UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO NÍVEL DOUTORADO A NOVA DIMENSÃO DOS CONTRATOS NO CAMINHO DA PÓS-MODERNIDADE Doutorando: José Tadeu Neves Xavier Orientadora Profa. Dra. Cláudia Lima Marques Porto Alegre 2006 JOSÉ TADEU NEVES XAVIER A NOVA DIMENSÃO DOS CONTRATOS NO CAMINHO DA PÓS-MODERNIDADE Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Direito. Prograna de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Orientadora Profa. Dra. Cláudia Lima Marques Porto Alegre, dezembro de 2006. Agradecimento especial à Prof. Dra. Claudia Lima Marques, pela confiança depositada e firme orientação deste trabalho e pelo exemplo profissional a ser seguido. “... os juristas devem viver com sua época, se não quiserem que esta viva sem eles.” (Josserand) RESUMO A sociedade atual passa por uma fase de transição entre o modelo moderno e o pósmoderno, criando um novo paradigma para o convívio social, o que acaba por se refletir no pensamento jurídico. Assim, o contrato, na condição de instrumento essencial para a realização das trocas econômicas e tutela de interesses jurídicos experimenta os reflexos dessas transformações sociais, o que acarreta modificações em sua formulação teórica e nos princípios que lhe servem de referência. Neste contexto a pós-modernidade impõe ao contrato a adoção de mega princípios, como o da função social e da boa-fé, além da necessidade de revisão dos seus postulados tradicionais, moldados agora sob a ótica dos valores constitucionais e buscando servir como meios adequados de enfrentamento da complexidade pós-moderna. Palavras-chave: Contrato – Pós-Modernidade – Função Social – Boa-Fé - Princípios Contratuais ABSTRACT Society nowadays goes through a transition between the Modern and Post-Modern models raising a new paradigm for sociabilization which means interfering on the juridical belief. Thus the Contract, in the condition of essential instrument to fulfill all the economic trades as well as a tutor of juridical interests, experiences the reflextions of these transformations which leads in adaptations on it’s theoretical formulation and also in the principles that are being used as reference. In this context, Post-Modernity imposes to the Contract, the adoption of mega principles as Sociability and Good Will, above all, commands the necessity of reviewing all traditional postulates now moulded over the constitutional values and looks for fitting in as a proper way of facing the Post-Modern complexity. Keywords: Contract – Post-Modernity – Sociability – Good Will – Contract Principles LISTA DE ABREVIATURAS Art.: artigo BFDUC: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra CCB: Código Civil Brasileiro LL: La Ley LGDJ: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudente p. página RA: Revista Ajuris RBDC: Revista Brasileira de Direito Comparado RDC: Revista de Direito do Consumidor RDCI: Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial RDCiv: Rivista di Diritto Civile RDP: Revista de Direito Privado RDPub: Revista de Direito Público RevTDC RF: Revista Forense RFD/UERJ: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro RFD/UFP: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná 7 RFD/UFRGS: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul RFD/USP: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo RIL: Revista de Informação Legislativa RJ: Revista Jurídica ROA: Revista da Ordem dos Advogados RT: Revista dos Tribunais RTDC: Revista Trimestral do Direito Civil RTDCom: Revue Trimestrelle de Droit Comercial et de Droit Économique RTDPC: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civille ss. : seguintes STJ: Superior Tribunal de Justiça Trad.: Tradução V.: volume SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1: O ETINERÁRIO DA EVOLUÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL: O MODELO LIBERAL CLÁSSICO, O DIRIGISMO CONTRATUAL E O CONTRATO NO CAMINHO DA PÓS-MODERNIDADE ......................................................................19 1 O PARADIGMA CLÁSSICO DO MODELO LIBERAL: A SOBERANIA DA VONTADE .............................................................................................................................. 21 1.1 A NOÇÃO DE CONTRATO NAS GRANDES CODIFICAÇÕES OITOCENTISTAS ................................................................................................................. 26 1.1.1 O Code Napoleônico e a escola da exegese .................................................................... 26 1.1.2 O BGB e a Pandectística germânica: a teoria do negócio jurídico e o dogma da vontade .................................................................................................................................................. 31 1.2 O INDIVIDUALISMO NA TEORIA DOS CONTRATOS: O MODELO LIBERAL DE CONTRATAÇÃO............................................................................................................ 33 1.3 A AUTONOMIA DE VONTADE E A LIBERDADE CONTRATUAL NO MODELO LIBERAL .............................................................................................................36 2 O PARADIGMA DO ESTADO INTERVENCIONISTA E A MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS..............................................................................................44 2.1 O DIRIGISMO ESTATAL NO ÂMBITO NEGOCIAL: A INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DIREITO DOS CONTRATOS..................................................................... 46 2.1.1 O aumento das normas cogentes: a força estatal presente nas relações entre os particulares ............................................................................................................................... 49 2.1.2 Reflexos do Dirigismo estatal na principiologia da concepção tradicional de contrato.. 50 2.2 O DIRIGISMO PRIVADO NOS CONTRATOS: A MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES NEGOCIAIS E A ESTANDARDIZAÇÃO DOS CONTRATOS ...............52 2.2.1 A importância da grande empresa no desempenho do dirigismo contratual................... 55 2.2.2 Os Contratos de adesão: o ocaso da manifestação de vontade na formação dos contratos .................................................................................................................................................. 57 3 A SITUAÇÃO ATUAL DO DIREITO CONTRATUAL: A PÓS-MODERNIDADE E A SUA INFLUÊNCIA NA TEORIA CONTRATUAL ....................................................... 65 3.1 A CRISE DA MODERNIDADE E A BUSCA DE NOVOS PARADIGMAS............. 66 3.1.1 O Saturamento dos ideais da modernidade: tempo de reflexões .....................................70 9 3.1.2 O impulso da Globalização ............................................................................................. 72 3.1.3 A frustração do modelo globalizado................................................................................ 74 3.1.4 A busca de novos paradigmas para o entendimento social ............................................. 77 3.1.5 Os Erros da Globalização e a necessidade de correção ................................................... 77 3.1.6 O caos da complexidade social e a busca de reconstrução.............................................. 79 3.2 A PÓS-MODERNIDADE E A CIÊNCIA JURÍDICA.................................................. 80 3.2.1 Primeiros diagnósticos da influência da pós-modernidade sobre o pensamento jurídico86 4 O DIREITO CIVIL NA PÓS-MODERNIDADE: UM ENFRENTAMENTO NECESSÁRIO ........................................................................................................................ 94 4.1 O DIREITO CIVIL COMO INTEGRANTE DO PROJETO DA MODERNIDADE .................................................................................................................................................. 95 4.2 A CRISE DO DIREITO CIVIL: O OCASO DE UM PROJETO ...............................97 4.2.1 O enfraquecimento das fronteiras entre Direito Privado e Público ............................... 100 4.2.2 O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil ..................................................103 4.3 PANORAMA DO DIREITO CIVIL PÓS-MODERNO ............................................... 110 4.4 A PÓS-MODERNIDADE E O SISTEMA CONTRATUAL...................................... 129 4.4.1 O contrato no ambiente pós-moderno: reconstrução de uma teoria ..............................129 4.4.2 A Constitucionalização do contrato............................................................................... 137 4.4.2.1 O contrato como ‘ponto de encontro’ entre os direitos fundamentais e as relações particulares............................................................................................................................. 140 4.4.3 A nova ética contratual e a revitalização do elemento confiança como suporte da dinâmica das relações sociais ................................................................................................. 146 4.4.3.1 A importância da confiança nas relações massificadas: a sua atuação na publicidade e a confiança derivada da marca ........................................................................................... 150 4.4.3.2 A interpretação econômica dos contratos .................................................................. 151 4.5 PRINCIPAIS TÉCNICAS CONTRATUAIS TIPICAMENTE PÓS-MODERNOS152 4.5.1 Contratos cativos de longa duração ............................................................................... 152 4.5.2 Contratos relacionais: a contribuição teórica de Ian R. Macneil................................... 160 4.5.3 Redes contratuais........................................................................................................... 162 4.5.4 Contratos eletrônicos ..................................................................................................... 164 CAPÍTULO 2: OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS NO ÂMBITO DA PÓSMODERNIDADE .................................................................................................................167 1 OS MEGA-PRINCÍPIOS CONTRATUAIS NO AMBIENTE PÓS-MODERNO: A FUNÇÃO SOCIAL E A BOA-FÉ .......................................................................................167 2 UM NOVO PARADIGMA NA TEORIA DOS CONTRATOS: A FUNÇÃO SOCIAL ................................................................................................................................................ 172 2.1 A BUSCA DE IDENTIFICAÇÃO DO SENTIDO DA EXPRESSÃO “FUNÇÃO SOCIAL”............................................................................................................................... 172 2.1.1 A funcionalização dos institutos jurídicos de Direito Privado ......................................175 2.1.2 A funcionalização dos institutos jurídicos e a abertura do sistema ............................... 177 2.2 UM OLHAR CONSTITUCIONAL SOBRE O TEMA DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO ......................................................................................................................... 182 2.3 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO SISTEMA DO CÓDIGO CIVIL ...... 186 2.4 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: ESTÁGIOS DA CONCEPÇÃO .............192 2.4.1 A função social como discurso legitimador de valores ideológico-políticos ................192 2.4.2 A função social do contrato como valorização de posições jurídicas individuais.........193 10 2.4.3 A função social como forma de consagração dos princípios constitucionais: o reflexo da constitucionalização do Direito Civil sobre a teoria contratual.............................................. 194 2.4.3.1 A função social como concretização do projeto constitucional no âmbito das relações privadas: a terceira e quarta dimensão/geração de direitos ................................................. 194 2.4.3.2 A função social do contrato como busca de justiça social......................................... 195 2.4.3.3 A função social do contrato como tutora do princípio da liberdade contratual........197 2.4.3.4 A função social do contrato e os valores ambientais .................................................201 2.4.3.5 A função social como critério de eficácia do contrato............................................... 205 3 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A SUA ATUAÇÃO NOS CONTRATOS NA FASE DE TRANSIÇÃO ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE..................... 206 3.1 O CONCEITO DE BOA-FÉ NO SISTEMA JURÍDICO........................................... 207 3.2 A EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE BOA-FÉ NO DIREITO CONTRATUAL ...........209 3.3 O POSTULADO DA BOA-FÉ NA CODIFICAÇÃO CIVIL ATUAL......................216 3.4 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS CONTRATOS E A CRIAÇÃO DE DEVERES ANEXOS ............................................................................................................................... 221 3.6 A BOA-FÉ COMO ELEMENTO DE PROCESSUALIZAÇÃO DO CONTRATO ................................................................................................................................................ 224 3.7 A ATUAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO PARÂMETRO PARA A “ÉTICA NEGOCIAL” ........................................................................................................................ 225 3.8 A BOA-FÉ NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: A CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA.........................229 4 OS DEMAIS PRINCÍPIOS DOS CONTRATOS PÓS-MODERNOS ......................... 230 4.1 O PERCURSO DO PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DO VÍNCULO CONTRATUAL ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE ................230 4.1.1 A teoria da Pressuposição: a contribuição de Windscheid ............................................ 236 4.1.2 A revisão judicial dos contratos com fundamento na teoria da imprevisão .................. 239 4.1.3 A teoria da quebra da base econômica do contrato ....................................................... 250 4.1.4 A ‘autorevisão’ dos contratos ........................................................................................ 258 4.1.4.1. As cláusulas de hardship e a readaptação do contrato ............................................259 4.2 O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO DO CONTRATO COMO IMPERATIVO A ÉTICA PÓS-MODERNA ..................................................................... 262 4.2.1 A lesão como principal forma de desequilíbrio econômico do contrato: da lesão qualificada à lesão pura .......................................................................................................... 264 4.3 O PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO NO SISTEMA PÓS-MODERNO: A OPONIBILIDADE DOS EFEITOS CONTRATUAIS EM RELAÇÃO A TERCEIROS ........................................................................................ 268 4.3.1 A flexibilização do princípio da relatividade do vínculo contratual e a atuação de terceiro que coopera com o devedor para o inadimplemento do contrato.............................. 274 4.4 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR DE CRÉDITO ........................ 276 4.4.1 A proteção do consumidor de crédito e os mega princípios da função social e boa-fé 278 4.4.1.1 Proteção à vontade do consumidor de crédito........................................................... 281 4.4.1.2 A construção de um direito do crédito fundado em normas cogentes que venham a tutelar com mais eficácia a parte mais vulnerável................................................................. 283 4.4.1.3 O superendividamento do consumidor de crédito...................................................... 284 4.4.1.3.1 Superendividamento e a educação do consumidor ................................................. 291 4.5 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA PARTE MAIS VULNERÁVEL NA RELAÇÃO NEGOCIAL .......................................................................................................................... 296 4.6 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL NOS CONTRATOS ................... 303 11 4.6.1 A aplicação do princípio da solidariedade social nos contratos e a noção de mercado 307 4.7 PRINCÍPIO DA CONFIANÇA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS............................. 309 4.7.1 A confiança como forma de superação do déficit e do excesso de informações nas relações negociais ................................................................................................................... 312 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 315 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................317 INTRODUÇÃO O pensamento jurídico esta sempre em consonância com os debates promovidos para a compreensão cada vez mais intensa da realidade social que o conforta. O raciocínio jurídico é, em grande parte, fruto de opções ideológicas comprometidas com determinado momento histórico. É o social que demarca, de forma indelével, os rumos do Direito, indicando-lhe a direção e atribuindo-lhe tarefas a serem desbravadas. A sociedade atual vive uma época de crise de identidade, aguçando a capacidade de compreensão dos estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento, os quais buscam expressar, por meio de palavras, aquilo que percebem na análise das mudanças sociais que ocorrem com grande dinamicidade, numa verdadeira ‘aceleração histórica’. Assim encontramos uma plêiade de designações que buscam espelhar esta nova realidade social e dar a ela uma certa identidade: ‘era da informação’, ‘era do consumo’, ‘era da incerteza’ e ‘era do acesso’ , dentre outras. Entretanto parece prevalecer uma designação que, apesar de não se mostrar aceita por todos, disseminou-se nos mais diversos campos de estudo, qual seja, a pós-modernidade, tão debatida na área das artes, arquitetura, filosofia, sociologia e, agora, na ciência jurídica1. No contexto da extrema complexidade pós-moderna, a diversidade se enfrenta e postula soluções para não ser absorvida pelo aparente caos instaurado nas relações sociais. ____________ Junqueira de Azevedo vê, na pós-modernidade, o destaque de três características que acabaram por se projetar no campo do Direito: a ‘crise da razão’, em que o neopragmatismo substitui a verdade pelo justo, a ‘hipercomplexidade’, que se revela pela multiplicidade de fontes do direito, e a ‘interação’ que dissemina o papel da negociação dentro do jurídico (in: “O Direito pós-moderno e a Codificação.” In: RFD/USP, v. 94, 1999, p. 4-5). 1 13 Essa nova forma de visão da realidade social é fruto de muitos debates em torno da condição humana em sociedade, consolidada depois da sedimentação da avassaladora globalização. O tema ainda é debatido de maneira incipiente, mas não resta dúvida de que ele representa a forma mais adequada de enfrentamento teórico da tarefa de compreensão da nova realidade social. É necessário restabelecer condições para o convívio solidário, que venham a amenizar a impessoalidade causada pela massificação das relações sociais, criadora de um panorama mundial monocromático, e redescobrir o indivíduo – pessoa – como razão e fim maior da vida em sociedade. A criação de um ambiente propício ao desenvolvimento das potencialidades do ser humano, com a preservação e otimização de sua dignidade, é um desafio que deve ser enfrentado com o máximo de perseverança e ousadia. O Direito, tributário da realidade social, não poderia deixar de sofrer as influências dessa nova forma de pensamento. Assim é possível constatar nitidamente a ‘crise transformadora’ experimentada atualmente pelo sistema jurídico, que começa a se moldar para se adaptar a essa condição social que lhe é apresentada. Nas mais diversas áreas do conhecimento jurídico, o pensamento pós-moderno se faz sentir desde o tradicional Direito de Família e Sucessões2, passando pelo Direito Constitucional3 e Direito Internacional Privado4, responsabilidade civil5 e, principalmente, chegando ao campo das relações negociais 6. Nesse contexto, é criado um ‘Novo Direito’, marcado pela tarefa de renovação e consagração de valores que ficavam a 'a latere’ do sistema jurídico. Como observou Ricardo Lorenzetti, até então, “la teoria juridica pareciera no haber recibido el enorme caudal de conocimientos que han elaborado los científicos en otros campos. El grado de complexidad ____________ MARQUES, Claudia Lima. “Igualdade entre filhos no Direito Brasileiro atual: Direito pós-moderno?” In: RFD/UFRGS, v. 16, 1999, p. 21-40; MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o teste de paternidade através do exame do DNA em direito brasileiro: Direito pós-moderno à descoberta da origem; Grandes Temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. São Paulo: Forense, 2000; e BRAUNER, Maria Claudia Crespo. As novas orientações do Direito de Família: O Direito de Família descobrindo novos caminhos. São Leopoldo, 2001. 3 CANOTILHO. José Joaquim Gomes. “O Direito Constitucional entre o moderno e o pós-moderno.” In: RBDC, Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, n. 09, 1990, p. 76. 4 JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito – PPGDir/UFGRS, v. I, n. I, mar. 2003. 5 GOMES, José Jairo. “Responsabilidade Civil: influência da solidariedade e da cooperação.” In: Revista de Direito Privado, n. 23, jul-set.2005, p. 227. 6 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5. ed. São Paulo: RT, 2006, e MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo: RT, 2004, e NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2002. 2 14 social y teórica exigen del jurista la utilización de herramientas múltiples y plurales capaces de captar el pluralismo de fuentes, reglas y valores próprio de la modernidad”7. Uma das principais inovações que o pensamento pós-moderno traz ao Direito Civil é a vinculação aos valores constitucionais. Há uma onda de aproximação dos institutos tradicionais do Direito Privado com os valores consagrados no texto das constituições, criando uma verdadeira releitura do Direito Comum, sob o viés constitucionalista, fazendo nascer um verdadeiro “Direito Civil Constitucional” 8. A Constituição Federal passa a ocupar o seu devido posto de eixo central do ordenamento jurídico, impondo os seus valores a todos os recantos do sistema, em especial moldando o direito infra-constitucional, numa clara irradiação ilimitada de eficácias. Nas sábias palavras de Gustavo Tepedino, o ponto de referência do ordenamento jurídico, antes localizado no Código Civil, é deslocado para a tábua axiológica da Constituição, de forma que é forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz dos ditames constitucionais9. Os valores constitucionais consagram-se como a espinha dorsal do ordenamento jurídico, com a tarefa de atuar como pedra angular de todo o sistema. Nesse contexto, destacam-se os direitos fundamentais, núcleo rígido da constituição, que deverá ser observado pela integralidade do ordenamento 10. Cabe ressaltar, entretanto, que este novo ‘Direito Civil Constitucional’ não cria novos institutos ou figuras jurídicas e, sim, proporciona uma releitura do modelo privatista ora existente, de forma que os institutos jurídicos de Direito Privado passam por uma espécie de revestimento de novos valores, à luz do texto constitucional. Como apontou com precisão Édson Fachin, “a Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX, migrando para uma concepção em que se privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, ____________ In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito da UFRGS, v. 02, set. 2003. (Coleção Direito Comparado), p. 25. 8 Há autores que preferem a utilização da expressão ‘civilização do direito constitucional’, como ATIAS, Cristian. “La civilation du droit constitutionel”, p. 435. In: RevTDC, v. 7, 1991, p. 435. 9 In: TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 13. 10 Natalino Irti informa que este efeito se fez sentir, de forma bastante forte, no sistema jurídico italiano, em que o advento da Constituição de 1948 levou o Código Civil unificado de 1942 a perder o seu papel de centro do ordenamento jurídico. O autor explica: ‘il codice civile há perduto il caractere di centralità nel sistema delle fonti: non più sede di garanzie dell’índividuo, ornai e sovolte della Constituzione” (In: “L’età della decodificazione.” In: RDCI, v. 10, out-dez. 1979, p. 30). 7 15 em suas relações interpessoais, visando `a sua emancipação”11. Os valores sociais, em especial, passam a integrar os conceitos jurídicos tradicionais, ensejando reflexões sobre a função social da propriedade, da empresa, e, em especial, dos contratos. Trata-se da funcionalização dos conceitos, que deixam de ser um fim em si mesmo considerados e passam a ter uma tarefa instrumental. No campo das relações negociais, essa visão do contrato acabou por ganhar um relevo ainda maior, pois a troca econômica representa uma necessidade da vida em sociedade que não pode ser descartada. Não há possibilidade de convívio social sem a realização de intercâmbio econômico 12. O contrato, mais do que uma realidade, é uma necessidade. Cabe, portanto, ao direito, regular adequadamente esse instituto e, mormente, à Constituição, estabelecer os vetores que devem ser seguidos para que ele desempenhe a sua função no contexto das relações sociais. Como destaca Pinto Monteiro, ‘o contrato é uma daquelas figuras que convoca ao debate temas sempre presentes nas preocupações da ciência jurídica. Ele espelha, de modo exemplar, na sua regulamentação jurídica, as tendências econômicas, o modelo social, os postulados filosóficos, culturais e políticos de cada época. Analisá-lo, do apogeu da época liberal ao presente, é percorrer muitos caminhos trilhados pelo pensamento jurídico; discuti-lo é debater o próprio sentido do direito’13. Assim, comprometido com essa nova realidade, o Código Civil atual, que assume nitidamente a tarefa de concretizar os valores constitucionais no âmbito das relações entre os particulares, optou por consagrar expressamente como princípios vetores dos contratos a noção de boa-fé e função social. Essa inovação abre uma nova era do Direito Contratual brasileiro, ainda bastante influenciado pelos ideais do positivismo jurídico, contribuindo para a formação de novos ____________ NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 17. 12 Além da importância do contrato como instrumento de circulação de riquezas, Cláudia Lima Marques destaca a sua atuação como forma de remediar a natural desconfiança entre os indivíduos e o seu papel como instrumento de alocação de riscos para a segurança dos envolvidos na relação negocial (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 50). 13 In: GOMES, Julio. “Cláusulas de Hardship.” In: MONTEIRO, António Pinto (cord.) Contratos: actualidade e evolução. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1997, p. 21. 11 16 pensamentos na teoria dos contratos14. A doutrina tradicional limitava-se a proporcionar um tratamento da teoria geral dos contratos em torno dos elementos tradicionais – vontade, causa, objeto e efeitos – ainda comprometida com as inspirações do modelo liberal. Essa atitude permitia a construção de um enfoque sob apenas um dos aspectos do contrato, numa visão da estrutura interna do vínculo15. Era preciso assumir também um comprometimento com a inserção do pacto no seu contexto social, emprestando um novo caráter ao Direito Contratual. Nas palavras de Ricardo Lorenzetti, o contrato se ´descongelou´ e passou a ostentar sua enorme vitalidade16. A doutrina, de há muito, já vinha apregoando a necessidade de observância da função social do contrato, mas as vozes dos juristas nem sempre eram ouvidas com a atenção merecida. Da mesma forma, a jurisprudência, em especial pela consagração da boa-fé e do equilíbrio na relação obrigacional, já manifestava a sua simpatia por uma interpretação contratual comprometida com os valores sociais. Entretanto os princípios da boa-fé e da função social dos contratos não podem ser descuidados, de forma a tornarem-se apenas figuras retóricas de nosso ordenamento positivado, uma norma programática que apenas tem o sentido de atuar como vetor aos intérpretes. Não é esse o propósito da norma. A concretização dos valores sociais do contrato ____________ 14 Cláudia Lima Marques pontifica: “a concepção de contrato, a idéia de relação contratual sofreu, porém, nos últimos tempos uma evolução sensível, em face da criação de um novo tipo de sociedade, sociedade industrializada, de consumo, massificada, sociedade de informação e, em face, também, da evolução natural do pensamento teórico-jurídico. O contrato evoluirá, então, de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação de vontade das partes, para ser instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 51). 15 Entretanto, cabe trazer à colação a esclarecedora afirmação feita por Ronaldo Porto Macedo Junior, que, de forma lúcida, demonstra que “a teoria contratual clássica não deixou de ser coerente em si mesma. Apenas o mundo no qual ela insiste em sobreviver enquanto formulação ortodoxa a tornou insatisfatória e incoerente com aquilo que a experiência jurídica contemporânea freqüentemente reconhece significativamente como contrato. A historicidade das categorias jurídicas reside neste seu aspecto significativo cambiante. É tarefa comum do jurista e do sociólogo do direito a compreensão destas mudanças de significado” (In: Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 370). 16 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito da UFRGS, p. 27. O autor explica que: “La doctrina que trata la denominada ‘parte general’ del contrato se há mostrado particularmente austera, ya que se concentra en el estudio del consentimiento, objeto, causa y efectos. De este modo. La figura está ‘adelgazada’ porque se estudan unas pocas obligaciones esenciales, está ‘congelada’, en el sentido de que se perfila de una vez y para siempre, desde que se perfecciona el consentimiento, permaneciendo inmutable frente a los cambios; está ‘aislada’, puesto que es indiferente a lo que ocurre en el entorno, porque el mercado opera como presupuesto o circunstancia, sin que exista un enlazamiento entre lo público y lo privado. Estos caracteres han cambiado”. 17 e da boa-fé são imperativos que se impõem, sob pena de ineficácia do próprio direito no desempenho de seu papel de forma de controle das relações sociais17. A boa-fé e a função social do contrato consolidam-se, então, como espécies de ‘mega princípios’ do direito negocial, agregando-se aos princípios tradicionais, revitalizando-os, como ocorre em relação à liberdade contratual, e potencializando os princípios modernos, como o do equilíbrio contratual. São vetores moderadores da teoria contratual que garante a adequação do contrato aos valores sociais presentes na sociedade pós-moderna. Esses dois pilares da teoria contratual pós-moderna proporcionam uma verdadeira revitalização do direito negocial, como escudos de proteção para que este possa desempenhar, de forma satisfatória, a sua função. A boa-fé serve como uma garantia da harmonia interna do pacto, mantendo-se íntegros os ideais de equidade, ética e justiça contratual, colmatando as lacunas e formatando a relação para que continue a representar um instrumento de segurança nos negócios. A função social é a capa que envolve externamente o vínculo, criando uma ligação direta deste com os valores constitucionais e sociais, potencializando-o não apenas para atuar como um instrumento de tutela dos interesses diretos dos parceiros negociais, mas, também e principalmente, como um elemento de importância social. Este, portanto, é o objeto do presente estudo, escolhido não apenas pela inegável importância que o tema encerra, mas principalmente pela curiosidade acerca do grau de abrangência que o tema poderá atingir na teoria jurídica dos contratos. Assim nos propomos demonstrar que, como aconteceu em outros ramos do saber, o reconhecimento do fenômeno da pós-modernidade cria uma dobra histórica na Ciência do Direito, e, para tanto, utilizamos o seu reflexo no plano da teoria dos contratos como forma de evidenciar essa situação. A pósmodernidade propicia uma mudança de rumo na abordagem que o Direito destinava aos contratos, admitindo o surgimento de novos princípios mais voltados aos valores éticos e sociais e exigindo uma releitura dos princípios tradicionais. ____________ 17 Como observa Bueno de Godoy: “a função social dos contratos significará e, antes, já significa um relevantíssimo instrumento que o sistema disponibiliza: primeiro, para a sua própria e permanente atualização, em matéria de contratos, em rigor uma auto-alimentação que se dá com a sua abertura ao constante penetrar de pautas éticas, de que tanto se ressentem as relações de hoje em dia; de outra parte, e sem perda da notável segurança jurídica – que não se dispensa, no ordenamento, desde que compreendida sua função – propiciando visível eficácia de valores fundamentais que não constituem uma opção ideológica, porventura descartável ao sabor do momento” (In: Função Social do Contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 3). 18 Todas as transformações constatadas demonstram ter como pano de fundo o que Alain Touraine designou de mudança d eparadigma, que inca a fase de encerramento da modernidade tardia, fundada no paradigma econômico e social, e o ingresso no contexto da realidade pós-moderna, alicerçado em um paradigma cultural18. Esta mudança, entretanto, não é traumática ou radical, e encontra-se em período de concretização, o que poderá se concluir rapidamente nas próximas décadas ou simplesmente se consagrar como uma simples fase de transição que acabará sendo substituída por uma outra fase de trnsformações. Este é o panorama sobre o qual nos propoms realizar o presente trabalho, buscando criar um espaço de reflexão sobre este período que parecer ser de fundamental importância para a criação de uma nova teoria dos contratos. Na busca de desempenho da tarefa proposta, inicialmente será revisitado o itinerário da teoria dos contratos, enfocando os pontos mais marcantes que caracterizaram a fase do Liberalismo e do Estado Social, chegando na abordagem da globalização econômica. Vencida esta etapa passamos a observar o panorama da teoria do contrato na transição entre o modelo moderno e o pós-moderno, dorecionado para a análise dos nega-princípios da função social e da boa-fé, e a sua integração com outros princípios relevantes da teoria contratual. Assim, o nosso objetivo é demonstrar que as transformações que estão ocorrendo na sociedade exigem do Direito que revisite a teoria contratual para que ela possa continuar a refletir a realidade social na qual esta inserida. ____________ 18 In: TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje. Traduzido por Gentil Avelino Titton. Petrópolis: Vozes. 2006, p. 10. 19 CAPÍTULO 1: O ETINERÁRIO DA EVOLUÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL: O MODELO LIBERAL CLÁSSICO, O DIRIGISMO CONTRATUAL E O CONTRATO NO CAMINHO DA PÓS-MODERNIDADE O tema dos contratos representa um dos campos de maior destaque da Ciência do Direito, sempre acompanhando a evolução das relações sociais e as ideologias de cada época19. No intuito de traçar um perfil histórico sobre a evolução das teorias contratuais, é possível estabelecer a sua compartimentalização em três momentos que se sucedem no tempo e retratam com bastante nitidez o etinerário seguido pelo tema até que se chegue à atualidade: o paradigma contratual clássico do liberalismo, em que vigora a soberania da vontade, o modelo do dirigismo contratual marcado pela presença do Estado intervencionista em convívio com as grandes organizações empresariais, e, por fim, o paradigma pós-moderno, revitalizando valores tradicionais e impondo novas formas comportamentais para o mundo negocial. Para tanto, mostra-se oportuno revisitar a doutrina voluntarista, passando pelo dirigismo contratual e chegando ao estágio atual da temática contratual. Esse caminho será percorrido sem olvidar das influências econômicas e sócio-culturais que serviram de alicerce para a construção jurídica da teoria dos contratos, pois, como leciona Cláudia Lima Marques, “a idéia de contrato vem sendo moldada desde os romanos, tendo sempre como base as práticas sociais, a moral e o modelo econômico da época”20. A historicidade é, portanto, uma marca indelével dos contratos, e qualquer construção em relação a este instituto somente pode ser realizada tendo em mente essa condição. Nesse sentido, Judith Martins-Costa observa que “como assinalou Ricardo Orestano, ‘as palavras e o uso que delas é feito possuem uma sua própria historicidade, que acaba por condicionar o próprio instrumento’, de modo que é essencial ter-se em conta os seus empregos e as suas implicações históricas, mormente quando se trate do contrato – um conceito, um instrumento, e matriz de uma relação que, ____________ 19 Ludwig Raiser, em seu Il Compito del Diritto Privato. Milão: Giuffré, 1990, lembra: “il contratto è legato all’esistenza de determinate condizioni storico-politiche” e que “i limiti di tale libertà non sono fissati una volta per tutte, ma si modificano nel corso della storia entro la vasta gamma di soluzioni intermedie, comprese tra i due estremi di una disciplina dettata esclusivamente dall’autorità statale e di una basata solo sull’autonoma organizzazione dei singoli” (p. 77). 20 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 37. 20 pelo menos há dois mil anos vem acompanhando a humanidade, com conotações que permanentemente se transformam”21. ____________ 21 In: MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho. São Paulo: RT, 1995, p. 498-9. 