado de habilidade para desencaminhar a rebeldia e dizimá-la no auge da força: Não era mesmo artes do tinhoso? Horas que a raiva entra na gente que chega o sangue esquentar. Aquela foi uma, Fique frio... Justino Vieira, fique frio... – eu me aconselho, tomando suspiração. Nesse caso, a melhor receita seria me esquivar. Estou vivendo uma prova crudelíssima, eu sei. Como não posso ser dono de minha língua, como preciso do meu emprego, divago segundo as ideias alvoroçadas, mesmo sabendo que a gente, quando não fala, vira defeituosa. Aí então, emudeço a natureza para aguentar o tranco, e começo a remoer: ‘Que diabo me quer este Bicalho? Decerto está frisando que sou subalterno. Por que esses arrodeios ostensivos e trocistas, que nem indiretas são?’ (DANTAS, 2004, p.30-31, grifos nossos) Justino Vieira se autoaconselha: é preciso aceitar o lugar a ele destinado. O próprio Jileu Bicalho adverte que “Um subalterno não pode falar mais alto que o seu Diretor” (DANTAS, 2004, p.32). O silêncio tanto lhe é infligido pela sociedade semitradicional, quanto é absorvido de forma voluntária. Sem ser dono da própria língua, o secretário é obrigado a calar a própria expressão e refugiar-se em um mutismo impotente, acolhendo a voz/silêncio do diretor. Anula-se no consentimento e emudece a natureza, reiterando o fundamento da pedagogia do desastre83, imposto à classe desfavorecida. Se “a palavra é a expressão de poder” (HOLANDA, 1992, p.69), o emudecimento dessa personagem descortina uma situação histórica de opressão e revela um sistema social injusto, onde quem ocupa uma posição privilegiada pode desfrutar do rico universo da linguagem e dominá-lo; em contrapartida, os sujeitos despossuídos, mesmo com competência linguística, têm o acesso a esse mundo interditado. Assim, ao não fazer uso da palavra, a pessoa “vira defeituosa” 84, ou seja, torna-se vítima da exploração social. Nos primeiros enfrentamentos entre Justino Vieira e Jileu Bicalho, há um claro tensionamento de forças antípodas que ecoa através dos usos do silêncio: de um lado, o algoz utiliza o silêncio demoníaco e intimidador para torturar sua vítima; por outro, o torturado emprega o silêncio como um mecanismo de afronta/resistência contra o opressor: 83 84 Expressão utilizada por Holanda (1992, p.43) ao comentar o sistema opressor que cala a voz do escravo. É interessante chamarmos a atenção de que, no romance Os desvalidos, a personagem Coroliano tem uma consciência próxima à de Justino: “Coroliano entende num arrepio que a metade da gente é a própria voz” (DANTAS, 1993, p.125). 149 – Ah, o senhor [Justino Vieira] ontem de manhã simplesmente sumiu. Dissolveu-se como uma bola de sabão. Não vá me dizer que é um prestidigitador – Estava de veia. Falou abrindo a cara e os braços, interrogando o ar do mundo com as duas mãos. Decerto, se considerava espirituoso. Compenetrado, firmei o pé e não lhe dei o gosto de abrir o dente. Não lhe fiz o menor gesto acolhedor. A frase bateu em mim e retornou bem azouzada. Era o meu protesto calado, a débil desforra de minha humilhação. Ele então endireita a postura subindo o pescoço e muda de tom: – Ou, senão, fui eu quem, embebido na leitura, não lhe viu a retirada. Deve ter sido isso. Pois quando persigo um raciocínio, Seu Vieira, meus sentidos embrutecem, me cego para as contingências que me rodeiam [...]. (DANTAS, 2004, p.28, grifos nossos) O “protesto calado”85 do secretário não dispõe da mesma força geradora de mal-estar do emudecimento mantido em algumas circunstâncias pelo Diretor, afinal, “as armas do fraco são sempre armas fracas” (BOURDIEU, 2014, p.52). Entretanto, é capaz de fazer com que o interlocutor mude de tom para justificar a atitude de tê-lo ignorado. A alteração de tom é uma artimanha utilizada por Jileu Bicalho, possivelmente, para apaziguar a indiferença do ouvinte, reveladora do “habitus linguístico, ou seja, esse sistema de disposições que permitem falar oportunamente” (BOURDIEU, 2000, p.53). Bourdieu explica que falar não se restringe à competência de elaborar frases corretas em nível sintático, todavia é ter também a competência de dizer o que é adequado no momento em que é oportuno. Mesmo que Justino Vieira aprisione sua real expressão de revolta, ele demonstra ser conhecedor e fazer uso de uma forma de habitus linguístico, dado que, na maioria das vezes em que estabelece o diálogo com o professor, utiliza atos modais que transpareçam o reconhecimento do poder alheio e reflitam a relação de vassalagem 86. A polidez confirma que essa personagem não é dona da própria língua, de que não está disposta a encarar as possíveis consequências desencadeadas por expressar as verdadeiras contrariedades; vale lembrarmos que o Padre Barbarino sempre norteou suas leituras para que dispusesse de palavras bonitas, a fim de “agraciar os superiores”. Ademais, do silêncio e das palavras polidas, a relação de submissão enraíza-se nas expressões corporais de Justino Vieira, expressando que “a materialidade do poder se exerce sobre o próprio corpo dos indivíduos” (FOUCAULT, 2009, p.146). Em diferentes momentos, 85 Protestos similares são realizados pelo protagonista em outras ocasiões, como, por exemplo, para demonstrar seu aborrecimento contra o parecer negativo dado pelo Diretor ao artigo que escrevera, o secretário fecha-se: “O clima não era bom. Daí em diante, com o gênio pisado, fiquei semanas e semanas monossilábico. Passei a evitálo, não queria meias com ele. Só atendia com olhos baixos e meio embuchado. Com aquela desconfiança de cachorro surrado, engrossei o pescoço, cada vez mais esquivo, me fiz de rogado” (DANTAS, 2004, p.195-196). 86 Esses atos modais são recorrentes na narrativa, por isso selecionamos apenas um excerto para exemplificar: “[...] me concedo o luxo de quebrar o silêncio com um rompante, misturando uma pontinha de servilismo para ele se agradar, e outra de cerimônia, para que se dê ao respeito” (DANTAS, 2004, p.27). 150 quando se sente pressionado (por Leopolda ou pelo Diretor), o protagonista espirra; já em outras ocasiões, ele curva-se, gagueja, timidamente se anuncia, treme, titubeia, atende “com os olhos baixos e meio embuchado” (DANTAS, 2004, p.195). Essas reações podem ser consideradas como a representação de conhecimento e reconhecimento práticos da fronteira que separa os dominantes dos dominados, desencadeados pelo poder simbólico e reproduzidos – de modo voluntário ou contra sua vontade – pelos agentes dominados, os quais acabam contribuindo para sua submissão ao juízo dominante87. Logo, o curvar-se, o gaguejar ou o espirrar, quase sempre à revelia, denotam a socialização do corpo, são atos de reconhecimento e cumplicidade que reforçam a estrutura de dominação de que faz parte. Exausto com as primeiras humilhações, Justino Vieira conta ao Diretor que devia o seu cargo ao Bispo; ambos tinham o mesmo “pistolão” (DANTAS, 2004, p.43). A revelação atinge o efeito desejado: “A partir daquele dia em que meti o nome do Bispo na conversa, passou a me abordar risonhamente, em resvaladuras para o tom familiar” (DANTAS, 2004, p.184). A representação da mudança comportamental do superior para com o subordinado indica que um mediador contribui de modo substancial para que o trabalho se configure em um segundo lar, sendo “pequeno o tempo que a pessoa vive como indivíduo” (DAMATA, 1997, p.241). O protagonista deixa de ser um simples funcionário, coagido e silenciado, e passa a ser “um Secretário que o Diretor consultava. [...] Vejam o que é a gente ser bem apadrinhado!” (DANTAS, 2004, p.186). Encarado como pessoa e não mais como indivíduo, as conversas ficam mais longas, o clima opressivo se desfaz, e ares de camaradagem permeiam os diálogos. A relação de trabalho opressiva, alicerçada em uma hierarquia rígida, atenua-se. A existência de um padrinho em comum permite que o sistema paternalista e personalista tipicamente brasileiro aflore, posto que “O Diretor deu para me cercar protetoramente, perguntava se tudo ia bem, como se quisesse interferir para me poupar de alguma contrariedade” (DANTAS, 2004, p.185). Depois de resistir por um tempo, suspeitando que o novo tratamento era uma armadilha, Justino Vieira cede, deixa-se seduzir pela imagem que Jileu Bicalho lhe oferece de homem civilizado e inteligente. O secretário desenvolve uma 87 Bourdieu (2014, p.61) defende que os agentes dominados são cúmplices da sua dominação, que muitas vezes assume “a forma de emoções corporais – vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões e de sentimentos – amor, admiração, respeito –; emoções que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes, por se traírem em manifestações visíveis como o enrubescer, o gaguejar, o desajeitamento, o tremor, a cólera ou a raiva onipotente, e outras tantas maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade, ao juízo dominante, ou outras tantas maneiras de vivenciar”. 151 admiração88 explícita pelo superior, este a alimenta através de constantes chamados para conversa em sua sala, e dois convites para conhecer sua biblioteca particular. Justino Vieira transforma-se em protegido, confidente e aliado de Jileu Bicalho. Eram tempos em que, de maneira contida e sem nunca esquecer o seu lugar, o secretário podia expressar suas ideias. O narrador rememora que sua ânsia em cursar o ensino superior é percebida pelo professor-diretor que o convida para assistir às suas aulas de Mitologia, as quais, certamente, oferecer-lhe-iam maiores chances de passar no vestibular. Ao bom jeito brasileiro, o Diretor reorganiza os horários do subalterno e o libera da secretaria por algumas horas. Na atitude do dirigente, identificamos a lógica do favor que, nas palavras de Roberto Schwarz (2000, p.16-17), é “a nossa mediação quase universal”, um vínculo que, “ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, a remuneração e serviços pessoais”. O secretário permanece preso ao favor, ao paternalismo e à dependência. Precisa retribuir com obediência irrestrita, aceitar o autoritarismo e contribuir nas trapaças89, já que ele era o elemento mais frágil da rede de poder. Contudo, no correr dos anos, Justino Vieira não retribui devidamente a dádiva que lhe fora ofertada: nas aulas demonstrava enfado, ouviao com desinteresse, não o bajulava publicamente e, por fim, revoltou-se contra ele. Como poderia o funcionário que sempre fora servil rebelar-se contra o opressor? Quem sabe o mais adequado é defendermos que Justino Vieira, caladamente, insubordina-se em três ocasiões. A primeira diz respeito a uma brincadeira armada por um aluno: Jileu Bicalho, conhecido por vociferar contra qualquer forma de especialização, 88 A nova configuração do relacionamento pode ser considerada como uma herança do Brasil escravocrata, especialmente se levarmos em conta que, com frequência, as relações dos escravos “com os donos oscilavam da situação de dependente para a de protegido e até de solidário” (HOLANDA, 1995, p.55). Novos tempos, velhas estruturas. Por mais que um dos espaços da narrativa seja uma pequena cidade nordestina, do início do século XXI, em que o progresso avança dia a dia, Dantas desvela a sobrevivência de uma sociedade alicerçada no afetivo, no irracional e no passional. O cenário universitário, cultural e historicamente tão distante da casagrande e da senzala não impede o desenvolvimento de uma relação de solidariedade e de proteção do superior – que se aproxima da figura do senhor – para com o subalterno – este, devido à servidão, assemelha-se à imagem do escravo. 89 Tanto como forma de subserviência quanto meio de garantir a comissão do cargo, Justino Vieira, mesmo contra sua vontade, não vacila em rastrear e, se for viável, produzir um erro, com o intuito de incriminar um dos adversários de seu protetor, como foi o episódio da emboscada armada para o professor Serafim Leitão. A armadilha preparada para beneficiar Jileu Bicalho exemplifica o regime paradoxal de poder no Brasil. Na academia, vigora o tipo de dominação legal, em que, de acordo com Weber (1991, p.142), os funcionários, ao obedecerem ao senhor, “não o fazem à pessoa deste mas, sim, àquelas ordens impessoais pelas quais orientam suas disposições”. Conquanto, no caso brasileiro, a dominação legal não é impessoal, porque a estrutura administrativa e o corpo de funcionários, desde as nossas origens, sempre estiveram voltados/dedicados ao “predomínio constante das vontades particulares” (HOLANDA, 1995, p.146). Nesse sistema que privilegia o pessoal, “os empregos e os benefícios que dele aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como se sucede no verdadeiro Estado Burocrático” (HOLANDA, 1955, p.145). Na Faculdade Rural de Mitologia, imperaram os interesses e as vontades do Diretor sob a anulação dos direitos dos demais, especialmente os do secretário. 152 defendia a dedicação aos conhecimentos de diferentes áreas. Certo dia, ao chegar à sala de aula, depara-se com a transcrição de uma frase de Sófocles, a qual era a favor da especialização. O professor concebe a citação como um desacato, agride verbalmente a todos os presentes; no entanto, ninguém se entrega. Resta inquirir do secretário o nome do mentor da ação: Dia seguinte, na biblioteca, veio a mim com a tromba retorcida: exigia que eu delatasse o safado, queria o nome por escrito! Ora, essa era muito boa. Eu sentia que fôramos malvados, que havíamos lhe destinado crueldade e injustiça. Estive a ponto de ali mesmo pedir-lhe desculpas. Mas jamais fora delator. Cocei a cabeça acalmado, me dando tempo, e me saí alegando que, ao penetrar na classe, a inscrição já estava lá. (DANTAS, 2004, p.213) Ainda que Justino Vieira sinta piedade do docente, nada revela. O pedido de delação soa como uma ofensa, fere os princípios éticos herdados do Alvide. O secretário resiste perante a força hierárquica e o poder simbólico de Jileu Bicalho, em vez de, obedientemente, delatar; ele encobre a verdade com palavras, guarda o silêncio. Essa é a forma encontrada pelo servidor de subverter a ordem, de resistir diante do dominador. O segundo ato de insubordinação é ousado e fisicamente mais intenso. Depois de ocupar o cargo de secretário por muito tempo, de já estar habituado com a consideração e polidez alheia, Justino Vieira é repreendido, com palavras ásperas, em frente a um professor, em razão de ter esquecido de comunicar a ausência de um membro do colegiado para uma eleição. A advertência ultraja-lhe os brios, a personagem rompe silenciosamente com o cerco que lhe domina e, como vingança, desaparece com as provas finais de uma disciplina que o Diretor ministrava. Ao ser questionado por Jileu Bicalho sobre o sumiço, o protagonista reage: Só faltei chorar, mas não confessei o meu delito. Eu precisava daquilo para me robustecer. Para provar a mim mesmo que ainda era um homem, que era capaz de contestar alguma coisa, sustentando a palavra que eu queria. Fosse verdade ou mentira. Qualquer uma! Aquela era a minha verdade – e pronto! Acabou-se! Fiz como um cavalo de queixo-duro: apanhei... apanhei... mas não dobrei o pescoço. Se essa minha resistência fosse de caso pensado, nutrida dia a dia, reconheço que não conseguiria sustentar. Mas caída, sobre mim assim de supetão, rebelei-me. Os nervos se exasperaram: queriam me soerguer. Era uma decisão irrevogável. A primeira. Finalmente! (DANTAS, 2004, p.289) Há na atitude descrita uma mescla de covardia e coragem, silêncio e palavra, servidão e tenacidade. Após sentir-se humilhado por tantos anos, “finalmente” Justino Vieira quer decidir por conta própria, “provar” que ainda tinha virilidade suficiente para manter uma 153 palavra, mesmo que mentirosa. Porém, o comportamento obstinado de não dobrar o pescoço e de sustentar um segredo é, na realidade, uma forma de proteção utilizada pelo protagonista. Ele elabora uma verdade própria, pois, caso enunciasse a real verdade, provavelmente sofreria as consequências de seu ato: entraria para a lista negra ou seria rebaixado. O silêncio, discorre Le Breton (1997, p.80-81), “também é um modo de defesa, de domínio sobre si [...]. A medida rigorosa da palavra obedece a uma vontade de domínio sobre si, suscitado por uma preocupação de prudência”. Não podemos esquecer que a personagem, quando criança, aprendera que, através do final trágico de Divino Melenguê, todo ultraje ao poder é cruelmente punido. O derradeiro ato de afronta do protagonista coincide com a quebra total da relação de favor entre Diretor e secretário. No desenrolar da terceira candidatura de Jileu Bicalho para vereador, Justino Vieira toma coragem e nega-se em trabalhar no comitê eleitoral. A desobediência do protagonista mimetiza a lógica de que se há poder, existe a possibilidade de reagir contra estas forças externas que o pressionam, tendo em vista que toda relação de poder pode ser modificada a qualquer momento. As manifestações de resistência podem surgir em circunstâncias improváveis, de maneira inventiva, surpreendente e imprevisível (FOUCAULT, 2009, p.284). As relutâncias afrouxam os nós, a oposição do secretário abranda a rigidez da rede de poder entre as personagens; rompe com a suposta estabilidade de domínio absoluto do Diretor. Não obstante, a insubordinação tem um custo alto: acarreta a concretização da ameaça lançada pelo professor nos primeiros encontros – o subalterno tem sua comissão cortada e o cargo rebaixado. A coragem do narrador-protagonista não lhe fora útil, ao contrário, da mesma maneira como ao tio paterno, só lhe trouxera infortúnio. Se, por um lado, o próprio narrador se autodenomina um “pobre-diabo”, por outro, diante da trajetória existencial mal fadada, podemos afirmar que Justino Vieira se encaixa muito bem na galeria dos “pobre-diabos” expressa por José Paulo Paes (1988). Isto é, na literatura brasileira, para o crítico há uma categoria de personagem que, em razão de passar por atribulações infelizes, por incidentes medíocres, vivendo uma vida sem heroísmos e repleta de pequenos fracassos, é chamada de “pobre-diabo”. Situada nos estratos inferiores da pirâmide social, essa conformação de personagem não integra nem ao proletariado, tampouco pertence ao lumpemproletariado. É, geralmente, o “patético pequeno-burguês alistado nas hostes do funcionalismo público mais mal pago, vive à beira do naufrágio econômico que ameaça atirá-lo a todo instante à beira da fábrica ou ao desamparo da sarjeta” (PAES, 1988, p.39-40). Assim é o protagonista de Sob o peso das sombras, que sofre na pele os efeitos tanto do silêncio intimidador que lhe é imposto quanto do silêncio submisso que precisa encarnar: 154 [...] sempre me mantive abafado. Me portei como verdadeiro panaca, que passou a vida inteira debaixo da ordem, mesmo vendo as coisas com clareza, mesmo odiando obedecer. Nunca lhe mandei nas ventas uma resposta à altura. Nunca soube encaminhar, a meu próprio favor, uma solução satisfatória. [...]. Quanto mais eu fraquejava, mais ele pisava forte. Quanto mais me diminuía, mais ele se agigantava. Mas, se me deixei embair nesse tempo todo, caído em logros, cabeça baixa e boca presa, me fazendo de engambelado, redigo, agora pela enésima vez, foi por medo de que me levassem o emprego num país de grandes nomes de famílias, de cargos vitalícios e hereditários, de negócios tão instáveis. Saibam, no entanto, que jamais me deixei imbecilizar. Convivi engasgado uma vida inteira de trabalho, nunca tive coragem de divulgar nada do que eu pensava ou sentia. E eu sentia tanto... eu pensava tanto... que só faltei mesmo arrebentar. (DANTAS, 2004, p.73-74) O protagonista poderia falar, poderia romper com o cerco que lhe é imposto. Ele tinha liberdade para agir, era dotado de competência linguística para isso; se não o faz, é por receio de sofrer as represálias. Nessa perspectiva, o silêncio de Justino Vieira assume o papel da tradição. Conforme Holanda (1992, p.37), uma “sofrência” calada e ancestral de quem não tem posses, significando o estado de miséria a que são submetidos, e o sentimento de injustiça e de inferioridade frente àqueles que detêm alguma forma de poder. O emudecimento do secretário, desse modo, aproxima-se ao que Kierkegaard (1964, p.80) denomina de “silêncio heroico”. Este tipo de laconismo tem em torno de si uma leve marca do ilusório, pelo motivo de que aquele que se cala o faz por pensar poder proteger ou salvar alguém, “alivia[r] a dor dos outros, e quiçá mesmo a sua”. O protagonista, heroicamente, cala para conservar o pouco que adquirira, o parco luxo de conseguir comprar seus livros, trabalhar em um espaço limpo que não lhe exige esforço físico e sustentar – quase que miseravelmente – sua família. Dessa maneira, o lugar de fala ocupado pelo narrador-protagonista é o das personagens humilhadas, dos pobres subalternos destituídos de forças para ascender em uma sociedade estratificada desde suas origens. O próprio modo como o narrador se enxerga, posicionando-se sempre em nível de inferioridade90, é produto de uma construção que o precede e que o constitui, posto que os dominados assumem “categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim serem vistas como naturais. O que pode levar a uma espécie de autodepreciação ou até autodesprezo sintomáticos” (BOURDIEU, 2014, p.56). Então, a imagem que ele tem de si como fracassado é concebida através da posição ocupada por Jileu Bicalho. 90 São vários os substantivos, adjetivos e expressões depreciativas que o narrador utiliza para se definir. A palavra “fracassado” é a mais recorrente, mas há outras, como “verme” (DANTAS, 2004, p.37), “caramujo interiorizado” (DANTAS, 2004, p.78), “perdedor” (DANTAS, 2004, p.113), “pobre-diabo” (DANTAS, 2004, p117), “parente de lacraias, de atendes e calangos” (DANTAS, 2004, p.100), “condição rasteira” (DANTAS, 2004, p.197). 155 Portanto, em Sob o peso das sombras, a personagem mais improvável assume o discurso, que “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2008, p.10). Após uma vida inteira de silenciamentos, de repressões e de humilhações, Justino Vieira, velho e doente, torna-se dono do discurso; por meio de um “jornalismo de compromisso” (DANTAS, 2004, p.75), inclui a fala dos excluídos no “território contestado da Literatura Brasileira Contemporânea” (DALCASTAGNÈ, 2012). Em busca de reconhecimento de sua identidade, silencia todas as outras personagens; sua ambição é ter direito de falar de si, de transmitir sua trajetória de dor e fracasso. Impõe sua versão dos fatos, diga-se de passagem, versão oscilante. O apoderamento do discurso, ambiguamente, não significa ter sua voz ouvida, uma vez que o narrador afirma que irá “para a cova com o travo nos lábios” (DANTAS, 2004, p.76). Além disso, não se pode esquecer que ele elabora o passado e o presente por escrito, sendo que um de seus objetivos com essa escrita é que seu texto aconselhe os jovens desvalidos de sua terra natal, para que estes não cometam os mesmos erros dele. Com isso, o silêncio se perpetua, porque o narrador está consciente de que não há nenhuma garantia de que suas palavras serão lidas: “linhas inúteis, pois jamais chegarão aos olhos de alguém” (DANTAS, 2004, p.77). 156 4. RIBAMAR: O MEDO QUE CALA E A PALAVRA QUE FRACASSA 4.1. José Castello e os apontamentos críticos sobre Ribamar Nascido em 1951, na cidade de Rio de Janeiro e radicado em Curitiba, José Castello graduouse em Teoria da Comunicação e em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição onde também realizou o mestrado em Comunicação. Trabalhou, desde a década de 1970, em diferentes áreas do universo jornalístico91; passando a colaborar, a partir de 1993, como repórter literário e cronista para o jornal O Estado de São Paulo. Atualmente, é colunista do suplemento “Prosa & Verso”, de O Globo, mantém um blog chamado A literatura na Poltrona (hospedado no site do Globo), escreve crítica literária regular para a revista Época e para os jornais Rascunho e Valor Econômico. A ativa contribuição para o universo das letras o tornou um dos mais conceituados críticos literários brasileiros. Os primeiros trabalhos que publicou foram biografias e reflexões sobre autores e personalidades ilustres92, lançou coletâneas de registros de sua experiência como entrevistador 93, de ensaios sobre o fazer literário94 e de crônicas95. Como romancista, até o momento, escreveu: em 2001, O fantasma 96 , e, em 2010, Ribamar97, ainda Também ministra periodicamente oficinas e cursos de criação literária. 91 Foi repórter d’O Diário de Notícias (1973-1975); redator do Opinião (1975-1977); repórter da Veja (19791982); editor-assistente de Cultura da revista IstoÉ (1982-1986), onde chegou a ser chefe da sucursal do Rio de Janeiro no período 1986-1989. Editor (1989-1992) dos suplementos Ideias/Livros e Ideias/Ensaios do Jornal do Brasil. 92 As biografias e os ensaios biográficos foram: Vinícius de Moraes: o poeta da paixão (1993) (agraciado com o Prêmio Jabuti de Melhor Ensaio e Biografia de 1995); Uma geografia poética (1999) (também a respeito de Vinícius de Moraes); João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma (1999); Na cobertura de Rubem Braga (1999) e Pelé: os dez corações do rei (2004). 93 O inventário das sombras, publicado em 2006, é uma coletânea de retratos de escritores produzidos a partir das entrevistas que realizou durante sua jornada de mais de 20 anos na imprensa diária. Sem intenção de fazer crítica literária, o jornalista busca desvendar o tensionamento que gera a inspiração no escritor e faz com que este escreva, almejando compreender o indivíduo que produz narrativas e poemas, como Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Raduan Nassar, José Saramago e tantos outros. 94 Embora a ficha catalográfica de A literatura na poltrona: jornalismo literário em tempos instáveis (2007) descreva o livro como uma coletânea de ensaios sobre o fazer literário, o que realmente marca os 15 textos que o compõem são a hibridez, o trânsito entre crítica e ficção. Neste trabalho, o parecer cru e rápido dos cadernos culturais cede espaço para a análise literária, ou seja, as impressões pessoais de Castello sobre determinado escritor ou livro ficam em primeiro plano. 95 Em 2003, Leyla Perrone-Moisés organizou o volume As melhores crônicas de José Castello. Já em 2013, os textos que escreveu para o jornal O Globo foram publicados pela editora Leya, sob o título de Sábados inquietos: as 100 melhores crônicas de José Castello. 96 Recebeu, em 2002, a Menção Honrosa do Prêmio Casa de las Américas. 97 Em 2011 foi finalista do Prêmio Portugal Telecom e vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria romance. 157 A linguagem narrativa de Castello apresenta como traço distintivo a profusão dos gêneros. Seja nos trabalhos críticos, seja nos textos literários, o autor carioca articula não apenas elementos reais como também ficcionais. Em virtude disso, muitas de suas crônicas são definidas como contos. A preferência em transitar por zonas limítrofes, distantes dos padrões e dos cânones, é sempre defendida nas entrevistas que concede, porque acredita que é nesses espaços nebulosos que se guarda a matéria-prima mais cara de um ficcionista: a liberdade. Frente à Literatura Brasileira Contemporânea tão heterogênea em temas e formatos, cuja tarefa de estabelecer, de distinguir ou de fixar as vertentes estéticas é cada vez mais complexa, como o próprio autor assevera na entrevista concedida para a presente tese, o interesse de qualquer escritor deve ser o de “chegar a uma escrita singular, aproximar-se de algo que seja apenas seu” (CASTELLO, p.232). Por entender que correntes e gêneros literários servem como “couraças que mais escondem a realidade do que revelam” – embora desempenhem uma função didática que facilita a leitura, se postos em primeiro plano de análise, correm o risco de aniquilar a narrativa –, durante o processo de criação escolhe centrar sua atenção somente na escrita, como afirma: “escrevo o que tenho de escrever - e pronto” (CASTELLO, p.232). Dessa maneira, sua escrita é o resultado de uma amálgama entre literatura e jornalismo na trama textual, cujas palavras, sempre carregadas de subjetividade, têm a difícil missão de iluminar os objetos e os sentimentos ocultos. Castello (2012, s/p) defende que essas duas áreas do conhecimento são estreitamente próximas, habitam espaços circunjacentes em suas produções. O jornalista, apesar de aspirar a certa imparcialidade, jamais consegue livrar-se, de modo pleno, de seus sonhos, receios e repulsas, tampouco se afasta de seus preconceitos e superstições, e sempre tem uma visão limitada dos acontecimentos. Em um movimento oposto, o escritor, por mais que deseje imergir completamente em seu mundo interior, composto por emoções e impulsos, é constantemente pressionado e moldado pela realidade. Por conseguinte, o reino da aparente objetividade está contaminado pela intangibilidade, da mesma forma que o universo da subjetividade está definido pelos limites de seu tempo. Nesse sentido, para o romancista, a crônica seria o gênero capaz de unir esses dois campos, visto que, nela, a realidade e a ficção são indissolúveis. A riqueza da crônica se concentra no fato de ser impossível a tarefa de saber com segurança se o narrado aconteceu mesmo ou se foi pura invenção. Realidade ou fantasia? Castello elege o caminho do meio para trafegar. Opta por produzir uma escrita que oscile entre duas margens, sem nunca pender inteiramente para nenhum dos lados. Nem escritor, nem jornalista, porém ambos, pois “ninguém será um bom jornalista se não souber imaginar, devanear, intuir, sentir. Ninguém 158 será um bom escritor se não aceitar e tirar partido das pressões a que a realidade está sempre a submeter seu texto” (CASTELLO, 2012, s/p). As críticas acadêmicas sobre a produção literária de Castello ainda encontram-se em estado incipiente. No decorrer da presente pesquisa, somente encontramos quatro artigos que elegeram Ribamar como corpus de análise – dos quais apenas dois centram, exclusivamente, a atenção nessa narrativa –, e uma tese98 que, de modo breve, toma-o como exemplo de autoficção. Tal carência crítica apresenta-se como pressuposto para ratificar, de antemão, o caráter de originalidade da investigação acerca da poética do silêncio a que nos propomos. No texto “Uma outra carta para um outro pai”, a estudiosa Marisa Lajolo sustenta que o escritor carioca constrói uma narrativa que não economiza em virtuosismo, composta por variadas insinuações e confidências falsas, mesmo que verossímeis. À medida que descreve física99 e tematicamente o romance, a pesquisadora também apresenta uma reflexão sobre o que considera como cinco artifícios de sedução por ele utilizados para “fisgar” o leitor. O primeiro truque textual diz respeito ao intenso e extenso diálogo com Kafka, que, depois de comparecer nas primeiras linhas com nome e sobrenome, passa a ser chamado só por Franz, o que sugere uma intimidade afetuosa. O segundo se refere ao reencontro do volume da Carta ao Pai que o protagonista dera de presente a seu progenitor. O terceiro reporta-se ao fato da trama ficcional desafiar quem o lê a acompanhar o caleidoscópio intertextual proposto. O quarto artifício se relaciona à constante metalinguagem que expõe o seu exercício de escrita criativa; e, por fim, o embaralhamento entre verdade e ficção, mais precisamente o caráter autoficcional, que gera desconfianças e prende a leitura. A prosa distendida, pausada e entremeada de cortes na mensagem para a personagem Ribamar é para Lajolo (2013, p.139) mais que “uma busca ao pai [...], uma busca a si mesmo”, uma vez que as viagens às raízes, geralmente, constituem-se como deslocamentos ao redor de si. Nas reflexões da estudiosa, a verdadeira busca que a escrita desse narrador “náufrago como Robinson Crusoé” tece seria “a construção da identidade de cada um, que se 98 A tese Autoficções: do conceito teórico à prática na Literatura Brasileira Contemporânea, produzida por Ana Faedrich Martins, defendida em 2014, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, para reforçar seu argumento de que o conceito de autoficção sofreu alterações ao longo da trajetória dos romances brasileiros, desde 1980 a 2013, tangencia (além das quatro narrativas que analisa) sete romances, entre eles o escrito por Castello. Martins (2014, p.53) esclarece que Ribamar “é uma mistura entre memória e ficção. Durante o processo, a impossibilidade de controle sobre o por vir da escritura. Depois de escrito, a impossibilidade de delimitar o que é verdade e o que é ficção. São os dois. É mentira, deformação, reinvenção. Nesse sentido, a escrita híbrida de Ribamar é autoficção”. 99 Lajolo descreve desde a ilustração da capa e da quarta capa – com suas cores, relevos e textos –, passando pela ficha catalográfica, até a partitura que se fragmenta ao longo das 278 páginas. 159 faz à custa de identidades alheias, a construção das relações familiares, sempre difíceis e sempre mergulhadas nas sombras do passado” (LAJOLO, 2013, p.147). Com o intuito de identificar e comparar a utilização de regras e conceitos matemáticos como estrutura e argumento ficcional, que permitem alargar as possibilidades da criação literária, Jacques Fux e Agnes Rissardo selecionaram três 100 romances como corpus de pesquisa. Sobre Ribamar, estes pesquisadores assinalam que é um texto metaliterário, “no qual o narrador busca a própria ideia de estrutura, ao longo de sua narrativa, para compor o livro em questão: um recurso linguístico e também matemático conhecido como autorreferência” (FUX e RISSARDO, 2013, p.179). Com isso, o artigo “Três romances em interseção: a matemática na prosa brasileira contemporânea” não se detém em interpretar o romance em si, apenas ressalta a organização estrutural, aproximando a forma de composição às ideias de OULIPO101. Brevemente, caracterizam-no como autoficção, já que o escritor “produz um gênero híbrido que se situa entre a autobiografia e a ficção, entre a memória e a imaginação, entre a verdade e a mentira” (FUX e RISSARDO, 2013, p.178). Luciana Hidalgo, no estudo “Autoficcção brasileira: influências francesas, indefinições teóricas”, simultaneamente à explanação teórica que realiza sobre o termo “autoficção”, também expõe a multiplicidade de formas em que ele é representado na literatura nacional. Entre os diferentes romances selecionados, Hidalgo, de modo rápido, focaliza Ribamar, defendendo que, apesar de Castello alegar que seu texto não fora tecido sob o signo da autoficção, acaba “paga[ndo] o preço” por nomear, sem hesitação, seu protagonista com o próprio nome. A pesquisadora explica que, nessa narrativa, é possível identificar vários preceitos reveladores do gênero autoficcional: a ficção que parte de acontecimentos estritamente reais; a identidade onomástica entre autor, narrador e personagem; o cuidado em compor uma forma original; a necessidade urgente de verbalização imediata do evento vivido; a “reconfiguração do tempo linear da narrativa; emprego do presente e não do passado, como nas autobiografias tradicionais; a pulsão do escritor em se revelar em sua verdade; e os autocomentários, metadiscurso” (HIDALGO, 2013, p.225). O relacionamento familiar difícil é o tema de reflexão no artigo “A arqueologia do afeto em Ribamar, de José Castello”, de Paulo Ricardo Kralik Angelini. Este romance, explica Angelini (2014, p.321), faz parte de uma pequena parcela da literatura contemporânea 100 101 Os romances são Avalovara, de Osman Lins; O movimento pendular, de Alberto Musa; e Ribamar. Os escritores que se incluem nessa corrente literária, segundo mencionam Fux e Rissardo (2013, p.180), ao escreverem, estipulam um conjunto de regras, obstáculos que os ajudam a trabalhar melhor depois que estabelecem uma estrutura rígida e fixa nas suas produções. O trabalho poético de todo o escritor oulipiano é, na verdade, um exercício autoimposto que contribui para “lapidar o próprio imaginário ou pode produzir um jogo narrativo que resulta original”. 160 que se volta para a representação do “espaço íntimo das relações, para o desenho da constituição dos sentimentos, das ausências afetivas, [que] geralmente só escutamos em silêncio”. Assim, o interesse do estudo é percorrer o processo de construção da personagem José, personagem que “dolorosamente grita por visibilidade, não social, mas afetiva” (ANGELINI, 2014, p.321). O narrador-protagonista de Ribamar, conforme Angelini, escreve para recuperar a figura do pai e reconstruir-se como filho, reconstrução essa que passa por três atos. O “Ato 1: O voltar-se” diz respeito ao recuo do narrador para um tempo passado de procura de carinho, uma infância de ressentimentos, em que só existe o rombo produzido pela inexistência do vínculo familiar. Em seguida, no “Ato 2: O fazer-se”, o investigador demonstra que a escrita de José, mantida como forma de sobrevivência, redimensiona o pai opressor para livrar-se das recordações e “redefin[ir]-se outro. Enxerga[r]-se como o outro, o filho frágil de um pai sem espaço para o carinho” (ANGELINI, 2014, p.333). Enfim, no “Ato 3: O saber-se”, o crítico destaca que, inclusive na velhice, mesmo com o discurso severo apagado, Ribamar continua ignorando o outro. O contato físico/afetivo entre os dois consanguíneos acontece após a morte do progenitor, quando o corpo inerte fica livre para um abraço. “O texto acolhe, recolhe, agasalha o corpo morto do pai, e faz renascer o filho” (ANGELINI, 2014, p.339). É marcante o fato de que, das quatro análises críticas que escolheram, parcial ou integralmente, Ribamar como objeto de estudo, somente uma não privilegie a problemática da autoficção e da metaficção. Destas, a elaborada por Hidalgo é a única que pontua claramente os preceitos autoficcionais do romance. Tal interesse, provavelmente, é instigado pelo próprio ficcionista, posto que nas entrevistas que concede sempre explicita os intercruzamentos da narrativa com sua vida real. Angelini opta por outro caminho, explorar os vestígios passados de um relacionamento desprovido de afeto. Nessa leitura, chega a fazer menção à dificuldade de comunicação entre pai e filho, “uma relação constituída sem palavras” (ANGELINI, 2014, p.329), lembra que o protagonista “vive dentro de seu próprio silêncio” (ANGELINI, 2014, p.323), entretanto, não aprofunda esse raciocínio. Portanto, fica nítido que nossa pesquisa se afasta dos trabalhos já publicados, pelo motivo de que nenhum deles abordou a questão do silêncio e tampouco desenvolveu propósitos semelhantes aos nossos: averiguar as motivações que provocam o emudecimento, discorrer sobre o fracasso das palavras, e percorrer as relações intertextuais de Ribamar com Franz Kafka. 161 4.2 “Cala a boca”: o silêncio do medo e da angústia A impossibilidade de separar a invenção da realidade e vice-versa está presente ao longo de toda a trama narrativa de Ribamar. Autobiografia? Autoficção? Ficção? Metaficção? Ensaio crítico? Tais questionamentos, sem dúvida, são realizados pelo leitor, que se arrisca a adentrar pelos labirintos desse romance, cuja marca expressiva é a ruptura com as fronteiras entre os textos literários e não literários. Embora compreenda que cada um seja dono de sua própria leitura e reconheça que seja óbvia a presença de sua experiência pessoal e de suas memórias nesse livro, Castello discorda dos críticos que o categorizam como “literatura confessional” ou “literatura do Eu”. Em razão, justamente, de que nele “há muita invenção, muita mentira também, de modo que reduzir o livro a um gênero confessional não é se aproximar dele, é evitá-lo” (CASTELLO, 2014, p.1). A escrita de Ribamar, no diversificado contexto da atual literatura brasileira, destacase tanto pela sua forma quanto pela sua temática. Dividido em 98 capítulos, o texto apresenta uma organização musicalmente harmônica, isto é, a estrutura que sustenta o tecido romanesco é a partitura de uma canção de ninar intitulada “Cala a boca” 102. Letra e música são reproduzidas na capa e na primeira página do livro, a cantiga é repetida duas vezes ao longo do romance, sendo que cada sílaba corresponde a uma das sete notas da escala musical, retornando conforme o compasso da melodia. De forma geral, cada nota refere-se a um determinado tema com o qual é intitulada: nas duas notas “dó”, a temática é o “Nada”; nas oito notas “ré”, a atenção recai sobre a “Família”; nas dezesseis notas “mi”, o narrador realiza reflexões sobre “Kafka”; nas treze notas “fá”, são apresentadas as reminiscências da “Infância” (o capítulo 58, dessa nota, carece de título); nas quarenta notas “sol”, acompanhamos a viagem à “Parnaíba”; nas seis notas “lá”, são expostos os sentimentos de “Angústia”; nas duas notas “si”, o enfoque é voltado para os “Bichos” com que o protagonista se depara na viagem. Há, ainda, dez pausas que têm como título “Aves”, nas quais o narrador disserta sobre sentimentos variados e busca o significado da palavra “kafka”. Em depoimentos sobre o processo de escrita criativa, Castello menciona que levou quatro anos para concluir a narrativa. Durante os anos iniciais, apenas escreveu blocos soltos, sem uma forma. A organização em capítulos não foi algo planejado, todavia fruto do acaso, como explicita em entrevista à Saraiva Cultura (2010), uma vez que somente surgiu após ouvir a mãe cantar a cantiga de ninar e receber como justificativa ser aquela uma canção que 102 A canção é a seguinte: “Ô seu Zuza seu Cazuza/ que chorar tanto’assim não se usa/ frio lio li frio lio li frio lio lé é/ cala boca mimoso José é” (CASTELLO, 2010, p.8). 162 unia diferentes gerações masculinas, entoada sempre pelo pai a um filho homem. Com isso, o romancista decide que sua ficção teria como estrutura a partitura daqueles versos. A pauta musical de “Cala a boca” é separada em dezesseis compassos com figuras rítmicas mínimas, semínimas e colcheias, as quais foram transformadas em uma espécie de fórmula matemática simples: cada uma corresponde a um máximo de caracteres, quanto mais rápida é a duração de cada figura, menor é a extensão do capítulo103. Logo, os dois anos finais de sua produção foram um período em que o autor passou realizando cortes no material escrito, com a finalidade de seguir a tabela autoimposta. De modo inevitável, essa prosa peculiar necessita de lacunas e intervalos acústicos para aflorar melodicamente, tanto que a escrita absorve a ausência sonora por meio de uma dupla variação: como conteúdo e como forma104 de organização discursiva. Inclusive Castello (p.233) destaca que, nesse romance, o silêncio funciona como um elemento de suma relevância: É como na respiração: precisamos esvaziar o pulmão para enchê-lo novamente. [...]. É o mesmo que a pausa nas partituras musicais. Sem as pausas, todas as músicas se tornariam incompreensíveis. O silêncio é fundamental para a escrita. Ele compõe um intervalo, uma respiração, uma espera. Ele cria o ritmo e a cadência. Corresponde aos momentos de introspecção e de meditação. E, de fato, o Ribamar está repleto desses momentos. Entre cada capítulo – não apenas naqueles que correspondem à pausa musical – há, sempre, uma quebra, uma cisão, em que o silêncio se expõe e se impõe. Ainda que essa narrativa esteja composta por distintas pausas intersonoras, uma ressalva precisa ser feita. Na presente análise, deter-nos-emos no silêncio enquanto estratégia comportamental das personagens – principalmente como mecanismo de ação e reação do narrador-protagonista –, e não como forma musical incorporada pelo discurso romanesco. Ribamar é um livro de travessia, sobre o processo de escrita de um romance. Não obstante, é também uma narrativa de luta de um “escritor-minhoca” (CASTELLO, 2010, p.53) com as palavras e com seu passado. Através de um diálogo intertextual com a Carta ao pai, de Franz Kafka, o narrador-protagonista, José, compõe uma espécie de carta destinada para o seu progenitor, Ribamar, que já está morto. O remetente, nesta carta-romance, esforçase para elaborar os sentimentos que foram amordaçados durante todo o convívio com a figura paterna. No decorrer da epístola, o filho, sentindo-se constrangido como Franz, busca a identidade do homem que permanecera escondida atrás do papel de pai. Passados os anos, 103 Conforme Castello revelou em entrevista para Flip (2010), a tabela que se autoimpôs foi a seguinte: cada mínima é composta por aproximadamente 6.000 caracteres, cada semínima vale 3.000 e cada colcheia tem em torno de 1.500 caracteres. 104 Além dos capítulos denominados pausas, a prosa é elíptica com as sentenças curtas que, dificilmente, têm mais que três linhas. 163 apartados pela morte, o “eu” que escreve faz do “deserto de palavras que separa o filho de seu pai” (CASTELLO, 2010, p.268) o tema da sua escrita. No resgate do tempo, o remetente/narrador mescla memória e invenção. Das ruínas que restaram e das lembranças que guarda, cria sua “verdade que, no fim, é mentira também” (CASTELLO, 2010, p.49). Elege a “superioridade da ficção: aqui faço da verdade o que quero” (CASTELLO, 2010, p.38). Deliberadamente, assume que mente, contudo a mentira não é utilizada “para negar, mas para alargar a verdade” (CASTELLO, 2010, p.116). A escrita configura-se como um exercício que oportuniza tanto a libertação daquilo que o tortura quanto a reconstrução da própria identidade. Ameaçado pelo fantasma que o manda calar, José, o filho, escreve. Organiza um angustiado relato digno de desconfiança, repleto de incertezas105, de reescrituras do mesmo fato e de interseccionismo de imagens. A narrativa em primeira pessoa é filtrada através do presente do narrador que, como uma amálgama temporal, mistura situações remotas com as recentes. Os diferentes graus de afastamento e proximidade entre o “eu” que narra e o “eu” que experimenta permitem a reavaliação constante dos acontecimentos; ora José desvela a opressão e o pavor que a presença paterna lhe causava tecendo julgamentos assertivos, ora tais eventos recuperados pela visão distanciada do narrador são amenizados. Quase quarenta anos após José ter presenteado Ribamar com a Carta ao Pai, o livro retorna às mãos do protagonista por meio de um amigo que encontrara o exemplar em um sebo com a seguinte dedicatória: “Para o papai com um beijo e o amor do filho José” (CASTELLO, 2010, p.21). O presente é profundamente emblemático e carregado de intenções veladas. O aparente carinho expresso pelos substantivos “beijo” e “amor”, junto com o tom afável do vocábulo “papai”106 ultrapassam a mera alusão ao dia dos pais do ano de 1973 para esconder e revelar a subjetividade de uma personagem que sempre aprisionara as palavras de dor, amor, frustração e encanto, sufocando todos os sentimentos contraditórios em relação à pessoa cuja proximidade afetiva deveria ser a mais intensa: o seu progenitor. O texto kafkiano é ofertado em um período problemático do relacionamento familiar, quando pai e filho pouco dialogavam, em que este sequer conseguia “falar sobre a dificuldade de falar” (CASTELLO, 2010, p.22). José identifica-se com o filho que fora Franz Kafka, aquele jovem que conseguira desabafar para o papel todo temor e mágoa sentidos em relação ao homem que lhe dera a vida. O protagonista, enclausurado em um torturante casulo de 105 106 O lexema “talvez”, advérbio de dúvida e de possibilidade, é um dos termos que mais se repete na narrativa. O eu que assina a dedicatória invoca a si próprio e ao seu destinatário apenas na condição genérica de pai e filho. A ausência da afetividade dos pronomes possessivos – meu e seu –, que deveriam preceder os respectivos substantivos, revela certo distanciamento entre ambas as personagens. 164 silêncio, encontra nas palavras do escritor tcheco a dimensão exata de sua dor, opta por fazêlo porta-voz de seu desassossego: Ao se dirigir a seu pai, Hermann Kafka, Franz não só me roubava as minhas palavras, mas usurpava meu lugar de filho. As mesmas palavras que, em minha garganta, provocavam feridas que me impediam de falar, ditas por Franz descerravam a verdade. Eu não precisava mais buscar palavras para as coisas que tentava lhe dizer. As palavras estavam ali, ainda que, em grande parte, me escapassem. Emitidas por um grande escritor, o que não só as engrandecia, mas autenticava. Noventa e duas páginas que resumiam o que, durante anos, eu tentei inutilmente expressar. (CASTELLO, 2010, p.22) Ao eleger palavras alheias para representá-lo, apenas de forma ilusória o protagonista traz à tona a profundidade de sua aflição. O livro entregue funciona “como um estepe – um substituto [...] como um escudo” (CASTELLO, 2010, p.55-56), com o qual José se esconde, reproduzindo a reação defensiva de Franz, porque, ao não falar cara a cara com Ribamar, acaba por fugir do enfrentamento e reprimir sua verdadeira expressão. Consequentemente, a personagem que adota a carta kafkiana decide por manter a barreira do silêncio, tendo em vista que, na breve dedicatória, inexiste alguma sugestão/orientação aparente que possa guiar a leitura de quem recebera o presente. No entanto, essa situação inverte-se. Ter novamente em mãos o mesmo exemplar ofertado ao genitor faz com que o protagonista, além tentar achar algum sinal que confirme que o livro tenha sido lido por aquele que o recebeu em 1973, também reflita, especialmente, acerca do complexo relacionamento familiar, circunstância que o impulsiona a escrever e a resgatar a figura paterna. Em busca de um passado desconhecido, o filho viaja para a Parnaíba, terra onde nascera o pai, percorre os campos e a casa onde este homem crescera, visita os tios, encontra antigos amigos e procura por pessoas que tenham convivido com o jovem Ribamar. Assim, a carta é escrita por meio de um intricado jogo memorialístico, que altera fatos, tempos, lugares, mesclando também sonhos e pesadelos que o narrador teve durante o processo de produção. O narrador-protagonista que elabora o discurso em Ribamar afoga-se em suas próprias palavras impronunciadas. Até mesmo os estranhos parecem casualmente perceber que há algo fora do normal com este homem; como a mulher que, no supermercado, insulta-o da seguinte maneira: “Você parece um peixe morto” (CASTELLO, 2010, p.34). José acredita que a analogia seja verdadeira: os peixes “morrem pela boca, asfixiados pelas palavras que não conseguem dizer” (CASTELLO, 2010, p.34). Os olhos arregalados e a boca aberta refletem 165 não a agonia da morte, mas sim o tormento dos vocábulos retidos, aqueles que o narrador (ou o homem-peixe) nunca chega a pronunciar, lexemas escorregadios que sempre lhe fogem. As ondas que voltam do tempo distante devolvem à sua memória uma infância repleta de amarguras. Nesse sentido, a própria escolha pelo título da cantiga “Cala a boca”, “metáfora de silêncio e estranhamento” (PINTO, 2010, s/p), destaca uma violência sutil e um caráter autoritário que marcam o relacionamento entre pai e filho. O narrador poderia ter escolhido outra expressão, como “mimoso José” (CASTELLO, 2010, p.8), mais condizente com o gênero da canção de ninar, porém prefere deslocar o sentido do adjetivo que o qualifica carinhosamente para centrar a atenção no tom categórico de ordem, expresso pelo modo verbal imperativo. Nas notas de impaciência, calar é a incumbência herdada: “Preciso sustentar o mandato que você me destinou. A mim, filho inquieto, cabe o silêncio” (CASTELLO, 2010, p.103). Por trás desse mandato de obediência, é possível vislumbrar outros sentimentos que sufocam a criança que fora o protagonista: o medo e a angústia. Conforme a definição dicionarizada, o substantivo medo significa: “1. Sentimento de viva inquietação ante a noção de perigo real ou imaginário; pavor, temor. 2. Angústia, ansiedade, receio, apreensão em relação a algo desagradável” (FERREIRA, 2005, p.453). Similarmente, o substantivo angústia denota: “1. Grande ansiedade ou aflição, ânsia, agonia, receio. 