21 1 O PARADIGMA CLÁSSICO DO MODELO LIBERAL: A SOBERANIA DA VONTADE Na concepção clássica dos contratos, o ponto de partida é a visão do pacto como instrumento de manifestação de vontade das partes, influenciada pelo ideário voluntarista 22, pois, como ressalta Judith Martins-Costa, no sentido moderno a noção de contrato nasce com a idéia de automonia de vontade 23. Até o Medievo, o modelo contratual conservava a divisão romanista entre as figuras de ordem típicas - ensejadoras de actio - , e os pactos aproximados das obrigações naturais24, sendo que somente os primeiros eram idôneos para constituir vínculos obrigatórios, mas de caráter preponderantemente objetivo, pois a vontade subjetiva dos agentes não era considerada como fato constitutivo do vínculo, que ficava adstrito às fórmulas pré-estabelecidas. Nas palavras de Judith Martins-Costa, não se pensava, então, em enxertar no termo a idéia da expressão de manifestação da vontade humana ou de autodeterminação individual 25. O entardecer da Idade Média proporcionou a libertação dos contratos do formalismo exagerado de outrora, mas o emergeu no denso mar da doutrina da vontade, com a crença na ____________ 22 Cláudia Lima Marques, inspirada na doutrina francesa, indica a existência de quatro origens principais da doutrina da autonomia de vontade, na sua versão clássica: o direito canônico, a teoria do direito natural, as teorias de ordem política e a Revolução Francesa, e as teorias econômicas e o liberalismo (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 43-7). 23 In: MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, p. 497. A autora, entretanto, esclarece que: “parece hoje incontroverso que o contratualismo, ou a explicação da ordem jurídica como resultado de um acordo de vontades tenha raízes mais antigas, sendo visualizado na filosofia de Epicuro. Me refiro, no entanto, de forma menos abrangente, ao instituto do contrato como vínculo eminentemente bilateral, com conteúdo patrimonial e gerador de deveres e obrigações para as partes que o firmam” (p. 498). 24 Francisco Amaral resume ao tratamento dispensado a figura do contrato no sistema romano, explicando: “no direito romano clássico, o termo ‘contractus’ tinha um significado diverso do atual. Indicava o vínculo obrigatório, nascido do ato lícito, sendo estranho ao conceito o elemento subjetivo, o acordo de vontades. No direito justinianeu, o contrato é uma fonte de obrigações, sob o nome de ‘pactum’ ou ‘conventio’, não mais prevalecendo o elemento objetivo, mas sim o subjetivo ‘consensus’. Era um acordo de vontades que fazia nascer um vínculo obrigacional. Não constituía, porém, ainda, uma noção geral e abstrata, podendo afirmar-se que a sistemática romana desconhecia a categoria geral do ‘contractus’, mas tipos individualizados pela forma ou pela causa” (In: “O contrato e sua função institucional”, p. 109. In: Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, ano XV, n. 18, p. 109). 25 In: MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, p. 499. 22 validade e força obrigatória da promessa por ela mesma 26. Os canonistas elevaram a vontade à condição de elemento essencial ao contrato, desenvolvendo fundamentos teóricos para o cumprimento da vontade manifesta. Como informa John Gilissen, a Igreja, desde cedo, mostrou-se favorável à deferência à palavra empenhada, de forma que os canonistas assimilavam a mentira ao perjúrio 27. Entretanto foi a Escola do Direito Natural que criou uma dobra histórica, que, potencializada pelo pensamento racionalista, gerou o epílogo da filosofia da Idade Média. Como ensina Cláudia Lima Marques, é na teoria do Direito natural que podem ser encontradas as bases teórico-filosóficas mais importantes para a formação da concepção clássica dos contratos, quais sejam: a autonomia da vontade e a liberdade contratual28. O racionalismo se impôs então de forma avassaladora, passando a dominar as formas de pensamento nos diversos setores do conhecimento humano, sendo a razão o eixo central de toda e qualquer forma de manifestação científica29. No plano do Direito, sugiu o jusracionalismo, pregando os ideais de existência de um sistema jurídico completo, fixo e universal30. ____________ 26 Conforme In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 55-6. A autora explica que, na concepção canônica, “o simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato do homem. É o direito canônico que vulgariza a fórmula ‘ex nudo pacto nascitur’. Para os canonistas, a palavra dada conscientemente criava uma obrigação de caráter moral e jurídico para o indivíduo. Assim, livre do formalismo excessivo do direito romano, o contrato se estabelece como um instrumento abstrato e como uma categoria jurídica” (p. 43-4). 27 In: GILISSEN, Jhon. Introdução histórica ao Direito. Traduzido por A. M. Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 735. 28 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 56. Nesse mesmo sentido, manifesta-se Judith Martins-Costa, afirmando: “para se chegar até aí foram necessários pelo menos cinco séculos de ingente esforço da filosofia, esforço cujas raízes estão fincadas na escolástica tardia através das obras de Guillaurme d’Occan e de Duns Scott, expoentes do moninalismo” e que “isto porque a premissa em que se funda o direito moderno dos contratos e de sua disciplina jurídica provém da releitura procedida por d’Occan e Scott ao direito natural aristotélico, a qual, em brevíssimos - e largamente temerários traços – pode ser sintetizada nos seguintes termos: se o indivíduo, no Estado de Natureza, é livre, nada o pode obrigar, salvo o seu consentimento. Por conseqüência, a origem única das regras jurídicas, por definição obrigatória, é o acordo de vontades, vale dizer, o consenso” (In: A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, p. 500-1). 29 Como enfatiza na doutrina civilista Francisco Amaral: “o racionalismo está, assim, na própria base do Estado moderno, e as suas manifestações intelectivas, como a construção dos conceitos e dos sistemas, são expressões do predomínio de uma nova classe, a burguesia racionalista e calculadora, que vê como possível uma igualdade material de direitos, por meio da generalidade e da abstração de normas jurídicas, generalidade no sentido de indeterminação do sujeito, e abstração como universalidade dos casos a que se aplica a lei, atributos estes decorrentes do princípio da igualdade formal do modelo jurídico do liberalismo. O racionalismo marca, assim, a ciência jurídica moderna, cuja nota específica é a exatidão” (In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro.” In: RDCI, RT, v. 63, jan-mar. 1993, p. 45). 30 Essa crença no caráter estático e universal da ciência do direito deu conforto aos ideais codificadores que marcaram esse período. 23 Com a aceitação e divulgação da cultura jusracionalista, expande-se a sua principal contribuição, ou seja, a concepção da idéia de sistema, que representou um extraordinário avanço teórico para a explicação da Ciência do Direito31. A concepção sistemática, além de propiciar um melhoramento do Direito, permitiu compreeder a matéria social em que se insere a ciência jurídica, proporcionando a idéia de unidade que serviu como inspiração às grandes codificações32. Inicialmente pela obras de Grotius, posteriormente pela tendência do pensamento liberal de Decartes, Rousseau, Hobbes e pela filosofia de Leibniz e Kant, o Direito passou a fundar-se diretamente nos valores voluntaristas, o que se reproduz imediatamente nas relações de troca – contratos. Kant chegou a expressar que “a vontade individual é a única fonte de toda obrigação jurídica”, atuando com o imperativo categórico de ordem moral, sendo que suas idéias serviram de inspiração a todo esse período. Assim a sacralização da vontade encontra o seu ponto máximo de ascendência exatamente no reconhecimento jurídico do dogma da vontade contratual, criando uma noção formal de contrato. Como ressalta Ludwig Raiser, essa visão tradicional da teoria contratual denota uma demonstração de fidelidade ao método da pandectística oitocentista, que não se preocupava em estudar como o Direito intervém para ordenar as diversas esferas da vida social, nem tampouco em definir os institutos jurídicos com vista a sua função social. Os teóricos da pandectística conservavam um nítido distanciamento da realidade social, não só porque tomavam por referência o sistema ____________ Conforme Franz Wieacker: “com o sistema do jusracionalismo a ciência jurídica positiva adoptou também a sua ‘construção conceitual’. Numa teoria que tinha que se comprovar perante o ‘forum’ da razão através da exatidão matemática das suas premissas, o conceito geral adquiriu uma nova dignidade metodológica. Agora, ele não era já apenas um apoio tópico, um artifício na exegese e harmonização dos textos, mas o símbolo central que exprimia a pretensão de ordenação lógica da ciência jurídica. As últimas fases do jusracionalismo, sobretudo, consideravam que a sua missão consistia numa demonstração das normas jurídicas que aspirasse à evidência lógica da nova matemática e que consistisse, portanto, numa ininterrupta progressão dos conceitos mais gerais, para os mais especiais” uma ‘demonstratio more geometrico’, a que corresponde, como precisamente se exprime no título e na forma expositiva da sua ‘Ethica more geometrico demonstrativa’ a metafisica de Espinosa. Através dos discípulos juristas de Cristian Wolf estas exigências entraram a fazer parte para sempre do programa da ciência jurídica privatista. A jurisprudencia dos conceitos do século XIX é essencialmente a herdeira desse processo cognitivo-cartesiano.” (In: História do Direito Privado Moderno. Traduzido por A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 310). 32 Nesse sentido explica Francisco Amaral: “a idéia de sistema liga-se diretamente à de codificação, agrupamentos de normas jurídicas da mesma natureza em um corpo unitário e homogêneo. Distingue-se da compilação, mero ajuntamento de leis, geralmente por ordem cronológica, e da consolidação, que é a reunião de leis pelo critério da matéria, simplificando-se e apresentando-se no seu último estágio. Em sentido estrito, significa o processo de elaboração legislativa que marcou os séculos XVIII e XIX, de acordo com os critérios científicos decorrentes do jusnaturalismo e do iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais e sistemáticas. Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em determinada matéria, simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando-lhe ainda mais certeza e estabilidade” (In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 116). 31 24 de Direito romano, mas também porque se preocuparam em aperfeiçoar com toques de requinte os procedimentos de abstração que marcaram esse sistema, transformando os conceitos e figuras jurídicas em entidades de um universo marcado pela autonomia 33. A consagração dessa concepção tradicional, como não poderia ser diferente, é fruto de um dado momento histórico, resultado na realização, no plano das relações privadas, dos valores cultivados no âmbito das liberdades públicas no modelo de Estado Liberal. O Liberalismo econômico é o progenitor da noção clássica de contratos e do dogma da autonomia de vontade que a delineia. A realidade econômica estabelecida ao final da Idade Média, reforçada pelos ideais da Revolução Francesa e pelos efeitos da Revolução Industrial, criou um ambiente propício à supervalorização da liberdade contratual como expressão da própria liberdade individual, dando aos pactos um status de ponto máximo de concretização da autonomia individual, na tríplice liberdade de contratar, escolher com quem contratar e o que contratar34. ____________ 33 In: RAISER, Ludwig. Il Compito del Diritto Privato, p. 73-4. O autor explica que na visão da doutrina da pandectística, “il contratto interessa la scienza non tanto per la sua funzione sociale o per il suo contenuto o i suoi effetti, quanto come accordo di volontà con cui più parti concorrono a produrre determinati effetti giuridici” (p. 74). 34 Rubéns S. Stiglitz sintetiza com precisão o ambiente filosófico-cultural que ambientaliza o surgimento da noção clássica dos contratos: “a) la filosofia no es otra que razón, y la razón es igual en todos, es 'sentido común', y todo lo que distingue a un hombre de otro, todo lo que hay de individual y de particular, debe ser considerado como males a eliminar, precisamente por que se evaden de esa nivelación igualitaria que exige la razón. b) El Estado debe cumplir un rol de custodio de los derechos naturales, 'iguales en todo individuo humano', debiéndose considerar como capítulos pertenecientes a la historia, las injusticias y las desigualdades resultantes de actitudes prejudiciosas. c) La conciencia social va adquiriendo su propio perfil, en virtud de los principios ideales que en siglo XVIII se afirmaran en la lucha de la burguesía contra las clases privilegiadas: el de la igualdad y de la liberdad. La igualdad apunta a todas las clases sociales; su contenido son los derechos e deberes admitiendo que el poder central debe ajercer una acción niveladora, aboliendo privilegios e inmunidades de que gozan la nobleza y el clero, en perjuicio de la burguesía. d) a su turno, la liberdad, referida por entonces especialmente a la clase burguesa, se vincula a la aspirada independencia del poder feudal, de sus privilegios e inmunidades, y a su ejercicio, especificamente en la actividad produtiva y en la circulación de la riqueza. e) Si en su 'Discours sur l'origine et les fondaments de l'inégalité parmi les hommes' Rosseau expone la desigualdad entre los hombres, en el 'Contrato Social' enfatiza sobre la necessidad de 'encontrar una forma de asociación, que defienda y proteja con toda la fuerza común la persona e los bienes de cada asociado, y por lo cual cada uno, uniéndose a todos, no obedezca sino a sí mismo y permanezca tan libre como antes'. Para Rousseau, el contenido del 'contrato social' debe significar la consagración política de los derechos de liberdad e igualdad que el hombre tiene por natureza. f) Es atribuíble a Kant la distinción entre moral y derecho, pues considera que este último sólo se refiere al aspecto del obrar; es el que debe considerar si una acción se há cumplido o no, prescindiendo de los móviles determinantes, pues sostiene que su función se reduce a regular sólo las acciones externas de los hombres. Reafirma el concepto de la vontade como supremo valor ético, al punto que define al derecho como el 'conjunto de condiciones por las cuales el arbitrio de cada uno puede coexistir con el arbitrio de los demás, según una ley universal de liberdad'. g) Incluso para a escuela de la exégesis, el derecho se halla constituído sólo por reglas jurídicas; hace abstracción de la realidad viva y palpitante, al extreno que la justicia y la equidad ' son exigencias molestas que hay que sepultar', de las Faculdades de Derecho, pues se trata de 'temas para filósofos” (In: Autonomía de la voluntad y revisión del contrato. Buenos Aires: Depalma, 1992, p 11-2). 25 Nesse viés, não se pode olvidar que a teoria clássica dos contratos é, em intenso grau, reflexo das discussões travadas em torno da teoria do contrato social, como idéia de base da formação das sociedades. Os ensinamentos de Rousseau colocam a vontade como o elo de ligação entre os indivíduos, possibilitando, assim, a formação das sociedades e, ao mesmo tempo, representado a base de toda e qualquer autoridade. Nesse sentido, anota Judith Martins-Costa: “aí, o contrato e o contratualismo se encontram e duas vertentes iniciam fecundas trajetórias, centrada na valorização, a um só tempo jurídica e política, da vontade humana: no campo do Direito público o Estado, concebido como produto da vontade humana, conduz ao conceito de nação como ‘un corps d’associés vivant sous une loi commune’, conforme escreveu SieyÉs” e “no campo do Direito privado, por sua vez, idêntico substrato teórico leva ao delineamento do contrato como fonte primordial de direitos e obrigações”35. Essa concepção tradicional de contrato encontrou o seu ponto máximo de concretização jurídica nas previsões expressas no Código Civil Napoleônico de 1804, que consagrava os postulados da igualdade das partes e da liberdade contratual como representantes da verdadeira essência do espírito da legislação da época. Como observa Judith Martins-Costa, no Código Civil Francês o contrato é visto como uma suprema metáfora e, por isso mesmo, considerado intrinsecamente justo36. O Code, assim, acabou por servir como receptáculo do processo jus-filosófico que lhe antecedeu, calcado nos postulados da igualdade e liberdade formal37. Cabe ainda destacar, como faz Bueno de Godoy, que, nessa visão clássica, o contrato passou a representar um instrumento de afirmação econômica do estamento social então em ascendência, pois os contratos favorecendo o acesso da burguesia à propriedade imobiliária, que ainda não estava sob suas mãos38. O Code ostentava uma noção de contrato intimamente ligada à propriedade, concretizando assim as aspirações capitalistas de pôr fim aos privilégios feudais que ainda existiam sob o Ancien Régime. Da mesma forma, a simpatia pelo modelo ____________ In: MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, p. 506. 36 In: MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, p. 500. 37 Cabe destacar a lição de Pereira Coelho, no sentido de que o Code não foi a primeira codificação jusracionalista da história, sendo-lhe anterior o Allgemeines Landrecht für die Preussichen Ataaten, de 1794 (abstraído o Código Bávaro de 1796), mas, sem dúvida, o Código Civil Napoleônico foi o grande inspirador das compilações civilistas de sua época. (In: “Contrato: evolução do contrato no Direito Português.” In: BFDUC, v. LXIV, 1988, p. 245). 38 In: GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato: os novos princípios contratuais, p. 4-5. 35 26 contratual, fundado basicamente sobre os alicerces da autonomia da vontade, contemplava, em muito, os interesses dos artesãos e comerciantes, preocupados com o respeito ‘cego’ à palavra empenhada. 1.1 A NOÇÃO DE CONTRATO NAS GRANDES CODIFICAÇÕES OITOCENTISTAS A ideologia da liberdade contratual fez imprimir, de forma extremamente marcante, nas codificações do século XIX, iniciando pelo Code Napoleônico de 1084 e, mais tarde, chegando ao Código Civil Alemão, de 1896, monumentos legislativos que ainda conservam a sua vigência nesses sistemas39. 1.1.1 O Code Napoleônico e a escola da exegese O enorme destaque cultural conquistado pelo Código Civil Francês de 1804, aliado ao prestígio político que gozava a França na primeira metade do século XIX, em função das sucessivas conquistas conduzidas pela espada e astúcia de Napoleão, tornam indispensável a análise da influência dessa legislação na formação da teoria dos contratos. O Código Civil Francês descerra a era das codificações, representando o grande exemplo de legislação burguesa, que marcou de forma indelével o pensamento jurídico moderno40. Essa codificação é o eixo fundamental do positivismo legalista que desempenhou papel decisivo para a construção da teoria contratual clássica do século XIX. A importância jurídica e política do Code não se fez sentir apenas no âmbito interno do Direito Francês, mas ____________ 39 Na dicção de Enzo Roppo:“descrever os modos como a ideologia da liberdade de contratar se exprime na codificação francesa e na codificação alemã significa delinear os dois grandes sistemas que adotaram, historicamente, aquela ideologia, no quadro da evolução jurídica do acidente capitalista, tornando-se como modelos para grande parte dos outros sistemas nacionais” (In: O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 41). 40 Francisco Amaral sintetiza: “O Código Civil francês é o primeiro das codificações modernas. Promulgado em 21 de março de 1804, elaborou-o uma comissão formada por Napoleão Bonaparte e constituída por Portabis (1746-1807), Tronchet (1726-1806), Bigot e Préameneu (1747-1825) e Meleville, todos juristas práticos. O material com que seus autores trabalharam foram os costumes, o direito romano, recolhido por grandes jurisconsultos como Domat e Pothier, o mais importante jurista francês de sua época, as Ordenações Reais, as leis da Revolução e, ainda, secundariamente, a jurisprudência dos antigos parlamentares e o direito canônico” (In: Direito Civil, p. 66). 27 ultrapassou os limites geográficos, influenciando o pensamento jurídico de todos os países da Europa Continental41. Taxado como a primeira grande codificação da Era Moderna, o Code representou o ponto máximo de influência do pensamento iluminista nas codificações oitocentistas, comprometido integralmente com os ideais do Direito natural, abrindo caminho para a implementação do jusnaturalismo racionalista que definiu o discurso jurídico da modernidade. Como destaca Ana Simões Gaudêncio, a codificação civil francesa conseguiu realizar a combinação da preservação dos ideais revolucionários, a proteção dos interesses da classe média ascendente e a garantia das liberdades civis42. Assim ocorreu o total abandono da fundamentação metafísica do Direito que caracterizou Medievo, e firmou-se uma dualidade entre o culto ao Direito natural e o positivismo, com uma preponderância valorativa deste último, reforçando a noção de prevalência da lei, num claro comprometimento laicista. Nesse sentido, Antonio Maria Iserhard ressalta que, sendo o Código Napoleônico fruto de uma revolução que tinha como lema a liberdade, igualdade e fraternidade, a sua função primordial era, no ideário dos jusnaturalistas, proporcionar garantia, segurança e certeza nas relações jurídicas43. ____________ 41 Como observa Carlos G. Frontera, “La influência del Código Civil francés aparece en la legislación de numerosos países europeos y americanos. La reprodución del Código Civil Francés fue ley en Bélgica, Luxemburgo, el Palatinado, Ginebra, Saboya, Piamonte, Parma, Holanda, Wesfalia, Hannover, Nápoles, entre otros, en el território europeo. En América, por su parte, la influencia del Código Napoleón fue también importante e merece citarse al respecto que el Código de Bolivia sancionado el 18 de noviembre de 1845 fue una reprodución textual del Código Francés. Por su parte, el Código de Lousiana y el proyecto de Código para Nueva York en los Estados Unidos de Norteamérica, y el código de Perú y de Chile utilizaron al Código francés como fuente de muchos artículos” (In: El Código Civil Francés. La codificación: raíces y prospectiva – el Código Napoleón. Buenos Aires: Educa, 2003, p. 113). 42 In: GAUDÊNCIO, Ana Margarida Simões. “O culto do texto da lei na Escola da Exegese: seu sentido e limites.” In: BFDUC, v. LXXIX, Coimbra. 2003, p. 682. O jurista argentino Jorge A. Mazzinghi aponta: “El Código no solamente puso fin a la anarquía legislativa de Francia, consumando una realización por la cual el país suspiraba desde hacía siglos, sino que constituyó el fundamento jurídico indispensable para organizar, desde la ley, una sociedad asentada sobre conceptos enteramente nuevos, una sociedad que logró excluir, por una parte, los privilegios insostenibles del derecho feudal, y por outra, los extravíos insensatos de la Revolución” (In: MAZZINGHI, Jorge A. El Código Napoleón. La codificación: raíces y prospectiva – el Código Napoleón. Buenos Aires: Educa, 2003, p. 38). 43 In: ISERHARD, Antonio Maria. “A idéia de sistema jurídico e o novo código civil: contribuição ao desafio hermenêutico da aplicação do direito.” In: RFD/UFRGS, v. 23, dez. 2003, p. 38. Este autor aponta ainda: “não se pode descontextualizar a codificação civilista francesa do seu momento, eis que toda legislação é produto de sua própria historicidade cultural. Anteriormente ao advento do Código Civil francês, no regime feudal, vicejava uma justiça venal, em que havia juízes peitados e senhores feudais arvorando-se em juízes, decidindo os litígios invariavelmente em detrimento dos servos da gleba, alvo de combate da Revolução Francesa, visando a suplantar o reino da injustiça instalado no antigo regime. Por isso, compreende-se que a codificação civilista francesa se apresentasse como um momento jurídico que assegurasse e preservasse formalmente os direitos conquistados, afim de que não se retornasse ao anterior regime. Tal codificação, defendida pela escola da exegética francesa, infundiu a crença da infalibilidade do legislador como se fosse um ser onisciente, onipresente, capaz de prever todos os fatos que pudessem ocorrer na sociedade” (p. 38). 28 A codificação, então, passa a representar o ponto de fusão entre a razão e a vontade, de forma que o Direito é idealizado como um sistema racional e completo. Conhecidamente influenciado pelas obras de Jean Domat (Les lois civiles dans leur ordre naturel) e RobertJosÉphe Photier (Pandectae Justinianeae in: Novum Ordinem Digestae), a codificação civil francesa pretendeu-se construir um direito natural imutável, fundado na razão, com forte influência do modelo jurídico romanista e dos ditames do direito costumeiro44. As necessidades de ampliação do domínio sobre a novel codificação francesa fez com que a doutrina jurídica do século XIX viesse a dar início a um movimento de comentadores que acabou por assumir a designação de ‘école de l’exégÉse’, representando um estilo de atuação jurídica que se esforçava na tarefa de explicação e interpretação do Código Civil de Napoleão45. Essa escola jurídica caracterizou-se pelo apego ao silogismo com técnica de interpretação dos textos normativos, num acentuado rigor no uso do raciocínio lógico, acompanhada da identificação do Direito com a lei, tida como a única fonte competente para a criação do Direito46. Conforme ressalta Llamas Pombo a idéia central desta Escola da ____________ 44 Ana Gaudêncio informa que “as principais fontes inspiradoras do Code Civil foram os costumes, sobretudo o de Paris – a maior parte dos membros da secção de legislação do Conselho de Estado era originária dos ‘pays de droit coutunier’-, o direito romano, as ordenações reais e o direito intermediário. Além destas quatro fontes principais devem mencionar-se ainda o direito canônico e a jurisprudência. Na verdade o Code Civil francês foi em grande parte um trabalho de recolha de direito já existente” (In: “O culto do texto da lei na Escola da Exegese: seu sentido e limites.” In: BFDUC, p. 689-90). John Gilissen mostra-se mais incisivo, mencionando que “na realidade, a influência do direito costumeiro de Paris foi, segundo parece, maior do que a do direito romano. Os redatores do código colheram de um e de outro dos dois sistemas jurídicos as regras que lhes pareciam conformes à ‘razão natural`. E, para além disso, foi considerável a influência das leis e, sobretudo, dos princípios da Revolução Francesa” (In: Introdução histórica ao Direito, p. 454). Marcelo Urbano Salermo informa que na fase pré-codificação a França apresentava sessenta costumes territoriais e trezentos costumes de cidades (In: La influencia del “Droit Coutumier”. La codificación: raíces y prospectivas – el Código Napoleón. Buenos Aires: Educa, 2003, p. 151). 45 A criação e disseminação da expressão ‘escola da exegese’ é atribuída a Julien Bonnecase, em sua clássica obra L’École de l’éxégèse en Droit Civil. Paris: E. de Boccard Éditeur, 1919. 46 Cabe notar que, estranhamente, esta orientação mostra-se nitidamente distanciada dos ideais que presenciam a elaboração do texto do Code. Ana Gaudêncio observa: “os juristas oficialmente noneados por Napoleão Bonaparte, através do decreto de 24 thermidor do ano VIII, e a quem caberia a redacção do Code Civil, foram Tronchet, Bigot-Préameneu e Portalis. Malleville foi nomeado secretário redactor. Porém, outros juristas participaram na criação, entre os quais se encontram Malleville, Jacqueminot, Berlier, Treilhard, Cambacérès e Merlin de Douai. Patralis, o mais eminente redactor do Código, a quem coube a elaboração do ‘Discours Préliminaire sur le Projet de Code Civil’, recusava, tal como seus pares, a plenitude do mesmo, defendendo a necessidade de uma doutrina e de uma jurisprudência autónomas e criativas, às quais caberia não só interpretar a lei como também integrar as lacunas. Longe estava, portanto, a orientação dos redactores do Code Civil do dogma da plenitude lógica do sistema jurídico, que viria a assumir um papel primordial nas obras de alguns dos seus comentadores. A jurisprudência desempenharia um papel fundamental na realização do direito – Portalis admite expressamente a hetero-integração: na falta de lei, deveria recorrer-se aos usos, e, na falta destes, à eqüidade” (In: “O culto do texto da lei na Escola da Exegese: seu sentido e limites.” In: BFDUC, p. 691-2). 29 Exegese é o culto ao texto legal47. Essa radical aderência ao texto normativo descende ao mesmo tempo de influências de ordem histórica e ideológicas. Na questão histórica, o método exegético se mostrou necessário como forma de enfrentar as novidades apresentadas pelo então recente Código Civil Francês. No aspecto ideológico, tem-se a adesão ao positivismo jurídico, marca indelével desta fase do Direito48. A interpretação exegética estabelecia um literal apego à mens legislatoris, a ponto de, nas situações em que esta não pudesse ser nitidamente identificada, o intérprete deveria recorrer a juízos hermenêuticos lógicos para obter a identificação da vontade presumida do legislador. Nesse contexto, gozava de plena aplicabilidade a aceitação do dogma da plenitude lógica do sistema, permitindo uma auto-integração. Como explica Ana Margarida Simões Gaudêncio, o sistema jurídico positivado teria capacidade de auto-solução por meio da simples utilização das normas jurídicas que o constituem, de maneira que as lacunas legais seriam apenas aparentes49. No campo contratual, o método exegético propõe a interpretação dos contratos segundo critérios rigorosamente analíticos, fazendo transparecer, inclusive, uma impressão de fragmentação. Considerando que esse método de interpretação mantém-se arraigado ao texto legal, buscando trazer a lume a verdadeira intenção do legislador – men legislatoris - no plano do Direito contratual, a técnica que vigora é a busca da vontade das partes. A arte da análise ____________ In: POMBO, Eugenio Llamas. Orientaciones sobre el concepto y el método del Derecho Civil. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2002, p. 167. Cabe destacar também a observação de Martín Quintana, no sentido de que “El meolo del problema no se encuentra en la materialidad del derecho legislado en el Code, sino en las escuelas interpretativas y hermenéuticas que se apoderaron a posteriori de él, viabilizadas por el método racionalista, que no es un simples instrumento, sino una concepción filosófica, que prescindiendo de la realidad, abrirá entonces sí, paso a los ideales iluministas e ilustrados que se nutrían del empirismo y del utilitarismo” (In: El Código Civil Francés, la ilustración y el positivismo jurídico. La codificación: raíces y prospectiva – el Código Napoleón. Buenos Aires: Educa, 2003, p. 119). 48 Maria Barela e Roberta Montinaro indicam a ocorrência de três fases na escola francesa da exegése: (a) um período inicial que parte da promulgação do Code, até 1830, em que se destacam os trabalhos jurídicos de A. Proudhon (Traité des droits d’usufriut, d’usage d’habitation et de superficie, 1823-24), C. E. Delvincourt (Institutes de droit civil français, 1808) e C. B. Toullier (Le droit civil français suivant l’ordre du Code civil, 1811); (b) uma segunda fase, de 1830 a 1880, representativa do apogeu da escola exegética, marcada pela presença de grandes comentários ao Código Civil, no qual ganham destaque as obras de A. Duranton (Cours de droit civil français suivant le Code civil, 1825-46, em 21 volumes), J. C. Demolombe (Cours de Code Napoléon, 1845-76, em 31 volumes) e F. Laurent (Principes de droit civil, 1869-78, em 33 volumes); (c), por fim, uma etapa de declínio do pensamento exegético que chega até o fim do século XIX, em que se destacam as obras de T. Huc (Commentaire théorique et pratique de droit civil, 1892-1903, em 15 volumes) e G. Baudry-Lacantinerie (Précis de droit civil, 1882). (In: L’interpretazione del contratto nella scuola dell’exegesi, L’interpretazione dell contratto. Coord. Natalino Irti. Ceda, 2000, p. 2). 49 In: GAUDÊNCIO, Ana Margarida Simões. “O culto do texto da lei na Escola da Exegese: seu sentido e limites.” In: BFDUC, p. 697. 47 30 textual do contrato atua como garantia do respeito à vontade dos contratantes. Assim a fiel busca da vontade contratual é a marca do método exegético no plano dos contratos, e a literalidade se mostra em correlação direta com a intenção contratual50. Nesse contexto, como regra de interpretação, ainda prevalece o princípio ‘in: claris non fit interpretatio’, que dominou a interpretação jurídica na doutrina e na jurisprudência do final de oitocentos, sustentado pela busca de segurança e certeza jurídica, tanto em relação às partes como a terceiros que depositaram a sua confiança no documento contratual51. Ainda no âmbito dos contratos, não pode deixar de ser notado o perfil que lhe foi legado pela codificação napoleônica, sendo posicionado de maneira subordinada à propriedade, recebendo o tratamento de um dos modos de aquisição do domínio. Como destaca Enzo Roppo, o contrato assume “uma posição não autônoma, mas subordinada, servil, relativamente à propriedade, que se apresenta como instituto-base em torno do qual e em função do qual são ordenados todos os outros”52. Essa vinculação entre contrato e propriedade decorreu, inequivocamente, da associação existente entre a liberdade e a propriedade, que assumiam, na época, a condição de binômio indissociável. O posicionamento do contrato como forma de acesso à propriedade reafirma o ideário liberal e consagra a liberdade de contratar, criando um equilíbrio entre a classe mercantil em ascendência e a nobreza e o clero, em declínio. A consagração do ____________ 50 Nesse sentido, é o disposto no artigo 1156 do Código Civil Francês: “Dever-se-á nas convenções procurar qual foi a comum intenção das partes contratantes, e não se adstringir ao sentido literal dos termos” (“On doit dans lês conventions rechercher quelle a été la commune intention des parties contractantes, plutôt que de s’arrêter au sens littéral dês termes”). 51 O adágio ‘in: claris non fit interpretatio´ é carolosamente criticado pela doutrina atual, sendo taxado de contraditório e inadequado frente à hermenêutica contratual moderna, comprometida com os ditames sociais. Frederico de Lorenzo destaca que ‘la claridad del texto no es ‘presupuesto’, sino resultado de la interpretación”, e que este princípio “encierra, al mismo tiempo, una solución peligrosa y contradictoria: peligrosa, porque sustrae el texto – sobre el que se ha abierto una disputa hermenéutica entre las partes – al control del juez; contradictoria, porque en el momento mismo en el cual el juez afirma que la cláusula es clara, en rigor ya le adjudicó un sentido (al que considera inequívoco) y con ello cierra el proceso interpretativo, sin brindarle a las partes, o a aquella interesada, ocasión de probar lo contrario. De esta forma, lejos de cumplir con la seguridad prometida, termina por convertirse en una fuente de posibles y arbitrarias distorsiones del significado del acuerdo” (In: Disponível em: ). 52 In ROPPO, Enzo. O contrato, p. 42. Este autor explica: “Esta instrumentalidade do contrato relativamente à propriedade, relativamente aos modos de gestão e de utilização econômica dos bens, não se esgotava, por outro lado, no plano de um critério abstrato de coordenação-subordinação entre princípios ou institutos jurídicos, mas responde – já o referimos – a reais exigências que, concretamente, emergiam na peculiar situação económico-social da França pós-revolucionária. Simplificando um fenômeno histórico caracterizado por elementos de grande complexidade, pode bem dizer-se que entre 1789 e 1791 desenrolou-se em França um processo – essencial nas perspectivas de desenvolvimento de uma economia capitalista – de ‘libertação’ e mobilização da propriedade fundiária (então o mais importante dos recursos económicos, e Nesse sentido, a propriedade ‘tout court’): um processo relativamente ao qual o contrato, ou melhor, a disciplina do contrato vasado no código desempenhou um papel de grande relevo” (p. 44). 31 consenso como responsável único pela criação dos vínculos jurídicos vinha ao encontro das aspirações da ordem burguesa e permitia o entabulamento de negociações com os detentores dos recursos imobiliários (proprietários) e, ao mesmo tempo, serve de proteção a estes, que ganharam a garantia de não serem privados dos seus bens contra a sua vontade. Assim, em síntese, o Código Civil Francês serviu como instrumento de concretização das aspirações do ideal burguês e do modelo liberal a ele inerente. 1.1.2 O BGB e a Pandectística germânica: a teoria do negócio jurídico e o dogma da vontade Promulgado quase cem anos após o Código Napoleônico, o Código Civil Alemão de 1896 (BGB) também assumiu o status de grande expoente da codificação do século XIX, espalhando a sua influência sobre diversas codificações que lhe seguiram no tempo53. No plano da teoria dos contratos o BGB, apesar de apresentar pontos de nítida distinção em relação à Codificação Civil francesa, manteve-se atrelado ao mesmo viés burguês, fundando o ato negocial na noção de liberdade, decorrente da pressuposição de igualdade formal entre os sujeitos contratantes. Fábio Andrade esclarece que o Código Civil alemão é uma legislação do liberalismo econômico, que não oferece solução aos grandes conflitos sociais que ameaçavam as instituições do Direito privado no final do século XIX, tendo como destinatários pessoas dispostas a empreender, carecedoras de ampla margem de liberdade e escassa proteção estatal54. Entretanto um aspecto especial chama a atenção em relação à pena do codificador tedesco, que é a construção de uma categoria geral de negócio jurídico, do qual o contrato é apenas o seu maior expoente. Tem-se, assim, nesta codificação, um processo de generalização ____________ Cláudia Lima Marques, ao traçar uma detalhada comparação entre a Codificação Civil germânica e o Código Civil brasileiro de 1916, teve a oportunidade de afirmar que: “o momento histórico e político semelhante os teria marcado de forma definitiva” e “ambos os códigos, ao fim, são criticados como codificações conservadoras, individualistas, científicas em excesso, e não suficientemente sociais, a fechar as portas do século XIX, sem abrir as do século XX” (In: “Cem anos de Código Civil Alemão: o BGB de 1896 e o Código Civil Brasileiro de 1916.” In: RT, v. 741, jul. 1997, p. 12-3). 54 In: ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da Codificação: crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 89-90). 