2. Sofrimento, atribulação” (FERREIRA, 2005, p.44). Essas duas emoções, apesar de terem sentidos próximos, e, na maioria das vezes, serem consideradas sinônimas, têm algumas peculiaridades que as afastam. Dessa maneira, para evitarmos equívocos no que se refere ao uso terminológico de cada termo, faz-se necessário distingui-las, por isso, deixaremos clara a perspectiva teórica adotada para a análise a que nos propomos. Em linhas gerais, o medo é uma emoção primordial e básica conhecida por qualquer organismo que tenha vida, o qual sugere perigo e é necessária à sobrevivência. Tal emoção pode provocar, dependendo da circunstância e de quem por ela é afetada, efeitos físicos contrastados ou até reações alternadas em uma mesma criatura: batimentos cardíacos acelerados ou retardados; respiração excessivamente rápida ou lenta; dilatação ou contração dos vasos sanguíneos; diarreia ou diurese; sudorese ou hiposecreção das glândulas. Todo ser, ao enfrentar uma ameaça, motivada pelo medo, tem duas possibilidades de reação: fuga ou enfrentamento. Já nos casos-limite, explica Jean Delumeau (1989, p.23), frente a um grande perigo, o organismo vivo pode simplesmente ficar inibido, afetado por uma pseudoparalisia característica do pânico. Constata-se, assim, que o medo, tomado como mecanismo fisiológico, em todas as formas de vida aproxima-se de uma reação biológica comum. Se o 166 medo é compartilhado tanto por seres racionais quanto por irracionais, a angústia, em contrapartida, em virtude da capacidade de pensar, de criar expectativas, apenas é sentida pelo homem, geradora de uma inquietação psíquica que faz oprimir o coração, de sensações de receio, de apreensão, de aflição, de nervosismo, e de impressão de sufocamento. No campo psicanalítico, uma discussão clássica é a realizada por Sigmund Freud (1994, p.102-103 – 1977, p.19) que estabelece a diferenciação entre os lexemas “medo”, “angústia” e “susto”, sendo a relação mantida de cada emoção com o perigo o critério que as distancia. No medo (furcht), encontra-se sempre a presença de um objeto específico que desperta a atenção do indivíduo. Já na angústia (angst), há um estado de “espera” ou de “expectativa” (Erwartung) e outro de “preparação” (Vorbereintung) para a ameaça, não existindo obrigatoriamente um risco real e concreto para que possa voltar à atenção do indivíduo, portanto está conectado a algum evento ou confronto futuro. Por sua vez, no susto (schrenck), ressalta-se um perigo para o qual não estava preparado, diz respeito à surpresa, um episódio que não pode ser previsto nem preparado pela angústia. Tem-se, então, como elementos diferenciadores das emoções a temporalidade: no medo, o perigo é presente e conhecido; na angústia, o perigo localiza-se no futuro; no susto, o perigo é presente, entretanto surge inesperadamente. Delumeau reconhece parte dessa diferenciação realizada pela psicanálise. Destaca que medo e angústia são “dois polos em torno dos quais gravitam palavras e fatos psíquicos ao mesmo tempo semelhantes e diferentes” (DELUMEAU, 1989, p.25). Da polaridade do medo, fazem parte as sensações de espanto, temor, pavor ou terror; da polaridade da angústia, as impressões de melancolia, ansiedade e inquietação. O primeiro refere-se a algo conhecido, tem um objeto específico que desperta a atenção; o segundo desconhece e não possui esse objeto, vivido como uma espera torturante ante um perigo “tanto temível quanto menos claramente identificado: é um sentimento global de insegurança” (DELUMEAU, 1989, p.25). Por isso, a angústia é mais difícil de suportar do que o medo, manifestando-se através de sensações físicas discretas associadas à apreensão pelo que está por vir. O angustiado sofre pelo excesso de futuro, receia algo que pode nunca acontecer. Para Delumeau, em um sentido muito estrito, o medo é concebido como uma emoçãochoque desencadeada por meio da sensação de um risco presente e urgente que ameaça a conservação da existência. O medo advém da “insegurança [que] é símbolo de morte, [pois] a segurança é símbolo da vida” (DELUMEAU, 1989, p.19). Embora seja uma emoção biológica comum, quando se refere à esfera humana, torna-se mais complexa. No universo animal é único, idêntico e imutável: receio de ser devorado. No universo humano, os medos 167 são diversificados, de natureza instável e inconstante. Trata-se tanto de uma reação emocional quanto de um sentimento construído socialmente, aprendido e transmitido de modos distintos, variando de acordo com o contexto histórico-cultural107. Desenvolvendo um raciocínio próximo108 ao de Delumeau, o geógrafo Yi-Fu Tuan (2005) defende que os seres humanos, nas diferentes etapas da vida, são afetados por medos que aparecem e desaparecem; alguns, sem dúvida, produzidos por um espaço ameaçador, outros por uma mente alterada. Essa emoção polimorfa acompanha desde crianças imaturas até adultos maduros sob aspectos diferenciados, todavia, identicamente perturbadores. Tuan distancia-se das perspectivas anteriores por conceber que o medo é, em sua substancialidade emocional, composto por dois componentes: sinal de alarme e de ansiedade. O primeiro “é detonado por um evento inesperado no meio ambiente, e a resposta instintiva é enfrentar ou fugir” (TUAN, 2005, p.10). O segundo, por sua vez, “é uma sensação difusa de medo e pressupõe uma habilidade de antecipação. [...] A ansiedade é um pressentimento de perigo quando nada existe nas proximidades que justifique o medo” (TUAN, 2005, p.10). Nesse caso, a ausência de ameaças concretas retarda a ação. A ansiedade, mesmo considerada parte integrante do sentimento maior do medo, não perde sua essência de espera, tampouco sua ligação a um evento futuro. Integrante do processo de construção psicológica do homem, o medo se constitui como uma emoção interiorizada, subjetiva, parte do repertório emocional e do psiquismo humano que também está presente na construção ficcional de muitas personagens da literatura. Em nossa atual sociedade fluida, conforme explicita Bauman (2008), a instabilidade que afeta todos os espaços provoca intensos desconfortos, dias repletos de apreensão, em que a ameaça pode vir de qualquer lugar, inclusive daqueles inimagináveis, como do interior do ambiente familiar. Logo, o medo se torna mais assustador, já que é difuso, disperso, indistinto, flutuante, sem motivo aparente nem endereço certo, nutre-se da nossa condição desvalida e causa a modificação de comportamentos sociais e hábitos mentais. Para esse sociólogo, medo é o nome que atribuímos “a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver ao nosso alcance” (BAUMAN, 2008, p.8). Em pleno 107 Delumeau (1989) esclarece que diferentes épocas e sociedades geram diferentes medos. Por exemplo, na Grécia antiga, essa emoção era concebida como exterior ao homem, posto que se configurava como uma punição dos deuses; já na Idade Média, com a Inquisição, ocorre a internalização do medo, ante a possibilidade do homem ser um agente de Satã, emerge o medo de si. 108 Também entende que os temores alteram-se em consonância com as transformações históricas, como, por exemplo, enquanto um parisiense do século XVI receava os mendigos que assediavam os portões da cidade, um cidadão europeu do século XXI teme que seu país seja aniquilado por terroristas. 168 século XXI, nossa existência está longe de ter se libertado do medo, “a vida inteira é agora uma longa luta, e provavelmente impossível de vencer, contra o impacto potencialmente incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou supostos, que nos tornam temerosos” (BAUMAN, 2008, p.15, grifos nossos). É interessante destacarmos que Bauman não dissocia a angústia do medo ou vice-versa, fica implícito que ambos os sentimentos são inextrincáveis, em virtude de considerar que os habitantes do mundo líquido-moderno sentem receio de perigos reais ou hipotéticos. Ademais, para ele todas as criaturas são afetadas pelo pavor ante a presença imediata de uma ameaça, embora somente os homens experimentam o “medo de segundo grau” ou “medo derivado”109. É como se os humanos fossem assolados por uma angústia que gera o medo, ou o contrário. As abordagens expostas110 demonstram que o efeito de perigo, a reação de fuga ou de ataque em face daquilo que se considera uma ameaça, não se manifesta igualmente entre os sujeitos. Todos os seres vivos são suscetíveis ao medo; no entanto, o que atinge a uns não necessariamente tem o mesmo resultado nos outros. Além disso, o pavor desencadeado em uma pessoa afetará sua relação com as outras, da mesma maneira que o receio nascido de valores sociais constrói temores individuais. Na narrativa de Castello, Ribamar é a personagem que, paradoxalmente, desencadeia repulsa e fascínio no filho. José admira o pai na mesma proporção em que o teme, não conseguindo sequer confiar no homem que o gerou. A sensação de ameaça que emana de Ribamar é descrita com veemência pelo narrador que rememora o episódio no qual o progenitor, durante as férias de verão, tentava ensiná-lo a nadar. A serenidade e o prazer explícito em ajudar são ineficientes para que a criança relaxe e sinta-se segura. O menino julga que o pai deseja matá-lo, e isso desencadeia um sentimento de pânico, em razão de que, no mundo dos homens, “a imaginação aumenta imensuravelmente a intensidade do medo” (TUAN, 2005, p.11). É justamente a capacidade de imaginar a responsável por acentuar o sentimento de vulnerabilidade do protagonista que desconfia das 109 O “medo derivado” é uma estrutura mental estável, descrita como o sentimento de estar suscetível ao perigo; uma sensação de insegurança (o mundo está cheio de perigos que podem se abater sobre nós a qualquer momento com algum ou nenhum aviso) e vulnerabilidade (no caso de o perigo se concretizar, haverá pouca ou nenhuma chance de fugir ou de se defender com sucesso; o pressuposto da vulnerabilidade aos perigos depende mais da falta de confiança nas defesas disponíveis do que do volume ou da natureza das ameaças reais). (BAUMAN, 2008, p.9). Os perigos que desencadeiam pavores diferentes e provocam sofrimentos são, na perspectiva de Bauman (2008), de três tipos: os que ameaçam o nosso próprio corpo, que está destinado à degradação física e pode ser alvo da destruição alheia; os que ameaçam a durabilidade da ordem social da qual dependem a segurança e o sustento, e, por fim, aqueles que ameaçam o lugar (posição na hierarquia social e a identidade de classe, gênero e étnica) da pessoa no mundo. 110 A temática do medo e da angústia é ainda excessivamente controversa para que estabeleçamos uma nomenclatura oficial e rígida. Embora cônscios das sutilezas terminológicas, não se deve esperar que nenhuma delas seja adotada de forma restritiva e estanque neste trabalho, uma vez que, apesar dessas duas emoções serem distintas, em dadas circunstâncias elas podem se fundir de tal modo que é impossível diferenciá-los. 169 verdadeiras intenções paternas: “O peso de suas mãos, em vez de me proteger, me gela. Tenho calafrios. Talvez você queira me afogar, se livrar de mim. Seu rosto plácido, grudado ao meu, é só uma máscara” (CASTELLO, 2010, p.96). A fragilidade do corpo exposto à possível violência alheia acentua a incerteza e a sensação de insegurança, de modo que a angústia se amplifica e o garoto aguarda o pior. O desdobramento dessa cena é uma das mais dramáticas da narrativa: “Em um gesto final de aconchego, e para me proteger de mim, você me abraça. ‘Não me sufoque!’, eu grito. ‘Deixe-me respirar, preciso de ar’. Ainda me debato quando você me deita na espreguiçadeira” (CASTELLO, 2010, p.96). Note-se que nem mesmo o gesto de afago é recebido como uma ação protetora. Não obstante, é sentido quase como uma tentativa de asfixia, o contato corporal lançado para acalmar produz o efeito contrário. O medo que a criança experimenta a impede de desenvolver uma relação harmônica. Consciente do distanciamento, o próprio pai questiona “Afinal o que nos afasta?” (CASTELLO, 2010, p.95, p.96). Essa pergunta é concebida por José como um ataque, e ante a ameaça potencial, ele simplesmente não consegue responder, incapaz de enfrentar o perigo, as palavras permanecem sem ganhar voz. O desejo de que pelo menos uma palavra dissipe o embaraço da circunstância faz com que Ribamar indague mais uma vez o garoto sobre os reais motivos que os distanciam. A insistência de extrair uma resposta do ser que recusa a interagir verbalmente é uma atitude esperada, porque o mutismo, quando seria de se esperar uma “participação faladora, surpreende e destrói a segurança da conversa e mesmo os laços sociais, suscitando a vontade de o quebrar, de arrancar, finalmente, uma palavra que renove a comunicação num terreno conhecido, para dissipar a angústia” (LE BRETON, 1997, p.60). O menino não responde à súplica paterna, visto que “Não há uma resposta e é isso que nos afasta. Houvesse uma resposta, qualquer uma a mais odiosa delas, e a distância não existiria” (CASTELLO, 2010, p.93). O fato de não haver nenhum argumento apto para transmitir a potencialidade do sentimento é pior que qualquer réplica, por mais detestável que fosse. Se considerarmos que a linguagem, e, singularmente, a palavra lançada de um eu para um tu, é “um traço de união” (GUSDORF, 1977, p.73) entre os interlocutores, a inexistência de uma resposta que justifique o afastamento materializado pelo silêncio marca o abismo que separa pai e filho, evidenciando o afrouxamento dos laços afetivo e social. A proximidade física coage, o pai representa um perigo que ameaça o corpo da criança. Em paralelo, além do medo, há o desenvolvimento nítido da aflição, continuamente atormentado, José revela que “sua [a de Ribamar] presença sempre me despertou angústia” (CASTELLO, 2010, p.31). Até mesmo circunstâncias em que deveriam reinar a tranquilidade, 170 como a de ser fotografado, todos seus sentidos permanecem em estado de alerta. Fotografar os filhos era o principal entretenimento de Ribamar e um verdadeiro martírio para o menino que, nos momentos em que precisava pousar para as lentes da objetiva, era assolado por uma inquietação, manifesta em tremores leves. Ficar parado para o adulto capturar a cena é algo quase que incontrolável: “Não consigo me aquietar porque, diante de sua figura de domador, algo em mim vacila” (CASTELLO, 2010, p.168, grifos nossos). Chamamos a atenção para a metáfora utilizada para fazer referência ao pai, profundamente elucidativa do vínculo entre os dois. Se domar é subjugar, dominar a natureza do animal de modo a torná-lo doméstico, ao associar a figura paterna à de um domador, o narrador constrói a imagem de um relacionamento familiar desigual, marcado pela tentativa de controle de alguém forte sobre o outro fraco111. O protagonista é colocado no lugar da criatura selvagem, a qual é quase que obrigada a ouvir e a seguir as ordens impostas pelo adestrador/pai. Cabe questionarmos: o que o treinador reprime no animal/filho? Perante a figura do domador, o que vacila (e, por extensão, é subjugado!) é a expressão verbal. Neste episódio da fotografia, após o pai mostrar o retrato ao filho e solicitar um parecer positivo (nem que soasse falso), a criança é abalada pela dificuldade para enunciar: “Quanto mais insiste, mais as palavras me faltam” (CASTELLO, 2010, p.168). A coação, geralmente, afeta o seio da linguagem, pois, quando se é obrigado a falar, “a palavra sai sempre tardia, embaraçada. Fala melhor silenciando” (SCIACCA, 1967, p.77). A imagem apresentada aos olhos do menino traz uma presença que ele acredita destoar da realidade: a aparência do garoto representado (congelado no papel) difere daquele que minutos antes tremia. O foco escolhido fora incapaz de registrar a apreensão infantil, o efeito impositivo da foto produz uma sensação de horror que é somatizada pela pressão paterna, bloqueando o parecer do protagonista. Em contrapartida, ele também emudece, tendo em vista que “Diante de uma imagem, a palavra perde todo o bom-senso. A utilidade. A imagem cala a palavra” (CASTELLO, 2010, p.168). O discurso, em que só é possível proferir um vocábulo por vez, configura-se absolutamente precário perante o meio visual que instiga o olhar e dispõe simultaneamente um conjunto de elementos expressivos. A fotografia fascina e perturba aquele que pousa para a máquina; nela, prevalece o indizível revelador de um sentido que não pertence ao domínio da língua, com ela em mãos resta apenas à criança contrariada o silêncio. 111 A relação de poder díspar entre o adulto forte e a criança fraca, concebida pela ótica do narrador filho silenciado/inferiorizado, fica nítida na passagem em que José lê, no dicionário poético, a seguinte distinção: “Tirano é o senhor absoluto. Déspota é o senhor de um escravo. /Esclarece meu bisavô: o tirano oprime um igual, enquanto o déspota oprime um inferior. Antes eu o visse como um tirano! Ao menos, teria o consolo da semelhança” (CASTELLO, 2010, p.215, grifos nossos). 171 Ao longo da carta-romance, a representação do pai-domador, como aquele que desperta receio e ambiciona controlar a expressão verbal do filho, acentua-se. José explica que, em virtude do nariz grande que se destacava no pequeno corpo, chamavam-no de mentiroso. Confirmando os julgamentos alheios, o pai o acusava de exagerar na proporção dos acontecimentos que relatava. Conforme a perspectiva do narrador, o progenitor acreditava que todas as vezes que o menino lhe dirigia a palavra era para vencê-lo e não para apenas se expressar ou falar de seus sentimentos. Por isso, considerava a verbosidade infantil como uma “tagarelice” tão imensa que chega a protestar: “É impossível discutir com você. Eu me afogo em suas palavras. Eu desisto”112 (CASTELLO, 2010, p.222). Embora explicite sua deserção, Ribamar entrevia que a fala desenfreada da criança necessitava de controle, advertia que o Direito poderia canalizar a inundação lexical: “Você devia ser advogado. Tiraria da cadeia os piores monstros” (CASTELLO, 2010, p.239). Enfim, assertivamente, determina: “Faça alguma coisa desse falatório, ou fique quieto” (CASTELLO, 2010, p.223). As objeções paternas lançadas à criança trazem à superfície da narrativa uma hostilidade íntima que se esconde à sombra da dinâmica familiar. No interior do universo privado, argumenta o psiquiatra e filósofo colombiano Luis Carlos Restrepo (1998), abundam violências sem sangue que, apesar de não gerarem contusões no corpo, são capazes de ocasionarem intensas dores e sofrimentos para suas vítimas. Nessas agressões implícitas, próprias da intimidade, na maioria dos casos, a intencionalidade malévola por parte dos que exercem fica encoberta atrás de um manto de suposta proteção ao outro. Com isso, os núcleos familiares são violentos quando impõem “aos filhos ou a um dos membros do casal um modelo de comportamento que não corresponde às suas exigências mais íntimas e às suas mais sentidas urgências” (RESTREPO, 1998, p.65). Nas advertências de Ribamar, destacamse a intolerância frente à diferença que o menino representa e a resistência a permitir seu aparecimento e desenvolvimento. O pai, na perspectiva do filho, age de modo brutal ao tentar forçar o protagonista a mudar de conduta. A condenação do uso abusivo da fala, a censura da verborragia, para o narrador que rememora os tempos transcorridos pode estar relacionada à concepção de virilidade: “Homens suportam o mundo. Em silêncio. Você, por certo, via algo de feminino em meu tagarelar” (CASTELLO, 2010, p.228). Esse julgamento vem ao encontro do estereótipo de que as 112 Parece que o regime de fala é ameaçado também por um uso excessivo da palavra por parte da criança. Fica sugerido, nessa passagem, que a inviabilidade da discussão ocorra em razão de José abusar da expressão verbal, não deixando espaço de interação ao outro, levando ao limite o recurso à comunicação sem conteúdo, impondo ao interlocutor o desconforto de escutá-lo. Talvez o pai sinta-se afogado pela verborragia do filho, posto que, desprovida de pausas, “a palavra do tagarela é fechada e asfixiante, sem reciprocidade. Procura preencher as ameaças do silêncio e condena-se a ser vazia e incansável porque nunca é a última” (LE BRETON, 1997, p.69). 172 mulheres conversam em demasia e, assim, mantêm uma enunciação inesgotável que procura saturar o tempo, “cortejando-o com um discurso cujo destinatário é indiferente, porque sua palavra não é vazia de sentido, mas sem qualquer efeito para quem escuta” (LE BRETON, 1997, p.66). Possivelmente, José supõe que o pai enxergasse em seu falatório um comportamento característico do sexo oposto, o qual necessitava ser contido/abafado, pelo motivo de que, nas tentativas do filho de comunicar as histórias da rua, de relatar seus sofrimentos sem causas aparentes, de contar seus sonhos noturnos e de desvendar os mistérios neles contidos, o progenitor sempre se recusava a ouvi-lo. Concebia como insignificantes as palavras do menino, dispensando a atenção e rompendo imediatamente com a reciprocidade do diálogo através de frases como: “Não me venha com suas bobagens” (CASTELLO, 2010, p.70). A vontade indômita do menino de conversar não interessava ao adulto, porém, o narrador reconhece que Ribamar não era indiferente à personalidade infantil retraída, creditando a culpa pela incessante tristeza e pela aparente hipocondria do protagonista ao apego que este tinha às palavras. Temeroso de que tal afeição levasse o garoto ao fracasso pessoal e profissional, o progenitor “Lutava, furioso, para me defender das palavras. [...]. Acreditava que o excesso de palavras provoca uma corrosão interior” (CASTELLO, 2010, p.182). Considerando que se pode ser desmedidamente mais violento sem gritar, em especial “quando se maltrata o outro fazendo-o acreditar que o fazemos para seu bem” (RESTREPO, 1998, p.65), a aspiração do pai-domador de reprimir a natureza palradora da criança, para protegê-la do mal que as palavras poderiam lhe causar, esmaga o discurso à nascença. Refrear a verbosidade, além de romper com a capacidade normal de comunicação de José, também contribui para o esfacelamento da relação entre pai e filho. A respeito da importância da conversa destituída de conteúdo para o fortalecimento dos laços sociais, Le Breton (1997, p.65) afirma que “O falatório é uma fala sem responsabilidade, que não compromete em nada quem nele participa: palavra sem risco, já desligada de si, contudo essencial, como o sal no pão, para dar valor à existência e criar a amplitude afectiva do contacto”. Portanto, a tagarelice é um componente necessário e bom da vida cotidiana, uma forma corrente da comunicação banal que promove o prazer do convívio pelo convívio, sem outro comprometimento, e preenche a função da confirmação de si e do outro. Vocábulos supérfluos, soltos estimulam a cumplicidade, incentivam a cortesia de estar disponível para falar e escutar coisas que, substancialmente, são frívolas, com isso se consolidam os vínculos. Ribamar, que sequer se mostrava disposto a aconselhar o filho, nega a José o prazer lúdico da conversa frouxa, impedindo a aproximação e o desenvolvimento da intimidade entre 173 ambos. O vínculo afetivo limita-se a uma relação de autoridade provocadora de mal-estar, desconfiança e temor na criança. Ironicamente, não são as palavras que geram a corrosão interior no protagonista; a proibição de usá-las de forma livre desencadeia um conflito nas profundezas de seu ser. Aquele que antes afogava com sua verborragia passa a mergulhar no silêncio, o que significa que absorvera os comandos paternos, uma vez que domina sua natureza palradora. Conter a facilidade de elocução é algo penoso, o próprio narrador esclarece: “Menino, carrego o insuportável dentro de mim e o encubro com minhas roupas fúnebres. Algo está morto (algo eu mato em mim), e as cores escuras são um sinal de luto” (CASTELLO, 2010, p.183-184). Podemos defender que o insuportável carregado são as “perguntas sangrentas” (CASTELLO, 2010, p.117) jamais feitas, a frustração nunca enunciada, os pavores trancados no peito. O que está morto e que é assassinado, certamente, são as palavras, o preto do luto reflete a dor do discurso sufocado para cumprir o “Ideal dos pais: um filho emudecido, como uma folha em branco” (CASTELLO, 2010, p.222). Os medos, nos primórdios da civilização, eram oriundos da natureza, tudo o que o homem não compreendia lhe suscitava o temor. Já em nossa sociedade líquido-moderna, o grande perigo está no próprio homem, em especial naquele com quem dividimos o mesmo espaço. Se, por um lado, as pessoas são a nossa maior fonte de segurança, por outro lado, são também as originadoras de nossas apreensões; à medida que elas “podem ser indiferentes às nossas necessidades, tirar nossa confiança ou procurar diligentemente nos fazer o mal” (TUAN, 2005, p.14). Dos ecos vindos do passado, José resgata uma meninice que altera acordes de invisibilidade e de intensa rejeição. O desdém paterno nulifica o menino, nas investidas de aproximação de Ribamar para com o filho, geralmente, o desapontamento verte de sentenças desmotivantes: “Você é hipocondríaco. Vá ao dicionário e veja o que é” (CASTELLO, 2010, p.85); “Abra esses ombros! [...]. Você parece um papagaio” (CASTELLO, 2010, p.182); “Meu filho, você parece uma barata!” (CASTELLO, 2010, p.183). Tais pareceres são recebidos pelo narrador, carente de aprovação e de carinho, como insultos mordazes de fundo depreciativo. Como verdadeiras agressões verbais, cada vez que são pronunciados, aumentam a autoridade do emissor, uma vez que aniquilam com a segurança do receptor, cuja autoestima é estilhaçada, originando sentimentos deprimentes e negativos. José desabafa para o papel a desestabilidade emocional que lhe abatia naquelas situações: “Eu ouvia suas frases com um desejo de me anular. De me matar” (CASTELLO, 2010, p.107). Entretanto, há uma crítica que o dilacera de modo mais intenso do que qualquer outra, visto que é lançada contra a atividade que, realmente, o envaidecia: a escrita. Depois de 174 receber muitos elogios pela professora, em função de uma redação que fizera na escola, o garoto anuncia em casa o seu sucesso. Ansioso, espreita a reação de Ribamar quando a mãe comunica o êxito do filho. O pai lê a produção textual e, em tom irônico, comenta: “Ele se esforça para escrever. Tenta, mas não consegue. Não nasceu para isso” (CASTELLO, 2010, p.192). Com o orgulho ferido, percebendo que não correspondera às expectativas, o menino é tomado, às escondidas, por um ataque de raiva: A frase ‘Não nasceu para isso’ me arremessa para o chão. Caído, atordoado, arranco as folhas de meu caderno. Eu as rasgo. Pedaços de palavras se derramam pelo chão de meu quarto. Lembro que decidi: ‘Nunca mais vou escrever’. Para mim, acabou pai. Com uma frase você arruinou tudo. (CASTELLO, 2010, p.192) As palavras e os gestos de desacordo, assevera Restrepo (1998, p.66), no interior da vida íntima “desencadeiam violências sutis que ferem até o mais profundo das fibras afetivas”. O parecer de Ribamar põe em xeque a autoconfiança do filho, pois de onde deveriam emanar sentenças de incentivo, apenas brotam vereditos de castração. O desprestígio não permite que o protagonista enfrente o outro por meio de lexemas hostis; ao contrário, silenciar é a reação defensiva que consegue ter. A escolha dessa estratégia de fuga impele o narrador a comparar-se de forma recorrente à imagem de um cão abandonado que nega sua essência: “Em algum canto de meu interior, no escuro, um vira-lata, em vez de latir, se encolhe” (CASTELLO, 2010, p.125). Acovardado, o vira-lata/José cala a própria expressão, renuncia o uso das palavras/latido, para se proteger “se encolhe”, ou melhor, permanece calado. O menino-cão apresenta dificuldades de socialização, na escola se oculta em meio aos arbustos e a timidez o impede de fazer perguntas; por sua vez, no ambiente doméstico o mutismo se potencializa. As palavras domadas, reprimidas e assassinadas adquirem um peso muito elevado, transfigurando-se em um fardo interior de tamanha proporção que é representado através da imagem de um equipamento de transporte de carga. Isto é, durante a adolescência o protagonista procura uma frase que o defina, casualmente encontra a seguinte: “Todo o neurótico é um container” (CASTELLO, 2010, p.61). Raciocinando sobre o duplo sentido do verbo conter – guardar e refrear –, decide que esse aforismo o simboliza, haja vista “As palavras me pesam, eu as contenho; o container, de fato sou eu. Não que eu leve pedras verdadeiras dentro de mim. Carrego frases” (CASTELLO, 2010, p.62). A metáfora é reveladora, basta lembrarmos que esse tipo de aparato desempenha a função de proteger o que se acondiciona em seu interior, delineando um limite físico entre o que está fora e o que está 175 dentro, da mesma forma que o silêncio “levanta uma barreira dificilmente transponível entre si e o outro, sem hipótese de ficar no meio: ou se está num campo ou noutro” (LE BRETON, 1997, p.52). Sem se desprender de cada palavra impronunciada, o jovem é dominado por aquilo que por medo carrega, por tudo o que cala e lhe provoca dor e luto, uma penosa carga de se transportar. O adolescente refugia em si o que não pode ou não consegue dizer, evitando que sua fragilidade fique exposta, assim, o silêncio é a própria materialização do “container”. A ideia do refúgio implica a ideia de perigo, e, nas complexas sociedades, as causas comuns de medo das crianças, de acordo com Tuan (2005, p.38), são o castigo dos adultos pelo insucesso em algumas tarefas e a humilhação que podem vir a sofrer. José não chega a ser castigado fisicamente, tampouco é repreendido em público; todavia, julga que o pai o menospreza e o repele nos momentos em que clama por atenção, através de adiamentos como “Isso fica para depois” (CASTELLO, 2010, p.78) – outra forma de silenciar o filho. A indiferença, um modo de violência sutil, produz um efeito psicológico mais denso, uma vez que provoca uma sensação de angústia capaz de fazer o protagonista, constantemente, sentir “medos sem sentido – não de coisas que acontecem, mas de coisas que podem acontecer; não de objetos que me ameaçam, mas da ideia da ameaça” (CASTELLO, 2010, p.28). O menino conjectura que sofre dos nervos, como diagnosticara Ribamar, posto que encontra no próprio corpo os vestígios da doença (ansiedade): as unhas que rói até sangrar e os pelos (da sobrancelha e das costeletas) que arranca. Lembremos que a angústia é incontestavelmente relacionada à espera, uma emoção que cresce dentro do sujeito, “com ou sem razão, da possibilidade imediata do pior” (COMTE-SPONVILLE, 2005, p.11). José é afligido por essa espera, visto que permanece em estado de vigília: “Estou sempre à espera de coisas que você não diz” (CASTELLO, 2010, p.63). Perto do lacônico Ribamar, todos os sinais de alerta advertem para a ameaça, o filho nunca aguarda uma atitude amistosa, tendo em vista que “o calado parece estar sempre de reserva, numa acusação muda em relação ao outro” (LE BRETON, 1997, p.60). No silêncio ameaçador paterno, ressoa uma censura cruel que inquieta o interlocutor, ecoando castigos velados. A ansiedade, se for excessivamente grande, em vez de ajudar o indivíduo a se proteger, acaba por “se revela[r] inadequada no mais alto grau, paralisa[ndo] toda ação, inclusive, até mesmo, a fuga” (FREUD, 1994, p.102). Essa aflição imobilizadora está aparente nas características físicas do protagonista, o qual é caracterizado como “um Sampaku, alguém incapaz de ter uma reação adequada ao perigo e que, por isso, traz os olhos deslocados pelo pavor” (CASTELLO, 2010, p.33). Nos momentos de risco, carecendo de coragem para enfrentar o pai, o filho se congela, transforma-se em “container”: “‘Dentro de mim ninguém 176 entra’. Sempre fui minha própria muralha. Fechei-me, durante anos, para me proteger das bofetadas do mundo” (CASTELLO, 2010, p.260). A constante sensação de insegurança, ocasionadora do emudecimento do protagonista, pode ser também creditada a um frustrado jogo de projeções e de expectativas que envolve José e Ribamar. A complexidade do relacionamento entre pais e filhos, elucida o psicanalista italiano Aldo Carotenuto, está frequentemente associada ao que cada um espera do outro e o que, na realidade, o outro é. Desde o primeiro momento da descoberta da existência fetal, os progenitores começam a fantasiar a identidade da pessoa que está sendo gerada, “antes mesmo de descobrirmos quem somos e como somos, alguém já o fez por nós. E somos inventados por pais que, por sua vez, como filhos, também foram inventados” (CAROTENUTO, 1997, p.32). As personagens de Ribamar não conseguem escapar dessa teia que prende à proporção em que eles criam uma imagem para aquele que lhe é próximo. A personalidade – retraída, de olhos deslocados, apegada às palavras, vestida de preto – da criança que fora o protagonista difere muito daquela que o pai imaginara, tanto que na tentativa de alterá-la o adulto recorre aos mais diversos artifícios: de consultas com neurologista até sessão com hipnotizador de circo. Contudo, todas as investidas de Ribamar são frustradas, o que se pode perceber em frases desapontadas do tipo: “Ele sofre dos nervos. Já não sei o que fazer” (CASTELLO, 2010, p.41), “Ninguém descobre o que esse menino tem dentro dele” (CASTELLO, 2010, p.184); “‘Meu filho não tem saída’. Fala de um filho distante, o filho que me nego a ser” (CASTELLO, 2010, p.87-88). Pedir que alguém se adapte ao sonho projetado por outro, que se esforce para corresponder ao desejo alheio, é uma grande violência, uma verdadeira expropriação de identidade que causa uma dor intolerável. O indivíduo é constrangido a “representar a fantasia de outro, a recitar um texto do qual não é autor e a seguir regras” (CAROTENUTO, 1997, p.36). Para cumprir as expectativas paternas, José carrega frases indizíveis, obedece à ordem expressa pela cantiga de ninar, sofre pelas palavras que assassina, embora ambicione construir a própria individualidade: “Não quero ser outro: quero ser apenas eu. Quero ser mais um, e mais ninguém” (CASTELLO, 2010, p.100). O protagonista resiste caladamente, apresentando-se como um filho que se recusa a cumprir o que os outros esperam que ele faça e reconhecendo que se tornara uma criança inconveniente para o adulto que precisava suportá-la. Um complexo jogo de expectativas desencontradas envolve as duas personagens. Se Ribamar, na perspectiva do narrador, tem como ideal um filho emudecido que controle sua verbosidade, José também cria uma imagem inalcançável para o homem que lhe gerara: 177 Não é só o pai que faz o filho. O filho, de modo mais traiçoeiro, constrói (destrói) o pai. [...]. Mas, quando você voltava para casa, meus sentimentos se reviravam. Sua presença desmentia o que na ausência me dava. Eu tinha (todo filho tem) um ideal de pai que o próprio pai desmente. Ausente eu o sentia. Presente, nós nos perdíamos. (CASTELLO, 2010, p.108) José e Ribamar são dois jogadores arruinados pelo excesso de expectativas. O narrador explica que desejou demais do homem escondido atrás do papel de pai, tudo o que este lhe fizera era sempre insuficiente. A realidade esfacela com a fantasia, visto que se manter fiel à própria unicidade impõe um “custo altíssimo: custo da solidão e da exclusão” (CAROTENUTO, 1997, p.39). A presença física amplifica o isolamento emocional, pois o vínculo sanguíneo construíra somente papéis sociais que são seguidos: de pai e de filho. Sem espaço para a ternura, a função familiar é caracterizada como uma máscara, mais precisamente como um mandato, que fornece poderes distintos para cada posto ocupado. O discernimento em saber que se é diferente do que o esperado, segundo Carotenuto (1997, p.38), liga-se ao “estupor de sermos rejeitados pelo que somos”. Ocasionalmente, em um dia em que José e Ribamar estavam juntos no barbeiro, o menino parece perceber a dimensão desse enjeitamento; já que, ao ler uma revista, o pai profere uma sentença involuntária, curiosa a criança percorre as linhas escritas e se depara com a declaração de que não se pode modificar um filho. O narrador, primeiro, pensa que tal frase fora a responsável por convencer o adulto a desistir de todas as suas investidas e, com isso, a se distanciar. Em seguida, percebe que “não é você [Ribamar] que se afasta, nem sou eu que me afasto. Indiferente aos nossos esforços, alguma coisa se desliga. Nada podemos fazer, a não ser aceitar” (CASTELLO, 2010, p.64). A impossibilidade de corresponder às projeções distancia, não há palavras que sejam capazes de religar as personagens desiludidas, o medo e a angústia de nunca chegar a cumprir os desejos alheios também calam qualquer expressão verbal. 4.3 O fracasso das palavras: o abismo entre pai e filho O medo faz os indivíduos terem uma percepção deformada e naturalmente aumentada do objeto que temem. De acordo com Jacques Derrida (1973, p.339), tal emoção seria o primeiro encontro “do outro como outro: como outro em relação a mim e como outro em relação a si mesmo. Só posso responder a ameaça do outro como outro (em relação a mim) transformando-o em outro (em relação a si mesmo), alterando-o na minha imaginação, no 178 meu medo”. Nesse estágio, o outro é encontrado à distância; no entanto, a possibilidade de abordar o elemento temido como um próximo apenas é possível quando o sentimento de insegurança é superado. Podemos defender que a criança e o jovem que fora José, incapaz de compreender o modo de agir do pai, acabam tendo uma disposição para torná-lo, desmedidamente, maior em todas as circunstâncias. Vê-se incomodado, abafado pelo vigor dos sentidos, um só meio lhe é deixado para mostrar tudo o que deve à sua natureza: empregar a imaginação para engrandecer as imagens e os acontecimentos. Decorridos os anos, a doença, tendo degradado o corpo de Ribamar e o levado à morte, além de permitir que o filho se aproxime da figura paterna, a enxergando como um homem preso ao papel de pai, também lhe propicia a oportunidade para reavaliar situações: reconhece a própria culpa – “Hoje sei que eu mesmo me condenei” (CASTELLO, 2010, p.202) – e ameniza certas agressões – “Era uma manifestação de carinho que eu entendia como uma facada” (CASTELLO, 2010, p.183). Morto o pai, o protagonista está livre do objeto temido. Logo, consegue desfazer-se das amarras que o aprisionavam: “Agora que você não pode mais protestar, agora que está retido em seu último silêncio, nada me ameaça. Posso tudo” (CASTELLO, 2010, p.108). A morte, “fim de uma fala cujo desenvolvimento estava no rosto atento do outro que se faz ausente” (LE BRETON, 1997 p.247), interrompe brutalmente o discurso, a palavra é raptada pelo silêncio absoluto, o mutismo eterno se instala naquele que perde a vida. Ribamar não pode mais destilar seus vereditos, torturar com as palavras não ditas, tampouco difundir insegurança e provocar o insulamento em José. O narrador tem a chance de destruir a muralha que o cercava, está livre para fazer o que quiser, para alçar voo através da escrita e imaginar a sua verdade, dar expressão aos sentimentos mais densos. O familiar em falta abre lugar à letra que até então sempre esteve em falta, ou melhor, abrigada, receando o perigo iminente. A perda do pai, pessoa que era tanto temida quanto parte de si, repercute em uma espécie de pesar às avessas. Quer dizer, geralmente, a partida de um ente querido afeta a linguagem dos enlutados que são incapazes de exprimir o sofrimento sentido; não obstante, para José, a morte de Ribamar é o que lhe estimula a compor um “livro-luto” (HIDALGO, 2013, p.225), fazendo-o retirar a mortalha do emudecimento para revelar a intensidade da dor que sempre o acompanhara. Durante a construção romanesca, destaca-se um verdadeiro esforço de rememoração que “visa à transformação do presente” (GAGNEBIN 2009, p.55), posto que as lembranças não são resgatadas para repetir aquilo de que se lembra nem para cultuar o passado, e sim “para delas ver-se livre. [O narrador] Percorre os silêncios de sua infância, reconstrói suas memórias para fazer a palavra soprar, seja seu livro, seja seu grito de alforria na relação com o pai” (ANGELINI, 2014, p.332). 179 A imprescindibilidade da escrita, no romance de Castello, alia-se à ideia de salvação: “Meu livro, Ribamar, este livro que agora anoto, não passa de um destroço a que me agarro. Ele é o que me resta – é o meu resto” (CASTELLO, 2010, p.75). É por meio das palavras lançadas ao papel que José sobrevive ao naufrágio das emoções represadas. Entretanto, o ato de escrever por si só é incapaz de salvá-lo. Para libertar-se do jugo paterno, ao longo do trabalho de elaboração do passado, o narrador enfatiza a necessidade de que suas palavras alcancem seu destinatário: “Preciso acreditar, ainda hoje, que você me lê” (CASTELLO, 2010, p.57). Dessa maneira, a posição simbólica de testemunha113 – de leitor/ouvinte que deve resistir atento até o final da narração para que o padecimento do locutor seja purgado – é disposta a Ribamar que não a ocupada confortavelmente, em razão de que o filho afirma: “É melhor que doa, pai. Trate de suportar” (CASTELLO, 2010, p.104). Se levarmos em conta que os indivíduos escrevem correspondências, segundo o filósofo André Comte-Sponville (2005, p.38) em razão de não quererem mais calar ou não poderem mais ficar mudos114, entenderemos que José, frente à inevitável distância imposta pela morte, encontra na carta o gênero discursivo mais adequado para comportar um passado em que a expressão verbal fora amordaçada. O impossível de enunciar transmuda-se em causa de desejo: “Escrevo para preservar esse segredo. Não para revelá-lo ou decifrá-lo, mas para conservá-lo como o que ele é: algo que sempre se oculta. Para isso se escreve: para sustentar um silêncio” (CASTELLO, 2010, p.105). Tarefa paradoxal a da escrita: preserva o que ficou escondido. O narrador mantém seu segredo, em primeiro lugar, em virtude de que tudo o que escrevemos “parte do silêncio intraduzível e retorna, como palavra, no silêncio de quem está lendo, fermentando palavras novas, diferentes da minha e, como a minha, expressivas significantes representativas de um silêncio inexprimível e irrepresentável” (SCIACCA, 1967, p.30). Em segundo lugar, pois compõe uma epístola para um pai morto, o que leva à impossibilidade da comunicação real. 113 O conceito de testemunha apontado aqui, bem como sugere Gagnebin (2009, p.57), é entendido de uma forma ampliada à concepção habitual. Ultrapassa o sentido daquele que “viu com os próprios olhos” e que, por isso, pode contar como tudo aconteceu. Testemunha, na perspectiva apresentada, é aquele que compartilha o sofrimento do outro através da escuta atenta, é aquele que não vai embora, que “consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como um revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2009, p.57). 114 Conte-Sponville (2005, p.38) ainda sustenta que os sujeitos escrevem cartas em virtude do “silêncio [ser] também um inimigo, também uma prisão, quando fecha, quando esmaga, quando mata, e às vezes mata”. Desse modo, as palavras registradas na folha em branco revelam tudo aquilo que não foi possível dizer de viva-voz na presença do interlocutor. 180 Apesar de seus dramas serem revelados no papel, permanecerão sempre ocultos aos olhos do interlocutor. Se o destinatário jamais lerá a carta, por que escrevê-la? Comte-Sponville (2005, p.35) talvez tenha a resposta, na medida em que o filósofo explica que toda missiva é produzida devido ao fato de que “não se pode falar nem calar. A correspondência nasce dessa dupla impossibilidade, que ela supera e da qual se nutre. Entre fala e silêncio. Entre comunicação e solidão”. O narrador, na realidade, não escreve propriamente para a figura paterna, porém “através” dela: “Sim, porque este livro é uma travessia. Não escrevo sobre você. Eu escrevo através de meu pai” (CASTELLO, 2010, p.56). Ao recuperar a imagem do progenitor, reviver um tempo que ruiu, o emissor do discurso pode reconstruir-se como filho; atravessando Ribamar, ele pode afirmar sua identidade à medida que preserva seu segredo. José extrai do passado um relacionamento familiar em que a interação verbal entre os integrantes fora árida, quase que inexistente. Nem mesmo com a mãe, nas poucas passagens a que lhe são reservadas, a conversa se desenrola de forma adequada: “Visito minha mãe. Tentamos conversar, mas as palavras (aves alvoroçadas) nos fogem. Aceito seu silêncio. Ela me olha com olhos de gelo” (CASTELLO, 2010, p.91). Se a fala “é a função humana de integração social” (GUSDORF, 1977, p.101), o diálogo inconcretizado demarca a total desintegração entre ambas as personagens. A socialização não acontece, e o olhar frígido reflete a fragilidade do vínculo afetivo, os dois permanecem distantes e emparedados em seus próprios interesses (e sofrimentos!), as palavras parecem recear o destino infame, e, por isso, se esgueiram furtivamente cedendo o espaço para a taciturnidade. A falência da comunicação com a progenitora sequer causa algum tipo de perturbação ao filho. Entretanto, a difícil troca verbal com o pai é o que realmente o inquieta. Em diferentes momentos da narrativa, o narrador traz à superfície textual cenas em que Ribamar é representado como um adulto profundamente lacônico, com quem não consegue estabelecer um fluxo dialógico. Surge a dúvida: se o protagonista cala por medo, por que motivo Ribamar emudece perante a criança? A pergunta que formulamos também é alvo de reflexão do narrador que se questiona: “E você, era silencioso ou taciturno?” (CASTELLO, 2010, p.179). Conforme a definição do Dicionário Poético escrito pelo bisavô Manoel Thomaz Ferreira, que José consulta, silencioso é aquele que gosta do silêncio; já o taciturno o utiliza como uma arma, ambos falam pouco: o primeiro com moderação e o segundo com repugnância. O filho não consegue distinguir em qual classificação o pai se enquadraria, sem saber se Ribamar gostava de ficar calado ou fazia isso para abalar com a segurança daqueles que lhe eram próximos, somente tece algumas 181 indagações: “Vivia quieto, mal me dirigia a palavra. Não falava muito, por cautela ou por aversão? Quando caiu doente, você lamentava: ‘tantas coisas para dizer...’ Rangia os dentes, gaguejava. As palavras não vinham” (CASTELLO, 2010, p.179). Nem mesmo a morte próxima concentra forças para fazer o progenitor enunciar as palavras nunca ditas. O tempo que passou e a convivência que tiveram foram incapazes de gerar intimidade ou de desenvolver confiança mútua. O filho cobra a interação jamais ocorrida, o pouco esforço comunicativo do pai: “Você teve tempo para me fazer perguntas que não fez. Para expor dúvidas que, por certo, engoliu. Para se debruçar sobre meu peito e chorar pelo que nós dois perdemos” (CASTELLO, 2010, p.36). Sem chegar a uma conclusão sobre o comportamento paterno, o narrador constata que no relacionamento entre os dois “há um rombo” (CASTELLO, 2010, p.63). O abismo que separa o filho do pai pode ser considerado como uma representação da fragilidade das relações humanas no contexto líquido-moderno. Para Bauman, os vínculos afetivos apresentam-se cada vez mais precários, construídos sobre um terreno movediço e nebuloso. Nesses tempos, há uma acentuada “incapacidade para amar” (BAUMAN, 2004, p.20), e, nem mesmo a base da estrutura familiar escapa à lógica do consumismo. Viver junto e ter um laço de sangue não são mais fatores substanciais para que a proximidade emocional se estabeleça. As sólidas pontes que ligam os indivíduos dissolveram-se, e até mesmo as redes de parentesco, com sua carga indissolúvel, são ameaçadas. Prevalece a ordem de que, para manter-se seguro em um relacionamento, é fundamental preservar a distância. Seguindo um caminho semelhante ao do sociólogo polonês, Restrepo (1998, p.20) explica que a sociedade contemporânea é assolada por um “analfabetismo afetivo”, ou seja, o componente da ternura, que necessitaria estar presente em todas as manifestações da convivência interpessoal, encontra-se em desintegração, em especial no interior do lares, onde “deveria ser um ninho de amor se converte frequentemente em foco de violência, [...] de maus-tratos e de dor que se alinham na convivência diária”. Assim, se justificaria o medo que a intimidade cria, uma vez que, ao ficar perto do outro, nossas fraquezas acabam sendo descobertas, o que faz com que permanecemos expostos. O torpor afetivo impede que a conversa se concretize e atenue a separação dos consanguíneos. Se, por um lado, o narrador reclama várias vezes do mutismo paterno115, por outro lado, resgata cenas em que o protagonista também recuou à interação verbal com Ribamar: 115 Como fica nítido em críticas como esta: “Em você, nada me incomoda mais que o silêncio. É um pai de poucas palavras, que me observa com espanto” (CASTELLO, 2010, p.63). 182 Gosta de me provocar: ‘Você sempre esconde alguma coisa’. A suspeita me desarma. ‘Não sei do que está falando’. Limita-se à frase injusta: ‘Sabe sim’, e me dá as costas. Sua provocação é, na verdade, um esforço de aproximação. Esquivando-me do corpo a corpo (da luta), eu me afasto sem perceber que faço isso. (CASTELLO, 2010, p.63) A tentativa de aproximação, sentida como um jogo de acusações e desconfianças veladas, da qual José escapa e o pai desiste, remete a uma carga de violência sutil (expressa nos verbos empregados – “provocar”, “suspeita”, “desarma”, “esquivando”), que contamina e polui o ambiente familiar. Toda hostilidade tênue, de acordo com Restrepo (1998, p.66), origina sob o teto dos lares, “pseudodiálogos que mais parecem uma comunicação entre surdos, já de início destinadas ao fracasso”. Nada é afirmado de modo claro, a cobrança paterna supõe a existência de algo que é escondido intencionalmente, todavia não enuncia o que é. A criança limita-se a proferir uma resposta oca, uma réplica desprovida de conteúdo, emitida apenas para preencher o angustiante vazio sonoro, desviando do embate feito de palavras, sequer revida a “frase injusta”. O aprisionamento das palavras do filho para com o pai e vice-versa contribui para o aprofundamento do rombo da relação entre ambos. Talvez, como em um jogo de espelhos, Ribamar apenas reflita o silêncio filial. Claro que esse reflexo não reproduz o silêncio do medo, como é o caso da timidez do menino; contudo, provavelmente, transparece um silêncio da frustração, da incapacidade de poder ajudar o filho. O progenitor, como José reconhece, não era indiferente de modo pleno, posto que solicitou ajuda de todos os tipos para a criança e foi “Aquele que, apostando todas as cartas em mim, foi derrotado. Tratou de tomar distância e se recolheu ao silêncio” (CASTELLO, 2010, p.196). Para um pai que não obteve sucesso na árdua tarefa de proteger um filho que se recusava a cumprir as expectativas alheias, o mutismo surge como solução. Em contrapartida, a existência do rombo entre as personagens também pode ser creditada à limitação inerente da linguagem. Convém lembrarmos que o narrador menciona a inexistência de um vocábulo capaz de explicar o que afastava os dois, essa ausência devido a “um impasse da língua. Não é o corpo que entra em pane, mas a palavra” (CASTELLO, 2010, p.97). A falha destacada corresponde a um desajuste, que afeta todos os falantes, entre o que sentem de fato e o que os lexemas precariamente transmitem, tendo em vista que “a palavra interior nunca se traduz na palavra pronunciada” (SCIACCA, 1967, p.32). Em muitos casos, a língua entra em colapso pelo motivo de não dar conta da representação do tumulto 183 intersubjetivo, como se a impossibilidade de enunciar derivasse de uma abundância de emoções represadas, ou o excesso de significados indizíveis obrigasse à fala. Com isso, quando nos deparamos com situações diante das quais não sabemos o que dizer, sentimos a incapacidade de articular o que se passa na subjetividade profunda. Ficamos frente a frente com um limite singular que não é somente um divisor entre linguagem e pensamento; no entanto, é a pressão da desordem sentimental sobre a ordem convencional das palavras. Tal limite, característico da fala humana, é considerado por Gusdorf (1977, p.93) como uma “insuficiência congênita”, a qual impede a tradução integral da essência da pessoa. Apenas se pode manifestar a superfície do que sentimos, a verdadeira interioridade, a dimensão real das sensações afetivas, mantém-se inexprimível. É nessa perspectiva que a expressão verbal sempre envolve o risco de uma transmissão diminuída, uma vez que ela procura representar algo que está fora de seus limites, algo que lhe é ausente. José luta contra essa insuficiência congênita, não obstante as palavras que expulsa de dentro de si adquirem vida própria, percorrem caminhos diversos, dizem o contrário do que deseja, surgem outras para atenuar o peso do que disse anteriormente; entretanto, “De nada adianta” (CASTELLO, 2010, p.109). Resta o lamento: “Escrevo para chegar mais perto de você. Nossos atos, porém, nos ultrapassam. Quero fazer uma coisa e faço outra” (CASTELLO, 2010, p.108). A linguagem humana é opaca em sua natureza. Nos atos concretos da língua, no exercício oral da fala ou até mesmo da escrita, ela nunca conseguirá atingir uma completa neutralidade, tampouco poderá se manifestar em uma absoluta transparência, porque “não pode traduzir senão a exterioridade dos seres e das coisas. [...]. Cada homem permanece assim, para todos os outros, um segredo” (GUSDORF, 1977, p.87). Na amplitude do ódio, do amor ou da dor, os lexemas fracassam como significantes cedendo espaço para o silêncio eloquente ou para a gestualidade expressiva. Fracasso esse que permeia os contatos entre José e Ribamar, intensificando-se durante as visitas que o filho faz ao pai adoentado, nas quais há um grande esforço por parte do protagonista para enunciar sua subjetividade. Todavia, nenhum êxito linguístico é obtido: “Busco palavras que, arredias, me fogem. As ideias falham e começo a sentir medo, não de você e de sua morte, mas de mim e de minha vida. Esquecendo-me de você, eu o abraço” (CASTELLO, 2010, p.19). O que a personagem experimenta é a contradição entre a força dos sentimentos e a redução da linguagem, marcando a impossibilidade da expressão completa inversa à comunicação utilitária/corrente. A emoção emudece a fala, visto que, quando não é o caso dos acontecimentos triviais e adaptados ao cotidiano, conforme Gusdorf (1977), nenhuma antecipação da linguagem para refletir parcialmente nossas sensações ocorre, instala-se a 184 distância intransponível que afasta os estados de consciência dos termos que deveriam representá-los. E o espaço temporal necessário para que se possa recuperar a capacidade de fala se define como a traição da subjetividade, pois, quando a emoção profunda emerge convertida em palavras, o essencial já desapareceu. Defronte do corpo degradado pela doença e dos delírios paternos, somente um vocábulo ganha voz: “‘Pai’, e não consigo mais dizer mais nada” (CASTELLO, 2010, p.16). A comoção afetiva fica restrita à esfera do indizível. O gesto de afago se apresenta como a única manifestação possível, logo, pleno de sentidos. A morte desencadeia uma agitação emocional avassaladora que aniquila até mesmo com as lágrimas de José. O filho tenta encobrir o vazio criado pela ausência de vida – ao cumprir com os rituais fúnebres de preparação do cadáver de Ribamar – com a canção “Cala a boca”. Contudo, a presença do corpo imóvel apenas permite a expansão da inoperância lexical: Por fim, eu o apronto. Sento-me a seu lado, jogo o rosto em seu peito e choro. Não me saem lágrimas. As lágrimas inexistentes, porém, me esvaziam. Tento conversar com você, dizer alguma coisa. As palavras falham. Elas não servem para a morte. A ela só corresponde o silêncio. [...]