53 32 e abstração que é levado ao extremo55. Por meio da elaboração da noção de negócio jurídico, como destaca Enzo Roppo, cria-se um conceito capaz de englobar em si uma série de fenômenos reais muito mais ampla do que a expressa no conceito de contrato56. Mas a noção de negócio jurídico não entra em dissonância com outros princípios do liberalismo econômico, ainda em ascendência. Carregada de forte dose racionalista, a formação da idéia de negócio jurídico baseia-se ainda na autonomia de vontade. É o negócio uma declaração de vontade dirigida a produzir certos efeitos jurídicos; no dizer de Judith Martins-Costa, essa noção de negócio jurídico, eminentemente técnica, serviu para respaldar uma liberdade contratual que se queria sem limites, vale dizer, sem entraves à circulação do crescente tráfico econômico 57 . Menos do que pela função econômica, o contrato é então valorizado mais como manifestação de autonomia dos sujeitos. Assim o negócio jurídico definiu-se de forma binária, como ato de vontade que visa produzir determinados e selecionados efeitos jurídicos, e como preceito, ou seja, funcionando como norma concreta58. Dessa forma, no compasso do pensamento liberal, o BGB, à semelhança do Code, ____________ Nesse aspecto centraliza-se a crítica lavrada por Los Mozos: “efectivamente, la soberbia arquitectura dogmática del negócio jurídico se resinte de colosalismo, como tantas otras construcciones de la llamada ‘jurisprudencia conceptual’, padecendo de forma típica y sintomática sus clásicos defectos: abstraccion y generalización. Abstración porque la vida social se resuelve en particulares y concretos negocios, socialmente tipicos, generalmente, y generalización porque el proceso de formación histórica de la categoria general del contrato que lentamente se há ido desenrrollando a lo longo del Derecho común europeo sobre la base de usus modernus pandectorum se extiende dogmaticamente a toda la clase de actos o negocios, contrastando la fuerte antinomia entre los dos sean actos de autonomia privada e inquietando tambén su extensión, por una parte, otros actos unilaterales, por una parte, a otros actos unilaterales, como la promesa o como cualquiera aceptación o renuncia, a outra manifestación de voluntad (dirigida al juez o al funcionario de Registro fundiario, por ejemplo) y, por outra, incluyendo aquelos otros de indole bilateral que carecen de contenido patrimonial (actos relativos al estado de la persona y de la família, etc.), por el solo hecho de que unos y otros configuran una ‘declaración de voluntad’. Com lo que al hacer de todo ello una construcción dogmática ésta resulta, en parte, artificial” (In: El negocio jurídico. Madri: Montecorvo, 1987, p. 23). 56 In: ROPPO, Enzo. O contrato, p. 48. Este autor explica: “não só compras e vendas, locações, depósitos, mútuos e assim por diante, mas também, por exemplo, matrimônios, adopções, reconhecimento de filhos naturais, constituição de entidades de beneficência, testamentos: Nesse sentido,, o negócio é uma categoria mais geral”. 57 In: MARTINS-COSTA, Judith. A noção de contrato na história dos pactos. Uma vida dedicada ao Direito. Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, p. 503. 58 Cláudia Lima Marques observa: “a doutrina brasileira, porém, tende a utilizar o conceito germânico de negócio jurídico, classificando os atos jurídicos conforme o poder formativo e definidor (Gestaltungskraft) da declaração de vontade presente neste ato, classificando-os em ‘ato jurídico stricto sensu, ato-fato, negócio jurídico, etc’. A inspiração da doutrina alemã do século XIX e do próprio BGB é aqui inegável. A influência da ciência jurídica alemã e do BGB na literatura atual brasileira é até hoje decisiva, no que se pode chamar de um novo germanismo” (In: “Cem anos de Código Civil Alemão: o BGB de 1896 e o Código Civil Brasileiro de 1916.” In: RT, p. 29-30). 55 33 mantém o dogma da vontade59. Entretanto, como observa Hans Hattenhauer, o ideal de liberdade, que na doutrina jusnaturalista assumiu o status de enunciado programático, no contexto da pandectística, passa a ser um instrumento técnico de administração da justiça60. 1.2 O INDIVIDUALISMO NA TEORIA DOS CONTRATOS: O MODELO LIBERAL DE CONTRATAÇÃO O individualismo61 marcante desse período, entendido como o sistema em que a liberdade individual se concebe e regula como fim em si mesma, fora de qualquer subordinação aos interesses dos grupos sociais62, deixa transparecer o projeto de manutenção do status quo alcançado anteriormente pela concretização dos ideais filosóficos e econômicos ____________ Enzo Roppo examina essa valoração exagerada da vontade:“tão exacerbada que desemboca numa verdadeira e própria ‘mística da vontade’ ou que se cristaliza na rigidez de um ‘dogma da vontade’, esta posição do princípio vem refletir-se no modo como é construída a disciplina concreta dos negócios jurídicos, determinando uma série de regras (em matéria de erro, de dolo, de coação, de simulação, etc.) destinadas a tutelar, do modo mais intransigente, a ‘liberdade’ e a ‘expontaneidade’ do querer de quem realiza o negócio e a desobrigá-lo do veículo negocial, sempre que sua vontade resulte de qualquer modo perturbadora” (In: O contrato, p. 49-50). 60 In: HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del Derecho Civil. Traduzido por Gonzalo Hernández. Barcelona: Ariel S. A., 1987, p. 70. O autor explica ainda que: “si la declaración de voluntad era ‘el negocio jurídico’ mas importante, no existia negocio jurídico sin declaración de voluntad, por lo que éstas se convertieron en simple material para la construcción de negocios jurídicos. Pero también el negocio jurídico era un mero instrumento, valendose del cual se podían originar relaciones jurídicas” e que: “situar la doctrina de la voluntad de la persona, creadora de derechos, como ege de la teoria del negocio jurídico, conlleva un cambio trascedental. La voluntas deja de ser soberana, puesto que su validez no descansa ya en que la persona la exteriorice como valor ético anterior a todo derecho. La razón de validez de la declaración de voluntad se basa entonces en el ‘ordenamiento jurídico’. Es la sociedad civil constituida en el seno del Estado la que presta fuerza legal a la voluntad de los copartícipes del Derecho” (p. 70). 61 Maria Celina Bodin de Moraes ensina que “o uso, em sentido favorável, da expressão ‘individualismo’ bem como a elaboração do seu coneteúdo foram cunhados na modernidade, coincidindo o novo significado com a generalizada aceitação, no pensamento político da primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado. Atribui-se a Tocqueville a paternidade do termo, completamente desconhecido dos nossos antepassados, pela boa razão de que, em seus dias, cada indivíduo pertencia necessariamente a um grupo” (In: “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, v. 779, set. 2000, p. 47). 62 Conforme AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “Individualismo e universalismo do Direito Civil Brasileiro. Permanência ou superação de paradigmas romanos?”, p. 69. In: RDCI, v. 71, RT, São Paulo, junmar. 1995, p. 76. Segundo este autor, “o individualismo é a tendência que confere ao indivíduo um valor intrínseco superior ao da sociedade. Termo de variados significados, conforme o campo de apreciação científica (ética, filosófica, sociológica, política, etc.) representa, para o direito, a concepção segundo a qual o indivíduo humano e seus interesses constituem o valor básico e o fundamento de todas as normas, acima de sua vinculação à sociedade a que pertence” (p. 73). 59 34 resultantes da Revolução Francesa, em especial pela classe burguesa ascendente63. Conforme afirma Maria Celina Bodin de Moraes, o Estado Liberal apostou no reconhecimento da capacidade individual, considerando sua liberdade de escolher suas próprias metas, seus objetivos, assumindo sozinho o risco do sucesso e do fracasso 64. Assim a estrutura legislativa da época acabava por criar uma espécie de capa protetora do indivíduo para a conservação de seus valores pessoais – liberdade de contratar, proteção à propriedade privada, manutenção dos postulados do Direito sucessório. Esta atitude criava uma atmosfera de segurança, que envolvia o indivíduo – e o protegia – em todas as suas relações sociais. Era a experiência de um mundo da segurança, acalentado e reverenciado, que dava sustento à manutenção, também no campo do Direito, da segurança jurídica. No aspecto econômico, a ideologia individualista tornou-se, no dizer de Mariana Santiago, a pedra angular do regime capitalista de produção, justificando o liberalismo65. Assim, Nesse contexto, torna-se inconcebível qualquer intervenção estatal no âmbito econômico, ambiente propício para o exercício da individualidade, em que o contrato é elevado à condição de instrumento que, por excelência, possibilita a vinculação das riquezes. É sobre o manto do individualismo que se atribui a cada sujeito de direito a capacidade de escolha sobre querer ou não se obrigar. Dessa forma, como ensina John Gilissen, a cultura do ____________ Nas palavras de Francisco Amaral, “o individualismo é a doutrina segundo a qual se concede à pessoa humana como primado, uma supervalorização relativamente à sociedade. O individualismo como fonte e causa final de todo o direito” (In: “A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional”, p. 36. In: BFDC, v. II, número especial em Homenagem ao Prof. Doutor Ferrer Correia, 1989, p.19). 64 In: MORAES, Maria Celina Bodin. “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 52. A autora, citando Gustav Radbruch, explica que “este indivíduo do modelo liberal era o homem prudente, alerta e interessado, a quem o Estado pode (e deve) deixar em paz, porque se deu ‘inteligente egoísmo’ cabe esperar a utilização mais proveitosa”, e conclui: “assim é que as numerosas descobertas científicas da época exaltam o espírito e o engenho do homem individual” (p. 52-3). 65 In: SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato. Curitiba: Juruá, 2005, p. 28. Como ensina Francisco Amaral , existe uma perspectiva histórica que auxilia na compreensão do liberalismo, que antecede ao seu momento áureo alcançado no período liberal. Há diversas fases que lhe antecedem: “a primeira é contemporânea ao surgimento do cristianismo. A igreja dos primeiros séculos consagrou a centralidade e o valor infinito do homem, baseada no pensamento filosófico grego”; “a segunda é a da afirmação do indivíduo em relação à política e ao Estado no quadro ideológico que se forma a partir do século XIII. O ponto de partida é São Tomás de Aquino, que combina a revolução cristã como pensamento aristotélico”; “uma terceira fase é a do humanismo, que exalta o homem natural em oposição ao divino e ao extraterreno, homem esse formado de corpo e alma e destinado a viver no mundo e a dominá-lo. Volta-se à cultura clássica (humanistas, paidéia) e a literatura do tempo centraliza-se na pessoa humana, como se vê nas obras de Montaigne, Descartes e Pascal, que trabalham sobre ‘a intuição subjetiva e estritamente individual’, chega-se ao nominalismo de Guilherme D’occan (1285-1349), que fixa a noção de indivíduo, como ser único e irredutível, às bases do pensamento moderno, atomístico. Com ele começa a esboçar-se a noção de direito subjetivo (subjectum iuris) como atributo à vantagem de um sujeito. Em seguida Hobbes (158-1679), fundador da moderna filosofica individualista do direito, adepto do nominalismo, considera o estado de natureza, em que os indivíduos são livres, ponto de partida para a criação da política e do direito, como instrumentos da convivência e da ordem social” (p. 74). 63 35 individualismo suplanta a concepção comunitária de direito, presente na Idade Média, de forma que as comunidades clânicas, aldeãs ou mesmo familiares desaparecem quase que inteiramente66. No plano do Direito Civil, as repercussões do culto ao individualismo foram de considerável importância, na medida em que contribuiu decisivamente para o desenvolvimento e aplicação do direito geral e igualitário67. Assim implanta-se a subjetividade jurídica, que vê no indivíduo causa e razão de ser do Direito, atribuindo-lhe autonomia de agir e reconhecendo-o como um ser livre e igual, sem vínculos sociais e responsável por si mesmo. O jurista português Souza Ribeiro aponta que essa concepção individualizante está na base do nivelamento de todo o espaço da autonomia privada, atribuindo à liberdade contratual o mesmo sentido de ‘auto-soberania’ que caracterizava as liberdades individualmente exercitáveis, deixando de lado qualquer preocupação com a sociabilidade do fenômeno contratual68. ____________ 66 In: GILISSEN, Jhon. Introdução histórica ao Direito, p. 736-7. O autor explica: “a Idade Média não reconhecia o primado da vontade individual; esta não era então respeitável senão nos limites da fé, da moral e do bem comum. Os interesses da comunidade familiar, religiosa ou económica ultrapassam os indivíduos que a compõem. O individualismo não triunfa, senão no séc. XVI, ainda que certos pensadores como Duns Scot (1308) e G. de Occam tenham defendido a idéia de que vontade comanda o intelecto, que ela constitui a causa de seu acto. O Humanismo, combatendo a escolástica, insistirá no homem enquanto individualidade própria, sobre a sua liberdade intelectual e sobre a sua vontade livre” (p. 737). 67 Nesse sentido, é a lição de AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil, p. 112. 68 In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999, p. 57-8 Nas palavras deste autor: “de acordo com o princípio individualístico, não há utilidade colectiva que não constitua a soma das utilidades individuais” (p. 29). 36 1.3 A AUTONOMIA DE VONTADE E A LIBERDADE CONTRATUAL NO MODELO LIBERAL O culto à autonomia de vontade69, como valor da mais alta relevância nas relações sociais, foi a marca maior do período liberal, num nítido intuido de superação do marco ideológico que sustentou o sistema feudal, com seus ideais de domínio e subordinação, que acabaram por inviabilizar a formação de uma teoria adequada sobre a figura do sujeito de direito. O iluminismo levantou a bandeira da emancipação e promoção do indivíduo, como sujeito, senhor de seu destino, dono de sua liberdade e livre para se apropriar de bens. No dizer de Enzo Roppo, a autonomia significa o poder de modelar por si, sem imposição externa, as regras de sua própria conduta70. Somente esse novo contexto possibilitaria a alimentação do tráfego jurídico-econômico. Como referido anteriormente, o reconhecimento da autonomia de vontade é conseqüência imediata de escolhas político-ideológicas, de forte matiz filosófico, inspirado no idealismo kantiano71. A vontade livre seria aquela destinada a representar um agir de acordo com a razão, num caráter moral. Entretanto, enquanto na vertente filosófica tal concepção ocorre de maneira aleatória em relação à realidade e causas determinantes do mundo sensível, na visão clássica a autonomia de vontade seria orientada pelas determinações subjetivas de interesses de cada sujeito de direito. As noções universais de moral e razão são substituídas pelo utilitarismo, potencializando uma soberania do interesse pessoal. Essa situação propicia ____________ 69 A automonia de vontade e a autodeterminação são conceitos que em muito se aproximam e que, portanto, devem ser precisamente limitados, afim de possibilitar-se uma maior clareza de linguagem. De início, cabe frisar que, apesar de muitas vezes atuarem de forma correlata, tais expressões não devem ser tomadas como sinônimos. Nas precisas palavras de Souza Ribeiro, a autonomia privada representa “um processo de ordenação que faculta a livre constituição e modelação de relações jurídicas pelos sujeitos que nelas participam” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 21), tendo assim uma nítida conotação de viés jurídico, nada mais indicando que uma técnica que se opõe à heteronomia. Já a autodeterminação coloca-se num plano pré-jurídico, podendo ser considerada como o “poder de cada indivíduo gerir livremente a sua esfera de interesses, orientado a sua vida de acordo com as suas preferências” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 22), assumindo, assim, uma perspectiva mais ampla, num nítido revestimento valorativo e ligado à pessoa humana, como expressão de sua dignidade e individualidade próprias. Entretanto não há como deixar de considerar a indiscreta conexão existente entre esses dois conceitos, num caráter instrumental. Note-se que termos autonomia de vontade e autonomia privada são, aqui, por opção, utilizados como sinônimos, embora considerável parte da doutrina tenha escolhido o primeiro como mais adequado para representar a atuação negocial. 70 In: ROPPO, Enzo. O contrato, p. 128. 71 Para Emanuel Kant, “o princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo, sim deste: que as máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal” (In: KANT, Emanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Traduzido por Lourival de Queiroz Henkel. Rio de Janeiro. Edições de Ouro, 1967, p. 109). 37 uma ruptura entre as idéias de ética moral e direito, no sentido original, e o “mundo da razão” encontra um sucedâneo no “mundo dos sentidos”, que é o mercado, onde o instrumento para a atuação é exatamente a vontade. Neste sentido, Souza Ribeiro explica que “a autonomia é ter poder de transacionar no mercado, é ter liberdade de os usufruir e alienar a bel-prazer, sem obstruções levantadas pelo ordenamento, mas também sem a obrigação de determinação da vontade pelos princípios da razão”, concluindo “considere a liberdade do liberalismo como duplamente negativa, constituindo uma esfera de ação livre, não só da intervenção estatal, mas também das exigências éticas”72. Nota-se, assim, um inequívoco apego do pensamento jurídico ao perfil filosófico-político da época. Dessa forma, no modelo de Estado Liberal, o princípio da autonomia da vontade alcança o seu ponto máximo73, pois a opção pela separação estanque entre Estado e Sociedade acabou por facultar aos indivíduos uma ampla possibilidade de auto-regulamentação de seus interesses, livres dos ditames normativos estatais. A lei desempenha, portanto, papel secundário de instrumento de proteção dos ‘efeitos naturais’ dos contratos74. Como afirma Thiago Sombra, ao Estado Liberal competia tão somente assegurar a tutela da vontade ____________ 72 In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 27. Este autor reitera a afirmação, explicando: “relembre-se que, para Kant, pelo contrário, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom” e que “a moralidade imanente ao conceito idealista de autonomia é riscada a favor da autonomia privada, ou seja, o poder de determinar conseqüências jurídicas e, designadamente, de dispor livremente de seus bens, através de um acto preceptivo de vontade própria. E se continua a falar-se, com propósitos de fundamentação ou de sintética indicação de regime, do dogma ou da ‘autonomia de vontade’, a locução perdeu toda a ressonância kantiana”. 73 O jurista argentino Mosset Iturraspe, ao analisar esse importante período da história dos contratos, põe em destaque o pensamento então vigente: “de la voluntad libre todo proviene, a la voluntad libre todo conduce” e “el Derecho no tiene porque preocuparse ni del valor moral del fin perseguido por las partes ni de la repercución social del acto. El Derecho es la autonomia del ser humano”. La Frustración del Contrato. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1991, p. 34. O autor acrescenta que, “para la doctrina de la autonomia de la voluntad, el concepto superior de justicia y las consideraciones de solidariedad social son irrelevantes. El principio de la autonomia de la voluntad se basta a si mismo. En lugar de exigir una justificación, el sirve para justificar los demás princípios jurídicos”. 74 Segundo Claudia Lima Marques, “é a época do liberalismo na economia e do chamado voluntarismo no Direito. A função das leis referente a contratos era, portanto, somente a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelos contratantes. A tutela jurídica limitar-se-ia a possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas relações jurídicas próprias, assegurando uma teórica autonomia, igualdade e liberdade no momento de contratar, e desconsiderando por completo a situação econômica e social dos contratantes. Na concepção clássica, portanto, as regras contratuais deveriam compor um quadro de normas supletivas, meramente interpretativas, para permitir e assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos, assim como a liberdade contratual” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 52). 38 criadora das partes, bem como conferir guarida aos efeitos jurídicos por elas desejados, sem a pretensão de investigar a real situação econômica e social dos contratantes75. Assim o modelo contratual clássico acabou por encontrar sustento em um pilar estruturado sobre três princípios fundamentais da teoria tutelativa do consensualismo: a autonomia de vontade, em muito expressa por meio da liberdade de contratar, e a liberdade contratual76, o dogma da força obrigatória do vínculo, consolidado no culto cego ao pacta sunt servanda e o postulado da relatividade dos efeitos do pacto. Tais princípios se encarregaram da tarefa de dar conforto ao pensamento clássico e, ao mesmo tempo, garantir o seu percurso em um caminho seguro e sólido, fundado nas próprias aspirações que consolidaram a estrutura liberal. Nesse contexto, vigoravam as máximas ´Qui dit contractuel, dit juste’ e ‘tout contrat libre est un contract juste’. O historiador John Gilissen lembra que esta é a idade de ouro da liberdade absoluta das convenções entre vendedores e compradores, patrões e operários, senhorios e inquilinos, com a conseqüência da obrigação de as executar, mesmo se elas se revelassem injustas, socialmente graves ou perigosas, pois, como referido anteriormente, vigorava o entendimento de que todo compromisso livremente querido era justo77. É certo que a importância da disseminação desses princípios para a sedimentação e legitimação dos ideais contratuais foram tão incisivos que acabaram por se confundir com a própria essência do pensamento contratual, justapondo-se a este de forma definitiva e, mesmo ____________ 75 In: SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2004, p. 50. Segundo este autor, “seguindo este desate, o contrato consubstancia, no período da vigência do liberalismo, o instrumento jurídico de canalização da autonomia privada e atuação/concretização e tutela/defesa de interesses privados. Em verdade, a teoria dos contratos – assim como a proteção da propriedade - funciona como verdadeiro barômetro da realidade social, o que significa reconhecer que os contratantes refletem de forma inequívoca a prevalência de determinada corrente ideológica no seio da sociedade” (p. 50). 76 Na lição de Soto Coaguila,“la liberdad de contratar es el derecho o faculdad que el ordenamiento juridico reconece a los particulares para que puedan contratar o no. En cambio, la liberdad contractual es la potestad que permite a las partes determinar livremente la forma (siempre que no sea as solemnitaten y bajo sanción de nulidad del contrato) y el contenido del contrato; es dicir, la configuración y la normativa de la relación jurídica contractual que están creando” (In: “La contratación masiva y la crisis del contrato: a proposito del proyecto del Codigo Civil argentino de 1998.” In: LL, T. 1999-C, p. 1190-1). 77 In: GILISSEN, Jhon. Introdução histórica ao Direito, p. 738-9. Nesse sentido, é a lição, na literatura jurídica pátria, de Darcy Bessone: “segundo a doutrina clássica, o contrato é sempre justo, porque, se foi querido pelas partes, resultou de livre apreciação dos respectivos interesses da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes. Teoricamente, o equilíbrio das prestações é de presumir-se, pois sendo justo o contrato, segue-se que aos contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por consideração de ordem pública e pelos bons costumes” (In: Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 25). 39 após o saturamento deste modelo, as suas marcas permanecem, de forma indelével, em qualquer abordagem sobre contratos78. Assim ainda considerados, mas fortemente relativizados, os três postulados do modelo contratual clássico continuam a se fazer sentir em várias passagens da nova legislação civil, em especial pela conservação do paradigma contratual fundado na teoria pandectística do negócio jurídico. A liberdade contratual, como expressão máxima da autonomia de vontade, ainda representa a consagração do ideário iluminista79, dando ao sujeito possibilidade de traçar os ____________ Rubén S. Stiglitz aponta os efeitos ainda hoje sensíveis na sistemática contratual expressa nos códigos civis: “ el voluntarismo se evidencia en los efectos relativos del contrato, que en principio se limitan a los contrayentes, con la explicación de que no es concebible entender que las consecuencias de un acuerdo pueden perjudicar ni aprovechar a terceros, ni ser oponibles por éstos, por la sencilla razón de que quienes han permanecido ajenos al contrato, no pueden sufrir ni gozar los efectos de los derechos no queridos. Al consentimiento se lo eleva a elemento estructural del contrato, no sólo porque requiere de la voluntad de cada parte, sino porque se forma con el acuerdo de las voluntades de todas. Y la voluntad adquiere relevancia en relación al lugar y momento en que se expresa, pues el tema cobre trascendencia para la determinación del consentimiento en los contratos entre ausentes. El objeto del contrato, la operación jurídico-económica, es el que las partes voluntariamente seleccionan. La causa del contrato, el resultado práctico esperado por cada una de las partes, es el móvel que voluntariamente las impulsiona a contratar. Los vicios del consentimiento se referien a os vicios de la voluntad contractual. Las disposiciones imperativas dictadas la han sido con la finalidad de proteger la voluntad. La interpretación del contrato partirá de la indagación de la voluntad real o psicológica. Como se advierte, el voluntarismo, en la concepción individualista ha dejado resquicio. La voluntad se afirma desde las tratativas precontractuales hasta el agotamiento del contrato por cumplimiento. Consecuencia de lo expuesto es que el contrato asume condición de principal fuente de las obligaciones. Las restantes aparecen con una escasa regulación.” (In: Autonomía de la voluntad y revisión del contrato, p. 23-4). Cláudia Lima Marques, ao tecer comparações entre o Código Civil atual e o estatuto consumerista, aponta: “O sistema do Código Civil unificado de 2002 coaduna-se mais com a modernidade e a individualidade (agora com uma eticidade e sociedade mais claras)”, in: “Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do ‘diálogo das fontes’ no combate às cláusulas abusivas.” In: RDC, n. 45, jan-mar. 2003, p. 88. No mesmo sentido é a observação consignada por Louise Rolland, sobre o novo Código Civil de Quebec, ao afirmar: “el principio filosófico de la autonomia de la vontad, conjugado al liberalismo economico, han guiado las grandes codificaciones del siglo XIX. El Quebec no escapó a esta tendencia en momentos de la adopción de su primer Código Civil en 1866. Estos valores liberais continuán implícitos en el Código Civil de 1991. La liberdad contractual – fundada en el principio de ‘laissez faire, laissez passer’- continúa fijando las condiciones de fondo y de forma requeridas para admitir la validez de los contratos” (In: “El derecho contractual en el Código Civil del Québec. Sociedade e Direito no Québec e no Brasil.” In: PPGDir/UFRGS, Porto Alegre, 2003, p. 115). 79 É a liberdade contratual enfocada em conjugação com o racionalismo e a visão formal – limitada – que marcaram o Liberalismo. Como enfatiza Otero Parga, “la liberdad por tanto, se manifiesta como una situación personal de ausencia de ataduras que conlleva la faculdad o posibilidad de actuar de acuerdo con nuestra voluntad, asumiendo las responsabilidades que ello conlleva. Y por eso sólo actúa con liberdad, propriamente dicha, el ser racional. Porque sólo éste é capaz de valorar el alcance de suas actos y de decidir, en función de ello, el camino que quiere seguir. Y esa debe ser siempre una prerrogativa del hombre unida inescindiblemente a su natureza racional. Tal y como dicía Boecio al definir a la persona como ‘sustancia individual de natureza racional’” (In: “La liberdad: una cuestón de axiologia jurídica.” In: BFDUC, v. LXXV (1999), p. 179). 78 40 seus rumos negociais80. No dizer de Dieter Shwab, a doutrina do Direito Civil do século XIX entendia o princípio da liberdade contratual como elemento de uma ordem natural que o Estado tem o dever de deixar intocada, livre de sua intervenção81. Mantém-se a plástica autonomia da opção de contratar ou não, de escolher com quem contratar e, em especial, definir o conteúdo do pacto, de modo a melhor tutelar os seus interesses82. É o modelo do laissez-faire, laissez-passer, laissez-contracter. A teoria contratual clássica assentou-se, entretanto, em um sistema de liberdade formal, mostrando uma postura de indiferença em relação à existência de uma real disponibilidade por ambas as partes, de meios e condições para o efetivo exercício da liberdade no contexto da negociação contratual. Como enfatiza Souza Ribeiro, “a liberdade contratual estava, por certo, garantida a todos, mas apenas como instrumento jurídico, como oportunidade ou permissão de livre conformação de interesses, exercitável em variável medida, consoante as posições de poder relativo e efetivo detidas na esfera real-empírico”83. Esta aceitação generalizada no sentido de que o valor liberdade, cultuado e priorizado, era uno e comum a todos, se solidifica sobre o dogma da igualdade entre os indivíduos. Nesse contexto, a liberdade humana era um consectário do estado natural de ____________ 80 Conforme informa Cláudia Lima Marques, “para alguns autores alemães, os dogmas da autonomia de vontade e da liberdade contratual deveriam ter o mesmo nível e importância na caracterização da teoria tradicional do contrato. Evitando-se teorizar se o dogma da liberdade contratual teria sua origem na doutrina da autonomia da vontade ou não, preferem eles uma análise funcional da teoria contratual, destacando que o contrato é, para o liberalismo do século XIX, um dos mais importantes institutos jurídicos, pois instrumentaliza a movimentação de riquezas na sociedade. Para estes autores, a idéia de liberdade contratual preencheu três importantes funções à época do liberalismo, momento de maturação da concepção tradicional de contrato. De um lado permitia que os indivíduos agissem de maneira autônoma e livre no mercado, utilizando assim de maneira ‘optimal’ as potencialidades da economia, baseadas em um mercado livre, e criando, assim, outra importante figura: a livre concorrência. De outro lado, nesta economia livre e descentralizada, deveria ser assegurado a cada contratante a maior independência possível para se auto-obrigar nos limites que desejasse, ficando apenas adstrito à observância do princípio máximo: ‘pacta sunt servanda’. Koendgen destaca aqui que esta ampla liberdade de contratar pressupõe juridicamente a aceitação de que a obrigação assumida é limitada a determinado ato e em determinado espaço de tempo. Ganha assim importância para o direito o consenso, a vontade de indivíduo, o conteúdo e os limites desta vontade, interna ou declarada. A terceira função do dogma da liberdade contratual pode ser denominada como função ‘protetora’. Na visão liberal, o Estado deveria abster-se de qualquer intervenção nas relações entre os indivíduos” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 61). 81 In: SHWAB, Dieter. “Liberdade contratual e formação dos contratos ‘ex vi legis’.” In: RA, v. 39, p. 17. 82 Segundo Cláudia Lima Marques, a liberdade contratual significa: “a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o seu conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, conquanto sempre com proteção do direito” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 60). A autora, mais adiante, sintetiza a questão, ensinando que a combinação da autonomia da vontade com a liberdade contratual se reflete no princípio da liberdade de forma das convenções, o da livre estipulação das cláusulas e a possibilidade de criar novos tipos de contratos não tipificados nos códigos (p. 61). 83 In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 101. 41 igualdade em que viviam os indivíduos. Sob esse enfoque, a distinção entre igualdade formal e real, que se projetaria, respectivamente, nas noções de liberdade formal e material, não era posta em consideração 84. É claro que, entretanto, muitas foram as mudanças neste aspecto da autonomia individual, e, atualmente não são raros os limitadores a liberdade contratual, em especial nas relações de consumo e na prestação de serviços públicos, marcados pelo fornecimento massificado. A própria padronização das relações negociais, nascida na manjedoura da liberdade de mercado, delineia o mais intenso represamento da liberdade contratual. Houve a concientização de que o livre desenvolvimento da liberdade nos negócios nem sempre propiciava resultados justos para os contratantes nem, tampouco, garantia efeitos socialmente aceitáveis. Por outro lado, a força obrigatória dos pactos, como representante do racionalismo iluminista, mantém ainda a sua resistência, numa espécie de fortaleza imbatível, capaz de atravessar séculos sem se influenciar pela mudança social que o cerca85. Fundada no senso médio, a obrigatoriedade dos contratos ainda se conserva como um valor caro ao Direito, no seu apego a estruturas lógicas. É o reflexo do individualismo que, sob postulados racionalistas, rechaça a possibilidade de intervenção estatal para a revisão judicial do contrato, uma vez que o pacto é considerado como resultado de um acordo entre agentes iguais e livres, e que, portanto, somente poderia racionalmente ser modificado por força da combinação de ____________ 84 Nesse sentido, Hans Hattenhauer lembra que “mucho antes, Hugo Grotuis había advertido que para la conclusión de contratos era indispensable la igualdad entre los contraentes, igualdad que los juristas de los siglos XVIII e XIX veían en la igualdad ante la ley, pues no consideraban seriamente la posibilidad de que la desigualdad económica pudiera ser un peligro para la igualdad ante la ley y, en consecuencia, para la autonomia contratual. Se veía eliminada (tal posibilidad) porque, según la doctrina iusnaturalista, nadie podia desprenderse do ser liberdad, como un todo, en favor de outro” (In: Conceptos fundamentales del Derecho Civil, p. 69). 85 Em que pese a larga difusão no sentido de que a vinculação contratual seria um consectário do princípio da autonomia de vontade, tal premissa tem merecido a atenta análise crítica de parcela da doutrina atual, que trilha outro caminho no trato da questão. Partindo-se da verificação de que a aceitação de obrigatoriedade derivada da vinculação contratual faz prevalecer a vontade manifestada no passado frente à vontade presente, cai por terra a possibilidade de considerar-se a vontade como fundamento da obrigatoriedade dos contratos. Assim a vontade passa a ser vista apenas como um pressuposto para que se tenha nascimento da obrigação, mas não para a sua preservação. Antunes Varela, ao enfrentar o tema, sublinha que a razão da vinculação está no fato de a promessa livre de uma das partes criar expectativas justificadas junto a outras, tornando o acordo digno de tutela jurídica (In: VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 9. ed. Coimbra: Almedina, 1998. v. I, p. 246). Dessa forma, trata-se de segurança do tráfico e proteção da confiança. Na doutrina francesa, Jacques Ghestin fundamenta a força obrigatória do contrato em sua utilidade social e na sua conformidade à justiça contratual. (In: L’utile et le juste dans les contrats. Archives de Philosophie du Droit. Sirey, 1981. t. 26, p. 35). 42 vontade das próprias partes que celebram o contrato86. No mesmo sentido, a noção de justiça contratual é formal e salvaguardada a simples liberdade formal de manifestação de vontade contratual. Assim o individualismo jurídico, no contexto da teoria contratual, irá consagrar o ideário de ‘seguridade’ que sustentará a noção formal de justiça contratual. Essa intangibilidade do vínculo, entretanto, vem, aos poucos, perdendo a sua rigidez, mas num compasso lento e paulatino, fruto de uma troca ponderada entre os valores do racionalismo conservador e do racionalismo moderado, comprometido com valores sociais. A razão vai, aos poucos, mudando o seu rumo, da razão lógica para o racionalismo justo. A relatividade dos pactos, também legatária dos ideais iluministas, como fruto de uma concessão do individualismo avassalador, representa a pontuação da liberdade, que apenas amarra quem com ela se compromete. O pacto deve vincular apenas as partes, não prejudicando nem beneficiando terceiros - res inter alios acta tertio neque nocet prodest. Assim, se o pacto é fruto da vontade entabulada entre as partes, somente estas devem referência a ele, agora senhor com vontade e vida próprias87. Entretanto a doutrina francesa faz questão de diferenciar a relatividade dos efeitos contratuais da oponibilidade destes, que ocorre perante todos, resultando da mera existência do contrato88. A complexidade das relações negociais modernas pôs por terra essa concepção, mostrando que a relação negocial não pode ser vista de forma atômica, como um fenômeno isolado, mas sim deve manter um papel de comprometimento com toda a tessitura social que lhe serviu de berço e que agora cobra a sua retribuição. O contrato possui uma dinâmica tão forte que chega a lhe dar vida, seguindo rumos que muitas vezes fogem ao controle das partes que o criaram. Luis Díez Picazo e Antonio Gullon reforçam essa idéia, explicando: “mas lo cierto es que el contrato, una vez realizado, penetra en el mundo de la realidad jurídica y se instala en él. Como consecuencia de esta penetración y de esta instalación del contrato en el mundo de la realidad jurídica acontece que todo el comercio jurídico tiene que contar com los contratos ____________ 86 Segundo Cláudia Lima Marques, “a idéia de força obrigatória dos contratos significa que, uma vez manifestada a vontade, às partes estão obrigadas por um contrato, têm direitos e obrigações e não poderão se desvincular, a não ser através de outro acordo de vontade ou pelas figuras da força maior e do caso fortuito (acontecimentos fáticos externos e incontroláveis pela vontade do homem)” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 62-3). 87 O princípio da relatividade dos contratos encontrou conforto, em especial, nos postulados expressos nos artigos 1134 /1165 do Code (‘les convenciones légalement formées tiennent lieu de loi à ceux Qui les ont faites” e “les convenciones nónt d’effet quéntre les parties contractuantes”, respectivamente)”. 88 Sobre a distinção entre relatividade e oponibilidade dos efeitos do contrato destacam-se as obras de DUCLOS, José. L’opposabilité: essai d’une théorie générale. Paris: LGDJ, 1984, GOUTAL, Jean-Louis. Essai sur le principe de l’effet relatif du contrat. Paris: LGDJ, 1981 e GHESTIN, Jacques; FONTAINE, Marcel. Les effets du contrat à l’égard des tiers. Paris: LGDJ, 1992. 43 ya realizados. Los contratos que se van realizando contemplan y se basan en situaciones jurídicas creadas por otros contratos que se realizaron antes. El contrato, como fenónemo que se instala en el mundo de la realidad jurídica, no és jamás indiferente para los terceros”89. O desgaste do modelo econômico liberal fez nascer o welfare state, e, com ele, tem início, no plano das relações negociais privadas, uma nova fase, marcada pelo desempenho de um papel diferenciado pelo Estado, que deixa de caracterizar-se pela omissão, passando a assumir uma posição ativa nas relações contratuais. Surge o intervencionismo estatal nos contratos, rompendo a era do consensualismo. ____________ 89 In: DÍEZ-PICAZO, Luis, GULLON, Antonio. Sistema de Derecho Civil. Madri: Tecnos, 1989.v. II, p. 126. 44 2 O PARADIGMA DO ESTADO INTERVENCIONISTA E A MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS O advento do século XX trouxe uma série de modificações nas relações sociais, o que não tardou a se projetar no âmbito da ciência jurídica. A modernização dos meios de produção, o aparecimento de um novo sistema de intercâmbio de bens e serviços aliado ao crescimento da idéia de ‘mercado’ e ao início da massificação no tráfico negocial, impulsionada pelo aprimoramento das técnicas industriais, logo se fizeram sentir nas relações jurídicas, acarretando mudanças inevitáveis na práxis e na própria formulação técnica deste importante instrumento negocial que é o contrato90. O dirigismo contratual foi uma fase de considerável amadurecimento da teoria contratual, pois, num primeiro momento, chegou a representar uma resposta estatal para as situações em que os particulares não se mostraram capazes de conduzir a sua contratação de forma adequada91. É o reconhecimento do fracasso do consensualismo dos pactos92. Esse segundo paradigma contratual cria uma dobra histórica no instituto do contrato, que, de mero instrumento de definição e exercício de direitos, passa também a atuar como mecanismo de ____________ 90 Hans Hattenhauer explica:“la aparición del tráfico masivo en la sociedad industrial parecia forzar a una alienación del negocio jurídico. La demanda comercial y el hambre estatal de poder, propiciaron conjuntamente el definitivo hundimiento de la teoria del negocio jurídico, que, exteriormente, parecia seguir intacta, pero que fue sacrificada al naciente espíritu del siglo XX. Los mismos copartícipes del Derecho contribuírian a quebrar la fuerza configurativa soberana de la voluntad individual con el desarrollo de las ‘condiciones generales del negocio’. Pero, habrían de pasar décadas hasta que la ciencia jurídica se ateviera a prescindir abiertamente de la teoría de la declaración de voluntad” (In: HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del Derecho Civil, p. 73). 91 Essa questão é adequadamente pontuada por Souza Ribeiro, “ao fixar o âmbito da autonomia privada, o ordenamento tem que ter em conta se o poder jurídico assim reconhecido está ou não acompanhado pela suficiente autodeterminação dos titulares daquele poder. Quando assim não é, o processo de autoregulamentação não só perde o seu fundamento, como deixa de oferecer as garantias quanto a uma adequada conformação, em geral, das relações jurídico-privadas, pois um desequilíbrio significativo dos graus de autodeterminação dos sujeitos envolvidos reflete-se inevitavelmente na desprotecção dos interesses dos mesmos capazes da sua autotutela. Oferecer a autonomia privada a quem não pode exercê-la com sentido não é prestar um tributo à sua liberdade, mas antes deixar os seus legítimos interesses à mercê dos titulares dos interesses contrários” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 41). 92 Conforme afirma Gustavo Tepedino em referência ao século XIX: “o final do século passado assistiu aprofunda modificação na ordem de valores. Os movimentos sociais e filosóficos, assim como a evolução econômica serviram para desmistificar a crença igualitária da revolução francesa. Formou-se, pouco a pouco, uma casta de novos privilegiados, com o sistema de liberdade negocial instaurado, consolidando desigualdades não transponíveis espontaneamente e que se recrudesceram, pela constante afirmação da parte mais forte nas relações contratuais” (In: “A nova Propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição).” In: RF, v. 306, abr.-jun.1989, p. 74). 45 implementação de políticas econômicas93. Nesse dirigismo contratual, a vontade, como elemento irradiador de normas – que serviu de sustento à teoria contratual clássica – perde espaço para o crescente ‘Direito Contratual cogente’, que atua em nome da prevalência do interesse público. Como refere Ricardo Lorenzetti, enquanto a regulação privada expressa o que as partes querem fazer, a regulamentação estatal indica o que a coletividade pretende que elas façam94. Essa atuação do Direito-Estado pode ser identificada como ‘intervenção de proteção’ que tem por escopo o resguardo de uma das partes, garantindo a preservação do equilíbrio interno dos contratos; ou como ‘intervenção de direção’, como o comprometimento de realização de certos objetivos sócioe-conômicos. Como destaca Eros Roberto Grau, esta nova situação não propiciou apenas uma renovação conceitual quanto aos tradicionais institutos jurídicos, mas, sobretudo, uma nova maneira de interpretá-los, de forma que eles passam a ser vistos como instrumentos dinâmicos apresentados ao alcance dos fins últimos do interesse social, num movimento de revivificação do Direito95. O fenômeno do dirigismo contratual é protagonizado por duas figuras que irão dominar a cena negocial por um vasto período: o Estado intervencionista e a grande empresa. O primeiro, com a criação de normas cogentes a serem observadas em diversas espécies ____________ 93 Paulo Neto Lôbo, de maneira bastante perspicaz, observa: “a intervenção do Estado no contrato se processa historicamente desta forma: em uma primeira fase, tem uma função protectiva, favorecendo os economicamente mais fracos, adotando uma atitude de retaguarda. Intervém para estabelecer, pelos meios jurídicos, o equilíbrio. Em uma segunda fase, o Estado compõe-se a vanguarda, passando a determinar previamente as regras do jogo, de acordo não mais com os interesses dos particulares, mas com o interesse social. Agora não mais intervém: dirige. Dentro desse quadro, a tendência que se observa é a do contrato dirigido, regulamentado e fiscalizado pelo poder público” (In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. O contrato: exigências e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 25). 94 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, n. 14, RT, São Paulo, abr.-jun. 1995, p. 8. O autor complementa: “el Estado requiere un derecho privado, no un derecho de los particulares. Se trata de evitar que la autonomia privada imponga su valoraciones particulares a la sociedad; impedirle que invada territórios socialmente sensibles. Sobre todo, se intenta evitar la imposición a un grupo, de valores individuales que le son ajenos” (p. 9). 95 In: GRAU, Eros Roberto. “Dirigismo contratual (direito econômico).” In: Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 28, Saraiva, 1979, p. 411. 46 contratuais96; a segunda, num dirigismo privado, marcado pelos contratos-formulários e contratos de adesão, em grande parte relacionados a condições gerais de contratação. 2.1 O DIRIGISMO ESTATAL NO ÂMBITO NEGOCIAL: A INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DIREITO DOS CONTRATOS O dirigismo estatal na seara do Direito contratual é manifestação das modificações ideológicas que encerraram o apogeu do modelo liberal97. O Estado ausente, encolhido, teve as suas potencialidades saturadas, descerrando uma nova fase das políticas públicas, como um ente central forte e comprometido em patrocinar o desenvolvimento econômico e social por meio de drásticas inserções nas relações privadas. Essa realidade se faz sentir, inicialmente, em especial, nos sistemas estatais autoritários que afloram no continente europeu no século passado, no período das guerras mundiais98. Na Europa tal fenômeno inicia com a preocupação do Estado em intervir na economia na busca de evitar a ocorrência de expansão das desigualdades sociais, tomando ____________ De acorco com Ricardo Lorenzetti: “lo que se pretende com este orden público es proteger a una de las partes restableciendo el equilibrio contractual. Sus caracteristicas son: - Se constata que hay una deficiencia estructural en el mercado y se ayuda a corrigirla; - Lo que interesa son las situaciones de poder, y no la existencia de formularios prerredactados; - En este caso no se toma en cuenta a un contratante, sino a una clase de ellos; la regulamentación se aplica a los trabajadores, los adquirentes y locadores de vivendas, los asegurados, los transportados, y en general, los consumidores; - Se pretende asegurar igualdade no real, sino de oportunidades para que las partes puedan expresar su consentimento, suprimiendo las distancias económicosociales; - La intervención, como apunta a una deficiencia estructural del mercado, tiene vocación de permanencia. No es coyuntural o transitoria. No quiere dicir que sea inmutable, pero tiende a durar en el tiempo, En la realidade no es”. una intervención que distorsiona la autonomía, sino que la mejora permitiendo que los contratantes se expresen en pie de igualdad” (In: “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 14). 97 Paulo Neto Lôbo ensina: “o dirigismo contratual moderno poder ser entendido como forma jurídica de controle da liberdade contratual, por razões de ordem econômica e pública. É conseqüência da direção da economia que o Estado Moderno passa a exercer no século XX, intervindo nas relações obrigacionais privadas” e que “a Constituição de 1988 fornece-nos as balizas da ordem econômica e social. De seus princípios extraemse os fundamentos do equilíbrio entre liberdade contratual e dirigismo. Em vários artigos (e não só no capítulo da ordem econômica) a Constituição estabeleceu comandos, restrições e proibições com direta influência nas relações contratuais” (In: “Dirigismo contratual.” In: RDCI, n. 52, abr.-jun. 1990, p. 76). 98 Analisando este aspecto no sistema germânico, Hans Hattenhauer informa: “la doctrina de la autonomia privada resultaba sospechosa tanto para los socialistas de Weimar como para los de la época hitleriana. Según su teoría, los negocios jurídicos de los ciudadanos tenían libre el espacio que les cediera revocablemente el Estado previsor. La interminable economia de posguerra, como la nueva economia de guerra, sirvieron de justificación juridico-política para una economia de administración estatal y para la consecuente desvalozación de la teoria del negocio jurídico. Ya en 1935, en pleno rechazo de la teoría jurídica de la Ilustración, describía Karl Larenz (nacido en 1903) el contrato en su nueva estructura como (DeutschesRecht, 1935, p. 491) una relación jurídica integrada en el orden general de la nacíon, cuya configuración dependía en prima término de dicho orden y, solo después de la determinación de las partes interesadas” (In: HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del Derecho Civil, p. 74). 96 47 consciência da necessidade de dar atendimento aos interesses básicos da população mais carente. Assim, como explica Gustavo Tepedino, em países como a Inglaterra, França e Itália sentem-se a necessidade de uma radical alteração de perfil da atuação legislativa, no compasso do modelo do Welfare State, État Providence ou Stato del Benesse, concretizando um Estado assistencialista que não se limita a mediar as relações privadas e ditar as regras do jogo, passando a intervir incisivamente em busca de objetivos fundamentais de justiça social99. A manifestação mais eloqüente desse estilo de atuação estatal no âmbito particular é sentida na intervenção estatal nas relações contratuais100, num duro golpe limitador da autonomia de vontade e, conseqüentemente, na liberdade contratual101. Paulo Neto Lôbo ensina que o intervencionismo estatal nos contratos – dirigismo heterônomo – é decorrente da atuação das funções do Estado Moderno, ou seja, pode ser um dirigismo legislativo, judicial ou administrativo102. Dessa forma, percepção da inevitável desigualdade material em diversos setores da temática contratual fez com que o Estado refletisse sobre a necessidade de sua intervenção nas relações negociais entabuladas entre os particulares, passando a ter uma atuação dirigista dos ____________ In: TEPEDINO, Gustavo. “A nova Propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição).” In: RF, p. 74. O autor afirma ainda: “a meta da justiça retributiva, conquista da revolução francesa, dá lugar à justiça redistributiva, como acentuado intervencionismo estatal e dirigismo contratual que, no Brasil, é fartamente documentado a partir dos anos 30” (p. 74). 100 Paulo Neto Lôbo explica: “o Estado Liberal assegurou os ‘direitos do homem’ de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado Social foi impulsionado pelos movimentos populares que postularam muito mais que liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os ‘direitos do homem de segunda geração’, ou seja, os direitos sociais”, e complementa, afirmando que o maior golpe contra o modelo liberal de contrato “foi deferido quando entrou em cena os direitos de terceira geração, de natureza transindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassam os dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogêneos” (In: “Contrato e mudança social.” In: RT, v. 722, p. 42). 101 Conforme explica Lourival Vilanova, “a liberdade contratual é um dos aspectos da liberdade individual. E a liberdade é uma relação política, e uma relação de direito público. Não só uma relação interindividual. Por isso, importante para se medir a existência da liberdade é o ´quantum´ de estado vigente: se um mínimo de Estado, há máximo de liberdade; se o máximo de Estado, há mínimo de liberdade. O máximo de Estado exprime-se na redução do direito privado e na ampliação do direito público, no prevalecimento do social sobre o individual, no alargamento do Estado administrativo (que se dá no Estado agente de serviços crescentemente publicizados, no Estado interventor e no Estado dirigente – aspectos insistentemente sublinhados na teoria social e na teoria política contemporânea)”, in: VILANOVA, Lourival. In: Prefácio à obra de LÔBO, Paulo Luiz Neto. O contrato: exigências e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. IX. 102 Na visão do autor, a intervenção estatal legislativa nos contratos ocorre, em especial, pela criação de normas cogentes limitadoras da autonomia negocial das partes, o dirigismo judicial pela intervenção no conteúdo dos pactos, revisando-o ou declarando a nulidade de certas cláusulas ou condições, e a atuação administrativa pela ingerência da Administração Pública em certos setores da atividade econômica (In: “Dirigismo contratual.” In: RDCI, p. 69 e ss.). 99 48 contratos103, criando uma série de leis tutelativas da parte mais vulnerável, como ocorreu com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho, de normas protetivas dos locatários e dos promitentes-compradores de imóveis, e, em especial, em relação à defesa dos interesses dos consumidores104. É a fase do contrato ditado, programado ou regulamentado, com o intento de proteção da parte mais débil na relação negocial, de forma a preservar o equilíbrio do pacto. Entretanto, como observa Paulo Neto Lôbo, não se pode concluir que a causa do fenômeno do dirigismo contratual seja atribuída à proteção do economicamente débil. Esse autor enfatiza: “parece-nos que a causa maior está no predomínio do interesse individual, oriundo do processo de evolução do Estado. A contenção da parte contratual mais forte e a imposição heterônoma das regras do jogo contratual resultaram desse processo. A proteção do contratante débil não foi a causa, mas a conseqüência”105. Neste ambiente, o Estado assume o papel de promotor da efetiva igualdade contratual. Na expressão de Rubén S. Stiglitz, é o tempo dos 'atentados à liberdade contratual', com a multiplicação dos preceitos imperativos, reformulando-se a função das normas dispositivas e acabando por dilatar o direito necessário106. ____________ Segundo Paulo Neto Lôbo, o intervencionismo estatal nos contratos foi implementado com a utilização de uma tríplice ténica de limitação da liberdade contratual: “i – limitação da liberdade de escolha do outro contratante, sobretudo nos setores de fornecimento de serviços públicos (água, luz, telefone, transporte etc.), ou monopolizados; ii – limitação da liberdade de escolha do tipo contratual, quando a lei estabelece os tipos contratuais exclusivos em determinados setores, a exemplo dos contratos de licença de cessão, no âmbito do direito agrário; iii – limitação da liberdade de determinação do conteúdo do contrato, parcial ou totalmente, quando a lei define o que ele deve conter de forma cogente, como no exemplo do inquilino, dos contratos imobiliários, do contrato de turismo, do contrato de seguro” (In: “Contrato e mudança social.” In: RT, p. 43). 104 Carlos Alberto Bittar ensina que “a intervenção do Estado perfaz-se, no início, pelos denominados ‘corretivos sociais’- medidas destinadas a obviar ou minorar o desequilíbrio nas relações laborais – que se manifestam no plano da legislação social. Do campo trabalhista, previdenciário, assistencial e acidentário atingem-se outras atividades, algumas sobre a forma de monopólio, como a exploração do petróleo, minas, energia, telecomunicações, indústrias de base e outras; com o passar do tempo e com a mesma motivação, somam-se diferentes áreas à relação, dentre as quais, atualmente: transportes; seguros; mercado financeiro; mercado de capitais; investimento em certas regiões; preços de produtos industrializados; preços de produtos de agricultura; política agrária; comércio exterior, disciplina do capital estrangeiro; locação; mercado imobiliário, atividades de pesca, de turismo, de reflorestamento; propriedade industrial e direitos autorais, dentre outros campos. Assiste-se, pois, a uma crescente estatização, que vai ampliando o universo econômico sobre a sua égide, com o conseqüente sacrifício da iniciativa privada (In: “O dirigismo econômico e o Direito Contratual.” In: RIL, n. 66, abr-jun. 1989, p. 246). 105 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Dirigismo contratual.” In: RDCI, p. 66. Entretanto, em sentido contrário, Alinne Novais afirma: “percebemos que a intervenção do Estado social nas relações contratuais tem como fundamento a tutela do contratante hipossuficiente, para que este não seja, por sua posição de inferioridade, compelido a se submeter a situações e cláusulas abusivas que o coloquem em desvantagem exagerada. Para tanto, o Estado impõe a observância, para o contratante mais forte e poderoso, de certas regras de conduta, cuja desobediência acarreta sanções de diversas naturezas” (In: “Os novos paradigmas da teoria contratual: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da tutela do hipossuficiente.” In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 44/45). 106 In: STIGLITZ, Rubén S. Autonomía de la voluntad y revisión del contrato, p. 2. 103 49 2.1.1 O aumento das normas cogentes: a força estatal presente nas relações entre os particulares No Estado liberal, a cogência normativa, mormente no âmbito negocial privado, era mínima, pois a função basilar do Direito era a de suplementar a autonomia de vontade por meio da proliferação de normas jurídicas de caráter dispositivo. Na precisa lição de Pontes de Miranda, as normas jurídicas dispositivas tomam o lugar das manifestações de vontade que deveriam ter sido feitas num e noutro sentido, e não o foram107. Assim, nessa visão tradicional da autonomia da vontade, o atributo completante da lei se expressa ‘preenchendo os vazios’ que os interessados deixaram em sua regulamentação108. O advento do Estado predisposto a intervir nas relações firmadas entre os particulares modifica esse cenário, realizando a incrementação de normas jurídicas de caráter cogente, numa conseqüente redução do poder normativo advindo da autonomia de vontade negocial. Há uma considerável redução de importância das normas dispositivas ou supletivas típicas da tradição do Direito dos Contratos. Surgem novos critérios de valoração que desbancam o consensualismo, tais como o respeito a normas de ‘ordem pública’ e de ‘interesse social’, numa clara disputa entre as tendências liberais e sociais do Direito109. Nesse compasso, acaba por firma-se de forma definitiva um novo jaez para a temática da autonomia de vontades, com um nítido alargamento dos domínios de ordem pública e interesse social. Paulo Neto Lôbo enfatiza que a utilização predominante de normas ____________ 107 In: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Bookseller, 2000. t. II, p. 35. Conforme LÔBO, Paulo Luiz Neto. O contrato: exigências e concepções atuais, p. 53. Este autor complementa: “contudo, essas normas jurídicas nada sofrem se ficarem sem incidência, pois incidem somente nos casos em que falte alguma declaração ou manifestação de vontade. São, por isso, igualmente, técnica de autolimitação do ordenamento jurídico (lembre-se que a projeção jurídica do Estado liberal é de um Estado que se autolimita). Conseqüentemente, não limitantes da autonomia de vontade, em sua essência” e que “à medida que o Estado absorve maior componência de social, reduz-se o espaço de autonomia, amplia-se o espaço e heteronomia. E não há retorno nesse processo, como a história nô-lo ensina. Quanto mais interesse social, menos autonomia de vontade. O avanço de uma é a medida do recuo da outra. Em uma dimensão ideológica: é o reflexo da decadência do liberalismo, na razão inversa da expansão da ideologia social, característica das sociedades de massa” (p. 32). 109 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. O contrato: exigências e concepções atuais, p. 54. O autor explica: “a esse fenômeno muitos autores têm chamado de ‘conversão’ das normas jurídicas dispositivas em normas jurídicas cogentes. Na verdade, não se trata de simples conversão da dispositividade em cogência. As normas jurídicas dispositivas continuam a existir. O que houve foi a inversão de predominância. A cogência, que era mínima, no Estado liberal, cresceu, ampliou seu espaço, no Estado Social, passando a predominar. O processo de inversão da predominância não pode ser visto segundo uma perspectiva a-histórica de fases cíclicas do ordenamento jurídico, de fronteiras variáveis, como se fosse, para usar uma imagem biológica, um processo de sístole e diástole, erro em que incorrem muitos autores, como Estada. O problema é muito mais profundo e vai buscar fundamentos na própria transformação do Estado. A visão abstrata, universal e a-histórica que a maioria dos juristas cultiva leva a distorções desse jaez” (p. 54). 108 50 cogentes é uma das técnicas mais importantes de que o Estado Social se vale para disciplinar o contrato, limitando consideravelmente o espaço destinado ao exercício da autonomia entre os particulares110. Para implementar a intervenção pública nos contratos celebrados entre particulares, o Estado recorreu a diversas técnicas, dentre as quais, Orlando Gomes pôs em destaque os métodos da amputação e do enxerto111. Na primeira, as cláusulas previamente manifestadas pelo Estado como indesejadas, são excluídas do pacto, consideradas como não escritas, como ocorre em relação ao rol de cláusulas abusivas esculpido no artigo 51 da Legislação de Proteção do Consumidor. Pela técnica do enxerto, de maneira oposta, são incluídas, de forma forçada, determinadas regras contratuais, que passam a vigorar como se fossem fruto da legítima combinação de vontade das partes, que não poderão deixar de observá-las. A essas técnicas de intervenção estatal no âmbito da autonomia privada é possível ainda identificar a técnica dos contratos forçados, por meio da qual o Estado impõe a realização e/ou o conteúdo de determinados negócios jurídicos que entende relevantes para ao interesse social 112. 2.1.2 Reflexos do Dirigismo estatal na principiologia da concepção tradicional de contrato Como outrora ressaltado, a noção tradicional de contrato acabou por consagrar três postulados que lhe serviram de vetores de sustentação: o consensualismo, manifestado pela liberdade contratual e de contratar, a força obrigatória e a relatividade dos efeitos do vínculo contratual. ____________ 110 Esta tendência de normatização cogente no âmbito contratual chegou a alcançar a seara criminal, como ocorre na Lei dos crimes contra a economia popular (Lei nº 1.521/51), Lei antitruste (Lei nº 8.884/94), e no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), entre outras. 111 In: GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: RT, 1980, p. 24. 112 Como observa Hans Hattenhauer: “hizo su entrada en la teoría jurídica el concepto de ‘diktiertes Vertrag’ (contrato forzoso) de Nipperdey, que se correspondía con la realidad del Derecho nacional-socialista, en vista del creciente número de negocios jurídicos decretados y determinados por el Estado en su contenudo, y dado que, en la escala de valores, la voluntad individual quedaba por debajo de la estatal” (In: HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del Derecho Civil, p. 74). 51 Sendo o princípio cardeal da estrutura clássica do contrato, a autonomia da vontade é o principal alvo do dirigismo contratual, pois o Estado, de promotor dos valores individuais, passa à condição de guardião do interesse social. Há a tomada de consciência no sentido de que as partes contratantes nem sempre apresentam-se em um estado de perfeita igualdade de condições e forças, cabendo ao Estado intervir nas relações negociais para garantir uma proximidade maior possível de uma situação isonômica entre os contratantes, valor de relevância social e indispensável à noção de justiça contratual113. Assim, sobre a liberdade contratual e de contratar, passa a ter preponderância a noção de interesse público, em relação ao qual deve curvar-se a vontade individual. O Estado Social preocupa-se em especial com o bem-estar da coletividade e, como tal, propicia um contínuo alargamento na noção de ordem pública, inserindo, ao lado da tradicional referência à moral e aos bons costumes, o cunho econômico-social. O Estado Social passa a ditar normas imperativas nas mais variadas espécies contratuais, num claro balizamento à autonomia privada114, de forma que, na colisão entre o preceito da vontade e a norma legal imperativa, o ordenamento jurídico prefere esta, de forma que a autonomia da vontade vai adquirindo um papel residual, a favor da busca do verdadeiro equilíbrio contratual115. Assim, enquanto o Estado Liberal preconiza a livre estipulação das partes contratantes, reconhecendo a autonomia privada, o Estado Social funda-se na ____________ Nesse sentido, Soto Coaguila afirma: “sin embargo, las sociedades van siendo cada vez más complejas, al extremo de llegarse a un abuso de la autonomía privada de unos contratantes sobre otros, igualmente el debilitamiento de la concepción liberal e individualista cedió el paso a una corriente de contenido más social y humano. En este contexto, el Estado, titular de la potestad de regular las relaciones de los particulares, decidío intervenir para lograr la igualdad jurídica entre los contratantes y proteger a la parte más débil, por lo que no hizo otra cosa que reducir y limitar la autonomía privada” (In: “La contratación masiva y la crisis del contrato: a proposito del proyecto del Codigo Civil argentino de 1998.” In: LL, p. 1189). 114 Carlos Alberto Bittar, analisando essa intervenção estatal no âmbito da liberdade contratual e de contratar, explica: “a publicização de diferentes áreas antes reservadas à esfera privada, reduz, pois, o campo do referido princípio. Assim é que se multiplicam as proibições à contratação; estende-se o campo de nulidades; fixam-se os elementos para a constituição do contrato (como, por exemplo, nas normas ditadas para a proteção dos interesses minoritários nas sociedades anônimas), limitando o poder de disposição dos titulares, nos contratos de aquisição de controle de sociedade aberta, na imposição de oferta pública para a aquisição de ações, sob pena de nulidade, na exigência de intervenção da autoridade para a constituição de inúmeros contratos. É o que se chama de publicização do contrato” (In: “O dirigismo econômico e o Direito Contratual.” In: RIL, p. 249). 115 Rubéns S. Stiglitz observa:“las partes en sus negocios pueden reproducir las normas imperativas (el texto o su sentido), pero no pueden en virtud de sus preceptos contradecirlas, muy especialmente cuando en su observancia estén interesados el orden públicos y las buenas costumbres, nociones que participan de la naturaleza de las cláusulas abiertas o ‘válvulas’, que tienen por afinidad oxigenar el sistema positivo. Ciertos contratos típicos, como el de trabajo, el de locación urbana, el de seguros, etc., contienen predominantemente normas imperativas y, para ciertos supuestos, normas ‘relativamente imperativas’, que son aquellas en que el ordenamiento legal tolera que las partes, al autorregular sus intereses, antepongan a la norma jurídica, pero sólo para el caso de mejorar la posición contractual del débil” (In: Autonomía de la voluntad y revisión del contrato, p. 27). 113 52 valorização do interesse coletivo, sobrepondo-o ao individual, pois, como sintetiza Marta Vinagre, “não se pode mais conceber como absolutas as idéias liberais, porque a transformação socio-econômica, pela qual passa o Estado, foi profunda”116. Em todas as instâncias, o reconhecimento da submissão, fraqueza ou subordinação de uma parte ao outro contratante proporciona o que Dieter Scwab chamou de ‘apelo ao legislador’, no sentido de que este venha a proteger os direitos mínimos do contratante mais fraco, por meio da criação de normas cogentes que não podem ser afastadas ou modificadas pelos contratantes117. O excesso no dirigismo contratual ajudou a constituir a chamada ‘crise do contrato’, que, na dicção de Rui de Alarcão, significou o ‘declínio do contrato’ e o ‘decréscimo do poder contratual’, havendo quem chegasse a fazer referência à própria ‘morte do contrato’ 118. Como ensina este autor, tal situação resultou das ‘progressivas limitações à liberdade contratual, tanto a liberdade de constituição ou celebração do contrato, como a liberdade de conformação privado”119. de seu conteúdo, limitações estas impostas ou acentuadas pelo intervencionismo estatal e pelo movimento de ‘socialização e publicização do Direito 2.2 O DIRIGISMO PRIVADO NOS CONTRATOS: A MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES NEGOCIAIS E A ESTANDARDIZAÇÃO DOS CONTRATOS ____________ In: VINAGRE, Marta Maria. “A outra face do contrato.” In: RDCI, n. 44, abr-jun. 1988, p. 102. Dieter Shwab aponta três premissas para a fixação da limitação da liberdade de contratar: “(a) a liberdade de contratar somente pode ser mantida quando ocorre uma determinada limitação da sua atuação. Isto é comprovado pela legislação de controle de cartéis. (b) relativamente aos efeitos da liberdade de contratar sobre toda a sociedade, ela está sujeita a limites imanentes, a ordem jurídica precisa intervir sempre, quando há ameaça de danos sociais. (c) a liberdade de contratar pressupõe, como premissa preliminar e básica, que ambas as partes contratantes, por ocasião da negociação do contrato, são capazes de se autodeterminarem, e que possuem suficiente liberdade de decisão. Daí decorre, logicamente, que um contrato, em que uma das partes, por ocasião de sua celebração, não possui chance suficiente de afirmar e implementar seus interesses, não está coberto ou abrangido pelo princípio da liberdade de contratar” (In: “Liberdade contratual e formação dos contratos ‘ex vi legis’.” In: RA, p. 24). 117 In: SHWAB, Dieter. “Liberdade contratual e formação dos contratos ‘ex vi legis’.” In: RA, p. 27. O autor, entretanto, adverte: “é necessário ressaltar que a limitação da liberdade contratual através de normas cogentes não é, em absoluto, prática desconhecida dentro do conceito clássico liberal contido nos códigos civis” (p. 27). 118 Nesse sentido, GILMORE. Grant. The death of contract. 2. ed. Ohio State University Press, 1995. 119 In: ALARCÃO, Rui. “Contrato, Democracia e Direito.” In: RBDC, v. 20, Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, p. 3-4. 116 53 Um outro duro golpe na teoria contratual clássica, construída sobre o elemento vontade, é o fenômeno da massificação social, fruto da aceleração produtiva que marca o início da nova era da economia de mercado120. Enquanto o racionalismo iluminista e a era das codificações se mantiveram pegados à visão do contrato como forma de instrumentalização do consentido, o qual representaria o cerne de sua formulação, em que o pacto negocial representava a obra de dois parceiros que se vinculavam entre si em posição de igualdade, a onda avassaladora da massificação social trouxe uma série de mudanças radicais no perfil da teoria do contrato, que irão, pontualmente atuar na criação de fragilidades na tradicional co-relação contrato-vontade. Assim ocorrem mudanças perturbadoras na própria essência da teoria do contrato, comumente baseada no elemento vontade121. A hegemonia dos contratos paritários, cuidadosamente negociados pelas partes em todas as suas cláusulas, cede espaço a um novo método de contratação comprometido com a aceleração do processo de consumo, com a adoção de contratação em massa, com o uso de instrumentos contratuais padronizados ou estandardizados122. ____________ Conforme observa Judith Martins-Costa: “numerosos estudos têm versado, já há longos anos, a questão da massificação social e seus reflexos no campo do direito: a explosão demográfica, a expansão da classe média e seus acessos aos bens de consumo, ao menos nos países desenvolvidos – questões ligadas às novas formas de vida urbana, ao estágio atual do capitalismo, às linhas de força da economia mundial, aos padrões culturais vigentes nas áreas urbanizadas, são fatores que projetam eficácia em todas as províncias do direito. Nenhum de seus campos, contudo, parece ter sido mais afetado pela ‘estandardização’ social do que o direito das obrigações, em especial o direito dos contratos” (In: “Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro.” In: RDC, n. 03, São Paulo, 1992, p. 136). 121 Na doutrina Argentina, Ricardo Lorenzetti anota que “es conocido el fénomeno de la masividad de las relaciones jurídicas que dio origen a la contratación por adheisón a condiciones generales, a partir del fines de siglo XIX. Desde mediados del siglo XX surgieron numerosas modalidades en las que no hay diálogos ni discución, sino meros comportamientos objetivos: el transporte, el espetáculo, el juego, el shopping, son ejemplos claros de amplos setores donde el indivíduo actua guiado por símbolos, indicios, marcas, pero sin que exista verdaderamente una discusión de ningún tipo, y ni siquiera adhesión a condiciones predispuestas. A fines del siglo XX, la contratación electrónica aportó un amplio rango de cuestiones complejas: puede resultar muy difícil constatar que hay dicernimiento de quien maneja una computadora; puede ser imposible probar que hay error, dolo o violencia. Además, puede ocurrir que la declaración sea automáticamente elaborada por una computadora y que la”. presencia”. del sujeto sea solo mediata, al programar la computadora, pero no inmediata en el acto de celebración. Estas dificuldades existen en numerosos vínculos en los que se utilizan máquinas automáticas, módulos, formularios, electrónica, telemática, en los que se transforma agudamente el consentimiento (In: “La Nueva Teoría Contractual.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p. 812). 122 Como lembra Cláudia Lima Marques: “certo é que os fenômenos da predisposição de cláusulas e condições gerais dos contratos e do fechamento dos contratos de adesão tornam-se inerentes à sociedade industrializada moderna: em especial, nos contratos de seguros e de transportes já se observa a utilização dessas técnicas de contratação desde o século XIX. Hoje, elas dominam quase todos os setores da vida privada; é a maneira normal de concluir contratos onde há superioridade econômica ou técnica entre os contratantes, seja nos contratos entre empresas com seus clientes, seja com seus fornecedores, seja com seus assalariados” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 66). 