. Resta-me negar sua morte e entoar uma canção de ninar. A mesma que, desde o início dessas notas, me atordoa. A boca insinua palavras que não lhe saem. (CASTELLO, 2010, p.258) Similar inabilidade linguística é sentida quando José fica sozinho com o corpo de Mateus Martins, um idoso cego do asilo de Paranaíba, com quem criara um laço de amizade: Peço para ficar a sós com o doutor. Pensei em ler alguns verbetes em voz alta, como despedida. As palavras, porém, não me saem. Desisto. Volto para o hotel e jogo o dicionário na mala. (CASTELLO, 2010, p.273) Perante os corpos inertes, a fala fica suspensa nos lábios, mesmo que planejadas e carregadas junto para serem lidas, as palavras ficam retidas. Nenhum vocábulo concentra a força expressiva capaz de representar a desordem emocional, a qual abala a subjetividade daquele que se depara com o fim da vida de um ente querido e/ou próximo. “Ao aproximar-se da morte, a palavra estrangula-se, dissolve-se em um silêncio ou quebra-se em um grito. Perante a impossibilidade de voltar a encontrar o Outro, de voltar a tocá-lo, ela desagrega-se e incita o mutismo” (LE BRETON, 1997, p.247). O frágil véu da linguagem desfaz-se, a tentativa de José de conversar ou ler para os cadáveres fracassa, dado que, talvez, ele receie expor-se ao sofrimento de um diálogo sem réplica, o que agravaria uma chaga já aberta. A 185 posição do defunto em estar ali, ao alcance das mãos e alhures, inacessível a qualquer possibilidade de se manifestar, de responder ao desgosto ou apelo mais dilacerante, cala o espectador enlutado. As “palavras não servem para a morte”, para “ela só corresponde o silêncio” em razão de que a dor sincera, sentida nos sofrimentos essenciais, defende Sciacca (1967, p.45-46), é pudica e recatada, anula todo rumor inutilizando a fala. A morte vem demonstrar que, para além do silêncio que afoga a tagarelice da vida cotidiana, estende-se outro tipo de laconismo, ainda mais intenso, interligado com o próprio sentido da presença do homem no mundo, o silêncio absoluto. Ante os despojos, já revestidos de iniquidade de Ribamar e de Mateus Martins, José fica despedaçado entre o universo inteligível da voz e da vida corrente e aquele da mudez eterna, em que o outro passa agora a participar. Deparando-se com dois mundos, o protagonista é arrebatado pela insuficiência das palavras e das regras de articulação. Na presença do pai (vivo ou morto), José quer falar, no entanto não consegue. Refugia-se no silêncio. Como um vira-lata acovardado, nega sua essência tagarela. É o “container” que aprisiona e guarda frases sangrentas tanto por medo de Ribamar quanto pela inoperância congênita da palavra. A linguagem humana é imperfeita, posto que “temos uma vaga intenção, tentamos precisá-la com palavras, e eis que dizemos uma coisa muito diferente do que queríamos” (SARTRE, 2006, p.179). Além disso, a produção do sentido dependerá de fatores externos: o contexto de enunciação, as expressões corporais, a entonação da voz e a experiência emocional dos interlocutores. O narrador de Castello tem consciência da complexidade que envolve o ato comunicativo, uma vez que menciona: “A palavra é uma chave que gira para os dois lados. É preciso escolher. Nada me assegura que, mais tarde, meu leitor girará a palavra para o mesmo lado em que a virei. Esse é o grande mistério: as palavras não estão nelas, mas em quem as lê” (CASTELLO, 2010, p.176). Como ninguém pode estabelecer “o que de fato significam as palavras de outrem ou as suas, sequer” (SARTRE, 2006, p.182), o esforço de conferir uma significação preestabelecida é completamente inútil. José sabe que o sentido dos lexemas não é assegurado por eles mesmos, por isso, antes de realizar qualquer enunciação, é fundamental refletir, escolhê-los com calma, porque as “Palavras são estojos em que guardamos nossas aflições. Quando não encontramos o invólucro adequado, elas não podem ser ditas” (CASTELLO, 2010, p.227). Essa passagem explica, em certa medida, o emudecimento do protagonista diante da figura paterna: se, por um lado, fez do silêncio uma estratégia comportamental que o protegeu à medida que não enfrentou o progenitor, por outro, ao não descobrir o revestimento apropriado 186 que desse conta de traduzir a intensidade da emoção experimentada, e desprovido de qualquer garantia que Ribamar giraria a palavra recebida para o mesmo lado, ele se cala. José desconfia da linguagem. Sem decidir se os vocábulos são “luzes ou mantos” (CASTELLO, 2010, p.112), termina optando por aprisionar tudo aquilo que não pode ser representado em um diálogo convencional. Julga que o pai também é incapaz de encontrar o “invólucro adequado”: “Sei que busca a pergunta certa e não encontra. Sem saber qual pergunta você me fará, já sei que ela não comporta uma resposta. Não é algo que se refere a nós dois, pai e filho” (CASTELLO, 2010, p.97). A ausência da indagação carente de resposta é algo que ultrapassa a fragilidade do vínculo sanguíneo para se reportar a um “impasse da língua”, prenhe da palavra ainda não nascida ou com tanta frequência abortada. 4.4 Cartas do medo e do silêncio: outro filho escreve para outro pai Mesmo que o escritor almeje a solidão no exílio do espaço literário, onde se refugia para compor seu ofício criativo, jamais ele estará completamente sozinho. Há um cânone já estabelecido de obras e artistas antecessores, uma tradição pela qual o novo trabalho, além de dialogar, também é influenciado em maior ou menor grau. Os influxos externos e o diálogo trazem para o campo poético promissoras possibilidades de produção e de intercâmbio. Em Ribamar, Castello realiza uma série de alusões e de citações (marcadas graficamente pelas aspas), tanto de textos produzidos pelas personagens que fazem parte da genealogia ficcional do protagonista (nesse caso, o Dicionário poético, produzido por Manoel Thomaz Ferreira, bisavô de José), quanto de textos empíricos escritos por filósofos (como Sêneca, Sören Kierkegaard e Franz Bretano), romancistas (a exemplo de Daniel Defoe, Virginia Woolf, Robert Stevenson), poetas (entre eles, Horácio, Charles Baudelaire, Castro Alves, Manuel Bandeira e Jorge de Lima), biógrafos de Kafka (em especial, Max Brod), episódios inscritos na Bíblia Sagrada e composições musicais (de Leoš Janácek). Não obstante, a trama estabelece um relacionamento mais constante com Franz Kafka, através das narrativas A metamorfose, O veredicto e Carta ao pai, haja vista que com esta última o diálogo se desenvolve com maior intensidade. Logo nas primeiras linhas, o narrador-protagonista apresenta a compulsão literária que o consome: “Meu mal tem uma origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka. Não que eu o inveje ou deseje ser como ele. Também não o odeio e, com algum esforço, reconheço sua grandeza” (CASTELLO, 2010, p.11). José liga-se a Franz Kafka de forma paradoxal, apesar de no presente da enunciação não “desejar ser” igual ao escritor tcheco, há certas semelhanças 187 que os aproximam: “Vi, em algum lugar, uma fotografia daqueles olhos nervosos, que copiam os meus. Sempre vestido em cores escuras, como eu me vestia” (CASTELLO, 2010, p.11). O narrador inverte a lógica, as expressões “copiam os meus” e “como eu me vestia” causam a ilusão de que é o escritor já consagrado que, antecipadamente, reflete a então criança. Porém, essa lógica não é sustentada até o final da narrativa, visto que não somente se questiona “Como não fazer dele [Kafka] um espelho?” (CASTELLO, 2010, p.192), como ainda afirma ser, na realidade, “um rascunho de Franz” (CASTELLO, 2010, p.188). Se, por um lado, José defende não alimentar nenhum sentimento negativo e, com “esforço”, reconhece o destaque de seu antecessor, por outro lado, seu romance se conecta, de modo inextrincável, com a obra kafkiana, a leitura desta direciona todo seu processo composicional. Em A angústia da influência: uma teoria da poesia (2002), o estudioso Harold Bloom explica que o vocábulo influência origina-se do latim “influere”, isto é, fluir para dentro, entrada de determinado elemento em alguma coisa. É nesse sentido que se configura a ideia de um poeta inspirar outro em uma linha causal de dependências, em que os contemporâneos traçam seus caminhos, tendo como ponto de partida o trajeto delineado pelos antigos. Assim, a rede de influxos é infinita e irrefutável, toda produção literária, por mais autenticidade que possua, carrega em seu escopo reminiscências de literaturas passadas, manifestações do que foi internalizado pelo escritor, sendo o resultado de forte leitura e interpretação criativa denominada de “apropriação poética” (BLOOM, 2002, p.24). O narrador de Castello, ao criar seu romance e construir-se como personagem, acaba por explicitar a forma como outras textualidades fluíram para dentro de seu texto. Sobre esse processo, Lajolo (2013, p.145) explica que, “assim como o leitor de José Castello constrói seus sentidos para o que lê na história do narrador de Ribamar, esse narrador – por sua vez leitor proclamado de Kafka – também constrói seus (= dele) sentidos para o que leu nos autores que menciona”. Quer dizer, José, em diferentes passagens, demonstra a importância que as leituras realizadas desde a infância tiveram para o desenvolvimento de sua identidade, e, por extensão, de sua escrita: “Aos 8 anos, nos bancos do colégio, li ‘O navio negreiro’. Eu era um daqueles escravos que sufocavam nos porões dos navios. O poema não falava do passado, mas do presente. Falava de mim. Castro Alves: meu autor” (CASTELLO, 2010, p.115); “Tenho 11 anos. Nessa época, leio e releio o Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. A cada releitura, mais próximo me sinto de Crusoé – sozinho em minha ilha deserta, a que cheguei graças a uma grande teimosia; em um mundo de forças violentas cuja lógica me escapa” (CASTELLO, 2010, p.42). Nesses dois excertos, as reminiscências literárias que integram a narrativa contribuem para a construção do sentido. Pode-se afirmar que, nas 188 passagens citadas, a apropriação poética ocorre através dos sentimentos extraídos do poema romântico e do romance inglês, os quais ajudam a compor a imagem de um protagonista que se sente, assim como os escravos, privado de liberdade, tratado com certa brutalidade pela figura paterna; e, como o náufrago, solitário e à deriva. Entretanto, o fato de permanecer fisicamente próximo a Ribamar, sem estabelecer com ele uma comunicação adequada, amplifica e dramatiza os silêncios e os ecos da incomunicabilidade. Desse modo, qualquer obra literária adquire existência sob a sombra fantasmagórica dos antecessores, sombra essa que persegue José durante todo o processo de escritura: “Tento me afastar de Franz. Não posso permitir que ele vire uma obsessão, ou não conseguirei mais escrever. [...]. Fujo para os braços de outro escritor. Sempre os substitutos, sempre a mesma cadeia. Aqui deslizo, aqui me prendo” (CASTELLO, 2010, p.121). A escrita romanesca transforma-se em um espaço escorregadio, onde o narrador ora pende para a influência de um escritor, ora resvala para a influência de outro. Sem conseguir se livrar de seus antecessores, percebe-se preso dentro dos limites da tradição literária. Na perspectiva traçada por Bloom, todo poeta efebo (escritor iniciante no processo literário) não apenas copia ou imita os anteriores, todavia, através de uma relação polêmica de rivalidade, os confronta (agon). Tal embate é encarado com muita lucidez por parte do narrador-protagonista de Ribamar, o qual evidencia o caráter de enfrentamento viabilizado pelo ato ficcional: “anoto em meu caderno: ‘Aqui luto, então isso é literatura’” (CASTELLO, 2010, p.66). Embora a “angústia da influência”, sentida pelos artistas efebos em relação aos precursores, pareça algo desagradável, ela trará resultados positivos, uma vez que é por meio dessa aflição que o novo texto é gerado. A própria narrativa tecida por José revela que sua concepção foi originada116 a partir de uma frase que, supostamente, o genitor sublinhara no exemplar presenteado: “Ribamar, o livro que planejo escrever, parte da maldita frase. Mesmo que apócrifa, eu a tomarei como suas últimas palavras. Falsas ou verdadeiras, o livro que escreverei coloca essas palavras no lugar da verdade” (CASTELLO, 2010, p.65-66). Para Lajolo (2013, p.139), “essa literalmente kafkiana Carta ao pai é bem mais do que um intertexto nesse romance de José Castello. Ela protagoniza o episódio em que o narrador recupera o exemplar da Carta ao pai que havia dado de presente a seu pai”. Mais do que a escrita partir de outra frase, o narrador, durante a elaboração de seu romance, desenvolve com a carta de Kafka um vínculo quase que parasitário, extraindo dela os nutrientes necessários 116 Segundo o narrador, a origem de sua carta-livro deve-se ao retorno do exemplar de Kafka, “Desde que o maldito livro me voltou, não paro de pensar em Franz. Tudo me remete a seus escritos, e, em movimento inverso, suas palavras deságuam sobre mim. Se a Carta ao pai não me voltasse, essas notas não existiriam” (CASTELLO, 2010, p.157). 189 para que seu texto adquira vida: “Não consigo parar de ler a carta de Kafka. Tornou-se um vício que não posso negar, me alimenta” (CASTELLO, 2010, p.26). Na nova produção, o escritor efebo procura se apropriar de algumas imagens do artista que lhe antecede por meio de uma nova roupagem (desleitura). Retomando o raciocínio desenvolvido por Bloom, o sentido de uma produção ficcional é extraído da sua relação com as produções anteriores. Qualquer texto é produto de uma leitura de outro, cujo sentido é “defensiv[o], uma desapropriação (misprision)”117 (BLOOM, 2002, p.36). A concepção apresentada por este pesquisador não é nova, converge com as reflexões de Bakhtin, de que todo texto está constantemente em contato com outros, portanto, construído através do que já foi dito em relação ao qual toma posição. O diálogo entre textos se torna relevante, posto que “o texto só ganha vida em contato com outro texto (em contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo” (BAKHTIN, 2006, p.191). Nesse sentido, o que Bloom denomina de influência pode ser concebido como uma relação intertextual. Partindo das elaborações teóricas de Bakhtin sobre o dialogismo no romance, Kristeva (1974, p.64), em 1967, cunhou o conceito de intertextualidade: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. Lato sensu, intertextualidade é toda e qualquer relação dialógica, seja implícita ou explícita, que uma produção textual (oral ou escrita) tem com outras produções já constituídas. Encontram-se em um texto, segundo José Luiz Fiorin (2012, p.191), duas ou mais materialidades textuais distintas que podem apresentar diferentes processos de formação118. Cabe destacar que, seja qual for a função (satírica, séria ou lúdica) que marca essa relação dialógica, a apropriação intertextual é sempre crítica e de confronto, em que têm lugar complexas operações de assimilação e de transformação. Não nos interessa enquadrar a narrativa de Castello em nomenclaturas de processos de formação intertextual, tampouco identificar em que fase119 das relações de influência o romance pode se encontrar. O que objetivamos é vislumbrar como os intertextos kafkianos iluminam o texto em questão, 117 Esse termo é retirado por Bloom do soneto 87, de Shakespeare, em que o eu-lírico despede-se de algo muito caro para ser possuído e cujos laços entre ambos já estão todos determinados. A única maneira de ter este objeto valioso é desviando-se e o presente deste objeto é uma desapropriação crescente (misprision). 118 O campo de estudos da intertextualidade é demasiadamente amplo e, conforme o entendimento e a perspectiva teórica de cada estudioso da textualidade, recebe diferentes tratamentos aos mais variados processos de formação. Para Fiorin (2012), a intertextualidade acontece através da citação, da alusão e da estilização. 119 Bloom (2002) explica que a elaboração do texto, como em um ritual antropofágico – em que a absorção de certos atributos só é possível mediante a canibalização do que é alheio –, passa por seis fases: Clinamen, Tessera, Kenosis, Demonização, Askesis e a Apophrades. 190 perceber quais são as imagens absorvidas e quais são as novas roupagens dadas, enfim, verificar como o romance em análise confronta, atualiza e atribui novos significados a Kafka. A relação de intertextualidade explícita com o escritor judeu, em Ribamar, é trabalhada em dois planos: na forma e no conteúdo. Formalmente, o romance é separado em capítulos, em que as 16 repetições da nota “Mi” têm como título e assunto “Kafka”. Por sua vez, em nível de conteúdo, independentemente da nota ou pausa musical, o narrador desempenha uma função muito próxima à de crítico, uma vez que, além de expor suas impressões de leitura, de tecer reflexões acerca das fronteiras entre o romance e a epístola kafkiana, também esclarece como a leitura dos textos kafkianos afetaram diretamente seu comportamento e sua personalidade. As narrativas se misturam em uma quase consubstanciação literária; acompanhamos a composição ficcional da imagem de filhos que sofrem procurando sua identidade e resgatando a do pai, criatura bizarra e incompreensível. Inicialmente, é preciso mencionar que a Carta ao pai exprime uma denúncia íntima do pavor que a presença paterna gerou na vida do narrador, é o relato inquietante de um “eu” que rememora angústias passadas e onipresentes, episódios perturbadores que a convivência com o pai imprimiu em sua mente. Essa narrativa, conforme o próprio Kafka reconhece, “é uma carta de advogado” elaborada com “manhas advocatícias” (KAFKA apud BACKES, 2012, p.9), o que não significa que ela trate de inverdades; contudo, de verdades transfiguradas pela perspectiva de alguém que almeja fazer um acerto de contas e “se justificar diante de um tribunal, o maior dos tribunais, o tribunal paterno” (BACKES, 2012, p.10). A missiva foi escrito sobre e para o pai, Hermann, como forma de “melhorar um pouquinho um fracasso tão completo” (KAFKA, 2012, p.77) da relação entre ambos, uma tentativa de aproximação com este indivíduo tão temido. No entanto, por acreditar que, caso o progenitor a lesse, o relacionamento poderia agravar-se ainda mais, o jovem a entrega para sua mãe, que jamais a remete ao verdadeiro destinatário. Destacamos que o “tu” para quem se dirige a carta ainda está vivo e é uma presença real no cotidiano do emissor. Porém, em razão da epístola não ser enviada, é como se o sujeito que a escreveu não tivesse conseguido ultrapassar os níveis necessários para uma efetiva libertação e, assim, permanecesse preso a ela. Ou pior, é o filho que continua unido ao pai como um parasita, é Kafka que se “transforma em seu carrasco. O pai já não o persegue, ele se persegue” (CASTELLO, 2010, p.263). A carta elaborada por José afasta-se do intertexto kafkiano na medida em que o vocativo “você”, Ribamar, para quem as palavras são remetidas, é um pai que sobrevive apenas na memória do narrador. A presença física, há algum tempo, inexiste. O próprio enunciador do discurso questiona-se sobre o propósito de seu texto: “Por que escrevo essa 191 carta? Você está morto, nunca a lerá” (CASTELLO, 2010, p.65). Fadada a incomunicabilidade, a missiva tanto perde o caráter de julgamento quanto se esvazia o sentido de retaliação: “Nunca pensei em escrever para me desforrar. A escrita como uma vingança? Como punir alguém que não está mais aqui?” (CASTELLO, 2010, p.135). Entretanto, a impossibilidade de promover a reparação frente ao tempo perdido junto com o distanciamento ocasionado pela morte não impede o embate. Mesmo que vão, e demasiadamente tardio, o enfrentamento assume uma polaridade afetiva/positiva: “Talvez essa carta seja uma maneira de, enfim, enfrentá-lo. Não por vingança, como imagina o professor Jobi. Não para reparar o que não se repara. Mas para fazer um inútil gesto de carinho” (CASTELLO, 2010, p.66). Transpondo a prática de Kafka que escreve sobre Hermann, o narrador de Castello visa produzir um romance através de Ribamar, ou seja, almeja atravessar a figura paterna para alcançar o homem: “Preparo-me para escrever não um livro sobre meu pai, mas sim um livro através de meu pai. Uma viagem através de você” (CASTELLO, 2010, p.136). Concluída sua carta-livro, ele procura uma agência dos correios, em virtude do genitor estar morto o melhor modo de livrar-se da mesma é despachando-a para um lugar indeterminado: “A atendente me olha perplexa: ‘Falta o endereço’. Eu respondo: ‘Ponha aí um destino qualquer’” (CASTELLO, 2010, p.278). O fracasso do antecessor é superado, José se liberta do progenitor, rompendo com a relação parasitária. Enfim, enviando a carta, essa personagem consegue chegar à outra margem e concluir sua travessia. Não obstante, essa viagem através percorre um longo trajeto em que, por muito tempo, permanece ligado ao escritor tcheco por “um ponto de ebulição interno, [...]. O Ponto da Gralha” (CASTELLO, 2010, p.13). Essa interseção, além de unir os dois filhos-vermes que se contorcem por meio de palavras ansiando a atenção de seus respectivos pais, refere-se também ao fato de que, em uma das traduções do alemão para o português, a palavra “kafka” significa “gralha”, que, por sinal, é um apelido para os conversadores. José raciocina: “Kafka foi um homem silencioso. A esse silêncio, porém correspondia um frenético tagarelar interior” (CASTELLO, 2010, p.12). Ambos se mantêm próximos, pois o narrador se apresenta como uma personagem calada, atormentada pelas palavras que aprisionara. A impossibilidade de falar abertamente sobre seus sentimentos que desencadeia a escrita ou o silêncio que abafa o tagarelar é motivada, igualmente em Kafka e em Castello, pelo conflito com a figura paterna. José menciona que “Também Franz Kafka se esquivou da luta contra Hermann, preferindo a mudez. Embora nervosos, seus olhos continuavam fixos [...]. Talvez porque em seus escritos ele não parasse de gritar” (CASTELLO, 2010, p.33). Chamamos a atenção para o advérbio “também”, indicador semântico de comparação. Ao 192 utilizá-lo, o narrador estabelece um vínculo de similitude com Kafka, assinalando que, da mesma maneira, perante a Ribamar, a fuga do embate correspondeu ao refúgio na mudez. Convém mencionarmos que a Carta ao pai, texto lido e relido por José durante a composição de Ribamar, é uma epístola marcada pelo signo do medo e do silêncio. Em uma verdadeira fundamentação do temor que ele sente pelo pai, o filho, mesmo pretendendo estabelecer um contato por escrito diante da inviabilidade do diálogo real, é incapaz de se desvencilhar do silêncio: Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo [...]. E se procuro responder-te aqui por escrito, e não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti. (KAFKA, 2012, p.17-18) O receio de Kafka ocasiona o insulamento com o progenitor. Nem o afastamento físico, possibilitado pela escrita, permite que tudo o que é vetado na comunicação direta seja enunciado. Ao longo de toda a narrativa kafkiana, acompanhamos o pavor sufocante de um filho que se apequena frente ao pai, um “homem gigantesco” (KAFKA, 2012, p.22), com voz de trovão, considerado como “a última instância” (KAFKA, 2012, p.23), “a medida de todas as coisas” (KAFKA, 2012, p.30). Afinal, um indivíduo despótico que mais se assemelhava a um “mapa-múndi” (KAFKA, 2012, p.88), em que restavam parcas regiões para o filho se desenvolver. Para Sérgio Kokis (1967, p.25), o jovem que enuncia o discurso necessitava de amor, compreensão e orientação, todavia apenas recebia lições de ordem, gritos e outras agressões psicológicas. Essas eram tentativas de Hermann para moldá-lo à sua figura; contudo, esse frustrado empreendimento produziu em Kafka uma imagem exagerada de superioridade e opressão, uma “realidade ilógica ao seu redor” (KOKIS, 1967, p.26). A presença paterna é avassaladora, e o filho constrói sua identidade sob essa pressão. A criança desprotegida alimenta um “sentimento de estranha submissão, que também é revolta, mas no fundo é desejo de comunhão” (KOKIS, 1967, p.30). Kafka se posiciona como vítima, desenvolvendo, solidamente, um complexo de inferioridade frente ao pai algoz, complexo esse que afeta a linguagem do protagonista que adquire perto da personagem que o reprime “um modo de falar entrecortado, gaguejante, [...] de modo que por fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu nem conseguia pensar nem falar” (KAFKA, 2012, p.36). O silêncio, única reação defensiva possível à ameaça que representa Hermann, configura-se como um escudo que tanto o protege quanto o anula. 193 Ademais, a expectativa medrosa produzida pela presença paterna, que ocasiona a sensação de ameaça gerando a inépcia lexical por parte do filho, também é tematizada em outros textos kafkianos, como A metamorfose e O veredicto. No primeiro, após o protagonista Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, transformar-se em um “inseto monstruoso” (KAFKA, 2014, p.13), próximo a uma barata, ele perde a capacidade de comunicar-se com seus familiares, sendo relegado ao silenciamento e passa a sentir-se coagido pelo genitor. A atitude de franca hostilidade do Sr. Samsa assume formas de violência inusitada: enclausura o filho no quarto, persegue e agride fisicamente o inseto com maçãs, destina Gregor ao abandono e à morte através de uma advertência de desesperança. Por sua vez, na segunda narrativa, considerada por Beatriz Wey (2014, p.169) como “uma verdadeira banalização do medo”, Georg Bendemann, um jovem com relativo sucesso em sua vida civil, ainda que inseguro, vêse inserido na posição de réu do tribunal armado pelo pai. O rapaz escreve uma carta a um amigo inominado que está imigrado na Rússia, com o propósito de mantê-lo a par das novidades. No entanto, por acreditar que sua felicidade poderá causar algum desconforto naquele que está distante, hesita muito em contar que ficara noivo. Por fim, com a epístola em mãos, na qual o matrimônio próximo é anunciado, dirige-se ao progenitor com o propósito de se aconselhar. O patriarca, aparentemente frágil e debilitado, agiganta-se e começa a interrogar os atos do filho, iniciando seu julgamento. Munido de grande poder e autoridade, impõe o veredito final: condena o indiciado à morte por afogamento. Georg, estarrecido pela imagem apavorante do juiz/pai que grita, de modo acuado recua para um canto do quarto. Incapaz de defender-se com as próprias palavras, obedientemente se lança em um rio. José nutre-se dessas relações familiares conflituosas para recompor seu relacionamento com Ribamar. Sentindo-se aniquilado pela simples existência paterna, ele julga ser igual a “Gregor Samsa, um homem destinado a rastejar” (CASTELLO, 2010, p.127). Impedido de transcender a imensidão do progenitor, pela condição de filho, até mesmo o odor da potência e do sangue impregnado nas vestimentas do adulto molesta-o compelindo para a luta: “Mas, em meu caso, toda reação era sempre fracassada” (CASTELLO, 2010, p.32). Em várias passagens, como Kafka, o protagonista de Castello gagueja. Defronte da figura austera do pai, a linguagem sempre falha, tanto que chega a se transformar em “container” dentro de onde ninguém consegue entrar, ecoando a metamorfose de Gregor. Se Franz afirma que “desaprend[eu] a falar” (KAFKA, 2012, p.35), em razão de Hermann ter lhe proibido a palavra desde cedo e por ter lhe ordenado120, em todas as vezes em que dedicou um 120 Ordem carregada de uma violência sutil que, além de reprimir, conforme José, também emudece Kafka. 194 livro para o pai, a colocá-lo sobre o criado-mudo; José acusa Ribamar de tê-lo obrigado a amordaçar sua tagarelice por meio da canção “Cala a Boca” e, em diversos momentos, ter bloqueado a expressão da criança através das frases enfáticas como: “Não me venha com suas bobagens” (CASTELLO, 2010, p.71). Esses mandamentos são sentidos pelos respectivos filhos como formas de silenciamento que contribuem para o afastamento entre os familiares. Na obra de Kafka, expõe Benjamin (1994, p.139), existem muitos indícios de que são idênticos o universo dos funcionários e o dos pais: “Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície. O uniforme do pai é cheio de nódoas, sua roupa de baixo é suja”. Nesse aspecto, Ribamar também parece dialogar com a obra tcheca, uma vez que José menciona que “Pais se parecem com guardas” (CASTELLO, 2010, p.30), pressente que “Alguém [...] vivia para me vigiar. Você era esse chefe. Ainda hoje é” (CASTELLO, 2010, p.32). Mesmo após a morte, o narrador ainda é ameaçado pela vigilância paterna que o espreita e o controla. Não obstante, tal semelhança é ressignificada com o romance: a degradação e a imundície são ultrapassadas, em razão da roupa do genitor não ser temida, ao contrário, exercer fascínio. O pijama do adulto, que exala o cheiro acre das horas de pesadelo e de gozo, é vislumbrado pelo filho como um invólucro do qual o homem se desfaz para tornar-se outro no espaço público. Por sua vez, decorrido o tempo, José compreende que o paletó listrado, a camisa engomada e as gravatas italianas de Ribamar, ao invés do que julgava na infância, constituem um traje que era vestido não para manter a distância da criança, e sim utilizado para protegê-lo e afastá-lo do próprio papel de progenitor. Inclusive, José interpreta que Gregor Samsa não consegue enxergar a pessoa além da farda paterna, da mesma forma que o Sr. Samsa é incapaz de livrar-se do uniforme, que também é uma espécie de casca herdada. Vestindo-se, ele integra “uma série, a série dos pais” (CASTELLO, 2010, p.252), que o prende em uma repetição e, por isso, o desumaniza. “Todo pai é uma repetição dos pais que o antecederam” (CASTELLO, 2010, p.253), e, por isso, assume as vestimentas e a posição de ameaça do sucessor. Ao não gerar filhos, o protagonista de Castello (de modo próximo a Gregor, Georg e Kafka) quebra com essa transmissão da potência e autoridade. Outra imagem recorrente dessas narrativas kafkianas, absorvida pela escrita de Castello, é a do pai como um juiz que profere sentenças ao filho que se amedronta. Em Kafka, de acordo com Benjamin (1994, p.140), o pai é sempre quem pune, basta lembrar a condenação à morte por afogamento proferida a Georg, as agressões físicas lançadas pelo Sr. Samsa ao inseto, ou o tormento do jovem Franz infligido pelos “veredictos desfavoráveis” 121 121 Kafka (2012, p.30) argumenta que, para todos os seus pequenos empreendimentos da infância, o pai lhe respondia com um suspiro irônico e um balançar negativamente a cabeça: “Já vi coisa mais interessante” ou 195 (KAFKA, 2012, p.29) de Hermann. Durante o ato rememorativo, o narrador-protagonista de Ribamar recupera seu tempo da infância, época em que se sentia atacado e repreendido pelas palavras com as quais o pai tentava alterar a personalidade retraída do filho. Julgamentos como “Esse menino não está bem” (CASTELLO, 2010, p.190) ou “Esse menino sofre dos nervos” (CASTELLO, 2010, p.27) castigavam o rebento, cujo temor o impedia de defenderse, levando-o a se transformar na própria punição: “Com os nervos destroçados, encarno, enfim, a doença que você viu em mim. Torno-me a sentença que você proferiu” (CASTELLO, 2010, p.28). Todavia, transcorridos os anos, ao voltar os olhos para trás, José tem a possibilidade de reavaliar antigos acontecimentos e, com isso, se não purgar, ao menos amenizar a culpa paterna: “Hoje sei que eu mesmo me condenei. Não é uma sentença, mas uma escolha” (CASTELLO, 2010, p.190). Além de punir, em Kafka, o pai também esmaga pela mera materialidade de seu corpo, seja pelo físico visivelmente mais forte – como Hermann, homem grande e musculoso, em contraposição ao filho fraco e franzino; ou como o Sr. Samsa, mais alto que o inseto e intimidador com suas botas enormes, prontas para pisar –, seja pela sua expressão corporal performatizada –, a exemplo do progenitor de Georg que sobe na cama, permanecendo em uma posição superior ao filho que se apequena. Em Castello, é a indiferença de Ribamar que achata o filho a ponto de fazê-lo comparar-se122 com o protagonista d’A metamorfose: “Sou uma barata que se esquiva pelo vão da porta. Sou Gregor Samsa, a rastejar em meu quarto” (CASTELLO, 2010, p.71). De modo oscilante, em momentos como esse, José acusa o descaso paterno; em outras passagens, o defende, afirmando que um homem que buscou os mais diferentes meios para ajudar um filho, prova, “Ainda que inútil” (CASTELLO, 2010, p.87), o seu amor. Se José apequena-se ante o pai ainda jovem, com o envelhecimento paterno essa situação se inverte. A velhice metamorfoseia o corpo do genitor: os pés parecem garras, a aspereza da pele lembra escamas, os pelos ficam mais grossos, o sexo morto expõe os testículos desproporcionais e nem mesmo os sabonetes aromáticos encobrem o odor da morte que se aproxima. Diferentemente dos corpos paternos que geram temor – em Samsa, Gregor e Franz –, a estrutura física do idoso Ribamar somente causa repugnância ao seu descendente: “Não vou adoçar nada: seu corpo, murcho e disforme, me enoja” (CASTELLO, 2010, p.18). “Bem dizes, mas o problema continua sendo teu” ou “tenho mais com o que me preocupar”, frases que causavam a decepção na criança e acentuavam seu sentimento de nulificação. 122 Em outros momentos, o narrador ressalta essa semelhança, como, por exemplo, no seguinte excerto: “Também sua presença sempre me achatou. E você indiferente ao inseto (Samsa) em que eu me transformava. Minha pequena metamorfose” (CASTELLO, 2010, p.31). 196 O medo que silencia perde a validade frente a esse corpo deteriorado, e o filho assovia a canção “Cala a Boca” ao pai, quase em uma tentativa de emudecê-lo. Com o avançar da escrita e as constantes releituras d’A carta ao pai, o narrador de Castello se questiona se Hermann, realmente, seria dotado de todas as forças que o filho lhe atribuía. Ao sugerir que a imensurável dimensão paterna tenha sido produto da imaginação medrosa da criança que fora Kafka, José deixa implícito que também a construção imagética de seu pai destoa da realidade, que tudo fora fruto da mente transtornada de um menino tímido, que se negara a desempenhar os traços da personalidade que os outros almejavam para ele: “As garras do próprio Franz o seguram. As minhas próprias unhas que, desde cedo, nunca cansei de afiar. Fincadas no corpo de Franz (agarradas a meu corpo) elas sangram. É só o que temos em comum. Eis onde nos tornamos irmãos: nas feridas” (CASTELLO, 2010, p.131132). Irmanados pelo sofrimento, ambos são filhos que se autotorturam em razão de pressuporem ser incapazes de corresponderem as expectativas de seus pais. O autor judeu, em sua carta, carece de arroubo para condenar Hermann. Franz, ao reconhecer a própria autodesconfiança, hesitação e medo, livra a culpa paterna. Admite que a ascendência fora insuficiente para que se tornasse o que é, pois mesmo se tivesse crescido longe da influência do progenitor, não teria construído uma identidade muito diversa. Em uma atitude próxima, José, sem conseguir sentenciar Ribamar, absolve o pai e se autoacusa: “Não tenho o direito de culpá-lo, pai. Não era você quem me emperrava o caminho. Eu me emperrava” (CASTELLO, 2010, p.124); “Gero minhas próprias algemas. Sou meu carrasco” (CASTELLO, 2010, p.71). Contudo, o narrador, que se considera como o causador dos próprios infortúnios, apenas adquire a consciência de que é o algoz de si mesmo após a degradação física e a morte paterna. As recriminações contra o pai realizadas por José, assim como as feitas por Kafka são seguidas de atenuantes desculpas. Os emissores das cartas, pelos seus fracassos pessoais, não conseguem condenar inteiramente os genitores, talvez, em razão de que o medo os impeça. Aliás, o narrador de Castello, espelhando Franz, cede a palavra para o pai, cuja oportunidade, se lhe fosse dada, corrigiria o jovem, dizendo: “Eu não falei assim” (CASTELLO, 2010, p.239). O veredicto de Ribamar é devastador: “Ao dizer isso, você me mata. Ao usar minhas próprias palavras para levá-lo a falar, eu o mato” (CASTELLO, 2010, p.239). O homicídio simbólico permite a José se libertar das amarras que o prendem, livrar-se em definitivo do jugo paterno. Algo em que Kafka fracassa, porque a sentença123 de Hermann, redigida pelo 123 “Ou muito me engano, ou tu ainda parasitas em mim como esta carta” (KAFKA, 2012, p.95). 197 filho, revela que a culpa não pode recair sobre o pai, já que Franz é o parasita que se utiliza do outro como fonte essencial para a própria vida, portanto, a separação é inviável. O parricídio é metafórico (e inútil, afinal, Ribamar já estava morto havia tempos). Kafka desabafa a um pai vivo do qual não se alforria, enquanto José escreve para um progenitor completamente ausente. Para desprender-se, precisa, além de apagá-lo, também recriá-lo: “é tudo o que me resta: inventar uma verdade” (CASTELLO, 2010, p.66). A propósito, lúcido de que a realidade fortalece e a ficção dilacera, cabe ao narrador de Ribamar, como consolo, “repetir o que Franz, cansado de tantas palavras e já próximo da morte, disse a Hermann: ‘Querido pai, sempre vos amei’”124 (CASTELLO, 2010, p.158). A manifestação aberta de afetividade parece somente ser possível quando se torna ineficiente, ou seja, quando o tempo está demasiadamente esgotado e não há como alterar (nem recuperar) o relacionamento, uma vez que Franz e Georg proferem seu carinho antes de morrerem, assim como José registra com todas as letras a ternura sentida quando seu pai já não está mais vivo. Paradoxalmente, essas palavras, materializadas pela escrita, se mantêm presas ao silêncio, pelo motivo de que não são enunciadas para o interlocutor a quem se destinam. Ainda que o enternecimento seja proferido depois da separação pela morte, durante sua infância, embora ainda sofresse os efeitos do intricado relacionamento com Ribamar, a partir de um acontecimento supostamente banal, José percebe que o vínculo não estava totalmente esfacelado: enquanto pai e filho caminhavam calados à beira-mar, foram questionados por um passante sobre as horas, ambos responderam em uníssono. A sincronia os assusta e o jovem constata que “Há ainda, uma esperança” (CASTELLO, 2010, p.97). Neste ponto, a narrativa de Castello afasta-se do universo ficcional kafkiano, uma vez que, para Kafka, ao ser questionado pelo amigo Max Brod – em diálogo reproduzido por Benjamin (1992, p.142) –, a esperança existiria apenas para aquelas personagens que fugiram do meio familiar, ou seja, “há esperança suficiente, esperança infinita, mas não para nós”. José acredita na redenção, por isso acaba superando a pressão paterna. O insulamento para com o pai reflete-se em vida, não perdura depois da morte de Ribamar. A ficção e a distância temporal criam uma união inexistente. A morte perde o caráter negativo de perda e transforma-se em sinal de ganho. É a ausência em forma de presença que impulsiona a escrita, levando o narrador a estabelecer um diálogo com o pai morto. No entanto, é preciso lembrar que tal conversa somente ganha existência em virtude de o exemplar de Carta ao pai retornar Impossível esquecer que Georg, em O Veredicto, antes de atirar-se ao rio, pronuncia semelhante frase: “– Queridos pais, mas eu sempre amei vocês!” (KAFKA, 2014, p.126), entretanto em voz baixa, possivelmente porque ainda era refém do medo. 124 198 a José. Este utiliza o intertexto kafkiano como um instrumento óptico 125 que corrige, amplia e aproxima as imagens longínquas, permitindo ao remetente da carta enxergar e interpretar a si mesmo. As lentes através das quais José vislumbra seu relacionamento com o pai estão embaçadas, a transpiração ocasionada pelo medo vivenciado por Franz acaba por ofuscar sua visão. As palavras destinadas a Hermann deságuam na escrita produzida por outro filho para outro pai. A frase sublinhada no exemplar que retorna – “Comigo não existia praticamente luta; minha derrota era quase imediata; apenas subsistiam evasão, amargura, tristeza, conflito interior” (CASTELLO, 2010, p.43) – ilumina a epístola produzida pelo narrador-protagonista de Castello, que absorve os sentimentos de nulidade de Kafka. Ambas as cartas descrevem intensos sentimentos de vulnerabilidade, inferioridade, hostilidade parricida, culpa, presença de um pavor constante. Os respectivos narradores apresentam um paulatino esmagamento do eu, pois se constroem discursivamente como personagens frágeis que correm o risco do esmagamento, como Samsa. A essa sensação de insegurança, o silêncio emerge como uma estratégia comportamental, ou seja, uma reação de defesa ante o perigo próximo. No momento da escritura, há um sopro de coragem, produto do temor, elo mais intenso entre pai e filho. Não obstante, ao final de sua carta, purgado das palavras que aprisionara, José compreende que “os filhos se definem pela fuga [...] só existem em negativo” (CASTELLO, 2010, p.272). Chega à conclusão de que o pai de Ribamar também achatou o filho que tentara livrar-se do progenitor. Entende que a violência do Sr. Samsa de esmagar Gregor era, na verdade, uma tentativa desesperada de deter a metamorfose e ressuscitar o filho que se distanciava. Resta aos filhos apenas perdoar 126 seus respectivos pais, tentar enfrentá-los nem que seja através de vocábulos escritos e nunca lidas. Inclusive imagina que o progenitor, se tivesse a oportunidade de ler a correspondência, repetiria a famosa frase: “você coloca palavras em minha boca, me faz dizer o que não quero” (CASTELLO, 2010, p.239). A conversação está concluída, José coloca as frases nunca ditas na boca de Ribamar. Agora, quem manda calar é o “mimoso José” (CASTELLO, 2010, p.8). “Como um par de óculos, um binóculo, uma lupa – que me ajuda a me ler” (CASTELLO, 2010, p.157). “Gregor Samsa – imitando Franz – desculpa o pai. ‘Certamente ele não sabia o que estava querendo’” (CASTELLO, 2010, p.272). 125 126 199 CONSIDERAÇÕES FINAIS É infinito o que se pode dizer sobre o silêncio (Andréa Bomfim Perdigão) No heterogêneo panorama da Literatura Brasileira Contemporânea, caracterizado pela fertilidade e multiplicidade – de temas, formatos, gêneros, autores e linguagens –, em que não há a sobreposição clara de uma tendência, e, sim, o convívio e disputa entre várias, constatamos que o silêncio ocupa um lugar de destaque dentro do universo diegético de muitas narrativas. É bem verdade que as pausas intersonoras sempre fizeram parte de qualquer obra literária, estruturada pelo revezamento entre a ausência e a presença de vocábulos. Da mesma forma que o silêncio é indispensável à comunicação verbal, porque é preciso haver um revezamento entre os intervalos e a fala para que o sentido seja construído. Entretanto, mais do que uma potência representada por um único autor, identificamos a existência de uma parcela significativa de escritores que constroem personagens cujo emudecimento é ocasionado por motivos diversos. Partindo da hipótese de que o silêncio não surge do nada, e, sim, é desencadeado por forças externas que levam os seres ficcionais a reprimirem sua expressão verbal, selecionamos treze romances, dos quais realizamos breves reflexões acerca de dez, para depois, analisarmos outros três, com maior acuidade. Acreditando que o silêncio é um dispositivo discursivo de grande relevância, procuramos entender como as personagens sentem e fazem uso dessa presença ausente e as razões que as levam a escolhê-lo como estratégia comportamental. Isso nos autorizou a utilizarmos, como título de nossa pesquisa, a expressão “poéticas do silêncio”. Lado a lado com a palavra, ocupando o lugar por ela deixado, desencadeado tanto pela sua existência quanto pela impossibilidade de expressão completa, aí pode estar o silêncio, pleno de múltiplas significações. Pesquisar sobre esse elemento é, na realidade, assumir os riscos de percorrer os caminhos movediços traçados pelos distintos silêncios: da falta e da plenitude, do não querer falar e do não poder enunciar, do encantamento e da desilusão afetiva, do calar (tacere) e da quietude (silere), enfim, sentidos infinitos que cruzam e se entrecruzam nos labirintos romanescos. Ele preenche, para o bem ou para o mal, a comunicação humana. Aliás, Le Breton (1997, p.75) assevera que “o silêncio diz aquilo que as palavras não seriam suficientes para traduzir”: a dor, o amor, a mágoa, a felicidade, o rancor, a indiferença, a angústia, e inúmeros outros arroubos emocionais que brotam na 200 subjetividade profunda e são incapazes de serem materializados pela voz, que vacila sem nada pronunciar. Ao longo de nossas investigações, evidenciamos o quanto são pertinentes as assertivas de Kovadloff, Le Breton, Reik e Orlandi que, em seus estudos, ressaltaram as diferentes conotações que o silêncio pode habitar. Tendo como pressuposto o fato de que não existe um único tipo silêncio, porém vários, percebemos a intensidade das interrupções sonoras nos diversificados contextos das narrativas: seja em um paupérrimo vilarejo (como o Alvide), seja em uma movimentada rodoviária metropolitana, inclusive nos espaços de um campus universitário estrangeiro, no interior de apartamentos da classe média ou em uma cidade mineradora, até mesmo nos tranquilos parques japoneses, os silêncios se dão a todo o momento e em todos os espaços pelo mundo afora. Eles se fazem presentes na vida das personagens, independentemente da idade ou da classe social, que os sentem como conquista ou alívio, impedimento ou consentimento, intimidade ou incomunicabilidade, repleto de alegria ou atormentado pelo desespero. Em romances como A gaiola de Faraday, A parede no escuro, Nada a dizer, O fotógrafo, Outra vida e Para sempre: amor e tempo, além das manifestações peculiares já destacadas nas leituras realizadas, há também a configuração de uma espécie de silêncio individualista, responsável por corroer os relacionamentos interpessoais. O esfacelamento do vínculo afetivo gera um emudecimento entre as personagens, que nada mais têm em comum a não ser uma história pregressa, da qual não podem se livrar. Preocupadas consigo mesmas, imersas em seus dramas íntimos demais, não conseguem se relacionar de modo pleno com os aqueles que as rodeiam. O mutismo é dotado de capacidade para transmitir o descaso, a convivência insuportável, a falta do que explicar, os ressentimentos e as solidões partilhadas, a frustração das expectativas inalcançáveis e o desencanto da paixão que não sobrevive ao tempo. Neste caso, as personagens reprimem seus sentimentos, amordaçam sua expressão verbal, aprisionam sua revolta ou sua prostração, abrigam-se nas profundezas do “eu” para nada revelarem, inviabilizando a descoberta de suas intenções ou sofrimentos por aqueles que lhe seriam os mais próximos. É interessante chamarmos a atenção para o fato de que estes romances, integrantes do grande grupo que denominamos silêncio individualista, têm as cidades como ambientação: sejam capitais (como São Paulo, Curitiba ou Rio de Janeiro), sejam metrópoles inominadas (a exemplo das narrativas de Lacerda ou de Machado), ou pequenos municípios (no caso, Pedras Brancas). Segundo Gomes (2000, p.4), um dos aspectos mais trabalhados a respeito da representação da cidade brasileira contemporânea é “a perda do contato direto e crível entre as 201 pessoas, justamente no momento em que a cidade e suas questões determinam nosso cotidiano e dão forma aos nossos quadros de vida; ela é nosso presente turbulento e nossos velhos medos”. Esses seis romances revelam, de modo acentuado, a quebra do contato entre os indivíduos que vivem na urbe moderna, onde contracenam suas pequenas tragédias cotidianas: afrouxamento dos vínculos familiares, dificuldade de interação e desamparo dos sujeitos, fenômenos característicos da modernidade intensificados pelo ritmo da vida citadina. No ambiente urbano, tais personagens se retraem e engaiolam-se em seus infortúnios. O movimento do distanciamento uns dos outros é o que lhes propicia a sensação de segurança e de liberdade. A propósito, Jacques Le Goff (1998, p.72), ao discorrer sobre a cidade, esclarece que a “segurança é uma obsessão urbana, muito consciente e muito viva”, que se altera ao longo do desenvolvimento da humanidade. Durante a Idade Média, as cidades eram cercadas por muros de pedras erguidos com a finalidade de demarcar as fronteiras da comunidade e proteger o território da ameaça do estrangeiro (aquele que vinha de longe). No decorrer dos séculos, a concentração populacional nas urbes aumenta, na mesma medida em que se elevam os roubos, crimes e assaltos. Em decorrência, o medo é um sentimento compartilhado, o anseio por proteger a propriedade privada é o responsável por trazer os muros para dentro das cidades. Logo, o fluir da modernidade faz com que as cidades deixem de desempenhar a função de integrar as pessoas às comunidades e cumpram com a missão de resguardar seus moradores, o que desencadeia um sentimento de “desconexão local [...] as pessoas estão fisicamente próximas, mas socialmente e economicamente distantes” (BAUMAN, 2004, p.119). Em paralelo, o processo de “individualização” acentua-se, o “eu” sobrepõe-se aos interesses coletivos e públicos, as fronteiras materiais convertem-se em limites imateriais que precisam preservar a identidade dos indivíduos da ameaça do estrangeiro – este é aquele com quem se convive diariamente, e não mais o desconhecido. Nesses textos ficcionais, o silêncio é como um muro invisível erigido para proteger o “eu”, propriedade privada das personagens, demarcando o território da identidade que não pode ser ultrapassado por ninguém, nem mesmo por cônjuges ou filhos. Ao revelarem as dificuldades de comunicação interpessoal e familiar, os universos ficcionais construídos por Ajzenberg, Lacerda, Machado, Martins, Tezza e Vigna retratam a contemporânea fragilidade dos laços humanos, materializada de formas distintas: o aprisionamento das palavras pode refletir o desajuste do protagonista com o seu espaço social, no caso d’A gaiola de Faraday; do mesmo modo que os véus do silêncio são utilizados para manter encobertos os sentimentos de raiva e de menosprezo, os quais não podem alcançar a luz da revelação em Outra vida, oriundos de práticas ilícitas, do caso extraconjugal da mulher e da corrupção do homem. Há 202 ocasiões, a exemplo de Para sempre: amor e tempo, em que o mutismo é praticado pelas personagens com o objetivo de impossibilitar que experiências dolorosas, como a traição de Nelson ou a impotência sexual de Daniel, sejam enunciadas e provoquem mais mal-estar nos envolvidos. Em outras circunstâncias, como n’A parede no escuro, a barreira do laconismo é construída em conjunto para afastar os sujeitos causadores de desconforto. O silêncio ressentido é conservado em O fotógrafo para ocultar os desgostos, as decepções, os desacordos existentes entre os casais. Por fim, o emudecimento que preserva o desgaste matrimonial, à medida que esconde a obsolescência das relações duradoras, é desfeito pela mulher traída em Nada a dizer. Já as narrativas Mãos de cavalo e Rakushisha revelam diferentes configurações do silêncio motivado por experiências traumáticas. Embora Hermano ambicione se tornar um herói admirado, apenas consegue ser um espectador calado. O silêncio, traço de sua personalidade, impede-o de desempenhar ações louváveis. Frente a situações-limite, o protagonista de Galera permanece paralisado, ocupando a posição, pouco confortável, de testemunha ocular. A insuficiência da coragem para interceder pelo amigo lhe afeta sobremaneira, de modo que o insuportável do horror o cala fazendo-o sofrer por tudo o que não diz ou faz. Em contrapartida, é a catástrofe da comunicação interrompida com a filha a responsável por emudecer Celina, o que a torna incapaz tanto de elaborar a perda quanto de liberar as lágrimas represadas. Todavia, essa personagem encontra a paz almejada justo no silêncio. Contudo, não é uma forma de silêncio qualquer, são a quietude dos parques budistas e o rompimento com as muralhas da linguagem (próximo a uma prática de meditação) os elementos motivadores do mergulho pleno em si mesma e do alívio da dor através da escrita. Se o silêncio conserva propriedades capazes de afastar as personagens, sendo o elemento indicador de que algo importante acabou, de que a união de outrora ruiu, também pode manter elementos próprios para aproximar os indivíduos, como é o caso de Berkeley em Bellagio. O desejo de socialização e de contato corporal supera o entrave das línguas diferentes, mesmo sem dominar o idioma falado pelo outro; as personagens buscam a interação por meio do silêncio do toque, haja vista que a gestualidade transmite uma mensagem mais profunda do que poderiam comunicar os signos linguísticos. No entanto, o silêncio, nesse romance, ainda reflete a inadaptação do protagonista. Estrangeiro para si mesmo (em uma clara apropriação da expressão cunhada por Kristeva), o desajuste identitário ecoa em sua inabilidade linguística, ou seja, João não utiliza seu idioma de forma satisfatória, tampouco tem motivação suficiente para aprender a língua inglesa. Não obstante, ele, que também é escritor, está sempre à procura da palavra perfeita para enunciar e, como não a 203 encontra em nenhuma língua, permanece calado. Tal colapso linguístico aproxima-se, em parte, do comportamento do narrador-protagonista de Ribamar, que, ao não achar o invólucro adequado para as palavras que pronunciaria ao pai, acaba calando-as. Por sua vez, em Budapeste, temos a representação do silêncio como porta de entrada para o universo da língua estrangeira. José Costa/ Zsoze Kósta, durante o tempo em que anseia aprender o húngaro, retorna à experiência de ingresso na linguagem, da qual o silêncio é indissociável, visto que o sujeito, enquanto está no estágio inicial de aquisição da língua, é incapaz tanto de compreender quanto de reconhecer signos linguísticos. O silêncio do experimentum linguae motiva o protagonista a empenhar-se em seus estudos, porém o emudecimento imposto pela profissão de ghost-writer é o que realmente o incomoda. No Brasil ou em Budapeste, impossibilitado de assumir a autoria de seus livros, o escritor, embora ambicione o reconhecimento, fica preso pelas tramas do sigilo autoral, sem receber as glórias do próprio trabalho. Muitas personagens da literatura brasileira escolhem, por vontade própria, o silêncio como estratégia comportamental – seja para esconder as reais intenções e as verdadeiras decepções, seja para torturar aqueles que lhe são próximos através das palavras não ditas –; entretanto, outras são obrigadas a se calarem. No contexto de Eu receberia..., a violência física repercute na coação lexical. Chang, Cauby e Lavínia são silenciados de forma cruel: assassinato, apedrejamento e tratamento de choque, respectivamente, aniquilam de vez com a possibilidade da expressão verbal dos mesmos. Em Sob o peso das sombras, será a pressão psíquica e política a provocadora do cerceamento das palavras de grande parte dos sujeitos representados. Em particular, no que se refere às três narrativas que analisamos com maior profundidade, ainda é oportuno ressaltarmos alguns pontos. O silêncio, em Ajzenberg, é alimentado por personagens que estão à deriva, desprovidas de bússola em um oceano de frustrações, partilham solidões, vivendo presas em seus dramas existenciais e trancafiadas em seus segredos. Em A gaiola de Faraday, o aprisionamento das palavras se desenvolve, paralelamente, com o deslocamento identitário de Enzo. O protagonista, após sofrer um processo de desreferencialização, ocasionado pela perda do trabalho, percebe a dimensão exata de seu deslocamento dentro da esfera familiar: ele não mais se ajusta aos papéis de filho, pai, marido ou provedor do lar, sentindo-se como “um resto, em todos os momentos relevantes. [...]