120 54 Assim, enquanto o capitalismo do século XIX fundava-se na idéia de produção, na perspectiva weberiana, comprometido com os ideais da ética protestante, que tanto impulso trouxe a este sistema econômico, o fenômeno da massificação social trouxe uma nova etapa, marcada pelo consumo massificado123. Houve assim uma concretização das máximas marxistas no sentido de que “não é somente bens que a produção produz, mas também produz homens para consumir e as necessidades correspondentes”. É nas décadas de vinte e trinta, em especial nos Estados Unidos, que se verifica a alvorada do modelo de massificação social, de rápida difusão nos demais países desenvolvidos no período do pós-guerra. O espírito ávido desse modelo levou-o, de forma imbatível, até meados da década de 1980, quando às suas aparentes vantagens começaram a ser postas na balança. É a época auge do capitalismo de consumo, em que a preocupação econômica em dar vazão à latente crise de superprodução, que poderia levar ao colapso o sistema capitalista tradicional, encontrou no consumo massificado um novo ponto de equilíbrio. A criação de vias de fácil acesso ao consumo, somada à facilitação do crédito e à ordinarização das vendas a prazo, garantiram o sucesso desse modelo, novamente comprometido com a preservação do mercado. O capitalismo de produção é, então, sucedido pelo capitalismo de consumo. A objetivação do contrato por meio de relações massificadas, em especial por adesão a condições gerais de contratação, acompanhada pelo surgimento de novas técnicas contratuais – transportes, espetáculos, serviços essenciais – em que o diálogo é relegado a papel secundário e o pacto é movido por comportamentos, fez com que surgissem novas ____________ Na doutrina argentina, Guilermo A. Borba aponta a existência de quatro causas para a crise do modelo contratual clássico e o surgimento dos contratos de adesão: “Causas económicas: en razón de que la evolución del capitalismo há ocasionado la concentración de la riqueza en manos de unos cuantos que son los que deciden com quién contratan y cómo contratan. En este sentido, la libertad y la igualdad (supuestos básicos del contrato) sólo subsisten en el plano jurídico. Causas políticas: las que se presentan cuando el Estado interviene en el ámbito de los contratos por interés social o público. No olvidemos que en la postura individualista el contrato era intocable e irrevisable. No obstante, esta filosofía ha cedido el paso a una concepción social y humana del contrato (...). Causas de filosofía jurídica: en tanto se ha puesto en duda el poder jurígeno de la voluntad. Sin embargo, no se explica cómo los contratos siguen obligando. Pero cuando la voluntad que dio origen a la relación contractual ya no existe se debe recurrir a la idea de necesidad y la seguridad económicosocial. No se trata sólo de la voluntad, hay también una cuestión de interés general comprometido en el respeto de los contratos. Causas de orden moral: que hoy en día tienen una mayor sensibilidad, pues los contratos deben ser instrumentos de realización del bien común. Hay un tránsito de una moral individualista a una más social. Sin embargo, ello no quiere decir que los contratos no sean obligatorios entre las partes; por el contrario, deben respetarse y cumplirse, pero deben buscar la justicia y la equidad antes que lo deseado individualmente” (In: Tratado del Derecho Civil. Obligaciones II. 7. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 122 e ss.). 123 55 formulações na teoria dos contratos. Na doutrina italiana, Natalino Irti anuncia a existência de scambio senza accordo124. Um diálogo silencioso funda o acordo, no qual a troca de palavras muitas vezes se torna despicienda. Muitas das relações negociais são dominadas por símbolos ou imagens, e o pacto acaba por se aperfeiçoar por meio de justaposições de decisões unilaterais. Como enfatiza Ricardo Lorenzetti, ocorre a perda de relevância da singularidade da vontade e predomina, então, o ato repetitivo e uniforme125. Assim a massificação das relações contratuais gerou, e ainda gera, um fenômeno que ficou conhecido como a ‘desumanização dos contratos’126, que pode ser notada nas aquisições realizadas em centros comerciais, em máquinas automatizadas, por contratos padronizados ou formulários, via meios televisivos ou telemarketing ou em ambiente virtuais127. Nessas situações, questiona-se da manutenção da própria natureza contratual da relação de troca, face à ausência de uma verdadeira operação que potencialize o elemento acordo. 2.2.1 A importância da grande empresa no desempenho do dirigismo contratual Num sistema que cultiva a economia de mercado e contenta-se com a vigência de um sistema de liberdade formal, a heterogeneidade dos sujeitos participantes das relações contratuais ganha especial importância. A presença da empresa nas relações contratuais exibe um panorama onde a disparidade dos sujeitos operantes no mercado é o tom dominante desse cenário de disparidades. O predomínio das organizações empresariais no ‘jogo de poder’ do mercado128 propicia que esses entes passem a impor, de maneira incisiva, o predomínio de ____________ In: IRTI, Natalino. “Scambio senza accordo.” In: RDCiv, n. 5, 1998, p. 525. In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “La Nueva Teoría Contractual.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 813. 126 Expressão utilizada por OPPO, Giorgio. “La disumanizzazione del contratto?” In: RDCiv, v. 45, n. 05, p. 525. 127 Como observa Cláudia Lima Marques, “a doutrina européia atual, analisando o uso de máquinas, da televisão e dos meios telemáticos, denuncia que muitos contratos de massa são feitos ‘em silêncio’ ou ‘sem diálogo’, por coisas, imagens de coisas, palavras ditadas, pré-escritas e outros símbolos visualizados em meios não perenes e virtuais; os atos existenciais, sem real dialética, pela não-presença do outro, pela representação do outro através de máquinas e prepostos sem poder, por atos, imagens, números, cartões, senhas, visões, toques e clicks deste homem atual, que denominam, ironicamente, não mais ‘homo loquens’, dada a perda de importância da palavra e sim ‘homo videns’, em face da importância das sensações, dos sentidos, do toque à visão para a realização de um contrato. Um contrato ‘desumanizado’, que beira a auto-suficiência do declarado e ‘construído’ de forma unilateral e prévia no ‘site’ eletrônico ou na máquina colocada em um corredor de escola, auto-suficiência da predisposição declarativa ou material formulada por um fornecedor que não mais se conhece, também despersonalizado e reconhecido talvez apenas pela marca, também um símbolo” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 67) 128 Nas precisas palavras de Souza Ribeiro: “quer como produtores, nas relações de trabalho, quer como utentes, nas relações de consumo, os homens encontram-se freqüentemente perante organizações – as empresas –que, na prossecução dos seus objectivos, lhes traçam unilateralmente formas de vida e de subsistência e lhes dotam, com o auxílio da publicidade, preferências e necessidades, fixando os modos de sua satisfação. Sob a 125 124 56 “seus interesses’, impondo a formação e o conteúdo dos contratos como verdadeiros ‘legisladores contratuais’129. Conforme a atenta observação de Paulo Neto Lôbo, na economia organizada da macroempresa – seja ela estatal ou privada – a padronização contratual é inevitável, com a proliferação de modelos que contêm uma regulamentação geral e abstrata130. Cria-se, assim, no Direito contratual, uma dicotomia entre os contratos individuais, de um lado, e os contratos com emprego de condições gerais de contratação (ou método equivalente), de outro131. A presença das grandes organizações empresariais no mercado é, assim, a grande responsável pela utilização disseminada de técnicas de contratação estandardizadas, pois as empresas, no dizer de Alesandro Giordano, atuam como ‘ambiente natural’ dos contratos de adesão132. Nesse contexto, é possível se afirmar que o dirigismo privado no âmbito contratual vale-se, freqüentemente, de três formas de estandardização: o contrato de adesão, as condições gerais dos contratos e o contrato formulário, não sendo rara, entretanto, a atuação integrada dessas três técnicas, ou seja, a contratação por adesão a condições gerais, utilizandose, para tanto, de formulários padronizados. máscara uniforme da pessoa jurídica, ocultam-se, assim, constituições morfologicamente muito diversas, entes humanos e puros artefatos funcionais, de dimensões e recursos variados, mas apresentando sempre características estruturais que lhes conferem vantagens comparativas em relação ao sujeito individual” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 102). 129 Kessler, apud Souza Ribeiro, enfatiza: “a sociedade proclamando a liberdade contratual, garante que não interferirá como o exercício do poder por contrato. A liberdade contratual permite às empresas legislar por contrato, e o que é mais importante, legislar de um modo substancialmente arbitrário sem usar, na aparência, de formas autoritárias” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 103). 130 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Dirigismo contratual.” In: RDCI, p. 76. O autor sintetiza: “o dirigismo privado difere das demais dimensões por não ser formalmente heterônomo. Não é exercido por algum poder fora das partes contratantes, mas por uma delas, a mais poderosa. Em sua essência, é uma forma de legislar pelo contrato. É inevitável nas grandes organizações empresariais estatais ou privadas” (p. 76). 131 Conforme SHWAB, Dieter. “Validade e controle das condições gerais dos negócios.” In: RA, v. 41, p. 16. 132 In: GIORDANO, Alessandro. I contratti per adesione. Milano, 1951. Nesse sentido, José Reinaldo Lima Lopes explica: “definir o contrato como acordo de vontades pressupõe, no entanto, algo que já não se verifica na sociedade industrial contemporânea: que as partes sejam livres para contratar ou deixar de contratar e que estejam num mesmo nível de poder de barganha. Quando isso não ocorre, embora estejamos falando de contrato, do ponto de vista jurídico, social e econômico estamos diante de relações distintas daquelas imaginadas pelos juristas clássicos, desde sobretudo os jusnaturalistas” (In: Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1992, p. 41). 57 Orlando Gomes, ao analisar esse fenômeno, utilizou a expressão ‘poder legislativo da empresa’, no sentido de que o empresário, ao estabelecer as condições gerais de contratação, está legislando por detrás de uma máscara contratual133, enfatizando que este ‘poder normativo’ representa, no plano sociológico, um comando decorrente do processo de produção da riqueza; sob o aspecto econômico, é um fator de racionalização da atividade empresarial, pois facilita, simplifica e barateia o processo de produção-consumo e, no aspecto jurídico, representa uma técnica de suscitar a vinculação eventual e uniforme de uma categoria de pessoas134. É claro que essa referência ao ‘poder legislativo’ da empresa é figurativo e representa uma mera alusão ao poder que este ente assumiu no contexto da sociedade massificada como condutor das relações econômicas, essencial para o convívio social. 2.2.2 Os Contratos de adesão: o ocaso da manifestação de vontade na formação dos contratos Os contratos de adesão135 representam as negociações em que as cláusulas contratuais são pré-estabelecidas, em bloco, pela parte economicamente mais forte, sem que seja possibilitado ao outro contratante a participação ativa na seleção do conteúdo do pacto. São, portanto, figuras típicas do sistema de massificação da produção e distribuição de bens ____________ In: GOMES, Orlando. O poder legislativo da empresa. Novos temas de Direito Civil. São Paulo: Forense, 1983, p. 52. 134 In: O poder legislativo da empresa. Novos temas de Direito Civil, p. 52. Orlando Gomes informa: “observando que o vínculo resultante da adesão a um regulamento editado por certas empresas impõe-se em razão da constante e uniforme repetição de cláusulas pré-estabelecidas e acionadas inexaurivelmente, os juristas alemães construíram a teoria normativa, segundo a qual as condições gerais do contrato, isto é, o regulamento editado pela empresa, têm os caracteres e a força de verdadeiro e próprio mandamento jurídico, que se impõe por uma norma consuetudinária com validade no círculo de seus clientes. Representariam, para um autor, um ordenamento alternativo em relação ao ordenamento legislativo, datadas, como as normas estatais, de um certo grau de abstracionismo e de um potencial de utilização em vasta escala, assemelhando-se, sob este aspecto, à lei, e adotam um lógica peculiar, correspondente às exigências da organização atual de alguns setores da atividade produtiva, dos quais se tornaram um momento instrumental. Daí a tese de que constituem fonte de direito, isto é, de que o seu conteúdo é direito objetivo, sustentada na Alemanha por escritores de grande nomeada, como Lehmann, que inclui seu estudo no capítulo das Fontes de direto” (p.54-5). 135 Arnoldo Wald informa: “a doutrina costuma atribuir a Raymond Saleilles a primeira referência ao contrato de adesão. Efetivamente, o mestre da Faculdade de Direito de Paris, ao comentar o art. 133 do Código Civil Alemão, que determina a prevalência do espírito sobre a letra do contrato, fez a distinção entre os contratos nos quais ambas as partes tinham uma efetiva liberdade de fixar as cláusulas e aqueles nos quais um dos contratantes impunha, de fato, ao outro, as condições do contrato” e que “entendia Saleilles que o contrato de adesão importava, na realidade, numa verdadeira declaração unilateral de vontade, emitida por um dos contratantes e aceita pelo outro, devendo tal situação repercutir na interpretação do contrato, que deveria ser feita atendendo ao interesse coletivo. Seria uma interpretação mais parecida com a exegese da lei do que com a fixação do exato sentido do contrato” (In: WALD, Arnoldo. “Do contrato de adesão no Direito Brasileiro.” In: RIL, n. 66, abr-jun. 1980, p. 257-8). 133 58 que marcou as últimas décadas do século passado. Como destaca Pinto Monteiro, esta fórmula traduz a posição da contraparte e realça o significado da aceitação: mera adesão a cláusulas pré-formuladas por outrem136. Assim, nesta modalidade de contratação, a manifestação de vontade continua presente, mas acaba por assumir forma diversa daquela que tradicionalmente aparece, pois se expressa por meio de adesão137, criando o que Ricardo Lorenzetti designa de ‘homogeneização de condutas’ nos processos de contratação138. A larga proliferação alcançada pelos contratos de adesão foi, em grande parte, responsável pela crise do contrato sob a perspectiva do individualismo, numa clara demonstração da inadequação do modelo contratual clássico à economia massificada139. Nas palavras de Alberto do Amaral Júnior, os contratos em massa sugerem nítida oposição aos contratos individuais dos códigos oitocentistas, dirigindo-se a uma multiplicidade indefinida de sujeitos para a difusão dos produtos ou serviços que vão desde a venda de eletrodomésticos até os serviços públicos, como água, gás e energia, incluindo as atividades mais complexas, como bancária, de seguros ou transportes140. De maneira bastante precisa, o jurista argentino Gustavo Vallespinos, ao analisar o fenômeno dos contratos de adesão, indica a presença de três referenciais que serviram de base para justificar essa espécie de técnica contratual: a conscientização do desequilíbrio entre os indivíduos, as radicais mudanças no sistema de produção-consumo e a necessidade de ____________ In: MONTEIRO, António Pinto. “O novo regime dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais.” In: ROA, Lisboa, ano 62, jan. 2002, p. 114. 137 A doutrina cataloga diversas teorias que buscam explicar a natureza jurídica do contrato de adesão. Dentre os principais posicionamentos teóricos, encontram-se, de um lado, os normativistas ou anticontratualistas, que se dividem naqueles que destacam o poder normativo das empresas e os que vislumbram nos contratos de adesão a criação de normas jurídicas pelos particulares. Existem ainda os adeptos ao fundamento negocial, que se dividem nos seguintes enfoques: (a) da declaração típica (considerando do aderente como autêntica declaração): (b) da relação contratual fática (a vinculação das partes não surge necessariamente da combinação de vontades das partes, mas também dos fatos a que o ordenamento jurídico empresta efeitos socialmente reconhecidos); e (c) do comportamento social típico (contesta o caráter contratual nas negociações por adesão, considerando que a obrigação a ele relativa nasce do uso social). 138 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 19. O autor complementa dizendo: “somos cada vez menos ‘originales’ en la conformación de la autonomia privada”. 139 Nesse sentido, é a lição de Roldão de Freitas: “foram os contratos de adesão, ante a sua larga proliferação, responsáveis pela apontada crise, ou augurada morte, do contrato sob perspectiva do individualismo jurídico, que só o concebia como livre pactuação do conteúdo diretamente pelas partes, antecedidas, muitas vezes, de tratativas” (In: Contratos. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 73). Na mesma linha, na doutrina espanhola, manifesta-se Luiz Diez-Picazo: “de hecho, el esquema del contrato en masa y la estandardización de la materia contratual ronpen el paradigma del contrato, que tenía ‘in: mente’ la doctrina tradicional. El presupuesto ideologico de la igualdad de los contratantes no pasa de ser una quimera. El contrato no es ya una regla de conducta, obra común de ambas as partes” (In: DÍEZ-PICAZO, Luis. Derecho y masificación social, tecnología y derecho privado. Madri: Civitas, 1979, p. 44). 140 In: AMARAL JUNIOR, Adalberto do. “Proteção do consumidor no contrato de compra e venda.” In: RT, 1993, p. 115. 136 59 celeridade nas transações negociais141. A percepção da existência de um desequilíbrio relevante entre os indivíduos e, conseqüentemente, de seus reflexos na dinâmica da formação dos negócios ganha importância no final do século XIX e início do século passado. O fortalecimento do poder político de certos grupos sociais, acompanhado da ampliação da sua importância econômica representa um duro golpe sobre a noção de liberdade de contratação. Tal fator é acompanhado por uma série de alterações que se fizeram sentir no processo de comercialização de bens e serviços. A concentração de grandes capitais acarretou extraordinária importância às empresas, que, de posse desse ‘poder’, passaram a impor aos mercados seus ideais de racionalização e automação, impulsionados pelos grandes avanços tecnológicos, em conjugação com a estandardização142. O terceiro elemento responsável pelo aparecimento dos contratos de adesão é o aceleramento ou necessidade de aceleramento que assolou a sociedade. É o sistema da “economia de tempo”, que exige um Direito dinâmico, rápido e simplificado. Francesco Messineo define os contratos de adesão como aquele “en el que las cláusulas son previamente determinadas y propuestas por uno solo de los contratantes, de modo que el otro no tiene el poder de introducirle modificaciones y si no quiere acptarlas debe renunciar a estipular el contrato”143. Dessa definição, que espelha o entendimento médio da doutrina sobre o tema, é possível identificar-se algumas das principais características dos contratos de adesão: (a) a concentração de poder econômico e negocial (power bargain) em um dos pólos da relação, geralmente uma empresa; (b) a elaboração prévia, pela parte mais forte, de uma série de cláusulas padronizadas – condições gerais de contratação – geralmente imutáveis; (c) necessidade, por parte da parte aderente, da aquisição de um produto ou serviço; (d) ausência de negociação prévia, de forma que a relação é ____________ In: VALLESPINOS, Carlos Gustavo. El contrato por adhesión a condiciones generales. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1984, p. 231 e ss. 142 Na lição de Gustavo Vallespinos: “las empresas procuran elevar al máximo su productividad con el menor desgaste productivo posible, incluyendo en este ahorro, lógicamente, a la comercialización” e “la automatización persigue como objetivos las exploraciones técnicas con el máximo de rentabilidad y seguridad y facilitar el trabajo del hombre, descargándole en gran medida. Sin ninguna duda que la aplicación de este principio acrecentó enormemente la despersonalización de los contratos” (In: El contrato por adhesión a condiciones generales, p. 233-4). 143 In: MESSINEO, Francesco. Doctrina general del contrato. Buenos Aires: Jurídicas Europa-América, 1986. t. I, p. 440. 141 60 entabulada pela mera adesão do contratante às cláusulas predispostas144. Orlando Gomes, por sua vez, aponta seis modos pelos quais pode ser caracterizado o contrato de adesão: por sua oferta à coletividade, por ser obra exclusiva de uma das partes, por terem regulamentação complexa, pela preponderância da posição de uma das partes, inexistência de discussão da proposta, como instrumento próprio de prestação de serviços privados de utilidade pública145. Na ausência de uma definição legal de contrato de adesão no texto do Código Civil, no nosso sistema essa tarefa coube ao legislador consumerista, que, num claro esforço de síntese, o qualificou como sendo aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. (art. 54 do CDC). Ficam compreendidos, assim, nesta conceituação, os contratos standards (composto de cláusulas uniformes e de alto grau de abstração), as condições gerais de contratação (bloco de cláusulas pré-definidas para uma série de contratos)146 e os contratos de ____________ Francesco Messineo, ao detallar as caracteristicas que acompanham a contratação por adesão destaca ainda a presença do monopólio: “el contrato de adhesión supone uma situación econômica de monopolio legal o de hecho em la que el monopolista (productor del bien o del servicio, matéria del contrato) impone su esquena contractual al consumidor. En el régime de competencia el contrato de adhesión o sería inconcebible o no podría arraigar, por cuanto el consumidor encontraría siempre un productor que, para atraer a un cliente nuevo, estaría dispuesto a concederle condiciones más favorables que otro y a aceptar el concurso del consumidor en la determinación de las cláusulas contratuales. El presupuesto ‘monopolio’ explica cómo el contrato de adhesión florece paralelamente ao florecer de aquellas formas peculiares de monopolio que son las coaliciones entre empresas, las que, como se ha dcho, han sustituído a la lucha por la clientela, la lucha contra la clientela. Por eso se suele contraponer, en esta materia, el contratante económicamente fuerte (productor) al contratante económicamente débil (consumidor)” (In: Doctrina general del contrato. t. I, p. 441). 145 In: GOMES, Orlando. Contratos. 24. ed. São Paulo: Forense, 2001, p. 117. 146 Segundo Cláudia Lima Marques, devem ser entendidos como submetidos a condições gerais de contratação os contratos, escritos ou não, em que o comprador aceita, tácita ou expressamente, que as cláusulas pré-elaboradas pelo fornecedor, unilateralmente e de modo uniforme para um número indeterminado de relações contratuais, venham a disciplinar o contrato específico (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 79). A autora informa ainda que: “segundo a doutrina européia, as características principais da noção de CONDG são: 1. São cláusulas ou condições de um contrato, independente do tipo de contrato e de onde se localizem (afixados, posters, recibos, nos caixas eletrônicos, nas portas, nas paredes etc.). Mesmo negócios jurídicos unilaterais dirigidos a um contrato podem estar aqui incluídos, como, por exemplo, a declaração de um paciente exonerando dos eventuais resultados da intervenção médica, ou uma renúncia a determinado crédito. 2. São cláusulas ‘pre-elaboradas’, isto é, pré-redigidas antes da conclusão do contrato por uma das partes ou terceiros para que sejam incluídas em um futuro contrato. As cláusulas são consideradas préelaboradas também quando estão arquivadas em um computador e são impressas na hora para o cliente, ou datilografadas segundo um formulário, mesmo de memória pelo advogado da empresa. Nesse sentido, já foram consideradas CONDGs as cláusulas pré-elaboradas pelo tabelião e incluídas em um contrato por escritura pública. 3. As cláusulas devem ser pré-elaboradas para um número múltiplo e indeterminado de contratos, e não pré-elaboradas para um único contrato (...) 4. As cláusulas são pré-elaboradas unilateralmente por um dos contratantes, ou mesmo por terceiros, e são oferecidas à aceitação do outro” (p. 79-80). Clóvis do Couto e Silva (In: O princípio da boa-fé e as condições gerais dos negócios. Condições gerais dos contratos bancários e a ordem pública econômica. Curitiba: Juruá, 1988, p. 36) informa da existência de dois modelos legislativos de enfrentamento do tema das condições gerais de contratação, ou seja, o sistema utilizado pelo Uniforme Commercial Code (parágrafo 2-202), que possui apenas uma determinação genérica no sentido de que os juízes devem deixar de aplicar, ou mesmo, reduzir os efeitos nocivos dos contratos que contiverem cláusulas ‘não realizáveis’ – unconscionable -; e o modelo aplicado por outros ordenamentos em que há uma regulamentação extensa da matéria, como é o caso do sistema alemão e português. No Brasil, apesar da importância que a matéria possui na nossa prática negocial, ainda não há um tratamento legislativo adequado destinado a regulamentar as condições gerais dos contratos, ensejando o apelo aos princípios contratuais, em especial o da função social e da boa-fé. 144 61 adesão propriamente ditos (preponderância da vontade do contratante mais forte sobre o mais vulnerável). Entretanto, o traço mais emblemático dessa espécie de contratação é, sem dúvida, a disparidade de poder negocial entre as partes, com uma inevitável preponderância do predisponente sobre o aderente147. Há uma inequívoca condição de desiqualdades entre os contratantes, o que vem a influenciar diretamente na formação e dinâmica dessa espécie contratual, que não pode passar despercebido pelo Direito. Paulo Neto Lôbo explica que o predisponente encontra-se numa posição mais forte porque as condições gerais resultam de uma previsão refletida, alicerçada na experiência de sua atividade organizada e de operações reiteradas, enquanto o aderente realiza normalmente uma operação avulsa, confiante na razoabilidade das condições148. Trata-se de um contrato-tipo, padronizado, oferecido ao público em geral, por meio de formulários, no qual resta apenas o preenchimento dos dados referentes à qualificação da parte aderente, a identificação do produto ou serviço adquirido e seu preço. Como ensina Cláudia Lima Marques, o elemento essencial do contrato de adesão é a ausência de uma fase pré-negocial decisiva, sem um debate prévio das cláusulas contratuais, restando ao parceiro negocial mais fraco a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, sem qualquer possibilidade de modificação de maneira relevante149. Criou-se, assim, uma espécie de ‘estandardização’ do contrato, que se fez necessária para dar vazão às relações contratuais da sociedade massificada, afim de simplificar as ____________ Como explica Fancesco Messineo, “la falta de negociaciones y de discusión, así como también de participación en la determinación del contenido del contrato, que es propia de la adhesión, implica una situación de disparidad económica y de inferioridad psíquica para el contratante débil, por la que el contrato de adhesión llega a contraponerse al contrato que se puede llamarse paritario (paritético)” (In: Doctrina general del contrato. t. I, p. 440). 148 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 197. 149 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 72. A autora identifica três características nos contratos de adesão: “(1) a sua préelaboração unilateral; (2) a sua oferta uniforme e de caráter geral; (3) seu modo de aceitação, onde o consentimento se dá por simples adesão à vontade manifestada pelo parceiro contratual economicamente mais forte” (p. 60). 147 62 transações e acompanhar a acelerada velocidade do ‘mundo negocial’150. Como lembra Françoise Domont-Naert, o contrato de adesão corresponde a uma estandartização necessária das relações comerciais na qual a negociação individualizada dos termos do contrato dificilmente encontraria lugar nos dias de hoje151. Assim esses contratos são geralmente firmados tendo por base cláusulas gerais, previamente redigidas pelo contratante mais forte. Há uma nítida ‘pré-disposição’ das cláusulas contratuais, que, por sua vez, são dotadas de uma certa indeterminação, na medida em que são redigidas para um número indeterminado de pessoas que a elas venham a aderir no futuro. Pinto Monteiro explica que essa técnica permite responder às necessidades que justificam a sua criação e expansão: racionalização, planejamento, celeridade e eficácia152. Nota-se, nessa modalidade de contratação, a presença de suas fases claramente definidas: a primeira, correspondente à elaboração das cláusulas gerais que servirão para regular as futuras contratações (fase estática); e uma fase posterior de celebração de cada contrato singular (fase dinâmica), na qual efetivamente se constitui a relação contratual153. Analisando a problemática atual da técnica de contratação por adesão, Pinto Monteiro aponta três dificuldades a serem atendidas pelo sistema jurídico tradicional154: no ____________ Conforme Renata Mandelbaum, “o surgimento do contrato de adesão a cláusulas pré-dispostas foi um reflexo das alterações econômicas surgidas com a crise contemporânea, apoiando-se basicamente em três idéias: a) em nosso século, foram acentuados os desequilíbrios entre os indivíduos (ruptura com o princípio da liberdade de contratar); b) mudanças radicais foram operadas no processo de produção e de consumo, tanto de bens como de serviços (racionalização e automação); c) todas as alterações – o desequilíbrio entre os contratantes e as mudanças introduzidas nos processos de produção e distribuição geram a necessidade de celeridade nas negociações econômico-sociais” (In: MANDELBAUM, Renata. Contratos de Adesão e Contratos de Consumo. São Paulo: RT, 1996, p. 128). 151 In: DOMONT-NAERT, Françoise. “As tendências atuais do Direito Contratual no domínio da regulamentação das cláusulas abusivas.” In: RDC, v. 12. Traduzido por Maria Henriqueta Fonseca Lobo, p. 21. A autora entretanto ressalta que o contrato de adesão, como tal, não é considerado abusivo, explicando: “o abuso não resulta do fato de que o consumidor é obrigado a aderir a este ou aquele texto pré-impresso, mas, efetivamente, do conteúdo eventual de uma convenção de cuja redação ele não participou e que ele não poderá modificar, visto a relação de forças existentes entre as partes confrontadas e que provavelmente ele encontrará uniformizada no setor respectivo” (p. 21). 152 In: MONTEIRO, António Pinto. “O novo regime dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais.” In: ROA, p. 115. 153 Conforme In: MONTEIRO, António Pinto. “O novo regime dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais.” In: ROA, p. 116. Entretanto, o autor adverte: “na verdade, em regra o contrato de adesão é concluído através de cláusulas contratuais gerais, mas pode acontecer que falte às cláusulas pré-formuladas o requisito da generalidade (ou o da indeterminação), caso em que haverá contrato de adesão (estando presentes as características da pré-disposição, unilateralidade e rigidez), sem se poder falar de cláusulas contratuais gerais. Essas últimas são previamente elaboradas, numa palavra, tendo em vista a celebração, no futuro, de múltiplos contratos que serão de adesão – mas tais contratos não deixarão de o ser se faltarem às cláusulas préformuladas os requisitos da generalidade e indeterminação” (p. 116-7). 154 In: MONTEIRO, António Pinto. “O novo regime dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais.” In: ROA, p. 118-9. 150 63 plano da formação do contrato, há inquestionável aumento do risco de o aderente vir a desconhecer as cláusulas que farão parte do contrato; por outro lado, essa técnica proporciona um ambiente mais propício para a inserção de cláusulas abusivas por parte do contratante mais forte; e, por fim, no plano processual vislumbra-se a inadequação e insuficiência do normal controle do Judiciário, pois este atua ‘a posteriori’, dependendo da iniciativa processual do lesado e com efeitos circunscritos ao caso concreto. Embora essa análise seja realizada tomando por parâmetro a realidade do Direito Português tradicional, ela pode ser transportada para o nosso sistema, no qual a solução dos problemas relativos aos contratos de adesão ainda é realizada com a utilização de critérios tópicos orientados pela natural disparidade negocial entre predisponente e aderente e à conseqüente tendência à prática de abusos em relação ao contratante mais vulnerável155. Entretanto, nota-se, nos últimos tempos, uma nova mudança de rumo no trato do enfrentamento da temática contratual. Há uma frenada na atuação estatal frente ao intervencionismo nas relações contratuais. O dirigismo contratual é substituído pela regulação, mais tênue, porém dotada de maior profundidade. É o que Junqueira de Azevedo chama de ‘toque de recolher”156, em que o agente estatal passa a atuar como regulador das relações econômicas, dentre as quais destaca-se o contrato157. ____________ Conforme NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 375-6, que enfatiza: “o contrato de adesão é, portanto, um símbolo da atuação que a ordem jurídica passou então a ter na declarada tentativa de impedir a realização de certos resultados tidos como indesejáveis, instituindo medidas compensadoras, orientadas à proteção do aderente. A disparidade do poder negocial entre o aderente e o predisponente é, como vimos, um componente decisivo na caracterização do contrato de adesão, a justificar que esta categoria seja estabelecida como ponto de referência de um regime cogente de proteção da parte fraca, aqui identificada como aderente. Assim é que a categoria ‘contrato de adesão’ se justifica como tal porque atrai ao seu redor princípios específicos, constitutivos de um regime próprio voltado para a proteção do aderente” (p. 373). 156 In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Princípios do novo Direito Contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual.” In: RT, v. 750, p. 115. Na lição do autor: “hoje, diante do toque de recolher do Estado intervencionista, o jurista com sensibilidade intelectual percebe que está havendo uma acomodação das camadas fundamentais do direito contratual – algo semelhante ao ajustamento subterrâneo das placas eletrônicas. Estamos em época de hipercomplexidade, os dados se acrescentam, sem se eliminarem, de tal forma que, os três princípios que graditam em volta da autonomia da vontade e, se admitindo como princípio, ao da ordem pública, somam-se outros três – os anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos tempos mas, certamente, deve-se dizer que viram seu número aumentado pelos três novos princípios. Quais são esses novos princípios? A boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e a função social do contrato” (p. 115-116). 157 Paulo Nalin resume o panorama que se abre na atualidade no contexto da teoria contratual, dizendo: “acaba o contrato por mediar as forças do mercado, sendo o liame inegável entre a concorrência e o consumo, revelando-se os pólos do produtor/fornecedor e do consumidor. O ajuste entre tais forças é que acaba por demonstrar o atual perfil do contrato na pós-modernidade, nem tanto livre, nem tanto dirigido. Revela-se, por ser o condutor da ingerência tutelar do Estado à livre iniciativa, à medida que a conforma aos interesses da justiça social” (In: Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 123). 155 64 Entra em cena, então, a visão pós-moderna das relações negociais, nas quais o Direito assume a tarefa de trabalhar com a diversidade; o pluralismo marca o novo rumo das questões jurídicas, e o Estado deverá se dedicar a atingir este objetivo. O século passado, em especial na sua última metade, é reconhecido como era dos novos direitos, o que gerou uma verdadeira revolução no sistema contratual contemporâneo158. ____________ Cavalieri Filho aponta que “o Século XX despediu-se, deixando, todavia, marcas indeléveis em nosso mundo. Em razão do fantástico desenvolvimento tecnológico e científico que nele teve lugar, abrangendo áreas do conhecimento tecnológico sequer imaginadas, profundas transformações sociais, econômicas e políticas ocorreram, que, por sua vez, passaram também a exigir transformações no ordenamento jurídico porquanto as normas legais até então existentes ficaram ultrapassadas, deixando enorme descompasso entre o social e o jurídico. Resultaram daí novos direitos – direito da comunicação, direito espacial, direito ambiental, biodireito, direito do consumidor e assim por diante - todos destinados a satisfazer as necessidades de uma sociedade em mudança” (In: CAVALIERI FILHO, Sérgio. “O Direito do Consumidor no limiar do século XXI.” In: RDC, v. 35, p. 97). 158 65 3 A SITUAÇÃO ATUAL DO DIREITO CONTRATUAL: A PÓS-MODERNIDADE E A SUA INFLUÊNCIA NA TEORIA CONTRATUAL A percepção da existência de uma teoria do contrato, compromissada com a realização de valores sociais oficialmente reconhecidos pode ser encontrada já nos meados do século passado. Ludwig Raiser informa que, na doutrina alemã do primeiro pós-guerra, houve uma nítida mudança de visão sobre a teoria contratual, em muito inspirada nas ‘teorias nacionalistas’, passando a ser considerado o instrumento contratual como um eficiente mecanismo de organização do ordenamento nacional159. Nesse contexto, desabrochou a ótica social-econômica do contrato, que, ao contrário da tradição pandectistica e romanista, buscou suas luzes em aspectos extrajurídicos, ao mesmo tempo que colocou o contrato em um amplo contexto de fenômenos sociais, proporcionando uma análise integrada do aspecto jurídico com as questões de ordem sociológica160. Dessa forma, o expresso comprometimento do contrato com os valores sociais e econômicos dominantes passa a ser inequívoco, de forma que o seu estudo somente se mostra satisfatório se partir da sua interação com o ambiente social que o cerca. Nos últimos tempos, a sociedade passou por profundas mudanças que alteraram sensivelmente a forma de manifestação do conhecimento, com projeção em todos os âmbitos sociais. O resultado dessa revolução ainda não pôde ser integralmente apreendido, pois, como leciona Romano Guardani, a forma de uma época só se torna visível quando ela desaparece161. E é nesse contexto que o contrato hoje precisa ser pensado e burilado, para que se possa ter uma maior compreensão do que o ‘futuro’ lhe reservou. O fenômeno da pósmodernidade cria novos parâmetros para o Direito, e, nesse movimento, surge uma diversa concepção de contrato, contando com novos princípios que, tencionando os tradicionais, proporcionam diferentes resultados, vinculados ao crescimento da aproximação da ciência do Direito com os valores constitucionais, ressaltando e revitalizando a importância do indivíduo como pessoa e finalidade última de todo o ordenamento, sem contudo se descuidar do adequado trato da sua inserção no meio social que o circunda. Portanto, antes da abordagem ____________ 159 160 In: RAISER, Ludwig. Il Compito del Diritto Privato, p. 90. In: RAISER, Ludwig. Il Compito del Diritto Privato, p. 90. 161 In: GUARDINI, Romano. O fim da Idade Moderna. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 13. 66 dessa ‘nova teoria contratual’, cabe se faça uma breve exposição sobre o momento pósmoderno que marca a nossa realidade atual. 