. Filho abestado. [....]. Mal-ajambrado. Engenheiro sonso” (AJZENBERG, 2002, p.67). 204 Em decorrência disso, a incomunicabilidade, o estranhamento, a inadaptação, o desconforto, o desencanto e o fracasso são alguns dos sentimentos que ele experimenta no seio de sua família, uma vez que tal atmosfera sufocante serve como motivação que o leva a retirar-se em fuga, afastando-se de casa e refugiando-se no silêncio. Esse movimento representa o raciocínio desenvolvido por Ilie (1981), de que, antes de ocorrer um deslocamento espacial, o ser que submerge no exílio interior tem, primeiro, sua subjetividade abalada, afetado pelo peso da desolação de não estar em consonância com a maioria. A atitude de fuga e de engaiolamento da expressão verbal é uma forma de protesto de Enzo. Este, por não encontrar em lugar algum o espaço onde se sinta em casa, pode ser considerado como um emblema do contemporâneo homem desabrigado, mencionado por Ouellet (2013). O desempregado, em seu autoexílio, guarda “As palavras, na mente, como sombra densa” (AJZENBERG, 2002, p.67). Assim, busca asilo no emudecimento, bloqueando, provisoriamente, a comunicação com aqueles que lhe seriam mais íntimos. Inclusive em seu novo relacionamento amoroso, as amarras do mutismo não são desfeitas. Por um lado, o silêncio é experimentado por este herói como um meio de garantir sua liberdade, quer dizer, o fato de não estabelecer contato com a família e tampouco esclarecer as coisas sobre o seu passado para a namorada lhe permite desfrutar de uma existência livre de qualquer amarra social ou afetiva. Logo, calar é o mecanismo comportamental que propicia sua libertação. Com o decorrer do tempo, por outro lado, o protagonista passa a sentir os efeitos colaterais das escolhas que realizou: Júlio nega-se a restabelecer o diálogo com o irmão, a esposa deseja que o marido não reapareça e o regresso para casa torna-se impossível, pois, provavelmente, será internado em uma clínica psiquiátrica e terá o seu discurso interditado para sempre. Sem paradeiro fixo, em oposição à barulhenta metrópole paulistana, Enzo “se embargava, num silêncio de templo” (AJZENBERG, 2002, p.35). Podemos considerar que o represamento das palavras ocasiona reações adversas, entre as quais estão as dores nauseantes, os vômitos, as contínuas coceiras nos olhos, a água e o fumo consumidos em excesso. Ficar calado e permanecer na rua lhe permite experimentar “novas formas de aflição” (AJZENBERG, 2002, p.12). Isso acontece quando ele “Chora sem saber por quê, com frequência, depois de um cafezinho. Por dentro, grita de ódio, deixa-se arranhar pela decisão tomada, por considerá-la, a menos custosa, embrião de covardia. Outras vezes, pensa diferente: nada disso, cara, você fez o certo” (AJZENBERG, 2002, p.13). Ademais, na narrativa em questão, o silêncio é a gaiola móvel que, ao mesmo tempo, aprisiona a individualidade e resguarda a privacidade do ser que nela se protege, inibindo a 205 investida do estranho. É sob essa intricada malha invisível que as personagens de Ajzenberg precisam subsistir; a salvação, caso exista, está em uma estrutura aparentemente frágil como a gaiola inventada por Faraday. Mais eficiente é a gaiola do emudecimento, e Queila tenta explicar para o cunhado a vantagem dessa oclusão: “Abrir-se para alguém, Júlio, é outorgar ou transferir a este alguém um poder enorme sobre você. Tudo na gente é muito íntimo” (AJZENBERG, 2002, p.52). Se revelar-se é tornar-se escravo do outro, guardar o silêncio é a liberdade. O preço da comunicação é alto, exige a entrega de si e, na lógica do universo líquido narcisista, em que os sujeitos vivem soterrados pelo afrouxamento dos vínculos e imersos em compromissos revogáveis, ninguém está disposto a isso. Em razão de que o narcisismo glorifica as aparências, condena a pessoa à solidão e à destruição de si própria, pois não há o “envolvimento pleno com os outros” (GIDDENS, 2002, p.159). As personagens d’ A gaiola de Faraday almejam uma independência, por assim dizer, egoísta: não é apenas Enzo, que materializa a fuga, e Lúcio, que guarda o segredo sobre suas relações suspeitas; todavia, também Júlio, que não revela nenhuma informação sobre o paradeiro do irmão; Cecília, que se mata sem ao menos deixar uma palavra como consolo; Júlio e Mariza, que não expressam as suas queixas e frustrações um para o outro. O protagonista calcula: “Talvez a sensibilidade apodreça com o passar dos anos” (AJZENBERG, 2002, p.35). Acreditamos que essa deterioração é o grande fator que permite o silêncio surgir como elemento dissolvedor dos laços afetivos, levando-os à falência, posto que “O fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação” (BAUMAN, 2004, p.31). Os mantos do distanciamento, corporificados pelo tecido do silêncio, permanecem sempre intactos no romance de Ajzenberg, o que representa a precariedade das relações humanas nos tempos fluídos, as quais são afetadas pela fatalidade da individualização diluidora dos laços de solidariedade familiar, uma vez que, se não há como evitar a proximidade física com o outro, pode-se ao menos ignorá-lo, o que alivia “a tensão de estar juntos” (BAUMAN, 2000, p.121). Segundo Bauman (2000, p.122), um fenômeno comum da era líquida é a incomunicabilidade entre os sujeitos, se é irremediável “o encontro com os estranhos, pode-se pelo menos evitar maior contato. Que os estranhos [...] possam ser vistos, mas não ouvidos, ou se não puder evitar ouvi-los, que ao menos não se escute o que dizem”. Tal fenômeno se aproxima do paradoxo da visibilidade e do isolamento, exposto por Sennett (1988, p.29), na medida em que todos se vigiam, em que há um interesse pela intimidade como revelação da identidade, diminui a sociabilidade, e o silêncio passa a ser uma forma de proteção. 206 Assim, os silêncios e os segredos em A gaiola de Faraday são os obstáculos que, durante toda a narrativa, embaraçam as sortes, configurando-se como verdadeiras gaiolas da incomunicabilidade: protegem as personagens das descargas exteriores e as enclausuram em si mesmas. O bloqueio do diálogo com o Outro é o que propicia a sensação de segurança – porque, ao não comunicarem as angústias e insatisfações, elas têm a sensação de se manterem livres – e, simultaneamente, desfaz todos os vínculos, visto que os relacionamentos são aniquilados pela falta de interação. Com isso, a reserva silenciosa é utilizada como uma forma de defesa que marca “uma intenção declarada de não querer entrar em contato com o outro, de manter a distância” (LE BRETON, 1997, p.45). Dessa maneira, Ajzenberg explora as sutilezas do comportamento humano, representa discursivamente a vulnerabilidade dos indivíduos que não suportam o peso das frustrações, incapazes de aguentar a carga de aborrecimento a que são submetidos, perdidos no labirinto de inadequações e mesquinharias que suas vidas se converteram. A consciência da própria precariedade, o insucesso dos planos, o vazio, todos são sentimentos que acabam desembocando no silêncio, que é o responsável por corromper as estruturas dos relacionamentos interpessoais e afetivos, porosos demais para resistirem à intensidade da indiferença e do individualismo no contexto líquido moderno. Com a narrativa de Dantas, acompanhamos o desvelar de um silêncio intimidador que mantém fortes ligações com as redes de poder. Ao ambientar seu romance na região do nordeste brasileiro, o escritor sergipano revela um universo social arcaico, alicerçado no autoritarismo e na lógica patriarcal, em que as personagens têm seus passos controlados e suas vozes ceifadas. Em Sob o peso das sombras, o silêncio é um elemento volúvel e inconstante, que opera através de polos opostos de poder, de modo que os sujeitos representados, movimentando-se sob a insígnia do controle, são forçados a aprenderem o grande ensinamento: calar. Há a configuração do silêncio dos empoderados – que atua de maneira opressora – e o silêncio dos despossuídos – que ora reflete a revolta, ora retrata a impossibilidade de reação –, ou seja, das “Pessoas inferiorizadas, rebaixadas pelos chefes, infelizes que aguentam até pancada, mas jamais tiram a mordaça” (DANTAS, 2004, p.75). Ardilosamente, o mutismo encarnado por Jileu Bicalho, construído por um narrador que defende ter sentido o peso dessa estratégia comportamental, é ambivalente, pois oscila em conformidade com as exigências de cada circunstância. Embora tenha desfrutado de uma posição de superioridade, que lhe consentia impor sua vontade sobre os demais, o diretor também estava submetido a relações de poder em que não era o elemento forte; como Justino Vieira menciona: “Sabia muito bem ser civilizado à maneira dos que triunfam: só gritava com os mais fracos” (DANTAS, 2004, p.204). O fato de alterar a conduta de acordo com a posição 207 social do seu interlocutor confirma que o poder nunca é privilégio eterno de determinados indivíduos. Ao contrário, como demonstra Foucault (1979, p.183), “passa por eles”, funciona em rede: às vezes se “exercendo a ação”, outras vezes tornando-se “alvo da ação”. Desse modo, o doutor em mitologia, ocupando o espaço de elemento frágil sobre o qual a força alheia se desenvolve, quase sempre, fora relegado a uma série de silenciamentos. Nas situações em que não era agente dominador, cônscio de que “Era perigoso falar de gente forte” (DANTAS, 2004, p.245), ele cala as farpas de indignação e de revolta, já que é apropriado e conveniente, mesmo que esse não seja seu real desejo. Em alternância, quando se encontrava em uma posição superior, sendo o elo forte da cadeia de poder, Jileu Bicalho impingia o emudecimento como uma forma de dominação, posto que o silêncio, entre suas distintas propriedades, também é um instrumento “de terror, uma forma de controlar com mão de ferro” (LE BRETON, 1997, p.88). Geralmente, o calar opressor dessa personagem serve para ressaltar a distância (institucional, social, cultural e econômica) entre ela e seu interlocutor, no caso Justino Vieira. Diante disso, é possível defendermos que o comportamento do diretor, ao impor sua taciturnidade sobre o secretário, tem dupla motivação: uma necessidade de exposição, uma vez que é ávido por reconhecimento, e uma espécie de vingança, porque é como se estivesse se cobrando das coações a que fora exposto. Portanto, o silêncio do doutor, sentido pelo protagonista como uma “tática terrorista” (DANTAS, 2004, p.17, p.216), é aplicado com a precisão de um estrategista experiente (cujo veneno que destila já fora por ele provado), pois ele avalia as fraquezas de seu oponente, calcula as reações possíveis, arma a emboscada e “injeta o veneno [sempre] na dosagem exata” (DANTAS, 2004, p.17, p.29) para estender, ao máximo, o sofrimento da vítima. Por sua vez, Justino Vieira, oriundo de um vilarejo esquecido pelo governo, vivendo sob a constante ameaça de ser rebaixado de cargo, movimenta-se entre a vontade de rebelar-se contra o superior e a sensata aceitação do destino infligido à classe dos que são impossibilitados de atuar sobre a ação dos outros. A opressão institucional de que o narradorprotagonista diz ser vítima é a responsável por cercear sua expressão verbal, a ponto de, raras vezes, ousar impor-se por meio da palavra. Esse protagonista cala, em primeiro lugar, não por falta de conhecimento, mas sim por não se achar no direito de usar a própria voz para se defender. Em segundo lugar, coagido pelo medo de ofender aquele que estava na escala hierárquica em uma posição muito elevada e, por isso, perder o pouco que conquistara (a tão invejada comissão que lhe propicia o mínimo de conforto e dignidade), ele tranca-se no mutismo. 208 A força da hierarquia e da autoridade se faz presente em todos os contatos travados entre superior e subordinado, reflexo de uma sociedade secularmente desigual. O discurso de Jileu Bicalho, “hipertrofiado no mando” (DANTAS, 2004, p.111), é carregado da força do poder, suas palavras possuem um peso que aniquila com a expressão do secretário. Não obstante, o silêncio do protagonista, assim como o do diretor não é estável, expressando sentidos variados em diferentes momentos. O silêncio de Justino Vieira, em algumas ocasiões, é adequado à conjuntura repressiva de obediência cega exigida pelo seu chefe, sintomático de sua impotência, da impossibilidade de ação daqueles que estão presos a “uma condição rasteira” (DANTAS, 2004, p.197), carentes de “lastro [e de] [...] segurança para contestá-los em pé de igualdade” (DANTAS, 2004, p.199). O emudecimento impotente, em outras circunstâncias, metamorfoseia-se em resistência, afigurando-se como a única forma possível de reação contra o sistema. O subalterno cala para mostrar-se forte, silencia em uma tentativa desesperada de manter a virilidade: “como um cavalo de queixo-duro” (DANTAS, 2004, p.289), não dobra o pescoço, não solta as palavras para delatar ninguém nem para contribuir com a terceira candidatura do diretor; muito menos para revelar que, em um ato de desforra, atrevera-se a sumir com as provas finais da disciplina ministrada por seu algoz. Vale lembrarmos que o protagonista teve, em sua infância e adolescência, dois familiares que contribuíram, de modo substancial, para sua conformação identitária lacônica: Tio Melenguê e o padrinho Padre Barbarino. Com estas personagens, Justino Vieira aprende que se a ousadia leva à morte, é preferível retrair-se na obediência e optar pelo silêncio da submissão, que, certamente, é menos digno do que os primeiros códigos morais que lhe foram transmitidos: “A contragosto, engolira frases, sofrera calado, me deixei enxovalhar, na aceitação calada da minha consciência que se quedara sem a devida relutância. Ah, se Tio Melenguê me visse assim mijando agachado! Não ia se conformar” (DANTAS, 2004, p.115). O secretário compreende que aquietar a revolta e dobrar a cerviz são atitudes covardes, porém se configuram como “conduta[s] acarneirada[s]” (DANTAS, 2004, p.37), preservadoras da vida. Os ensinamentos e as interdições do padre esmagam a natureza intempestiva do afilhado, injetando altas doses de sensatez, imprescindíveis para a acolhida da partilha sórdida que lhe restara, ajudando-o a acatar o seu triste fim e a conformar-se com seu malfadado “itinerário de verme” (DANTAS, 2004, p.37). As “reticências torturantes” (DANTAS, 2004, p.30) do diretor são experimentadas pelo servidor miúdo como uma peçonha que queima, mata e ofende. O silêncio inquisitório e intimidador causa uma sensação de profundo mal-estar psicológico – fazendo o secretário sentir-se acusado, injustamente, por algo que não cometeu –, que repercute diferentes efeitos 209 físicos: tremores de mãos e de pernas, suores frios, dores de cabeça, gagueira, espirros involuntários, vermelhidão nas orelhas e na face, aumento da temperatura corporal, que “faz saltar o caroço do gogó” (DANTAS, 2004, p.34). Desconfortos semelhantes também assolam o corpo e a alma do protagonista, cuja dor das palavras não ditas lateja em todos os instantes em que precisa trancafiar a voz, a qual daria expressão à amargura ou à raiva. Essa oscilação de Justino Vieira, entre o silêncio da resistência e o calar da impotência, ecoa também no relacionamento íntimo-afetivo com Leopolda, que reproduz a mesma lógica do sistema social injusto. O protagonista sente uma extrema dificuldade de expressar as verdadeiras intenções para a cunhada. Remói vocábulos, ensaia frases, as palavras chegam à boca, todavia não atingem a enunciação frente a mulher desejada. Acovardado no amor, nas poucas vezes que consegue proferir o ensaiado, a amada, além de relegá-lo à sombra do sentimento, ainda o abandona depois de convencê-lo a assinar uma apólice de seguro. No início da convivência com a comadre, ele manifesta as discordâncias através de uma revolta muda, resiste, pateticamente, às alterações na rotina da casa. Porém, suas forças são insuficientes para reagir contra o arroubo sentimental que o abala, termina cedendo ao implícito acordo de dominação amorosa. Com o fim abrupto do envolvimento, potencializado pela performance hostil da nova companheira e sentindo o medo de ser alvo de cruéis ataques, o amante continua restrito ao cerco invisível, não se arrisca a enfrentar o ser opressor, tampouco se aventura a transpor os limites do emudecimento para solicitar que a cunhada altere sua decisão. Contudo, há uma mudança em seu mutismo, o silêncio da dominação amorosa transfigura-se em um silêncio resignado, como se fosse um “refúgio para evitar um fim de não vir a receber uma resposta ou, então uma resposta convencionalizada” (LE BRETON, 1997, p.39). Ao representar as relações assimétricas de poder, demarcadas por uma hierarquia secular, Dantas revela as chagas que a vida dentro de uma estrutura social arbitrária gera no comportamento do ser humano, em que, certamente, o silêncio é uma forma de proteção contra a ameaça externa. Nas sociedades patriarcais e de poder autoritário, o silêncio pode ser uma tática – escudo protetor ou arma de ataque – utilizada pelas personagens de posições opostas para fins diversos. Diante do medo, da angústia e da solidão, os despossuídos precisam abafar o discurso, renegar a linguagem para garantirem seu trabalho, seu sustento familiar, e, por extensão, manterem intacta sua própria vida. Consequentemente, o silêncio apresenta-se como um esconderijo ou um porto seguro para aqueles que não sabem ou são proibidos de usar a palavra. Já os detentores de poder, com o intuito de demonstrarem superioridade, reprimem ou controlam sua expressão verbal perante os desvalidos, 210 desfrutando o silêncio como uma forma que assegura o distanciamento social e pessoal, visto que o não estabelecimento do diálogo impossibilita o desenvolvimento da intimidade. Em diferentes graus e modalidades, as personagens que se deslocam em Sob o peso das sombras estão condenadas ao mutismo; algumas vezes, lutam contra essa opressão, no entanto, são, geralmente, vencidas e atravessam sua existência se relacionando de forma contraditória com o aprisionamento das palavras. Quando Justino Vieira cala sua revolta contra o superior, não o faz por livre e espontânea vontade, e, sim, para obedecer a uma ordem centenária que dita quem pode ter acesso ao discurso e quem é proibido de fazer uso deste. Ele, apesar de ter aprendido com Melenguê a não acatar os desmandos alheios, também aprendera com Barbarino o caminho da renúncia, da humilhação e da obediência. Dessa maneira, o narrador-protagonista do romance de Dantas abafa suas palavras frente aos dominadores, Jileu Bicalho e Leopolda, por medo institucional de perder a parca comissão do cargo de secretário – o que o levaria a voltar a ser um indivíduo igual aos esquecidos do Alvide – e para manter o caso afetivo, respectivamente. O silêncio em Ribamar está presente desde a ilustração da partitura da cantiga “Cala boca”, impressa na capa e reproduzida na primeira página do livro, até a última linha da narrativa. Imprescindível, tanto para a escrita quanto para a música, esse elemento demarca uma pausa, uma espera necessária ao ritmo, à cadência e aos momentos de introspecção. Integrante da forma romanesca, o próprio Castello (2014) explica que optou “pela escrita aos saltos. O salto é isso: um intervalo – é a experiência do vazio. E só chegamos ao vazio através do silêncio”, sendo que “entre cada capítulo – não apenas naqueles que correspondem à pausa musical – há, sempre, uma quebra, uma cisão, em que o silêncio se expõe e se impõe”. Apesar disso, nesse romance, o silêncio é muito mais do que a experiência do vazio. Ele expõe o traço da personalidade retraída do protagonista, ao mesmo tempo em que se impõe no relacionamento entre pai e filho. Durante a infância e a adolescência, José crescera circundado pela muralha do mutismo que ele mesmo construíra, refreando as palavras reveladoras de seus tormentos e de suas angústias. A criança que fica taciturna, na perspectiva de Le Breton (1997, p.37), contrariando sua natureza tagarela, “adota uma posição de refúgio para se proteger daquilo que não compreende ou de uma situação que exige tempo para ser apreendida”. Estratégia similar a essa é a elegida pelo menino que fora o protagonista, a presença do progenitor lhe provoca uma sensação de vulnerabilidade e de insegurança, fazendo com que aprisione seu discurso ante a ameaça iminente. O filho, que avalia sua própria fraqueza em comparação 211 com a magnitude da força (potência e autoridade) paterna, decide escapar do embate por meio do silêncio: Preferi me esconder no conflito interior; a fuga para dentro continua a me agitar. Ela forma o labirinto em que me perco e no qual, só porque me perco, eu escrevo. À guerra interior, outros três atributos se ligam. A evasão (a própria fuga). A amargura (aflição, tremor, mas também padecimento moral). A tristeza (decepção, desencanto). Tudo o que, para me salvar, converti em palavras. Tudo que aqui mastigo. (CASTELLO, 2010, p.44) José escolhe, como mecanismo de defesa, em virtude do medo que sente da figura paterna, imergir em sua interioridade. Todavia, o mergulho na subjetividade não o tranquiliza, as palavras nunca enunciadas formam um labirinto que o prende, de onde só consegue sair, depois de adulto, graças ao fio de Ariadne que é a escrita. O “conflito interior”, exponenciado pela “evasão”, “amargura” e “tristeza”, eclode em forma de silêncio. Cabe mencionarmos que o narrador acredita que Ribamar tenha sublinhado a frase, no exemplar da Carta ao pai, por concebê-la como essência da relação fracassada com o filho. Concomitantemente, essência e desistência, pois representa o “modo (covarde) como eu (um Franz de segunda classe) me esquivei de enfrentá-lo” (CASTELLO, 2010, p.43). A pusilanimidade de José o compele a, em busca de abrigo, imergir em si. É o instinto de autopreservação que o motiva a permanecer calado perante Ribamar. De modo que “O silêncio impõe-se então como uma forma de salvaguarda de si próprio” (LE BRETON, 1997, p.88), como um “container” que esconde e protege a fragilidade do que se guarda no interior. Nesse sentido, o silêncio utilizado pelo protagonista, como estratégia comportamental, aproxima-se de uma casca, cuja imagem remete ao tatu que ele comprou durante seu retorno da Paraíba e à metamorfose de Gregor Samsa, já que, “para se defender, ambos se abrigam em suas cascas. [...]. É se ausentando para dentro que eles se salvam” (CASTELLO, 2010, p.181). O filho também emudece, próximo a Ribamar, tendo em vista que obedece aos insistentes comandos de calar e sente-se coagido em função de não corresponder às expectativas alheias. O medo do fracasso e a consciência de ser uma criança inconveniente, maiores do que o vínculo afetivo, estilhaçam com a palavra a nascença. A trama narrativa tecida por um narrador “Medroso, hesitante, desconfiado” (CASTELLO, 2010, p.211), do mesmo modo que fora o jovem Kafka, posiciona o menino como alvo de violências sutis e escorregadias, estas, sempre que são disfarçadas sob a máscara do afeto e da proteção, destroem “psicologicamente a pessoa até bloqueá-la em seu crescimento e impedir-lhe a expansão verbal” (RESTREPO, 1998, 66). Os perigos genuínos e supostos, emanados pela 212 presença do genitor, afetam o corpo do garoto na mesma proporção em que ameaçam o seu lugar no mundo, suscitando um sentimento de deslocamento identitário: “Nunca tive nada de meu. Em sua casa, eu vivia em um quarto de empréstimo, usava roupas que não escolhi, frequentava um colégio que odiei. A vida não me pertencia. Estava em desalinho comigo mesmo” (CASTELLO, 2010, p.66). Além de estar em descompasso consigo mesmo, o protagonista também estava em desacordo com os lexemas guardados e com os mutismos conservados, uma vez que os anos de vida em comum não foram dotados da capacidade fortalecedora dos laços de cumplicidade e de união entre pai e filho. Ao longo do convívio com Ribamar, José fora abalado por uma verdadeira inépcia lexical, afligido por uma carência insuperável de signos linguísticos, capazes de transmitir suas emoções para o homem que lhe gerara a vida. Crente de que os vocábulos escolhidos eram inaptos para traduzir a subjetividade, convicto de que “a língua vacila, [por isso, não pode] [...] confiar nas palavras” (CASTELLO, 2010, p.276), o desejo de se expressar do protagonista acaba se transfigurando em vontade de calar. Sendo assim, não se trata apenas de uma pausa sonora que procede e prepara a fala ou de uma experiência do vazio, e, sim, de um silêncio que recusa a expressão verbal pela experiência da desilusão comunicativa. Afinal, a palavra articulada tem um efeito retroativo sobre quem enuncia, “quando as pronunciamos, elas têm um valor diferente do que quando pensamos em nossas representações mentais” (REIK, 2010, p.23). A língua que não cumpre adequadamente com sua função provoca o abismo que desune os consanguíneos. O progenitor percebe que algo afasta de si o filho, chega a indagar a criança, pedindo uma explicação plausível; entretanto, apenas obtém, como resposta, o silêncio. Por conseguinte, o emudecimento paterno talvez seja uma reação tanto ao fracasso de ajudar (e mudar) a criança, quanto uma resposta ao mutismo que José lhe dirigia. Como lutadores esgotados, os dois abandonam o ringue da linguagem: “Foi o desamparo das perguntas que nem você, nem eu soubemos enfrentar. Dela fugimos, em desespero. Preferimos o silêncio e aqui estamos” (CASTELLO, 2010, p.188). Em meio à aridez transposta para o papel, o narrador que ficara emudecido por muito tempo reconhece a fragilidade do homem que precisou, além de suportar o pesado papel de pai, também renegar a própria expressão verbal “para que o filho se esgoel[asse] e matraque[asse]” (CASTELLO, 2010, p.264). Nem mesmo a morte próxima concentra forças suficientes para fazer com que a comunicação plena se estabeleça: 213 Falamos sobre muitas coisas nessas noites em que estive ao seu lado. Coisas inúteis, banalidades, que nos distraíram da grande pergunta: por que não conseguimos falar? Falamos para não falar. A língua não como comunicação ou expressão, mas como castração. (CASTELLO, 2010, p.264) A fala é emitida somente para preencher o espaço do intervalo sonoro. A verborragia nada diz; destituída de conteúdo, a indigência do assunto tem como interesse saturar o tempo e evitar o enfrentamento. Através do silêncio disfarçado de palavra vã, garantia de ruído em frente ao desconfortável calar, ambos fogem do que realmente os incomoda, o verdadeiro diálogo permanece abortado, aniquilando a possibilidade de que sejam enunciados os reais tormentos. Achatado e sufocado, ante Ribamar, José aquieta-se por medo, por angústia e, em razão, dos signos linguísticos serem imperfeitos meios de comunicação. O protagonista, semelhante a um peixe morto, é asfixiado por tudo aquilo que não diz, afoga-se nos vereditos paternos, debate-se no “lodaçal de palavras!” (CASTELLO, 2010, p.219). Podemos atribuir as crises de labirintite e as náuseas aos vocábulos que represa. Os lexemas que enclausura lhe ardem, fervem, latejam como feridas que não podem ser escondidas. Longe da materialidade corporal do progenitor, o narrador empenha-se na árdua tarefa de escrever a partir do inexprimível, motivado pelo anseio de dizer o que até então era indizível. Na carta que escreve ao pai, o remetente luta com as palavras e contra as palavras, articulando duas impossibilidades: de um filho corresponder às expectativas paternas e de um pai corresponder às expectativas filiais. Dessas projeções e idealizações inalcançáveis, emerge a tentativa de reconciliação póstuma de José, que é, estranhamente, impulsionada pelo insistente pedido de silenciamento expresso na canção de ninar. Enzo guarda segredos, Justino represa a expressão, José não responde a seu pai. Os três escrevem, contudo é uma escrita silenciada: as cartas do desempregado não chegam aos seus destinatários, os conselhos do secretário rebaixado podem não ser lidos, e o pai nunca receberá ou lerá a epístola de seu filho. Além disso, a “escrita nasce da impossibilidade da fala, de sua dificuldade, de seus limites, de seu fracasso” (COMTE-SPONVILLE, 2005, p.37). Qualquer correspondência é escrita pelo motivo de que o assunto que ela registra não pode ser falado frente a frente, sequer se pode continuar calado. Nos três casos, o ato de escrever configura-se como um meio de amenizar a solidão, de extravasar os sentimentos contidos por anos, caracterizando-se como uma forma de romper com as barreiras do emudecimento, para pronunciar aquilo que não se teve coragem de dizer em voz alta. É como se as palavras, jogadas no papel, purgassem a angústia daqueles que tanto emudeceram sua 214 expressão verbal. A escrita desabafa o que até então se mantivera sufocado pelos protagonistas. O silêncio e o peso da palavra reprimida, ponto de interseção entre os textos, apontam para um espaço de representação apto a espelhar os sentimentos de mal-estar e de solidão que acompanham o homem moderno, inserido em um ambiente paradoxal, repleto de “desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambição e angústia” (BERMAN, 1986, p.15). Talvez, o silêncio também possa ser considerado como um sintoma desse sujeito contemporâneo, imerso em um mundo líquido e sem qualquer tipo de estabilidade que lhe propicie segurança. A sensação de vulnerabilidade afeta todos os indivíduos, que em lugar algum se integram plenamente; desamparados, estão no mundo sem estarem, sem se ajustarem aos seus respectivos espaços, buscando desenfreadamente uma individualidade para as identidades efêmeras. Diante de toda essa inconstância, o silêncio pode se apresentar como uma proteção para o “eu” instável. No contexto de fluidez da vida e das buscas identitárias, a condição humana encontra configurações volúveis e multiformes no plano literário. Muitos dos romances brasileiros publicados neste início de século tematizam a vida cotidiana em seus aspectos mais triviais, representando, seja nos ambientes rurais ou nos metropolitanos, as complexas relações interpessoais em que os sujeitos mergulham em si mesmos. Apesar de os motivos de silêncio serem diferentes, eles são igualmente fortes. Às vezes, impulsionado pelo esfacelamento do vínculo afetivo; outras, originado pelo medo; e, ainda, exigido pela profissão escolhida ou instigado pela falta de domínio de um idioma. Em outras narrativas, a palavra falta, mas não por escassez lexical; em alguns momentos, em razão das relações de poder, a fala é interditada, as personagens são impedidas de romper com os limites impostos; já em outras circunstâncias, instaura-se uma impossibilidade vocabular inexpugnável, porque determinadas coisas são indizíveis, inexprimíveis – há traumas e segredos que não podem ser verbalizados. Enfim, com a certeza de não termos esgotado as infinitas possibilidades de interpretação acerca da presença do silêncio nos romances, porém motivados pela esperança de termos contribuído para os estudos sobre a Literatura Brasileira Contemporânea, cremos que conseguimos demonstrar que a zona de silêncio, a qual permeia as relações interhumanas, desempenha um papel de destaque nas narrativas selecionadas e chega, por si mesmo, a servir como veículo gerador de questões sempre atuais. Cientes da incompletude127 127 Incompletude consciente devido ao fato de que o silêncio é uma expressão multifacetada que sempre possibilita que novas significações brotem a cada leitura, pois, como defende Sciacca (1967, p.35), “encantador 215 de nossa pesquisa, convictos de que determinadas questões não foram devidamente analisadas, compreendemos que os textos ficcionais estão, pois, abertos a novas interpretações. Portanto, temos a certeza da parcialidade de nossa pesquisa, que, sem sombra de dúvida, em razão da multiplicidade dos sentidos do silêncio e da riqueza composicional do corpus selecionado, permite que diversas faces silenciosas ainda possam ser reveladas por outros leitores. ou insuportável, aceito ou rejeitado, sofrido ou evitado, o silêncio tem uma potência tão infinita quanto o infinito de nossa interioridade”. 216 REFERÊNCIAS Romances AJZENBERG, Bernardo. A gaiola de Faraday. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. ____. Carreiras cortadas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. ____. Efeito suspensório. Rio de Janeiro: Imago, 1993. ____. Goldstein & Camargo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. ____. Minha vida sem banho. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. ____. Olhos secos. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. BUARQUE, Chico. Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CASTELLO, José. 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Bernardo Ajzenberg: Vejo meus livros como encaixados em uma literatura de caráter urbanopsicológico que procura fundir passado e presente numa perspectiva cosmopolita, mas sempre partindo de unidades geográficas bem localizadas (foco em São Paulo). Creio que eles podem ser entendidos também como parte de uma produção da segunda ou terceira gerações de imigrantes oriundos da Europa central. 2) Um ponto recorrente em muitas produções literárias é o fato das narrativas apresentarem personagens descentrados, deslocados, com conflitos identitários, que oscilam entre o pertencer e o não-pertencer. Como o senhor enxerga isso em sua produção? B.A.: Meus protagonistas, desde Carreiras cortadas, são de fato bússolas carentes de manutenção. Buscam rumos, sentidos. Raramente encontram uma saída. A condição de seres que vivem em uma megametrópole estimula essa sensação, que se espalha, também, para os relacionamentos familiares e/ou pessoais, sempre colocados em risco por atitudes humanas negativas. Apesar do humor que, acredito, aparece nessas obras, elas, no fundo, expressam os impasses desses protagonistas. 3) Estamos inseridos em um universo que oferece uma ampla diversidade de estímulos comunicativos, porém isso não é garantia de uma plena comunicação interpessoal. O senhor perceberia problemas de comunicação entre os personagens do seu romance A Gaiola de Faraday? B.A.: Sem dúvida neste caso a incomunicabilidade está no centro do livro. Enzo, o engenheiro protagonista, não consegue dialogar com o filho (a ponto de precisar segui-lo pelas ruas da cidade para ter uma ideia do que ele faz), muito menos com o seu próprio irmão, a quem de certa forma inveja. Do mesmo modo, esse irmão, que é um intelectual respeitado, tampouco cria um canal de comunicação com as pessoas ao seu redor. Há uma inflação de informações e redes de comunicação, mas esse contato se torna crescentemente apenas virtual. Não me parece positivo, ao contrário. Esse tipo de comunicação só faz incrementar qualidades negativas nos relacionamentos, sufocando, na maior parte dos casos, as positivas. 4) Nas pesquisas que estou desenvolvendo ao longo do meu doutorado, contatei que o silêncio, pode-se assim dizer, é uma linha que costura a grande parte da produção contemporânea (inclusive percebo isso nos seus romances) e se manifesta de diferentes formas. Para o senhor o que é o silêncio? 229 B. A: O silêncio é a ausência de som, assim como o frio é a ausência de claro. Ou seja, tudo deve ser visto como relativo ao seu oposto. O silêncio, hoje, é uma matéria raríssima, cada vez mais difícil de encontrar. É um bem, na verdade. Ao mesmo tempo, todos tememos o silêncio, que pode nos levar à obrigação de nos defrontarmos com o que temos de mais profundo em nós mesmos – e isso gera medo. Temos medo de nós mesmos. 5) O senhor consideraria que o silêncio é um elemento narrativo e/ou uma temática dentro das suas produções, em especial no romance A Gaiola de Faraday? B. A.: Sem dúvida que sim. O silêncio é parte da existência, como na música. O excesso de instrumentos de comunicação pode até implicar mais comunicação, mas se trata de uma comunicação de qualidade cada vez menor. O silêncio é necessário. 230 Entrevista de Francisco J.C. Dantas 1) A Literatura Brasileira contemporânea vive um momento ímpar, estatisticamente nunca se publicou tanto como agora. Os estudos críticos são unânimes em afirmar que há uma diversidade de temas, formatos e vertentes literárias. Como o senhor definiria a sua produção em meio a um panorama tão complexo? Sua obra se aproximaria de alguma corrente literária e/ou estética? Francisco Dantas: Realmente, após o advento do computador, e também de novas editoras, a quantidade de livros tem crescido geometricamente. As informações sobre o mister literário, e o próprio trabalho com a escrita tornaram-se mais fáceis e mais rápidos. Essa evidência, por si só, instiga a que os novos escritores desbravem outros caminhos, a par do que ocorre no âmbito de outras práticas simbólicas. É natural que esta “renovação” explore não só novos recursos formais, mas também incorpore noutros conteúdos, consoante o desdobramento e as exigências da nossa contemporaneidade. Meu primeiro romance é o Coivara da Memória. Foi escrito... e reescrito... e reescrito numa velha máquina Olímpia, na Lajes Velha, zona rural do interior de Sergipe, onde não tínhamos luz elétrica. Muitas páginas foram escritas à luz de um candeeiro. A Olímpia e o candeeiro ainda estão comigo. A contrapelo dos que convivem bem com o descartável, eu estimo e enalteço os bens duráveis. Essa conversinha miúda com as coisas afetivas que nos acompanharam a vida inteira - constrói uma convivência salutar. Além disso, a idade nos torna mais avaros com o próprio tempo e também mais exigentes no âmbito do ramo de nossa atuação. De forma que hoje em dia, mais releio do que leio. Não tenho disposição nem me apraz sair garimpando uma pepita entre o aluvião de livros que abarrotam as prateleiras das livrarias. Sendo assim, com estas minhas limitações, seria leviandade traçar uma simples linha sobre isso que você chama de “novas vertentes”. Elas que permaneçam onde estão. Entre outras coisas do gênero, Hemingway aconselha que o escritor tem competir é com os mortos. 2) Um ponto recorrente em muitas produções literárias é o fato das narrativas apresentarem personagens descentrados, deslocados, com conflitos identitários, que oscilam entre o pertencer e o não-pertencer. Como o senhor enxerga isso em sua produção? F.D.: Suponho que esses conflitos e personagens deslocados tenham, de fato, alta incidência na literatura atual, embora haja inúmeros exemplos anteriores. Talvez essa produção atual seja mais numerosa porque reflete e está em sintonia com as questões em aberto... com a carência de rumos bem balizados... e com a falta de perspectivas que afeta sobretudo as novas gerações. A minha produção segue uma linha mais tradicional, ou conservadora, se quiser; tanto no torneio da frase como na abordagem dos conteúdos. Por exemplo, alguns personagens se debatem interiormente, deliram, duelam consigo mesmos, em busca de um sentido para a própria vida, mas não chegam a se mostrar fracionados por um discurso ininteligível. 231 3) Estamos inseridos em um universo que oferece uma ampla diversidade de estímulos comunicativos, porém isso não é garantia de uma plena comunicação interpessoal. O senhor perceberia problemas de comunicação entre os personagens do seu romance Sob o peso das sombras? F.D: Percebo, sim. Desde a primeira página do livro, o personagem Justino Vieira, ao comparecer diante do Chefe pela primeira vez, sofre uma brutal coação. Daí por diante continua sendo perseguido sistematicamente através de caçoadas, repreensões e outros expedientes perversos de forma a configurar o que hoje chamamos de bulling. Esse assédio moral obriga-o a se recolher ao seu interior como, aliás, procedem todos os tímidos quando provocados por um ambiente constrangedor. De forma que a sua vida social se anula e passa a ser compensada pela exploração interior. A sua relação com Leopolda é outro exemplo de que passa parte da vida lutando com problemas imaginários, por receio de verbalizar as próprias intenções. Enfim, nessa esfera que você trabalha o livro me parece fértil. Deixe-me dizer-lhe, porém, que mais fértil ainda, como o próprio nome sugere, é o Cartilha do Silêncio, onde cinco narradores se reversam, cada um deles privilegiando a própria ótica, de forma a prescindir dos demais. Desde a sensual Dona Senhora, na primeira parte do romance; até o lunático Cassiano Barroso, que ocupa a última parte – os problemas se geram e se resolvem no interior de cada um dos personagens. 4) Nas pesquisas que estou desenvolvendo ao longo do meu doutorado, constatei que o silêncio, pode-se assim dizer, é uma linha que costura a grande parte da produção contemporânea (inclusive percebo isso nos seus romances) e se manifesta de diferentes formas. Para o senhor o que é o silêncio? F. D: Não vou enfrentar esta pergunta, visto que me leva muito longe. Num passado já distante, cheguei a selecionar uma pequena bibliografia sobre o tema, textos de que já não me lembro. Veja que meus livros são ambientados em Sergipe, em localidades defasadas em relação ao Sudeste. Por aqui, imperou o Coronelismo e ainda há um rescaldo de suas sequelas. As pessoas são subtraídas, desconfiadas, evitam se comprometer pela fala. Não havia diálogo entre marido e mulher: entre pais e filhos: entre patrões e empregados: condições propícias para a proliferação da impostura. De forma que os nossos livros são, em certa medida, tributários desse ambiente que, a esta altura, está relativamente modificado. 5) O senhor consideraria que o silêncio é um elemento narrativo e/ou uma temática dentro das suas produções, em especial no romance Sob o peso das sombras? F. D: Nos nossos livros, geralmente o tema tem a sua contraparte na maneira em que é enlaçado pelo andamento da narrativa, às vezes tão lento que parece se exaurir nas próprias palavras. Parece uma recusa em levar a história adiante, como se o além fosse um vazio que não adianta perseguir, um vazio tecido de silêncio... Quando escrevo, sempre tenho em mente estas palavras de Joseph Conrad: É através da feliz combinação de forma e substância, 232 através do som, da boa distribuição e das formas das sentenças, da atualização de velhas palavras desgastadas pelos séculos, palavras cheias de evocação e ressonância, que o escritor consegue transmitir o encorajamento, o consolo, o encanto, o horror às injustiças, o sentimento de nossa fragilidade, etc.” Se consigo ou não consigo o meu intento, é outra história... 6) O que é escrever para o senhor? Por que escreve? F.D: Escrevo para conversar com os meus mortos. Para passar adiante as lições que me passaram com tanto carinho. Suponho que o único consolo do escritor, o único, é conseguir penetrar a sensibilidade de alguns leitores, de tal forma que se estabeleçam certas correspondências afins e secretas entre quem escreve e quem lê, o que resulta, para ambos, em saudável terapia. Como leitor, sinto o impacto de certos livros ou até trechos. Trechos que arrepiam, como se fossem escritos especialmente para mim. Veja este de Faulkner: Quando a sombra da janela aparecia sobre as cortinas era entre sete e oito horas da manhã. Eu me encontrava então no tempo e escutava o relógio. Era o relógio de pulso de meu pai que, ao me dá-lo havia dito: Quentin, eu te dou o mausoléu de toda a esperança e de todo o desejo. É mais que dolorosamente provável que o utilizará para obter o reductum absurdum de toda a experiência humana, e tuas necessidades não serão mais satisfeitas do que foram as dos outros e as do teu pai. Eu te dou o relógio não para que te lembres do tempo, mas para que possas esquecê-lo às vezes por um instante, para evitar que não te esfalfes tentando conquistá-lo. Porque, disse ele, as batalhas não se ganham nunca. Nem mesmo as começamos. O campo de batalha só faz revelar ao homem sua loucura e seu desespero, e a vitória não passa de uma ilusão dos filósofos e dos tolos. 233 Entrevista de José Castello 1) A Literatura Brasileira contemporânea vive um momento ímpar, estatisticamente nunca se publicou tanto como agora. Os estudos críticos são unânimes em afirmar que há uma diversidade de temas, formatos e vertentes literárias. Como o senhor definiria a sua produção em meio a um panorama tão complexo? Sua obra se aproximaria de alguma corrente literária e/ou estética? José Castello: Acho cada vez mais difícil estabelecer, distinguir, fixar as correntes literárias. Para mim, a literatura (a arte) é o reino do Um – o que interessa ao escritor é, para o bem ou para o mal, chegar a uma escrita singular, aproximar-se de algo que seja apenas seu. Quando escrevo, não me preocupo com gêneros, correntes, tendências. Não me interesso por cânones, ou por escolas. Escrevo o que tenho de escrever – e pronto. Alguns comentaristas enquadraram o Ribamar no que seria uma “literatura confessional”, ou “literatura do Eu”. Ou, como se tornou moda dizer, classificaram-no como um romance de “autoficção”. Cada um lê como quer – cada um é dono de sua própria leitura. Mas não concordo muito com essas classificações, que considero mais reduções. Não posso negar que há muito de minha vida pessoal e de minha memória em Ribamar. Isso é óbvio, qualquer leitor percebe. Mas há muita invenção, muita “mentira” também – de modo que reduzir o livro a um gênero confessional é não se aproximar dele, é evitá-lo. As correntes e gêneros literários costumam servir como couraças que mais escondem a realidade do que a revelam. Por isso mesmo, não os aprecio. Podem ter uma função didática, podem ajudar a ler. Mas, levados como peça principal, simplesmente “matam” um livro. 2) Um ponto recorrente em muitas produções literárias é o fato das narrativas apresentarem personagens descentrados, deslocados, com conflitos identitários, que oscilam entre o pertencer e o não-pertencer. Como o senhor enxerga isso em sua produção? JC: É uma situação típica de nosso mundo. Sobretudo no século 21, depois da expansão acelerada e definitiva do virtual. As fronteiras se despedaçaram. As pessoas costumam ter um sentimento muito forte de dispersão e de fragmentação. O mundo parece muito maior – ou talvez tenha se tornado, mesmo, muito maior –, o que é peso demais para um homem. Todos nos sentimos, em consequência, deslocados. Ninguém pode afirmar com certeza, mais, que lugar ocupa – sob o risco de falsificar e de mentir. Sim, continua a ser importante, muito importante, saber quem somos, para onde vamos, o que queremos, etc. Mas as respostas a essas perguntas são cada vez mais vagas e mais aflitivas. É, em resumo, um mundo que exige grande coragem. Não é fácil habitar o terceiro milênio, mas, de outro lado, ele nos trouxe muitas coisas fascinantes que não podemos também ignorar. Nesse sentido, não sou nem pessimista, nem otimista – procuro me agarrar ao presente e viver as coisas como são. Claro, em um mundo assim tão opressivo, a literatura nos ajuda a abrir portas para o futuro, a ficção nos ajuda a respirar. Por isso ela se torna cada vez mais importante. 234 3) Estamos inseridos em um universo que oferece uma ampla diversidade de estímulos comunicativos, porém isso não é garantia de uma plena comunicação interpessoal. O senhor perceberia problemas de comunicação entre os personagens do seu romance Ribamar? JC. As dificuldades de comunicação são inerentes ao humano. Somos seres limitados. Precisamos ter a coragem de assumir nossa precariedade, de enfrentar nossos limites. Eu não conheço muito bem nem a mim mesmo, como ousaria conhecer plenamente o outro? Tudo o que temos são visões parciais, são intuições, são hipóteses. São fragmentos. Tudo isso é muito difícil. Mas tudo isso – se soubermos manter a serenidade e se lutarmos para conservar nosso destino de Sujeitos, e não de Objetos – pode nos vitalizar muito também. 4) Nas pesquisas que estou desenvolvendo ao longo do meu doutorado, contatei que o silêncio, pode-se assim dizer, é uma linha que costura a grande parte da produção contemporânea (inclusive isso está explícito em Ribamar) e se manifesta de diferentes formas. Para o senhor o que é o silêncio? E o que é a palavra? JC. É como na respiração: precisamos esvaziar o pulmão para enchê-lo novamente. O silêncio é isso, é o pulmão vazio. É o mesmo que a pausa nas partituras musicais. Sem pausas, todas as musicas se tornariam incompreensíveis. O silêncio é fundamental para a escrita. Ele compõe um intervalo, uma respiração, uma espera. Ele cria o ritmo e a cadência. Corresponde aos momentos de introspecção e de meditação. E, de fato, o Ribamar está repleto desses momentos. Entre cada capítulo – não apenas naqueles que correspondem à pausa musical _ há, sempre, uma quebra, uma cisão, em que o silêncio se expõe e se impõe. Todos precisamos parar para respirar. Parar para não pensar em nada – para “jogar tempo fora”. Todos precisamos do ócio e o silêncio é uma forma do ócio mental. Do vazio. Sem um vazio como base, nada podemos construir. 5) O senhor consideraria que o silêncio é um elemento narrativo e/ou uma temática dentro das suas produções, em especial no romance Ribamar? JC. Creio que já respondi um pouco na resposta anterior. Construído sobre a pauta musical de uma canção de ninar, a “Cala a boca”, meu romance precisa dos intervalos e das lacunas para tomar corpo. Há um pequeno abismo entre cada um dos capítulos. Até porque, na medida em que sigo a partitura, em que cada capítulo corresponde a uma nota musical de uma partitura, optei pela escrita aos saltos. O salto é isso: um intervalo – é a experiência do vazio. E só chegamos ao vazio através do silêncio. Alguns leitores já me disseram que precisam de alguns momentos de silêncio – de introspecção – para saltar de um capítulo ao seguinte. O próprio livro exige isso do leitor. Uma resignação, uma espera – ou a leitura se torna impossível. E esses momentos de introspecção e de espera, eu não tenho dúvida, fazem parte, são parte essencial da leitura do romance. Não são apenas intervalos, eles também fazem parte do romance. Se você quiser ler Ribamar como um eletrizante romance “de ação” – em que os fatos se sucedem velozmente e se atropelam – simplesmente não conseguirá lê-lo. 235 Gaiola de Faraday: Fonte: https://prezi.com/o0waw0t2il4i/gaiola-de-faraday/ Fonte: http://www.ebanataw.com.br/raios/faraday.htm Fonte: http://www.portaleletricista.com.br/sistema-contra-descarga-atmosferica/