3.1 A CRISE DA MODERNIDADE E A BUSCA DE NOVOS PARADIGMAS Toda mudança de Era traz a concreta sensação de incerteza, ressuscitando dúvidas que já eram dadas por encerradas há um longo tempo e potencializando as questões que perpassaram a história nos mais diversos períodos, sem receberem um desfecho satisfatório. Assim acontece com a modernidade, fase de destaque na evolução da humanidade, que proporcionou a consolidação do conhecimento e permitiu uma destacada forma de visão da condição humana em sociedade. Romano Guardini explica que, para o homem medieval, a ciência exclusivamente representava a prova daquilo que, na autoridade das fontes, era tida como verdade162. Entretanto, na segunda parte do século XIV e especialmente no século XV, ocorre uma alteração, ou seja, o conhecimento passa a dirigir-se diretamente à realidade das coisas163, desejando-se ver com os próprios olhos, demonstrar com a própria inteligência, atingir uma opinião criticamente fundamentada, independentemente dos padrões anteriores164. Na seara econômica, a modernidade foi a Era da evolução industrial, com o seu conseqüente crescimento econômico e melhoria do estilo de vida social, ampliação do consumo e liberdade de mercado jamais vistos na história da humanidade. Por outro lado, no campo político, foi a ____________ In: GUARDINI, Romano. O fim da Idade Moderna, p. 33. Segundo Jesús Ballesteros: “la expresión ‘moderno’ aparece por vez primera – como destaca Panofsky – en la obra del gan pintor e historiador del arte Giorgio Vasari (1511-1574) para designar la nueva manera de pintar, representada paradigmaticamente por Léon Battista Alberti (1404-1472) y por Leonardo da Vinci (14521519), caracterizada por su cientificidad, frente a la ‘maniera antica’ de los clásicos, y la ‘vecchia’ de los bizantinos. La Modernidad surge en la Florencia de los Médicis, con el descubrimiento por Brunelleschi, en torno a 1420, de la perspectiva, la llamada por él ‘contruzione legitima’. La Modernidad aparece allí donde la exigencia de exatitud, presente en el mundo del arte, va a ser inmediatamente copiada en el mundo cientifico, y va a ofrecerse a continuación com paradigma de toda forma de conocimiento. La geometrización (euclidización) del arte que se introduce con la perspectiva va a tener profundas consecuencias en el ámbito del pensamiento general, tratado de desvalorizar progresivamente lo oral a favor de lo visual, lo cualitativo a favor de lo cuantitativo, lo analógico a favor d elo disyuntivo. A cada uno de estos procesos corresponde una figura destacada: respectivamente, Leonardo, Galileo y Descartes” (In: BALLESTEROS, Jesús. Posmodernidad: decadencia o resistencia. 2. ed. Madri: Tecnos, 2000, p. 17-8). 164 Conforme GUARDINI, Romano. O fim da Idade Moderna, p. 33. Este autor frisa ainda: “isto vale para a natureza: e assim aparece a experiência e a teoria racionalista da Idade Moderna. Vale para a tradição: e assim aparece a crítica humanista e a ciência da História, agora fundada sobre outras fontes. Vale para a vida em sociedade: assim aparece a concepção de Estado e de Direito da Idade Moderna. A ciência separa-se da unidade de vida e da obra até aqui determinada pela religião e constitui-se a si própria como domínio autônomo da cultura” (p. 34). 163 162 67 fase da consagração definitiva da democracia com o modelo político mais adequado a corresponder aos anseios da sociedade, rompendo como odioso absolutismo que marcou o Medievo. Ainda em relação ao indivíduo, a modernidade consolidou o reconhecimento de seus direitos fundamentais, elevando cada pessoa à condição de valor central do ordenamento jurídico-social, colocando-o como sujeito de direitos reconhecidos nas diversas legislações específicas e, em especial, nos textos constitucionais165. A Era Moderna166 foi, sem sombra de dúvida, um grande momento da humanidade a caminho de sua plena evolução. Houve um rompimento radical com as amarras do sistema medieval167, com o abandono de técnicas anacrônicas de controle social. Foi proclamado o fim dos sistemas absolutistas, escravocratas e de castas sociais, que criavam um modelo social doente e que podavam toda forma de evolução. Houve, assim, uma reconfiguração das ____________ Nesse sentido, é a lição de Eduardo Bittar: “A modernidade implica um longo processo histórico, a iniciar-se em meados do século XIII e a desdobrar-se em sua consolidação até o século XVIII, de desenraizamento e de laicização, de autonomia e liberdade, de racionalização e de mecanização, bem como de instrumentalização e de industrialização. Dessa forma, pode-se dizer que a modernidade envolve aspectos do ideário intelectual (científico e filosófico) associado a outros aspectos econômicos (Revolução Industrial e ascensão da burguesia) e políticos (soberania, governo central, legislação) conjunturalmente relevantes... o que se quer discutir é exatamente a concepção de que razão, sujeito, ordem, soberania e Estado não são casualmente termos ligados ao vocabulário moderno. Eles foram paulatinamente sendo tornados possíveis pela prática histórica dos séculos, mas também foram sendo lapidados no laboratório das idéias. Ora, é impossível pensar o ‘modus vivendi’ moderno centrado na idéia de sujeito-do-conhecimento, na idéia de cidadania constitucional, de democracia representativa, de direitos humanos, de organização estatal-repressivo-burocrática das dimensões social e econômica, e de progresso técno-científico, sem a recorribilidade necessária aos arcanos do ideário moderno. Trata-se de um ideário que vê na história um processo linear em direção à racionalização, à capitalização, à estruturação do Estado, ao progresso, à centralização do poder” (In: BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 42-3). 166 Habermas lembra: “a palavra ‘modernus’ foi utilizada inicialmente no final do século V para diferenciar um presente tornado cristão de um passado romano pagão. Desde então, a palavra possui uma conotação de uma descontinuidade proposital do novo diante do antigo. A expressão moderno continuou a ser utilizada na Europa – cada vez com conteúdos diferentes – para expressar a consciência de uma nova época” (In: HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: estudos políticos. Traduzido por Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, São Paulo, 2001, p. 168). 167 Nesse sentido, explica Eduardo Bittar: “Enfim, com a idéia de modernidade, um movimento mais que simplesmente contestatório do passado medieval (religioso, teológico, estagnado comercialmente, intelectualmente dirigido pelas limitações impostas pelas ordens religiosas, especialmente articuladas a partir de dirigidas e interessadas leituras das Sagradas Escrituras, controlado e dividido por distribuição de poderes entre Estado, Senhores Feudais e Igreja etc.), se instala. A idéia de um momento histórico, guiado no sentido da superação das castrações comerciais (impostas pelo excesso de impostos para circulação de mercadorias, pelas limitações espaço-geográficas e pela produtividade artesanal de baixa escala e manufatureira de produtos) e da ausência de controle intelectual das idéias a partir da liberdade de pensamento, de pesquisa, de descoberta e de divulgação científicas, vem se tornando uma realidade concreta e marcante, dando sinais de sua vitalidade a partir dos séculos XIII e XIV, consolidando-se três ou quatro séculos depois. O processo de germinação da modernidade dá-se uma vez plantada no espírito medieval a semente de sua própria corrosão: o anseio de liberdade (comercial, intelectual, científica, religiosa) e a crença na razão. A fé religiosa, a crença em valores espirituais com determinantes da vida temporal, que imperava na mentalidade e no pensamento medievais, é, paulatinamente, substituída por uma fé racional, a crença em explicações racionais, tornando-se cosmovisão necessária para a laicização cultural do Ocidente” (In: BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pósmodernidade, p. 35-6). 165 68 relações humanas na Europa Ocidental, o que não tardou a tornar-se universal. Como pontua Eduardo Bittar, ao termo modernidade foi associado um conjunto de idéias que ajudam a desvendar os traços que marcaram, de forma indelével, essa época: progresso, ciência, razão, saber, técnica, sujeito, soberania, controle, unidade, Estado, indústria, centralização, economia, acumulação, individualismo, liberalismo, universalismo, competição168. Há um nítido sentimento de fé no progresso169. Mas a modernidade foi longa170, e, com isso, os efeitos do tempo se fizeram sentir, separando-a em várias fases, que a compartimentalizaram. A ‘revolução industrial’, inicialmente marcada pela exploração das máquinas a vapor, logo foi seguida das revoluções ____________ In: BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade, p. 34-5. O autor complementa: “Esses termos não estão aleatoriamente associados à idéia de moderno, pois nasceram com a modernidade e foram sustentados, em seu nascimento, por ideologias e práticas sociais nascentes e que se afirmaram como uma espécie de sustentáculo dos novos tempos, saudados com muita efusividade pelas gerações ambiciosas pela sensação (hoje tida como ilusória) da liberdade prometida pela modernidade” (p. 35). Eduardo Gianneti sintetiza o panorama dessa época: “(a) avanço do saber científico; (b) domínio crescente da natureza tecnológica; (c) aumento exponencial da produtividade e da riqueza material; (d) emancipação das ments após éculos de opressão religiosa, superstição e servilismo; (e) transformação das instituições políticas em bases racionais e; (f) aprimoramento intelectual e moral dos homens por meio de ação conjunta de aducação e das leis” (In: GIANNETTI, Eduardo. Felicidade. 7. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 23). 169 Romano Guardini lembra: “hoje temos dificuldade em conceber o que significou a obra da cultura para os primeiros tempos da Idade Moderna. Foi a erupção de uma primavera da existência, de uma imensa plenitude, de uma ilimitada confiança no futuro. A matemática e as ciências da natureza progridem rapidamente. Descobre-se a Antigüidade, e a História começa o seu longo trabalho. Aparece o interesse pelo homem, observa-se a multiplicidade das suas manifestações e constituem-se, a partir da análise, as ciências antropológicas e psicológicas. A ciência política considera a sociedade humana como um grande ser vivo, investiga o seu futuro, a multiplicidade de suas formas e as condições de sua permanência. A Filosofia deixa de depender da Teologia e transforma-se numa interrogação do homem ante os fenômenos do mundo. A arte em todas as suas manifestações: arquitectura, escultura, pintura, poesia, teatro, -surge como caráter de domínio autônomo e produz uma infinita plenitude de formas. Há também o aparecimento e a constituição de Estados autônomos como sentimento de seu poder e da sua força. Ousadamente a Terra é partilhada. Descobrem-se mares e terras e organiza-se o sistema colonial. Finalmente todas as descobertas e construções a que chamamos técnica, indispensáveis para as épocas anteriores e que permitem ao homem o domínio sobre a natureza – descobertas intimamente relacionadas com a economia da Idade Moderna, na qual um desejo de lucro que não tem limite produz o sistema capitalista. Tudo isso surgiu como uma erupção de forças desconhecidas provenientes de profundidades até agora ignoradas. O homem começa a conhecer o mundo e conhece-se a si próprio de maneira completamente nova. Está convencido de que só agora começa e que tudo o que houve anteriormente foi apenas preparação ou obstáculo” e, após, conclui: “ já não temos esta atitude. Pelo contrário, vemos com nitidez cada vez maior que a Idade Moderna se iludiu” (In: O fim da Idade Moderna, p. 64-5). 170 Cornelius Castoriadis propõe a divisão da Modernidade em três períodos: (1) a emergência (constituição) do Ocidente (do século XII ao começo do século XVIII), representada pela autoconstituição da protoburguesia, a construção e o crescimento das cidades novas (ou a mudança do caráter daquelas que já existiam), a reivindicação de uma espécie de autonomia política (indo dos direitos comunais até o autogoverno completo, conforme os casos e as circunstâncias) acompanham-se de novas atitudes psíquicas, mentais, intelectuais, artísticas, atitudes estas que preparam o terreno para os resultados explosivos da redescoberta e da recepção primeiro do direito romano, em seguida de Aristóteles, e depois do conjunto da herança grega subsistente; (2)a época crítica (moderna): autonomia e capitalismo: tomada de consciência de si mesmo com as Luzes, continuando até as duas guerras mundiais no século XX. O projeto de autonomia radicaliza-se no campo social e político, assim como no intelectual. As formas políticas são questionadas; formas novas, implicando rupturas radicais com o passado são criadas. O capitalismo encarna uma significação imaginária social nova: a expansão ilimitada do ‘domínio racional’; (3) a retração ao conformismo: fase das duas guerras mundiais, da emergência do totalitarismo e derrocada do movimento operário e o declínio da mitologia do progresso (In: CASTORIADIS, Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto III. Traduzido por Rosa Maria Boaventura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 19-23). 168 69 tecnológica e informática, que aceleraram ao extremo a dinâmica das relações de produção. Posteriormente, coroando essa corrida produtiva, a robótica ganha espaço no cenário produtivo, estabelecendo novos horizontes a serem desbravados. Paralelamente a essa evolução produtiva desenfreada, as relações estabelecidas no mercado também passam por significativas alterações. A inicial plena liberdade de mercado passa a enfrentar sérios problemas com a tomada de importância do seu papel para a economia social. O mercado, de início pequeno e incipiente, passa a assumir foros de grandeza, moldando a economia social e enfrentando embates para o domínio da produção. Nesse contexto, o Estado, até então dormente, precisou despertar e medir forças com os agentes de produção, destemidos e protegidos por uma condição econômica que os autorizava a impor suas intenções. No viés social, a modernidade permitiu a consagração dos direitos e garantias individuais, reposicionando o indivíduo como sujeito principal da vida em sociedade. Os textos constitucionais foram transformados em ‘cartas de garantias’, a salvaguardar os interesses individuais do cidadão, em especial frente à própria atuação estatal. Toda essa estrutura da modernidade sempre foi marcada por uma metodologia caracterizada pela presença do racionalismo, que, desde os primeiros ideais iluministas, tem se destacado no pensamento moderno. É a Era da Razão, fundada na crença do poder do pensamento racional. Nas palavras de Enrique E. Marí, a razão instalou-se no centro da modernidade, sendo concebida como uma potência iluminadora do homem e do mundo171. Assim a modernidade possibilitou uma estrutura de pensamento organizada e escalonada de maneira totalizante, que não se contentava apenas em propiciar uma melhor e mais clara compreensão do pensamento social, mas, principalmente, em formatar a estrutura social de ____________ In: MARÍ, Enrique E. El concepto de posmodernidad de Andre-Jean Arnaud y Boaventura de Souza Santos en la sociologia del derecho. Lecciones y ensaios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. v. 60-1, p. 79. O autor expõe sobre a importância da razão para a modernidade: “con ella, con el racionalismo, se produjo el colapso y ruptura de un principio, el de la unidad del saber, que acompaño el pensamento de la antigüedad y el mundo medieveal, em el que se aglutinaban la ciencia, la metafisica y la religión. El resultado histórico de este cambio revolucionario fue, por un lado, que la religión no pudo ya dar la espalda al pensamiento cientifico y, por el outro,que la ciencia y la filosofia se ahondó en uma brecha profunda: los científicos vieron com recelo las especulaciones filosóficas y los filósofos se desinteresaron de las ciencias particulares por considerar sus resultados excesivamente estrechos. Enriquecido en su nuevo estatuto independiente, el ‘saber’ se transformó en ‘conocimiento’, inscripto en el referente de las ciencias fisico-naturales empíricas, con su principio fundamental de la objetividad, la neutralidad de las observaciones, u el desarrollo progresivo causal, lineal y acumulativo. En el paso del saber de la antigüedad al conocimiento de la modernidad no se pudo, por cierto, retornar a las funtes religiosas para acreditar la certeza de las observaciones empíricas, la ojetividad descriptiva y la confiabilidad de las predicciones. Se necessitan categorias procedentes del outro polo, el de la filosofia, a fin de cumplie el papel de garantia y fundamento del conocimiento cientifico (y el común em general)” (p. 79). 171 70 maneira que, pelo menos teoricamente, ela se mantivesse sob o controle dos auspícios deste modelo. Com o passar do tempo, a realidade, mais ampla e mais viva, deixa de caber nos padrões do modelo moderno, exigindo reflexões capazes de otimizar a teoria social a ponto de que ela possa responder aos anseios de uma sociedade que começa a se perder frente à crescente complexidade que a cerca. Passa-se, assim, ao que se convencionou designar de crise da modernidade, que tantas contribuições irá trazer à evolução da teoria social nos próximos tempos. 3.1.1 O Saturamento dos ideais da modernidade: tempo de reflexões O modelo moderno, com os seus paradigmas racionalistas, com o passar do tempo, tornou-se insuficiente para a explicação teórica da sistemática social. Aquelas situações que inicialmente surgiram como soluções satisfatórias para os problemas que assolavam a sociedade européia do medievo e pós-renascentista passaram a ser fonte fértil de novos problemas, ainda mais complexos e em maior grau de intensidade172. Os ideais totalizantes sob o arcabouço racionalista conseguiram manter-se como pedra angular do entendimento das relações sociais173. A formatação criada pelos modelos de pensamento, em fórmulas e escalas sofisticadas acabaram por se distanciar da realidade, sem manifestar condições de entendimento e reprodução do social. Em considerável grau, as formas criadas para propiciar um pleno exercício da liberdade, em grande parte, passaram a ser vistas como limitadoras da compreensão das questões sociais. O conhecimento torna-se cego, ou, como afirma Zygmunt Bauman, a maior parte de sua história, a modernidade, viveu na era da auto-ilusão174, no que é complementado por Eduardo Bittar, arrematando: “a superação dessas condições de ____________ 172 Max Horkheimer apresenta duras críticas ao modelo moderno, em especial em relação a seu apego racionalista: “ao tentar transformar a física experimental num protótipo de todas as ciências e modelar todas as esferas da vida intelectual segundo as técnicas do laboratório, o pragmatismo é o correlato do insdustrialismo moderno, para quem a fábrica é o protótipo da existência humana, e que modela todos os ramos da cultura segundo a produção na ‘linha de montagem’ ou segundo o escritório executivo racionalizado. A fim de provar seu direito a ser concebido, todo pensamento deve ter um álibi, deve apresentar um registro da sua utilidade” (In: HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Traduzido por Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002, p. 57) 173 Zygmunt Bauman frisa: “a ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a natureza e subordiná-la às necessidades humanas” (In: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 48). 174 In: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, p. 245. 71 cegueira moderna, que se seguiu à cegueira medieval, é condição imprescindível para a forja de um novo futuro”175. Por outro lado, a tão apregoada economia de mercado também passa a apresentar uma nova realidade que exige medidas drásticas, muitas vezes aquém da força que o Estado se dispõe a empregar. Também a liberdade de mercado escraviza, cria cartéis e monopólios que dão vida real à ‘mão invisível’ que domina a economia. Essa situação exige do Estado uma atuação positiva, marcada pela ingerência na vida econômica e a criação de políticas públicas preocupadas com o domínio dessa nova realidade. O sistema democrático, no plano político, também passa a ser questionado, pois o modelo de democracia apenas formal desagrega os ideais democráticos, exigindo novos rumos mais comprometidos com os efetivos valores sociais. Somado a esse fator, constata-se que a previsão nas Cartas Constitucionais de direitos individuais meramente programáticos, sem um comprometimento maior com a sua concretização, gerou uma certa frustração em relação aos direitos fundamentais, exigindo do Estado maior intensidade no trato da questão. Contudo, de todos os fatores que contribuíram para o repensar da modernidade, não resta dúvida de que o de maior destaque é a limitação do modelo moderno, calcado em paradigmas herméticos, que se negaram a evoluir em compasso com a caminhada da humanidade e se contentaram com uma evolução artificial, fruto do engenho humano, desenvolvido sem comprometimento com a realidade social. O artificialismo plástico e desumanizado da modernidade gerou a sua crise e abriu brechas para o ingresso de novas visões, se não mais adequadas, pelo menos mais preocupadas em resgatar o humanismo esquecido pelo excesso de massificação social. Como afirma Eduardo C. B. Bittar, cada fator de desgaste da modernidade representa uma semente ou um passo em direção à pósmodernidade176. ____________ In: BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade, p. 52. In: BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na pós-modernidade, p. 93. O autor afirma ainda: “a pósmodernidade mantém-se por um enlace em contato com a modernidade, ainda, por uma forte e marcante fase de crise. A crise é o sinal mais claro da transição, da mudança, da passagem, da travessia, que não há de ser pouco traumática, entre duas eras tão diferentes. Portanto a crise é a demonstração clara e evidente das desrazões modernas, crise que em parte é o que a pós-modernidade pode mostrar e oferecer por hora, ao mundo” (p. 95). 176 175 72 3.1.2 O impulso da Globalização Frente à decepção criada pela modernidade nas suas tentativas inócuas de manter os seus modelos, os paradigmas sociais mudaram de foco, rendendo-se ao influxo do que mais tarde se consagrou como a globalização. Inicialmente vista apenas como uma nova fase do sistema econômico capitalista, a globalização acabou por consagrar-se como um fenômeno de grandes proporções, atingindo a vida em sociedade no seu sentido mais amplo177. Como enfatiza José Eduardo Faria, “tema corrente na agenda contemporânea, a globalização é um fenômeno complexo e multifacetado, com profundas modificações nas mais variadas áreas do conhecimento e nos mais diversos setores da vida social”178. Assim a globalização acabou por se consolidar como um fenômeno cultural, enraizando-se definitivamente179 em nosso modus vivendi e criando novas formas de atuação na sociedade: agir, pensar, produzir, etc180. Entretanto não se trata de um processo acabado. Ao contrário, a globalização continua em constante evolução, num itinerário que se mostra cada vez mais amplo e complexo. Na precisa afirmação de Zygmunt Bauman, para alguns a globalização é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da infelicidade. Para todos, porém, ‘globalização é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível’181. Assim a complexidade crescente nas relações sociais, criadas pela explosão demográfica, pelo aumento da participação ativa da população no mercado econômico, o ____________ Na lição de Francesco Galgano: “se suele hablar de la globalización con significados mui diversos. Se hace referencia a las nuevas tecnologias de la comunicación que han llevado a superar las barreras físicas del espacio y transformar a los habitantes de la Terra em miembros de uma ‘aldea global’. Se hace mención a um fenómeno económico, consecuencia de la caída progresiva de las barreras aduaneras y de la conseguinte ampliación de los mercados más allá de todo límite político, hasta el advenimiento de los actuales mercados globales. Tambiém puede acontecer que se ponga el acento en la cresciente ‘transnacionalidad’ del comercio o de las finanzas, o que se dé relevancia a las dimensiones transnacionales asumidas por la economia industrial que transformaran el planeta en un mundo habitado, permítaseme la metáfora, por estos dinosauros revividos que son las empresas transnacionales. También puede referirse a un concepto que contenga en sí mismo todos los aspectos singulares ya descriptos, complementándose unos con otros. Finalmente, para correlacionarlo con la protesta ‘no global’, no es raro que se hable de globalización como redición del imperialismo, técnica renovada de aprovechamento de las áreas deprimidas del mundo” concluindo: “de la globalización se ocupan filósofos, economistas y juristas” (In: GALGANO, Francesco. La Globalización en el espejo del Derecho. Traduzido por Horácio Roitman e Maria de la Colina. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2005, p. 13). 178 In: FARIA, José Eduardo. Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 7. 179 Note-se que a história é fértil em relação a situações que indicam a existência de profundas raízes da globalização já há um longo tempo. Desde o processo colonizatório, o imperialismo, a formação dos primeiros monopólios, até o marco indelével deste modelo: o fim da guerra fria. 180 Não é raro encontrar na doutrina posicionamentos teóricos que frisam a necessidade de diferenciação entre os termos globalização e mundialização. O primeiro representaria uma vertente de caráter econômico que envolve o planeta em um mesmo mercado. Já a mundialização estaria ligada a fatores culturais que englobaria as culturas locais e regionais numa única concepção de mundo. Optamos por não realizar tal distinção, considerando a mundialização como apenas um efeito inevitável da globalização. 177 73 consumismo desenfreado com a correspondente ebulição da produção em série, propiciaram a busca de soluções que se manifestassem de forma mais abrangente. A solução pontual de problemas se mostrava inviável e, ainda, esbarrava nos ideais de justiça social igualitária, ensejando a busca de soluções de caráter mais abrangente, vendo os problemas - e as pessoas em blocos, de modo despersonalizado. Ao mesmo tempo que o Estado reconhecia que esta parecia ser a melhor forma de enfrentamento da crise da modernidade, também foi obrigado a reconhecer a sua impotência para dar as respostas e implementar as soluções que entendia mais adequadas. O mercado estava cada vez mais fortificado, não apenas pelo poder econômico que acumulou com o passar do tempo, mas, principalmente, pelo ambiente de dependência social que havia criado. A força da globalização retirou a energia que o Estado necessitava para continuar ostentando a forma tradicional de soberania. Nasce o ‘Estado-fraco’ ou ‘quase-Estado’182, que não mais consegue cumprir a ortodoxa função de manutenção do equilíbrio dinâmico entre o crescimento do consumo e a elevação da produtividade, pois vive-se num mundo onde o capital não tem domicílio fixo e seus fluxos financeiros estão bem além do controle dos governos nacionais183. Essa nova ‘desordem mundial’ retira o Estado da posição de centro de controle, e, como enfatiza Zygmunt Bauman, quebram-se os três pés do ‘tripé da soberania” – auto-suficiência militar, econômica e cultural – de forma que a sua própria auto-sustentação deixa de ser algo viável184. Nesse contexto, não restam dúvidas de que o lastro econômico é o mais atingido pelo influxo cada vez mais incisivo do ‘grande mercado mundial’. Ao mesmo tempo, a ganância empresarial partiu para a busca de novos mercados, ampliando seus horizontes tradicionais, a procura de um crescimento mais intenso e monopolizador, livre de riscos e segurado pela dominação. Abre-se, assim, o mercado mundial, impulsionado pela evolução nas formas de comunicação, pela massificação das 181 In: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Traduzido por Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 7. 182 Nesse sentido, Erick Jayme manifesta-se afirmando: “a globalização é caracterizada pelo fato dos Estados não serem mais os centros do poder e da proteção da pessoa humana. Os Estados estão cedendo grande parte de seus poderes aos mercados. As regras da concorrência determinam a vida e o comportamento dos seres humanos. A existência de um mercado global permite fusões de grandes empresas, resultando em um poder econômico gigantesco, que deixa aberta a questão da proteção do indivíduo que gostaria de manter seu posto de trabalho, proteção tradicionalmente fornecida pelo Estado. Para preencher este vazio legal, os juristas reclamam a criação de um sistema mundial de proteção contra as críticas anti-concorrenciais” (In: “O Direito Internacional Privado no novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização.” Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPPDir/UFRGS, mar. 2003). 183 In: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 64. 184 In: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 72. 74 relações sociais e pelo enfraquecimento das fronteiras geográficas formais. Cria-se um mundo sem limites; as fronteiras nacionais são enfraquecidas e, às vezes, até esquecidas, em nome do crescimento econômico. Nasce a aldeia global, com a criação de mercados mundiais, fundado no livre tráfego comercial entre os mais diversos países, no que já foi chamado de ‘fim da geografia’185. A globalização, como não poderia deixar de ser, trouxe a lume uma nova visão social, criando uma igualdade formal mais objetivada e repassando para a vida econômica os ideais de isonomia social além das fronteiras das diversas nacionalidades. O indivíduo passa a pertencer ao mundo, ao mesmo tempo que este também lhe pertence. A humanidade parece se organizar num projeto mundial de aproximação entre os povos e indivíduos. A igualdade, expressada no tratamento massificado, passa a ser a tônica do convívio em sociedade. Entretanto a globalização é ambivalente, pois, como sintetiza Zygmunt Bauman, ela tanto divide como une e divide enquanto une, pois as causas da divisa são idênticas às que promovem a uniformidade do globo186. 3.1.3 A frustração do modelo globalizado A globalização, em especial no plano econômico, resultou como fruto de uma renovação do capitalismo desenfreado que tomou conta dos valores da modernidade, levando às últimas conseqüências os ideais do modelo liberal187. Era necessário reinventar novos valores, mas que, de certa forma, apenas mascarassem a realidade econômica então reinante, sem mudanças profundas. Criar o novo sem inovar. Vai se firmando, então, o chamado neoliberalismo e com ele se quer abandonar alguns dos erros sociais que foram derrocados ____________ Esta expressão foi utilizada por O’BRIEN, Richard. Global Financial Integration: the end of geography. Londres: Chathan Hause, Pinter, 1992. Nesse sentido, escreve Zygmunt Bauman: “as distâncias já não importam, ao passo que a idéia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no ‘mundo real”. Parece claro de repente que as divisões do continente e do globo como um todo foram em função das distancias, outrora impositivamente reais devido aos transportes primitivos e às dificuldades de viagem. Com efeito, longe de ser um ‘dado’ objetivo, impessoal, físico, a ‘distância’ é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida (e, numa economia monetária de custo envolvido na produção dessa velocidade. Todos os outros fatores socialmente produzidos de constituição, separação e manutenção de identidades coletivas - como fronteiras estatais ou barreiras culturais – parecem, em retrospectivas, menos efeitos secundário dessa velocidade” (In: Globalização: as conseqüências humanas, p. 19). 186 In: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 8. 187 A jurista Argentina Claudia R. Brizzio explica: “la palabra ‘globalización’ fue utilizada inicialmente en la área económica, pero pronto se hicieron notar sus conotaciones sociales, culturales, científicas, tecnológicas e ideológicas. Mientras se nos há hecho impreciso lo que queremos decir con el término globalización, también se nos hace cada vez más evidente que se trata de algo que está presente, que es importante y que afecta nuestras vidas. La sentimos y la vivimos aunque no separamos comprenderla, no conozcamos lo que abarca ni tiengamos 185 75 pelo capitalismo tradicional. A liberdade continua exercendo o seu papel de espinha dorsal do sistema econômico-social, mas precisa passar a ser vigiada, para que o sistema não venha a apresentar falhas que denotem a sua originária fragilidade. Cria-se, nesse contexto, uma série de interrogações de difícil abordagem, quer pela profundidade que esses temas encerram, quer pela diversidade de seus efeitos. Francesco Galgano sintetiza essas angustias: “en una sociedad ‘mundializada’ uno se pregunta cómo pueden encontrar adecuada proteción la liberdad y los derechos humanos; cómo puede conseguirse el debido respeto por la nueva sociedad postnacional los principios democráticos surgidos históricamente en los ámbitos nacionales, y qué cambios se han producido, o deben producirse, en a regulación de los intercambios o, en general, en la organización jurídica de los mercados”188. No plano social, a promessa de isomonia em relação às oportunidades sociais passam a representar desejos não concretizados e cada vez mais distantes da realidade. A massificação social aprisiona mais do que os antigos sistemas escravocratas. É uma cadeia sem grades, mas também sem possibilidades de fuga. O indivíduo se vê perdido numa teia social que o absorve, utilizando-o apenas como fio para a tessitura social. O ser humano passa, então, a ser um número considerado nas estatísticas de marketing, de desenvolvimento econômico ou, simplesmente, um eleitor. Nesse contexto, a globalização engole o indivíduo e o torna produto de uma realidade que o formata, decidindo sobre os seus desejos e traçando o seu futuro. Fala-se em ‘coisificação do indivíduo’189, que de pretenso agente social assume o papel de elemento de engrenagem da máquina social190. Não há como deixar de reconhecer os efeitos nocivos que a globalização irreversíveis. claro adonde nos lleva” (In: BRIZZIO, Claudia R. “Globalización y Debilidad Jurídica.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p. 563). 188 In: GALGANO, Francesco. La Globalización en el espejo del Derecho, p. 13. 189 Nesse sentido, Carlos Ghersi, ao acupar-se do enfrentamento da tarefa de analisar juridicamente os contratos ‘sem sujeito’, destaca: “desde lo filosófico-sociológico, el contrato sin sujeto, es una aberración, pues implica someter a las relaciones sociales a la ´cosificación total’ de allí que sea necesario ‘ mantener o rehumanizar’ la estructura del contrato, desde la óptica que la conpensación de ganancias – en términos del capital – no es prevalente a la finalidad teleológica del mejoramiento de los niveles de vida en la comunidad, porque se trata del ‘hombre’, como sujeto beneficiário de servicios esenciales, educación, domésticos” (In: GHERSI, Carlos A. La posmodernidad jurídica. Buenos Aires: Ediciones Gowa, 1995, p. 66). 190 Ernesto Sábato observa: “o Renascimento foi de início individualista para logo depois conduzir ‘a massificação, começou voltando-se para a natureza para terminar na máquina, começou reivindicando o homem concreto para acabar na abstração da ciência. O homem deve lutar hoje por uma nova síntese: Não uma mera ressurreição do individualismo, mas a conciliação do indivíduo com a comunidade; não o desterro da proporciona aos mais vulneráveis, causando-lhe males praticamente 76 No plano da justiça social, a globalização não trouxe evolução na distribuição de renda ou da melhoria das condições de vida em sociedade191. O que, num primeiro momento, parecia um sinal de evolução social, com o passar do tempo, se revelou como uma cruel e covarde forma de extinção de culturas locais em nome de uma padronização que não se sabe exatamente a quem aproveitam. Os valores culturais, em grande parte regionalizados, são engolidos pela voracidade da massificação social, numa dinâmica tão acelerada e sem opções, que retira qualquer possibilidade de resistência. O impacto da globalização foi aterrorizante, pondo a lume a fragilidade das nossas mais arraigadas tradições e experiências culturais, que foram arrancadas de forma abrupta e substituídas por uma cultura sem alma192. Essa crise de identidade, constatada após o assentamento da poeira da euforia ocasionada pela globalização, fez com que a humanidade experimentasse uma espécie de frustração em relação aos valores vazios que recebeu de braços abertos. A superficialidade dos valores globalizados não conseguiu sustentar a consagração definitiva de seu projeto, dando azo ao aparecimento de fissuras que não apenas irão enfraquecer o modelo globalizado, mas que servirão como subterfúgio para os embates teóricos que se projetam a partir de então. Será nas feridas, ainda abertas, da globalização que irá surgir uma nova proposta de pensamento, que terá a tarefa de retonar ao passado e corrigir alguns erros que levaram à mudança de rumo da humanidade. razão e da máquina, mas a sua destinação aos estritos territórios que lhe correspondem” (In: Homens e engrenagens. Tradução de Janer Cristaldo. Campinas: Parirus, 1993, p. 131). 191 Claudia R. Brizzo aponta: “una de las variables más relevantes en este nuevo orden mundial es in: lugar a dudas el crescimiento económico. Es necesario para el empleo, la alimentación, la vivenda, la vestimenta, la atención sanitaria, el conocimiento, y la recaudación impositiva. Se lo considera indisensable para implementar programas sociales de gobierno, las nuevas tecnologías, para el mejor tratamiento de los problemas ambientales, el acceso a la información global, el aumento de la expectativa de vida y la redución de la mortalidad infantil. Pero, como la outra cara de la misma moneda, se lo asocia asimismo con el aumento del desempleo, el agrandamiento de las brechas salariales, las disputas comerciales, el consumo energético y los disturbios políticos. Se admite su incidencia en la degradación ambiental, las migraciones de los países nuevos desarrollados, el desplazamiento tecnológico, el conflicto entre objetivos sociales y económicos, y la desigualdad en la distribuición de la riqueza en los distintos países. También se sostiene que ‘los procesos globalizadores incluyen una segragación , separación y marginación social progresiva” (In: “Globalización y Debilidad Jurídica.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 564). 192 Zigmunt Bauman constata: “todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E no entanto os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se plena e verdadeiramente ‘globais’; alguns se fixam na sua ‘localidade’ – transe que não é nem agradável nem suportável no mundo em que os ‘globais’ dão o tom e fazem as regras do jogo da vida. Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social”, concluindo: “uma parte integrante do processo de globalização é a progressiva segregação espacial, a progressiva separação e exclusão” (In: Globalização: as conseqüências humanas, p. 9). 77 3.1.4 A busca de novos paradigmas para o entendimento social A frustração experimentada pela globalização se fez sentir em praticamente todos os setores da sociedade. Constatada a insuficiência do modelo globalizante, num ato contínuo, passou-se a uma situação de caos social, com a relativização de uma série de valores, proporcionando um desmoronamento na estrutura, ainda de forte tom racionalista, que marcou a massificação das relações sociais. A fluidez das relações sociais gerou uma situação de descontrole, trazendo por terra uma série de formulações que ganharam sustento sob o signo de legitimações meramente formais. Ocorre uma crise de legitimação dos valores sociais, trazendo à tona e de forma otimizada todas as mazelas da globalização. E, em meio a essa verdadeira ‘tempestade’ das idéias sociais, o indivíduo reclama o seu retorno ao eixo central do ordenamento social, pleiteia a sua revalorização, não mais como um número considerável apenas para as estatísticas sociais, mas como o fim em si mesmo da vida em sociedade. A brecha que permite essa exigência de mudança de paradigma é exatamente o redimensionamento dado ao ser humano por meio da redescoberta dos direitos humanos, em especial como exigência do relacionamento internacional entre os povos. Pactos sociais de respeito aos Direitos Humanos são revitalizados e passam - num aparente influxo de globalização fora da economia - a representar aspirações supranacionais que unem a humanidade e ajudam a buscar um diálogo comum entre os povos. 3.1.5 Os Erros da Globalização e a necessidade de correção O arrebatador surto da globalização, que veio com a força de um furacão, deixou suas feridas de difícil cicatrização no tecido social. Os erros da massificação social foram muitos, mas mais intensa ainda foram as suas conseqüências. Muitos dos rastros de equívocos no trato da humanidade parecem irreversíveis ou pelo menos dependerão, em grande parte, do sucesso de medidas ousadas de rompimento com o passado recente. É necessário resgatar os valores sociais esmagados pela voracidade da massificação, voltar ao Estado ativo que se funda na criação de preservação de um ambiente que proporcione a evolução social, nos seus mais diversos setores. Os valores sociais devem voltar a ser a tônica do pensamento, e novas formas de conhecimento devem ser desenvolvidas para consolidar definitivamente esses valores. 78 O mercado não poderá manter em suas mãos o futuro da sociedade. Ele deve ser um elemento do social e não o seu senhor. Ao mercado cabe conter-se em ocupar o espaço que lhe é destinado, como ambiente de trocas econômicas, tão caras ao intercâmbio social. Não deve o mercado ser agente de influência na vida das pessoas e, sim, um instrumento do qual essas possam se utilizar para o desempenho de suas potencialidades. Será o mercado das pessoas e não das coisas. Como aponta Andrade Mattietto: “a aceitação do mercado como princípio diretivo da ordem jurídica é uma idéia inadmissível. Não o mercado, mas a pessoa é o valor de vértice do sistema jurídico. Como expressão de uma lógica econômica e patrimonial, o mercado deve ficar em posição subordinada e funcionalizada ao respeito pela dignidade da pessoa humana e pelas situações não patrimoniais”193. Assim faz-se mister o abandono das idéias ortodoxas no sentido de que o mercado é um organismo vivo, dotado de mecanismos capazes de desincumbir-se da tarefa de realização das constantes autocorreções, que necessita, com freqüência, para manter o seu equilíbrio interno entre as forças que nele se fazem presentes, numa similitude com a teoria Newtoniana do equilíbrio dinâmico do cosmos. Tal compensação de forças mantenedora de um mundo em movimento harmônico é ilusória, e há muito já não se faz presente nem nos pensadores mais esperançosos194. Ainda, para adimplir a sua dívida, deve a sociedade pós-moderna reencontrar o sujeito social, destacando a sua importância e trazendo-o de volta ao seu habitat natural, como agente social. A sociedade deve assumir a tarefa de propiciar a inclusão - ou reinclusão - do agente no contexto social, de maneira que ele passe a participar ativamente do projeto social. Para tanto, a potencialização máxima dos direitos humanos, quer nos textos constitucionais quer na realidade dos tribunais, se impõe como único caminho a ser trilhado nesta romaria de reencontro com os valores sociais. ____________ In: MATTIETTO, Leonardo de Andrade. “O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio jurídico e o novo Código Civil.” In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (org.) ; et al. Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 31. 194 Claudia R. Brizzio observa: “sin una ética de la economía, sin justicia en la distribuición, la liberdad de comércio sólo sirve para que unos pocos acumulen impúdicamente demasiada riqueza, provocando la exclusión de la mayoría, en la denominada ‘economia de Madonna’, que se semeja un gran circo mundial que presenta en todos lados el mismo espetáculo, aunque no todos han sido invitados a participar en él. Además, de tan interesante espetáculo, en que la sociedad globalizada ‘tiene a compartir usos y costumbres y hacerse homogénea hasta en sus pensamientos com abstracción del lugar físico que ocupen sus miembros, sólo estamos viendo la parte delantera del ascenario, pues el andamiaje multicolor al que nos tiene acostumbrado la sociedad occidental no sólo minimiza, sino que oculta la auténtica realidad global del planeta” (In: “Globalización y Debilidad Jurídica.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 565-6). 193 79 3.1.6 O caos da complexidade social e a busca de reconstrução O caos criado pela saturação do modelo globalizado criou uma sociedade de extrema complexidade, na qual o trabalho de conserto parece ser maior do que o da própria construção de um novo modelo. Não é possível ignorar a realidade com a sua vasta abrangência, mas, contudo, a busca de compreensão sobre o todo ainda se mostra nebulosa e difusa. Na procura de novos paradigmas, a realidade social se mostra impaciente. A apatia da globalização dá lugar a uma angustia que exige respostas rápidas e seguras, que permitam a continuidade da caminhada social. E, como se não bastassem as dificuldades naturais dessa reconstrução, ao mesmo tempo é necessário enfrentar a tarefa de construção de um novo modelo frente às novas realidades surgidas nos entremeios da massificação, como a revolução da informática, as novas técnicas de bioética e o crescimento da robótica. O amadurecimento do pensamento em relação a essas novas realidades terá que dividir espaço com a reforma das idéias tradicionais, trazendo um aceleramento da evolução dos paradigmas que corre o risco de fugir ao controle dogmático. Esse é o ponto a que chegou a humanidade; entre acertos e erros, a realidade resultante nos mostra a necessidade de dar continuidade às reflexões sobre o pensamento social, de forma a manter-se firme nos seus propósitos de compreensão da realidade para o atingimento de seus verdadeiros fins. Por outro lado, não se pode olvidar que a evolução da globalização se fez acompanhar de uma importante mutação no modo de produção capitalista, que se reflete diretamente no ambiente social. O modelo produtivo conhecido como ‘fordismo’ é superado por novas técnicas, num ciclo chamado de ‘pós-fordismo’. O sistema de produção fordista, que gerou a época áurea da automatização da produção, acabou por criar uma cultura de acumulação intensiva de capital, fundada em duas premissas basilares: de um lado a reorganização do processo de produção taylorista195, com uma produção em série, e de outro, a formação de estruturas de consumo massivo que daria vazão a essa produção196. ____________ O sistema de produção taylorista é marcado pela inserção de tecnologias na atividade produtiva. Inicialmente a energia elétrica, seguida da computação e da robótica. 196 Conforme GHERSI, Carlos A. La posmodernidad jurídica, p. 53. 195 80 O sistema fordista foi marcado pela fragmentação nas etapas produtivas, que, apesar de apresentar bons resultados econômicos para as empresas, recebia a acusação de desencadear um processo irreversível de alienação. O modelo pós-fordista não corrige essa conseqüência, mas, agrupado às altas tecnologias, cria um ambiente produtivo seletivo, composto por pequenos grupos de trabalhadores especialmente qualificados. Concomitantemente à mudança de técnica produtiva, o mercado que circunda essa produção passa a ganhar outro perfil. Ao lado da tradicional economia de produção de bens, ganha espaço, e com o mesmo fôlego, as prestações de serviços, criando novos paradigmas no convívio social, em especial quanto aos contratos, que passam a ser mais duradouros e de trato sucessivo197. Como garantia do sucesso dessa nova técnica, passa a ser considerada a existência de um mercado segmentado, que permite uma falsa modelação dos contratos a cada indivíduo, de acordo com o grupo a que pertença198. 3.2 A PÓS-MODERNIDADE E A CIÊNCIA JURÍDICA Essa nova fase do pensamento humano, por muitos designada de pósmodernidade199, acaba por se concretizar como uma etapa irreversível da humanidade e que ____________ Carlos Ghersi aponta: “queda demostrado que hacia el interior de la sociedad tenemos ya instalado al Estado posfordista o posmoderno y las ‘situaciones jurídicas’ que prevalecerán serán seguramente las descriptas como las estructuras contractuales de servicios’ (In: GHERSI, Carlos A. “La estructura contratctual posmoderna.” In: Revista de Derecho Privado y Comunitário. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, jan. 1997, v. 3. (Contratos Modernos), p. 336). 198 Carlos Ghersi ensina: “las relaciones socioeconómicas que se manejan en los contratos de serviços, ya no pueden individualizarse o concretizarse, pues los beneficiarios están estrategicamente estratificados económicamente – medicina classe ‘A’ para ‘A’ estrato economico, verbg.: nivel gerencial -; localizados posicionalmente, verbg.: energia eléctrica doméstica, esto hace a las nuevas estructuras y segmentaciones del mercado (nicho) y son presenteados – por hora – como irrversibles. [...] El modelo se presenta así como estructura sin sujeto, pues se implementa para una franja – pluralidad de individuos – que contraponen sólo un ‘X’ poder aquisitivo – en relación com sus ingresos económicos – no hay discución posible, ni opción a nivel individual, pues aun esta última está ‘predeterminada’ por la franja disponible de sus recursos económicos o en el caso de los servicios domésticos son imposición irrestrita” (In: La posmodernidad jurídica, p. 64-5). 199 É freqüente também o uso das expressões: segunda modernidade, sobremodernidade, modernização da modernidade e modernidade líquida (esta última utilizada em especial por BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Traduzido por Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001). Buscando definir o termo pósmodernidade, Gary Minda explica: “L’idea di postmodernismo è sfuggente, difficile da definire. Non è né una teoria né un concetto; è piuttosto un atteggiamento o un’ecettica, che ‘diffida di ogni tentativo di creare teoria globali su larga scala per spiegare i fenomeni sociali’. I postmoderni rifiutanto l’idea che ‘ci sai un mondo reale o un sistema giuridico lá fuori, perfetto, formato, completo e coerente, che aspetta do essere conosciuto dalla teoria’. Come si è sviluppato in lingüística, nella teoria letteraria, nell’arte e nell’architettura, il postmodernismo è anche uno stile che segna la fine di um’era, il superamento dell’età moderna. Esso indica 197 81 agora está a merecer reflexões nos mais diversos campos do conhecimento social200. Assim o Direito, ciência social que é, não passará incólume a esta nova fase social e terá que se ajustar, para manter-se como instrumento adequado para o regramento das condutas sociais201. A pós-modernidade, portanto, traz uma mudança de rumo ao pensamento social que só encontra precedentes nas trocas de Eras experimentadas na evolução histórica da uma certa ‘fase cronologica’ che viene dopo il modernismo, e che mostra che cosa succede quando si rifiutano le fondamenta epistemologiche della modernità”. (In: MINDA, Gary. Teorie Postmoderne del Diritto. Il Mulino, 1995, p. 367). 200 De forma incisivamente cética, Maria Severiano, ao traçar uma análise psicosocial dos ideais do consumo na contemporaneidade, não se esquiva de tecer críticas à aceitação da pós-modernidade como momento de ruptura com o modelo social que lhe antecedeu, dizendo: “compreendo que nenhuma ruptura radical aconteceu entre o mundo moderno das sociedades do capitalismo industrial e a atual fase contemporânea que justifique a utilização do termo “pós”. As chamadas sociedades ‘pós-modernas’ são oriundas de um mesmo sistema capitalista; foram engendradas por este sistema e, mais do que nunca, o realizaram de forma globalizante” e que “estamos aqui diante da chamada ‘sociedade pós-moderna’ onde o prefixo ‘pós’, ao mesmo tempo que revela o grau de profundidade das transformações ocorridas, também oblitera o reconhecimento de que continuamos a ser uma sociedade de ‘massas’, regida pelo mesmo modo de produção – só que agora ‘segmentadas’. Devemos admitir que as transformações ocorridas nas duas últimas décadas foram de grande vulto. Muito se transformou para que o sistema permanecesse o mesmo” (In: Narcisismo e Publicidade: uma análise psicosocial dos ideais de consumo na contemporaneidade. São Paulo: Annablume, 2001, p. 61 e 80, respectivamente). 201 Nas precisas palavras de Miguel Reale e Miguel Reale Junior: “é sobretudo nas épocas de freqüentes e aceleradas mutações sociais e econômicas, épocas de perda e alterações de referências axiológicas, que é dever do intérprete, e especialmente do juiz, escapar à fácil tentação de resolver as questões judiciais tão-somente em função de declarações formais, tidas como muito claras, quando devem ser elas situadas no complexo unitário de seus motivos e circunstâncias. Bem visualizar e compreender esse complexo unitário - que inclui, necessariamente, a atenção ao contexto e consideração às circunstâncias concretas que envolvem cada ato humano, inclusos os atos negociais, como os contratos – resulta da aplicação do paradigma da conjuntura, expressão cunhada pelo ilustre historiador Fernand Braudel para indicar modelo em virtude do qual as pretensões e os atos humanos devem ser apreciados em função das coordenadas de espaço e de tempo” (In: Questões atuais de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 123). 82 sociedade202. Essas alterações, como não poderia deixar de ser, irão trazer à ciência jurídica novas indagações, exigindo respostas que até então ficavam ‘a latere´ da preocupação dos juristas mais tradicionais. O Direito passa, definitivamente, a desempenhar o papel de agente promotor de valores socialmente relevantes, numa redescoberta da sua função social. O modelo tradicional de Direito, calcado num sistema individualista e racional, buscando soluções dentro de uma noção de justiça formal e apegado a princípios anacrônicos que se preocupavam, em especial, em proporcionar a manutenção de um statu quo precisava ser remodelado. O aceleramento das relações sociais advindo da condição pós-moderna acentua com maior ênfase a já consolidada defasagem natural da ciência jurídica em relação à realidade social que a cerca. O Direito, que não consegue sequer acompanhar a evolução dos institutos sociais tradicionais - família, propriedade e contrato - precisa ainda dar vazão às novas realidades que lhe são apresentadas e que em nada são tributárias da simplicidade. Ao mesmo tempo, constata-se que a modernidade foi marcada pela busca incessante de concepção de um modelo social fundado na segurança e na certeza, o que resultava na concepção de modelos de pensamento essencialmente racionalistas. O passo decisivo para essa caminhada foi formado pela Revolução Francesa de 1789, com a vitória da burguesia e a sua conseqüente imposição de valores à sociedade pronta para assumir uma postura de submissão203. ____________ Claudia Lima Marques resume o fenômeno da pós-modernidade: “a realidade denominada pós-moderna é a realidade da pósindustrialização, do pós-fordismo, da tópica, do ceticismo quanto às ciências, quanto ao positivismo, época do caos, da multiplicidade de culturas e formas, do direito à diferença, da ‘euforia do individualismo e do mercado’ da globalização e da volta ao tribal. É a realidade da substituição do Estado pelas empresas particulares, de privatizações, do neo-liberalismo, de terceirizações, de comunicação irrestrita, de informação e de um neo-conservadorismo. Realidade de acumulação de bens não materiais, de desemprego massivo, de ceticismo sobre o geral, de um individualismo necessário, da coexistência de muitas meta-narrativas simultâneas e contraditórias, da perda de valores modernos, esculpidos pela revolução burguesa e substituídos por uma ética meramente discursiva e argumentativa, de legitimação pela linguagem, pelo consenso momentâneo e não mais pela lógica, pela razão ou somente pelos valores que apresenta. É uma época de vazio, de individualismo nas soluções e de insegurança jurídica, onde as antinomias são inevitáveis e a desregulamentação do sistema convive com o pluralismo das fontes legislativas e uma forte internacionalidade das relações. É a condição pós-moderna que, com a pós-industrialização e a globalização das economias, já atinge a América Latina e tem reflexos importantes na ciência do direito. É a crise do Estado do Bem-Estar Social” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Contratos bancários em tempos pós-modernos – primeiras reflexões.” In: RDC, v. 25, v. 25). 203 Zygmunt Bauman, ao analisar a questão da ‘insegurança pós-moderna’, explica: “se Sigmund Freud estava certo ou errado ao sugerir que a troca de uma boa parcela de liberdade pessoal por uma certa medida de segurança coletivamente garantida era a principal causa das aflições e sofrimentos psíquicos no período ‘clássico’ da civilização moderna, hoje, no estágio derradeiro pósmoderno da modernidade, é a tendência oposta, de trocar um bocado de segurança pela crescente remoção de restrições que tolhem o exercício da livre escolha, que gera os sentimentos amplamente difundidos de mede e ansiedade” (In: Globalização: as conseqüências humanas, p. 124). Assim, no contexto atual globalizado, a única segurança que o Estado pode oferecer é a de ordem pessoal – primeiro ao corpo e depois à propriedade, extensão espacial do corpo. Este mesmo autor conclui: “os governantes sérios não podem também prometer certeza; é quase universalmente considerada uma conclusão definitiva que eles devem conceder liberdade a ‘forças do mercado’ notadamente erráticas e imprevisíveis, as quais, tendo conquistado a extraterritorialidade, estão muito além do alcance de qualquer coisa que os impotentes governos ‘locais’ podem fazer (p. 126). 202 83 Assim, na seara do Direito, esse perfil social moderno foi projetado na adoção das grandes codificações, que se encarregaram de moldar os comportamentos individuais, propiciando estabilidade e previsibilidade esperadas para a obtenção de um “mundo de segurança”, que era compreendido de maneira correlata com a noção de Estado de Direito e de Justiça Social. As teorias contratualistas assentaram-se na ‘cláusula comutativa’: recebe-se em segurança aquilo que se concede em liberdade204. Essa concepção liberal, escalonada e compartimentalizada da Ciência Jurídica, serviu ainda de sustento para a identificação da nítida separação entre esferas públicas e privadas, ou melhor, entre Direito público e privado205. Entretanto as mudanças radicais sobre a forma de pensamento do social, advindas da onda pós-moderna, acarretam uma verdadeira crise206 de identidade na idéia de segurança, que se espalha por todos os ramos do conhecimento207. Assim complexidade pós-moderna põe ____________ Conforme BARROSO, Luís Roberto. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo (reflexões sobre direito adquirido, ponderação de interesses, papel do Poder Judiciário e dos meios de comunicação). Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 50. 205 Maria Celina Bodin de Moraes identifica neste ambiente que as relações do direito privado com o direito público estão claramente pré-definidas: “o direito privado coincide com o âmbito dos direitos naturais e inatos dos indivíduos, enquanto o direito público é o emanado pelo Estado, dirigido a finalidades de interesse geral. As duas esferas, aqui, são praticamente inseparáveis, reconhecendo-se ao Estado o poder de limitar os direitos dos indivíduos. Estas concentrações são o resultado da notória formulação Kantiana segundo a qual as duas esferas se distinguem, na essência, pela diversidade de fontes: a fonte do direito privado reside em princípios racionais, apriorísticos, a fonte do direito público, na vontade do legislador” (In: “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 48). 206 Claudia Lima Marques informa: “segundo Pauline Marie Rosenau, com a atual crise das ciências sociais, dois tipos de reação estão acontecendo. Há os que, tomados pelo ceticismo do momento, fotografam a crise e a destruição, prevêem o fim das certezas científicas, constatam o vácuo de valores, o egocentrismo, a exclusão, a complexidade e o consumismo exacerbado, que vagueia em nossa sociedade atual; desconstroem as teorias antes gerais, criticam severamente as soluções universalistas, mas acabam paralisados, minoritários, a utilizar os mesmos instrumentos jurídicos dos séculos passados, agora subjetivados ao extremo. Há os que, saudosos de algumas certezas da modernidade, procuram reconstruir as teorias em novas narrativas, frisam o diálogo das fontes, constatam a existência de novos paradigmas e verdades, verdades que, mesmo mais tolerantes, fluidas, menos universais e agora tópicas e microssistêmicas, povoam de sentido e luz o ordenamento atual. Sua reação é afirmativa, afirmativa da necessidade de reconstrução da ciência, de evolução dos instrumentos colocados à disposição dos juristas e cientistas sociais, da necessidade da consciência da crise e da força de superá-la. Aos primeiros denominou pós-modernos céticos, aos segundos, pós-modernos afirmativos, e fotografou, assim, com sua maneira simples, a crise atual da nossa ciência, concluindo que somente após retornar ao estudo do objeto (que poderia ser, em nosso caso, a justiça ao consumidor de serviços no Brasil) é que a abalada ciência, o direito, poderia, enfim, revitalizar-se. Efetivamente, apesar da complexidade das relações atuais e do sistema do direito, há que prevalecer uma ética reconstrutiva, uma dogmática renovadora e uma interpretação protetiva e justa para os mais fracos na sociedade de modo a tornar eficaz o direito” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 178-9). 207 Roberto Barrosso anota: “a idéia de segurança jurídica, todavia, enfrenta uma crise de identidade nesse início de século e de milênio, uma quadra histórica identificada pelo rótulo ambíguo de ‘pos-modernidade’, com algumas características bem delineadas. Na Política, vive-se a ampliação do espaço privado e da desconstrução do Estado tradicional, pela privatização e pela desregulamentação. No Comportamento, consolidou-se o gosto pela imagem, pela análise condensada, a impressão superficial. A vitória do efêmero e do volátil sobre o permanente e o essencial” (In: A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo (reflexões sobre direito adquirido, ponderação de interesses, papel do Poder Judiciário e dos meios de comunicação). Temas de Direito Constitucional, p. 51). 204 84 por terra o dogma da existência de uma “razão prática universal”, dando início ao que Erhard Denninger denomina de “crise generalizada da razão prática”208, marcada pela presença de insegurança e incertezas209. Maria Celina Bodin de Moraes aponta como indicativo desta “nova realidade” a constatação da impossibilidade de serem denominadas as conseqüências da tecnologia em suas mais amplas dimensões espaço-temporais –, de forma que as grandes descobertas científicas da atualidade – manipulações genéticas, reprodução assustadora, domínio da energia nuclear, desenvolvimento da cibernética – geram conseqüências que fogem do controle do conhecimento científico, levando os profissionais a ela dedicados à realização de escolhas ético-politicas jurídicas. A autora indica como exemplo dessa ordem os problemas relativos aos avanços tecnológicos em relação à clonagem dos seres humanos210. Nesse mesmo compasso, o crescimento infindável das fronteiras do conhecimento acaba por proteger um leque de questões sem solução, gerando o que Erhard Denninger denomina de “explosão de ignorância”211, disseminando novas incertezas. A dinamicidade com que as informações são obtidas e concentradas, em especial em decorrência dos avanços ____________ In: DENNINGER, Erhard. “Racionalidad tecnológica, responsabilidad ética y Derecho postmoderno.” In: Doxa, v. 14, 1993, p. 367. O autor explica: “Quizá deberíamos atrevernos a hablar sencillamente del ‘final de la razón general’. En cualquier caso lo que sí se puede es justificar la diferención entre ‘moderno’ y ‘postmoderno’, entre el Derecho de las luces y la Revolución francesa, y el actual Derecho postmoderno – teniendo bien presente que toda división por épocas conlleva en sí el error potencial de ser entendida como expresión de un universalismo histórico-; en esse caso se entenderá como fenómeno del fin de la razón universal, com todas suas concomitancias y secuelas”. Ciertamente al hacerlo así no se discute la posibilidad de todo ser humano de comunicarse com outros de forma ‘razonable’ y de decidirse en base a consideraciones y argumentos análogos. Tampoco hay que tocar aquí las categorias kantianas de la razón pura – es dicir, teórica – en su función de instrumentos úteis para compreender la realidade, es dicir, para su conceptualización, Sin embargo, no existe ya ninguma garantia (mas) de que podrán ser usados en todas partes y del mismo modo, al igual que com los mismos resultados práticos” (p. 367). 209 Como afirma Claudia Lima Marques, a pós-modernidade: “é uma época de vazio, de individualismo nas soluções e de insegurança jurídica, onde as antinomias são inevitáveis e a desregulamentação do sistema convive com o pluralismo de fontes legislativas e uma forte internacionalidade das relações. É a condição pósmoderna que, com a pós-industrialização e a globalização das economias, já atinge a América Latina e tem reflexos importantes na ciência do direito. É a crise do Estado do bem-estar social” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 174). 210 In: MORAES, Maria Celina Bodin. “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 49. 211 In: DENNINGER, Erhard. “Racionalidad tecnológica, responsabilidad ética y Derecho postmoderno.” In: Doxa, p. 367. De acordo com o este autor: “la ciencia produce saberes en sentido de certeza de algunos o muchos sujeitos epistemológicos en cuanto a determinadas materias. En la medida, empero, en el horizonte de tales saberes crece - y en algunos ámbitos, lo hace de forma más rápida todavia -, crece también el horizonte de cuestiones sin resolución, el horizonte del desconocimiento, la ignorancia o el no total conocimiento aún y, al par que se incrementa la conciencia de la propria incertidumbre se transforma el punto de vista em cuestión, sumergindo los aparentemente ‘resultados seguros’ en la penumbra de la eventualidad, de lo ya superado, de un futuro en cierto modo ya acaecido” (p. 368-9). 208 85 tecnológicos, numa espécie de “biblioteca virtual universal” que inviabiliza sejam adequadamente processadas e concentradas em conhecimento212. Essa situação de incerteza e insegurança faz brotar um novo sentimento social capaz de enfrentar as dificuldades do mundo pós-moderno, que é o sentimento de solidariedade, dito por Maria Celina Bodin de Moraes como sendo a “semente criadora de uma nova consciência moral, de uma nova ética”213. Assim o valor ‘segurança jurídica’ não pode ser visto apenas como um tributo à técnica legislativa, e, sim, como prática social comprometida com a concretização dos valores constitucionais, que devem servir de guia tanto para a atuação do Estado como para os particulares em suas relações intersubjetivas. Dessa forma, não se pode mais aceitar a concepção de segurança como um motivo justificador para a manutenção do status quo, antagonizando-se com as aspirações de mudança, que gerariam um ‘mundo de insegurança’. A defasagem do Direito em relação à realidade social, num claro descompasso com os valores constitucionais, é, sim, o nosso elemento gerador de insegurança. A pós-modernidade, dessa forma, coloca o Direito em uma encruzilhada cega e sem rastros. Deve o pensamento jurídico apenas se adequar a essa nova realidade, modernizando as suas idéias tradicionais, de modo a abarcar e normatizar as novas formas de contratos que nascem no cotidiano da realidade negocial, adaptar-se para receber e dar vazão aos novos projetos parentais, remodelar o seu tradicional conceito de domínio, ou a problemática deveria ser enfrentada em outro patamar. Esta é a dúvida que assola o pensamento jurídico atual. Seria o momento de mexer nos alicerces que dão sustento ao edifício do pensamento jurídico e recriar o Direito, ou apenas, como se passou na fase de transição do Medievo para a Era Moderna, aceitar as modificações e, aos poucos, ir desempenhando a tarefa de acomodamento da realidade. A batalha que atormenta o pensamento jurídico, na verdade, há muito já se faz presente nas diversas reflexões críticas que a doutrina jurídica tem apresentado no decorrer da ____________ Analisando essa ‘crise do conhecimento científico’, Maria Celina Bodin de Moraes explica: “aqui a incerteza encontra seu fato causador no esfacelamento das instituições, a primeiras delas a Universidade, que deixam de ser referências coletivas importantes. Em íntima conexão com o fim da generalização dos conteúdos da razão prática (isto é, da ética), está o enfraquecimento, por vezes a desintegração, de modelos tradicionais, relativos à formação das identidades coletivas, como o Estado Racional (basta pensar na União Européia), as classes sociais, as crenças religiosas, os partidos políticos, os sindicatos. Este fenômeno acarreta, ainda, que categorias clássicas do direito constitucional, tais como “bem comum”, “interesse publico”, lei, direitos fundamentais, precisam ser repensados. Do mesmo modo, como se verá, igual necessidade se impõe com relação aos conceitos tradicionais do direito civil” (In: “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 50-1). 213 In: MORAES, Maria Celina Bodin. “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 51. 212 86 própria modernidade. Em nome da manutenção de seu papel de controle social, deve o Direito se contentar com o desempenho de uma tarefa artificial e mantenedora da situação atual, como uma espécie de artista que cria a sua obra ao sabor da vontade do autor da encomenda, ou será necessário que o Direito assuma o seu papel de agente criador desta nova realidade, não apenas como um espelho que reflete a imagem superficial, mas como um instrumento que enxerga além das aparências e servirá para trazer a lume o verdadeiro substrato social. Parece que as aspirações sociais estão no sentido de concretização da segunda alternativa, o que dependerá, em especial, do papel que o Direito pretende assumir nesse novo ambiente social que lhe é legado. 3.2.1 Primeiros diagnósticos da influência da pós-modernidade sobre o pensamento jurídico Tão forte quanto a dificuldade conceitual da condição pós-moderna é a sua influência sobre o pensamento social, particularmente no Direito, constantemente permeado pelas mudanças de orientações das formas de debates sobre os fenômenos sociais. Na lição de Cláudia Lima Marques, os tempos pós-modernos são um desafio para o Direito: “tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do Direito de dar respostas adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade atual e se modificam com uma velocidade assustadora”214. A ciência jurídica atual, portanto, está embrenhada nessa tarefa de compreender, absorver e corresponder à pós-modernidade215, e, para tanto, tem experimentado uma série de transformações que perpassam os mais diversos compartimentos do conhecimento jurídico. ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 168. A autora complementa: “para alguns o pós-modernismo é uma crise de desconstrução, de fragmentação, de indeterminação, à procura de uma nova racionalidade, de desregulamentação e deslegitimação de nossas instituições, de desdogmatização do direito. Para outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o direito. Este fenômeno aumenta a liberdade dos indivíduos, mas diminui o poder de raciocínio, da crítica em geral, da evolução histórica e da verdade, também em nossa ciência, o direito. Fenômeno contemporâneo à globalização e à perda da individualidade moderna, assegura novos direitos individuais à diferença, destaca os direitos humanos, mas aumenta o radicalismo e o conservadorismo acrítico das linhas tradicionais” (p. 168-9). 215 Como enfatiza Carlos Ghersi, “permanecer al margen de esta discusión científica en el derecho es marginarse del futuro” (In: La posmodernidad jurídica, p. 13). 214 87 Na esteira dos ensinamentos de Erick Jayme, o ponto de encontro entre a cultura pósmoderna e o Direito são os valores que tem em comum216. Assim, na visão deste autor, a cultura pós-moderna, que atinge o sistema jurídico, vem impregnada de quatro fenômenos: o pluralismo, a comunicação, a narratividade e o retorno aos sentimentos, tendo como leitmotiv o papel primordial dos direitos humanos, orientados pela dignidade da pessoa humana217. Conforme a afirmação de Erick Jayme, a pós-modernidade vive de antinomias, de pares contrapostos: ela se define justamente através da Modernidade, que ela não quer ser218. Assim, o pluralismo é enxergado na tendência atual do Direito em comportar o convívio de fontes, numa verdadeira multiplicidade de manifestações legislativas a regular um mesmo fato, o que leva alguns autores a falar em inflação legislativa219. Na linguagem do Direito, o pluralismo significa ter à disposição alternativas, opções, possibilidades220. Neste ímpeto, em oposição ao centralismo normativo das codificações da Era Moderna, ocorre o fenômeno da descodificação, que se faz sentir nos mais diversos campos do Direito, mas se destaca no setor privado, como ocorre com o Direito do Consumidor, do Inquilinato, da infância e juventude, entre outros. Tal fenômeno decorre da conscientização da ineficácia do modelo normativo centralizado, somado à necessidade de formulação de regras mais específicas, capazes de atender de forma mais adequada às mudanças sociais. Assim a idéia de existência de um ____________ JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito – PPGDir/UFGRS, p. 59. 217 JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito – PPGDir/UFGRS, 60 e ss. O autor adverte que “a escolha destes quatro valores da cultura pós-moderna – pluralismo, comunicação, narração e retorno dos sentimentos – pode parecer arbitrária, mas esta escolha permite pôr em evidência a ligação entre o direito e a cultura pós-moderna.” (p. 60). Na doutrina jurídica espanhola Andrés García Inda aponta cinco valores de referência para o encontro do Direito com a pós-modernidade: multiplicidade, flexibilidade, leveza, rapidez e paradoxo, no que, de forma geral, acaba por coincidir com a lição do mestre germânico. Boaventura de Souza Santos, na mesma linha de raciocínio, por sua vez, em diversas obras, ressalta que a pós-modernidade acentua no Direito as noções de pluralidade, interlegalidade, não-sincronismo, e mescla de códigos. 218 In: JAYME, Erik. “Visões para uma Teoria Pós-moderna do Direito Comparado.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFRGS, p. 69. 219 O pluralismo pós-moderno também pode ser enfocado como a característica de diversidade de fontes do direito, como reação ao monismo estatal. Neste sentido as lições de TERRÉ, Dominique. Le pluralisme et le droit. Archives de Philosophie du Droit. Dalloz, 2006. t. 49, p. 67 e ss. 220 Conforme JAYME, Erik. “Visões para uma Teoria Pós-moderna do Direito Comparado.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFRGS, v. I, n. I, mar. 2003, p. 73. Ludwig Raiser analisa a influência da idéia de pluralismo do Direto Privado, pregando uma abertura deste sistema: “torna-se claro que deve valer como segunda premissa para a continuidade do direito privado: ele não deve fechar-se por receio a uma perda da identidade nas suas formas clássicas de pensamento, mas precisa assumir a tarefa de, sozinho ou com a atuação conjunta com o direito público, ordenar e estruturar o campo, que nós assinalamos acima como ‘público’. Isto só pode ter resultado, se ele levar em conta a multiplicidade de campos da vida e necessidades de uma sociedade industrial, de forma que ele estabeleça seus institutos jurídicos básicos, não em uma única função social, mas frente uma pluralidade de diversidades de funções” (In: “O futuro do Direito Privado.” In: Revista da Procuradoria Geral do Estado, Porto Alegre, v. 9, n. 25, 1979, p. 23). 216 88 código como elemento de referência de um Direito uno, único e indivisível, cede espaço não só para a existência de um direito plural, mas de uma verdadeira pluralidade de direitos. Na lição de García Inda, “el derecho como metarrelato se disuelve en una pluralidad de pequeños relatos (decisiones, normas fragmentarias, experiencias jurídicas diversas, ordenamientos multiples), que apuntan a una nueva perspectiva, que entiende la vida cotidiana como un mundo de producción de normas y analiza el proprio saber jurídico desde el punto de vista de lo cotidiano”221. Este contexto receptivo ao pluralismo reflete a realidade social que, na pósmodernidade, passa a conviver com diversos ambientes em estágios radicalmente diferentes. Nesse sentido, é a lição de Cláudia Lima Marques: “basta observar a sociedade brasileira deste início de século XXI, onde convivem a ‘idade media’ das favelas, a ‘modernidade’ dos parques industriais fordistas e a ´pós-modernidade’ das relações virtuais”222. É o paradoxo pós-moderno, fruto da diversidade, que se projeta para o campo do Direito, pondo fim ao ‘mito da solução única’ que marcava o pensamento monista. A composição das diferenças (universal-particular, individual-coletivo, igual-diferente, global-local, regulamentaçãodesregulamentação, formal-informal, público-privado) é uma das marcas da pós-modernidade. No âmbito do Direito pós-moderno, talvez a marca mais visível dessa realidade é a tentativa de proteger a liberdade, limitando-a. Dentre os novos valores que a pós-modernidade apresenta ao Direito, encontramos, em constante tensão com o princípio da igualdade, o paradigma da diversidade, pois, como afirma Castro Rangel, somente a diversidade garante a afirmação do direito dos diferentes sujeitos à sua identidade223. Nesse sentido, Erick Jayme afirma que o mundo pós-moderno é ____________ In: INDA, Andrés García. “Cinco apuntes sobre derecho y posmodernidad.” In: Doxa, Cuadernos de filosofia del derecho, v. 24, 2001, p. 240. Este autor ressalta ainda: “uno de los grandes riegos que acompaña esse proceso es que la multiplicidad del fenomeno jurídico contribuya a aumentar la ‘dispersión’, uno de los grandes enemigos en la actividad del jurista. La existencia de enormes cantidades de información así como de múltiples vías para acceder a esa información es quizás la manifestación principal de esse riesgo, que en lo que respecta a la enseñanza y la formación de los profesionales del derecho, cobra especial importancia. Esa enseñanza, que corre el peligro de orientarse únicamente a proporcionar grandes cantidades de información, debe precisamente dedicarse a intentar que el jurista desarrolle las capacidades necesarias para ‘dominar’ esos casos. No se trata sólo de estar bien informado, sino de saber que hacer com esa información; estar bien informado no es lo único importante, tambiém es necesario pensar” (p. 241). 222 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 170-1. 223 In: RANGEL, Paulo Castro. “Diversidade, Solidariedade e Segurança (notas ao redor de um novo programa constitucional).” In: ROA, ano 62, Lisboa, dez. 2002, p. 837. Este autor explica que “de algum modo, para o bem e para o mal, chegou ao fim a era da igualdade. A igualdade realiza-se pelo direito à diferença, que consubstancia o seu único patamar em que verdadeiramente os actores se tomam como iguais – gleiches Recht auf Ungleichheit (um direito igual à diferença, à desigualdade)”, p. 837. 221 89 caracterizado por um ‘direito à diferença’, num pluralismo de formas e diferentes estilos de vida, com a autonomia na escolha do próprio modo de vida224. Jean-François Lyotard adverte que “o saber pós-moderno não é somente o instrumento dos poderes. Ele aguça nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável”225. O culto à diversidade é uma conseqüência do amadurecimento da globalização. Aceitar o diferente é rechaçar a galopante e selvagem globalização – se pode dizer, de primeira geração. A mundialização imponente encontrou no seu tom truculento a sua própria limitação, criando uma aldeia global rodeada de núcleos de excluídos, o que gerou o fracasso desse movimento. Foi preciso repensar a globalização, trocando a força pela habilidade, arma mais sutil, mas muitas vezes mais poderosa, que tem como pólvora a idéia de inclusão. Nasce, assim, uma Segunda geração da mundialização e, como sabiamente destaca Castro Rangel, “a circunstância de o espaço internacional ser necessariamente multicultural, implicando a consciência de sujeitos de diversas etnias, ideologias, religiões e mundividências, faz com que a luta pelo reconhecimento das especificidades e diferenças – do direito à diferença – tenha de ser robustamente garantida”226. A comunicação é colocada por Claudia Lima Marques como um revival da autonomia da vontade, associada à valorização extrema do tempo e do Direito como instrumento de comunicação e informação227. É o tempo da ‘sociedade rede’, da ‘sociedade da informação’228, dominada pelos meios eletrônicos que impulsiona uma verdadeira ____________ JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFGRS, 60. 225 In: LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Traduzido por Ricardo Corrêa Barbosa. 8. ed. Rio de Janeiro: Luiz Olympio, 2004, p. XVII. 226 In: RANGEL, Paulo Castro. “Diversidade, Solidariedade e Segurança (notas ao redor de um novo programa constitucional).” In: ROA, p. 837. 227 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 175. Segundo a autora, “a comunicação, segundo muitos, é o atual método de legitimação de todas as ciências, o discurso legitima, a informação cria mitos e transforma-se em verdade, tudo jogo de palavras (Sprachspiele). Assim, a nova ética e filosofia são discursivas, assim o consentimento do indivíduo para ser legitimador é só aquele informado e esclarecido. Comunicação é também internacionalidade das relações jurídicas e a revalorização do direito internacional privado e das técnicas de harmonização e unificação das leis” (p. 175-6). 228 Expressão utilizada, dentre outros, por CASTELLS, Manuel. La era de la información. 2. ed. Madri: Alianza, 2000. 3 v, Pablo Murillo de la Cueva também se refere a ‘sociedade da informação’, explicando: “esa denominación y otras semejantes, pretenden poner de manifesto que, como consecuencia de los avances tecnológicos y de los cambios culturales que se han ido produciendo en torno a ellos, las relaciones sociales contenporáneas se distinguen por el volumen de información que se produce y circula constantemente de forma masiva y sistematizada” (In: “Derechos fundamentales y avances tecnológicos. Los riesgos del progreso.” In: Boletim Mexicano de Derecho Comparado, v. 109, p. 71-110, jan.-abr. 2004, p. 83). 224 90 revolução nas ciências em geral. É o reflexo da ausência de fronteiras. Na lição de Erick Jayme, a acentuada evolução tecnológica reflete o valor comum da troca rápida de informações e a vontade (Wille) e o desejo (Wunsch) de se comunicar das pessoas229. A narrativa pós-moderna, segundo a lição de Érick Jaime, reflete a aptidão dos ordenamentos jurídicos de criarem uma nova forma de comunicação por meio do sistema normativos, com o superamento do método tradicional de estabelecer condutas específicas. As normas narrativas trazem valores (Wertträgernormen), ajudando no desenvolvimento do Direito (Fortentwicklung des Reichts), estabelecendo orientações230. Assim o legislador pósmoderno preocupa-se em esclarecer seus objetivos, com normas narrativas que orientam o intérprete231. Forma-se um Direito líquido, fluido, apto à flexibilização e capaz de ocupar, suavemente, todo o Direito disponível. A exemplo dessa situação, encontramos, em especial no âmbito do Direito internacional, as chamadas soft laws, no contexto da proteção do meio ambiente, direitos humanos e relações econômicas. Na visão de Erick Jayme, há a retomada de uma certa ‘emoção’ no discurso jurídico, envolvido em novos sentimentos sociais, que passam a penetrar o raciocínio do Direito (le retour des sentiments, Rückkrhr der Gefühle). Esse aspecto é constatado em relação à identidade cultural, que pode conduzir a conflitos culturais, baseados em um sentimento forte de defesa de sua própria identidade cultural, de sua religião e de todas as outras expressões do ____________ JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito – PPGDir/UFGRS, p. 60. 230 JAYME, Erik. “Diálogos com a doutrina.” Entrevista concedida por Erick Jayme à RTDC, ano 1, n. 3, jul.set. 2000, p. 292. O autor, provocado pelo entrevistador, esclarece: “finalmente conclui a ponte entre a Narração e o pós-moderno. Isto tem dois significados. Narração significa, em primeiro lugar, na arte, que o objeto da arte, também as edificações, irá descrever seu sentido, sua função. De outro, narração significa também legitimação. Valores só serão usados, quando são descritos e narrados”. 231 Na lição de García Inda, nota-se no Direito pós-moderno: “un frecuente recurso a conceptos jurídicos indeterminados y estereotipados, la utilización de formulación pretendida o no pretendidamente ambiguas, la creación de amplias zonas de discricionalidad ‘técnica’, el aumento do los espacios de decisión no propriamente jurídicos dentro del derecho, la difuminación de las fronteras entre ámbitos jurídicos y no jurídicos, etc.; todos ellos son algunos de los factores que han contribuido a esa transformación”. (In: “Cinco apuntes sobre derecho y posmodernidad.” In: Doxa, Cuadernos de filosofia del derecho, p. 243). 229 91 individualismo232. É o retorno dos sentimentos233. Ainda na esteira das lições de Erick Jaime, o discurso jurídico pós-moderno tem como Leitmotiv o ‘retorno’ dos Direitos Humanos, propostos como ‘elemento guia’ da nova realidade jurídica. Como pontua Claudia Lima Marques, “o revival dos direitos humanos é proposto como elemento guia, os direitos fundamentais influenciaram o novo Direito privado, a ponto de o Direito civil assumir um novo papel social, como limite , como protetor do indivíduo e como inibidor de abusos”234. No plano constitucional, o constitucionalismo social mostra-se pluralista, comprometido com uma plêiade de valores até então afastados do texto das Cartas Constitucionais tradicionais. A axiologia constitucional não se preocupa apenas com a preservação da estrutura estatal e com as garantias individuais. Novos direitos são reconhecidos nos textos constitucionais, com a consagração de ideais políticos, econômicos e sociais. A Constituição amplia-se e abre espaço para a proteção do cidadão, do eleitor, do consumidor, do agente de produção, do trabalhador, dentre outras facetas do sujeito moderno. Ao mesmo tempo, são abertos flancos para as tutelas coletivas, como a do meio ambiente, do sistema econômico e previdenciário, entre outros. ____________ JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito – PPGDir/UFGRS, p. 60. O autor traz à colação um exemplo de aplicação deste postulado pós-moderno no campo do Direito Internacional Privado, em relação à busca de soluções para questões jurídicas advindas da ruptura de um noivado: “mencionei o problema de ruptura de noivado, onde se trata também de determinar a lei aplicável a esta ruptura. A Lei de Introdução do Código Civil Alemão (EGBGB) não prevê regra escrita sobre a lei aplicável a noivados. De outro lado, a Corte Federal favoreceu o princípio da nacionalidade, quer dizer, aplicada a lei da nacionalidade da demandada, brasileira. É muito interessante observar que a Corte alemã aplicando a lei brasileira, justamente porque a demandada tem domicílio na Espanha tem nacionalidade brasileira. Vê-se que no mundo do direito internacional privado há um conflito eterno entre o princípio da nacionalidade (do direito alemão) e o princípio do domicílio (do direito brasileiro). Em tempos pós-modernos, para proteger a identidade cultural (Kulturelle Identität) preferimos novamente o princípio da nacionalidade – que está sendo renovado e renascendo – tal como vemos nesta decisão da Corte Federal Alemã que indicou aplicável a lei brasileira ao caso de ruptura de noivado, em virtude da nacionalidade da demandada” (p. 63). 233 Neste sentido expressa Alessio Zaccaria: “Il retorno dei sentimenti, poi, è espressione che vuole riassumire il superamento della convenzione che le azione dell’uomo siano, o almeno debbano essere determinate esclusivamente dalle ragioni dell’economia, del mercato. É espressione che vuole rappresentare l’accoglimento dell’economia, del mercato. É espressione che vuole rappresentare l’accoglimento dell’idea che gli esseri umani debbono essere tutelati anche quando si determinino ad agire semplicemente ascoltando le loro emozione. Sotto quest’ultimo profilo, oltre che l’esifgenza di protezione dell’individuo, nella veste di entità única ed irrepetibile dal ponto di vista psicológico, viene allá ribalta, nuovamente, la necessita di garantire l’identità culturale, quale espresione dei sentimenti diffusi nella diverse popolazione” (In: “Il Diritto Privato Europeu nell’epoca del postmoderno.” In: RDCiv, n. 03. 1997, p. 381). 234 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 177. 232 92 No âmbito das relações privadas, agora impulsionado pela oxigenação propiciada pela nova legislação, o nosso direito pátrio passa a consolidar novos valores, de maneira abrangente e dúctil, de forma a proporcionar uma efetiva mudança em dogmas tradicionais. Os pilares tradicionais, apesar de conservados pelo sistema, passam a ser dotados de um claro comprometimento que os coloca dentro de um modelo instrumental, a serviço de valores sociais. Assim encontram-se as noções de função social da propriedade, da empresa e dos contratos235, além da absorção de novos modelos parentais, marcados de forma indelével pela tolerância à diversidade. Tais mudanças são devidas, por certo, às alterações no estilo de vida social236. A pós-modernidade representa para a sociedade, e conseqüentemente à ciência jurídica o saturamento da crise dos ideais concretizados há mais de duzentos anos pela Revolução Francesa, pois a proclamada liberdade, igualdade e fraternidade não se realizaram como prometido. Analisando este tema, Andrés García Inda explica que “ se trata de un doble crisis de lo jurídico, arrastada a lo largo de toda la segunda mitad del siglo XX: institucional, por un lado, dada la progresiva falta de eficacia del derecho y la aparición de zonas tanto de ‘a-legalidad’ como de ‘i-legalidad’; y de legitimación, por otro, por la pérdida de capacidad simbólica del discurso jurídico para representar-se – léase: para ser reconocido – como el medio idóneo y justo de organización social”237. Estas manifestações de ‘crise do Direito’, na ____________ Antonio Maria Iserhard, ao analisar os impactos do advento do Código Civil atual sobre o modelo clássico do direito privado, explica: “por conseqüência, a diretriz trazida no novo arcabouço civilista está a orientar o julgador para a função social, conteúdo do direito de propriedade e do direito contratual, na aplicação do direito. Por certo que haverá colisão de princípios, na aplicação do direito em muitas situações jurídicas, quando em confronto o direito de propriedade privada e sua função social, a autonomia de vontade e a função social do contrato, que por sua vez deverá ser solucionado levando-se em consideração o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito” (In: “A idéia de sistema jurídico e o novo código civil: contribuição ao desafio hermenêutico da aplicação do direito.” In: RFD/UFRGS, p. 43). 236 Conforme Claudia Lima Marques, “vivemos um momento de mudanças também no estio de vida, da acumulação de bens materiais passamos à acumulação de bens imateriais, dos contratos de dar para os contatos de fazer, do modelo imediatista da compra e venda para um modelo duradouro das relações contratuais, da contratação pessoal direta para ao automatismo da contratação a distância por meios eletrônicos, da substituição, da terceirização, das parecerias fluidas e das privatizações, de relações meramente privadas para as relações particulares de iminente interesse social e público” (In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 173). 237 In: INDA, Andrés García. “Cinco apuntes sobre derecho y posmodernidad.” In: Doxa, Cuadernos de filosofia del derecho, p. 237. Luigi Ferrajoli põe em destaque três aspectos da crise do direito: (a) a ineficácia do controle e ilegalidade do poder; (b) inadequação estrutural das formas do Estado de Direito e as funções do Welfare State, agravada pela crise do Estado Social, que se manifesta na “inflación legislativa provocada por la presión de los intereses sectoriais y corporativos, la pérdida de generalidad y abstración de las leys, la cresciente producción de leys-acto, el proceso de descodificación y el desarrollo de uma legislación fregmentaria, incluso em la materia penal, habitualmente bajo el signo de a meergencia y la excepción”; (c) crise do Estado Nacional, caracterizado pelas alterações da noção de soberania, de sistema de fontes e enfraquecimento do Constitucionalismo (In: Derechos y garantias. La ley del más débil. Traduzido por P. Andrés Ibánez e A. Greppi. Madri: Trotta, 1999, p. 15-7). 235 93 realidade, representam nítidas formas de manifestação do enfrentamento deste com a nova realidade imposta pelo fenômeno da globalização, hábil a derrubar as fronteiras tradicionais, quer reais ou simbólicas. Portanto, as clássicas dicotomias que marcaram o pensamento moderno (Estado-sociedade civil, público-privado, formal-informal, jurídico-ajurídico) passam a se esfumaçar238. Sintetizando as principais mudanças experimentadas pelo Direito pós-moderno, em comparação com o modelo jurídico da modernidade, Maria Celina Bodin de Moraes aponta que o mundo da segurança do século XVIII deu lugar ao mundo de inseguranças e incertezas, a ética da autonomia ou da liberdade foi substituída por uma ética da responsabilidade ou da solidariedade, e, como conseqüência dessas duas assertivas, a tutela da liberdade (autonomia) do indivíduo foi substituída pela noção de proteção à dignidade da pessoa humana239. Nesse contexto, o pensamento pós-moderno força um reposicionamento do Direito, retomando o seu posto de fator fundamental para a explicação da vida social e, ao mesmo tempo, elemento inevitável em sua transformação240. Como afirma Luís Edson Fachin, permear o direito à vida e vice-versa corresponde a iluminar a essência do que tem ficado à sombra241. ____________ Conforme INDA, Andrés García. “Cinco apuntes sobre derecho y posmodernidad.” In: Doxa, Cuadernos de filosofia del derecho, p. 239. 239 In: MORAES, Maria Celina Bodin. “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 57. 240 Conforme INDA, Andrés García. “Cinco apuntes sobre derecho y posmodernidad.” In: Doxa, Cuadernos de filosofia del derecho, p. 236. 241 In: FACHIN, Luiz Edson. “Limites e possibilidades da nova teoria geral do Direito Civil.” In: RFD/UFP, v. 27, 1992/93, p. 59. 238 94 4 O DIREITO CIVIL NA PÓS-MODERNIDADE: UM ENFRENTAMENTO NECESSÁRIO A conscientização de que o Direito Civil necessita de uma renovação, cortando as amarras que o mantinha como legatário de uma herança racionalista dos séculos XVIII e XIX, que teima em acompanhar o pensamento privatista242, cria um sentimento de angustia que se dissemina na doutrina jurídica e que lança ecos no desempenho da própria tarefa legislativa. São buscados novos elementos de identificação que não ponham por terra toda a evolução científica alcançada por esse setor do Direito que, por um vasto período de tempo, deu suporte a sua credibilidade. É necessária a busca de outros modelos na composição do edifício jusprivatista, que, ao mesmo tempo, possam ostentar as características da permeabilidade às novidades trazidas pelos movimentos de evolução social, sem perder a identidade própria que foi conquistada à custa de muitos sacrifícios, que delineiam a historicidade e o aspecto cultural do Direito Civil. As estruturas jurídicas do século XIX facilmente tornaram-se obsoletas frente à acelerada mudança imposta pela sociedade pós-industrial. É necessária a sua adequação (ou substituição) por novos modelos que sejam tão eficazes quanto os antigos. Cria-se, assim, uma verdadeira crise do Direito civil, lançando uma série de desafios a serem enfrentados pelos pensadores e operadores desse ramo do Direito, num movimento de revisão crítica243. Como orienta Francisco Amaral, “a resposta a esses desafios exige dos juristas e, particularmente, dos nossos civilistas um esforço de reflexão epistemológica que lhes ____________ Francisco Amaral observa: “essa herança, representada pelas concepções positivistas e formalistas do direito e expressa no paradigma dogmático, assentava nas seguintes premissas: (a) direito como sistema de normas criadas pelo órgão do Estado em determinado momento histórico; (b) consideração da norma jurídica como imperativo, com a forma de um juízo lógico hipotético-condicional; (c) teoria monista das fontes do direito, sendo a lei uma regra geral, abstracta e universalmente obrigatória; (d) consideração do sistema jurídico como um sistema normativo pleno, com a proibição expressa de hetero-integração, isto é, preenchimento de lacunas da lei com a aplicação de normas ou princípios de outro sistema; (e) representação da autoridade do juiz como tarefa de conhecimento idêntica à da ciência; (f) redução à mera exegese de normas, cuja determinação (a norma aplicável) não seria problemática; (g) separação radical entre os conceitos de interpretação e criação do direito” (In: “Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro.” In: RDCI, p. 55). 243 Nesse sentido, Antonio Junqueira de Azevedo, em interessante reflexão, questiona sobre a possibilidade de desaparecimento do Direito Civil, face à sua incapacidade de manter-se atualizado (In: “O Direito Civil tende a desaparecer.” In: RT, v. 472, p. 15). Vislumbrando alternativas para a atualização do Direito Civil, Yzquierdo Tolsada propõe a analise deste ramo jurídico em combinação com os demais setores do Direito, in: “Los modernos ataques al derecho civil desde las disciplinas colidentes.” In: Temas de Derecho Privado. Departamento de Derecho Privado de la Faculdade de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires, 1998, 1998, p. 11 e ss. 242 95 permita, a partir do conhecimento do Direito brasileiro, na sua gênese e evolução, a laborar novos modelos que atendam às necessidades crescentes da sociedade contemporânea”244. A realidade social exige um novo Direito, desvinculado das amarras aos paradigmas tradicionais, capaz de acompanhar as céleres mudanças pelas quais passa a sociedade atual e atender às necessidades trazidas pela pós-modernidade. 4.1 O DIREITO CIVIL COMO INTEGRANTE DO PROJETO DA MODERNIDADE O Direito Civil representa o ramo jurídico que mais encarna os ideais de pensamento moderno-liberal. O seu conteúdo – pessoa, família, propriedade, mostra de maneira inequívoca esta realidade245, havendo uma nítida vinculação entre o fenômeno da codificação oitocentista e o modelo liberal de organização do Direito Privado246. De início, nota-se neste ramo jurídico um forte apego ao pensamento racionalista, que o acompanha desde o seu nascimento, na época justinianéia. Tal característica foi conservada durante toda a Idade Média, de forma a se manter viva até a aurora da ____________ 244 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro.” In: RDCI, p. 45. 245 Nesse sentido, são os ensinamentos de Franz Wieacker: “a ética da autonomia, que Kant fornecera à renovação da ciência jurídica por volta de 1800, concebeu o Direito Privado como um sistema de esferas de liberdade da personalidade autônoma do ponto de vista moral. Aqui se baseiam a capacidade plena e igual de todos os cidadãos, o livre uso da propriedade, a liberdade contratual, a liberdade de associação (desde que na Europa ocidental e central o estado constitucional, em ligação com o patronato, deixou de privar as classes trabalhadoras da liberdade de associação). A isso correspondem as grandes figuras do Direito Privado: o direito subjetivo como poder da vontade, o negócio jurídico como activação da vontade autônoma das partes, o contrato como estrita ligação intersubjetiva entre sujeitos autônomos de Direito, a propriedade como um direito ilimitado e total de domínio e de exclusão, cuja função social não vem à luz no seu conceito; as pessoas colectivas como sujeitos de direito segundo a imagem das pessoas físicas” (In: História do Direito Privado Moderno, p. 717). 246 Na lição de Francisco Amaral: “o código de 1916 seguiu, como não poderia deixar de ser, o paradigma da modernidade, marcado pela racionalização do pensamento e da cultura e, principalmente, pelas influências dos postulados do Estado de Direito, ou Estado liberal, que se caracterizava pela crença no primado da lei, no sentido de ser esta a fonte suprema do direito; no monismo jurídico, que credenciava o Estado como a fonte única de produção jurídica; na divisão dos poderes em legislativo, judiciário e executivo, conforme as distintas funções de criação, aplicação e execução das leis; na clara separação entre as esferas do público e do privado, ou seja, entre o Estado e a sociedade civil. E ainda a crença na abstração e na generalidade das regras jurídicas como valor fundamental, de que eram naturais consectários à ordem a estabilidade e a certeza na realização do direito; no formalismo jurídico, que identifica o direito com a justiça; na adoção da idéia de sistema, com a sua conseqüente unidade e completude, o que contribui para a elaboração dos Códigos e das Constituições; na centralidade do código civil no quadro das fontes normativas” (In: “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma jurídico-decisório.” In: RBDC. Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, v. 28, 2005, p. 57). 96 modernidade247. Entretanto foi na época moderna que o apego ao racionalismo atingiu o seu auge. Um outro traço marcante do pensamento civilista foi a exaltação do individual frente ao coletivo proporcionado pelo modelo modernoe que veio ao encontro do ‘estilo civilista’, fundado na subjetividade do indivíduo. Nesse sentido, Tereza Negreiros afirma que o Direito Civil tradicional é marcado pela absolutização do indivíduo como um “eu” metafísico, sem vínculos históricos ou sociais, de forma que, reduzidos ao ser, todos somos iguais248. Assim as normas civis clássicas mostram-se opacas em relação ao reconhecimento às condições de ‘trabalhador, empresário ou consumidor’, dentre outras posições sociais relevantes, limitandose a reconhecer as posturas históricas do ‘ser’, contratante, proprietário e componente de uma entidade familiar, numa clara despreocupação com a integração social do indivíduo. E, voltando-se aos ensinamentos de Tereza Negreiros, pode-se concluir: “o significado e a função do Direito Civil permanecem indissociavelmente ligados à proteção de interesses privados, cujo conteúdo compete aos próprios indivíduos determinar, melhores juízes que são de seu próprio bem-estar”249. Ao mesmo tempo, a exaltação do indivíduo induz ao respeito da autonomia, fomentando a valoração do elemento liberdade, de forma que o consensualismo que funda a razão da sociedade, inspirado nas idéias de Rousseau e seu contrato social, ganha, no Direito Civil, o mesmo destaque e importância que lhe é atribuído no plano externo, ou seja, político. Assim o Direito Civil se mostrou apto a absorver os três maiores postulados do paradigma moderno: o racionalismo, o individualismo e o liberalismo. A modernidade exige um Direito que facilite o livre desenvolvimento da racionalidade individual250. ____________ Conforme Trazegnies Granda, “el nacimiento del Derecho Civil tiene una inspiración progessista y modernizadora. Justiniano explica que inicialmente el pueblo romano vivía sin ley cierta, sin derecho cierto, gobernado solamente por el poder de los reys. Pero crecer la ciudad, no era posible continuar de esta manera; por ello el pueblo uy los reys propusieron algunas leys. Es importante advertir en este comentario justinianeo una idea de orden y predictibilidad implícita dentro del concepto de Derecho, que constituirá muchos siglos más tarde una de las bases de la modernidad. Expulsados los reys, el pueblo romano volvió a caer en un derecho incierto. Pero, como esta situación era intolerable, se buscó un Derecho en Grecia y se establecieron las Leys de las Doce Tablas, de cuyo desarrollo deriva el Derecho Civil. Por conseguinte, se trata de un proceso de institucionalización de la ciudad, de organización más moderna y civilizada: el Derecho Civil nace como un instrumento fundamental de esta suerte de modernización” (In: Posmodernidad y Derecho. Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis, S. A., 1993, p. 8-9). 248 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 4. 249 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 5. 250 Analisando esta vinculação do Direito Civil com a modernidade, Trazegnies Granda traz à colação os ensinamentos de Max Webber, mostrando que este “señala que este tipo de Derecho tiene que responder a cinco postulados: deben existir reglas generales, las decisiones concretas deben ser producto de la aplicación de tales reglas mediante procedimientos recionales (lógica jurídica), el sistema no debe contener lagunas (real o virtualmente), todo lo irracional debe ser considerado irrelevante y toda acción social debe ser evaluada en términos de Derecho” (In: Posmodernidad y Derecho, p. 16). 247 97 Contraprova dessa realidade é o fato de, tradicionalmente, o Direito Civil ser visto como aquele formulado pelo Código Napoleônico, que se fundava na separação entre as leis civis e públicas, regulando as relações privadas, com a intenção de garantir o desenvolvimento pleno das liberdades individuais251. Por outro lado, a atuação das forças das tradições sobre o Direito Civil colocou-o como uma categoria histórica252 e fez com que este ramo jurídico se mantivesse impermeável às mudanças sociais, ostentando um caráter de abstração no sentido de indicar uma aparente neutralidade, o que inviabilizou a sua evolução. Como afirma Ludwig Raiser, a concepção de um Direito civil essencialmente neutro é ingênua, pois este, ao regular as relações privadas que ocorrem no contexto social, atua numa tarefa nitidamente política, que, em cada época constitucional, acaba por ser novamente redefinida253. 4.2 A CRISE DO DIREITO CIVIL: O OCASO DE UM PROJETO Estando a ciência jurídica inserida em uma sociedade em crise, esta lança suas sombras também sobre este importante ramo do Direito Privado, pois a renovação dos valores sociais se traduz, inevitavelmente, no pensamento jurídico, de forma que o Direito Civil se vê impotente na tentativa de acompanhar o ritmo da acelerada dinâmica que é impressa no ____________ Nesse sentido, é a lição de Maria Celina Bodin de Moraes: “Entende-se tradicionalmente por direito civil aquele que se formulou no Código Napoleão, em virtude da sistematização operada por Jean Domat – quem primeiro separou das leis civis as públicas – cuja obra serviu para a delimitação do conteúdo inserto no ‘Code’ e que, em seguida, viria a ser adotado pelas codificações do século XIX. O direito civil foi identificado, a partir daí, como próprio Código Civil, que regulava as relações entre as pessoas privadas, seu estado, sua capacidade, sua família e, principalmente, sua propriedade, consagrando-se como o reino da liberdade individual. Concedia-se a tutela jurídica para que o indivíduo, isoladamente, pudesse desenvolver com plena liberdade a sua atividade econômica. As limitações eram as estritamente necessárias a permitir a convivência social” (In: “A caminho de um Direito Civil Constitucional.” In: RDCI, n. 65, RT, p. 21-22). 252 Em relação à historicidade do Direito Civil, Aguirre y Aldaz observa: “voces autorizadas han reconducido la distinción entre o elemento permanente y el elemento histórico a que acabo de referirme, a la distinción entre Derecho civil (que sería una categoria histórica) y el derecho privado (que reflejaría el aspecto permanente). Así, Lacruz escribe: el permanente, construida sobre las bases connaturales a la existencia humana: su contenido podrá ampliarse o reducirse a medida que nacen nuevos tipos de relaciones entre particulares, o bien son éstas atraidas por la mano pública em régimen de Derecho administrativo: pero no por eso varía e concepto inicial. Em cambio el Derecho civil, objeto de nuestro estudio, representa hoy hasta cierto punto, dentro del Derecho privado, una categoria histórica: o que queda de tal Derecho privado tras la separación, por razones contingentes y a largo del tiempo, de diversas materias especializadas que pasan a constituir rama independiente” (In: El derecho civil a finales del siglo XX. Madri: Tecnos, 1991, p. 36). 253 In: RAISER, Ludwig. Il Compito del Diritto Privato, p. 174. 251 98 contexto social nos últimos tempos254. Essa realidade levou Trazegnies Granda a afirmar que o Direito Civil aparece como a área menos dinâmica do sistema jurídico, não significando mais a modernidade e, sim, o atraso255, apontando quatro fatores que contribuem para implementar esse ‘estado de crise’ deste setor do Direito: a sua incapacidade de acompanhar as mudanças da vida social; o crescimento da atuação estatal e sua conseqüente desvalorização do Direito Privado; e o rigorismo técnico deste ramo do Direito e seu formalismo exagerado256. Assim o Direito Civil tem recebido severas críticas pelo seu apego ao consensualismo, pois em nome da busca da estabilidade e segurança jurídica, este ramo do Direito mantém-se comprometido com a continuidade257. Esse sentimento de inoperância do Direito Civil se faz sentir com mais ênfase na época atual, em que a vida social, política e econômica passa por aceleradas modificações, como se estivesse recluso em si mesmo. ____________ Aguirre y Aldaz descreve esta crise que assola o do Direito Civil: “si, para compreender el Derecho civil (y el Derecho, en general) es preciso enmarcarlo en la sociedad a la que sirve, la referencia hay que hacerla, en nuestro días, a una sociedad en crisis, entendiendo crisis en um sentido amplio, compreensivo también de cambios o mutaciones positivas (crisis de crescimiento). Y es que, desde el punto de vista que ahora nos interesa, decir que el Derecho civil se encuentra instalado en una sociedad en crisis, con ser necesario, no es decir mucho, por la propia amplitud de la proposición. En efecto, la crisis lo es de la sociedad (de los valores sociales), pero tambiém del Estado, del Derecho, del Derecho civil en general, y de instituciones concretas de éste. Pero, si la crisis afecta, desde el punto de vista de su objeto, a niveles de extención muy diversos, también el sentido y alcance de la crisis, em relación con el Derecho civil, son muy diversos. Hay crisis de valores sociais, que se traduce, inevitavelmente, en crisis de los valores jurídicos, hay crisis de finalidades y contenidos del Derecho civil, motivada por la aparición de nuevos fatores con los que no contaba el Derecho civil tradicional, pero que inciden sobre el mismo: la construción de una Europa política y juridicamente unida, o los avances tecnologicos o descubrimientos cientificos; no faltan, por lo demas, nuevas figuras juridicas, importadas a nuestro país de ordenamientos extranjeros. El panorama, como se ve, es complejo” (In: El derecho civil a finales del siglo XX, p. 40-3). 255 In: GRANDA, Fernando de Trazegnies. Posmodernidad y Derecho, p. 26. O autor frisa que: “ a pesar de que la crítica al Derecho Civil no se expresa siempre de manera abierta, existe una atmósfera general que tiende a considerar al civilismo como un rezago de un mundo que está a punto de convertirse en pasado. En el ambiente político, en los centros internacionales de cooperación, en las fundaciones que auspiran investigaciones en el campo del Dercho, existe una suerte de silencioso consenso en el sentido de que el Derecho Civil no merece ser apoyado porque se encuentra muy distante de las urgencias del momento. En las faculdades de Derecho – particularmente en los países del Tercer Mundo – los estudiantes y los profesores preocupados por el desarrollo social y económico de sus países pretenden orientar la formación de las nuevas generaciones y los esfuerzos de investigación hacia disciplinas jurídicas de mayor contenido social; es general da crítica a los programas de estudio tradicionales, fuertemente centrados en la tradición civilista” (p. 26-7). 256 In: GRANDA, Fernando de Trazegnies. Posmodernidad y Derecho, p. 30 e ss. 257 Como observa Trazegnies Granda, “el peso de una tradición milenaria, entendida muchas veces de manera estática y como simple representación de un orden que está en la naturaleza misma y que consiguintemente es inmutable, lleva al civilista a no contar con la dimensión temporal: vive en un eterno presente, atendo al pasado sólo en cuanto le confirma el presente y despreocupado por el futuro porque está convencido que, como dice Ripert, a él le toca únicamente aplicar la norma vigente. Además, el contenido de modernidad implicito en el Derecho Civil lleva a acentuar la función de seguridad jurídica de esta rama del Derecho: la modernidad exige reglas calculables y eso supone un Derecho estable. Por esse motivo, si en general deben cambiar las leys muy a menudo, los Códigos Civiles están hechos para durar siglos” (In: GRANDA, Fernando de Trazegnies. Posmodernidad y Derecho, p. 31). 254 99 Ao mesmo tempo o modelo de Estado Liberal, que servia de conforto para os fundamentos do Direito Civil, cedeu espaço para o welfare state, menos comprometido com valores individuais e voltado ao atendimento das necessidades sociais, atuando mais como verdadeiro promotor do bem-estar da coletividade. Por outro lado, a técnica do Estado Social é compromissada com a implantação de estratégias de desenvolvimento de resultados futuros. É um modelo que se projeta no tempo e dotado de pretensões modificadoras. O tecnicismo frio do Direito Civil passa a ser rechaçado em diversos setores que não mais de contentam com a lógica, forçando a inserção de valores sociais e econômicos na realização do Direito. O viés do constitucionalismo moderno, promotor da dignidade da pessoa humana, penetra no âmbito das relações privadas, reformulando o pensamento civilista, de forma que, como ressalta Maria Celina Bobin de Moraes, “para a adequada e correta reconstrução do sistema impõe-se ao civilista o desafio de restabelecer o primado da pessoa humana em cada elaboração dogmática, em cada interpretação e aplicação normativa”258. Os valores impostos pelo patrimonialismo exagerado abrem passagem para uma renovação do Direito, que é (re)construído tendo por ponto de referência a pessoa humana e a satisfação de suas necessidades. O rigor formal que formata o pensamento juscivilista acabou por gerar um distanciamento deste ramo jurídico com a realidade, tornando-o cada vez mais abstrato e incapaz de atender os problemas e preocupações sociais. Tal situação torna-se problemática para a própria legitimação do Direito. A forma, antes necessária para a sistematização do Direito, agora representa um empecilho para a sua atualização e modernização. Nesse contexto, o Direito Civil, como eixo referencial das relações privadas, ingressa numa inevitável situação de crise interna e externa. Interna porque constata que a manutenção de sua metodologia não permite a sua evolução, e externa porque não consegue mais corresponder à realidade da vida social nem às aspirações jusfilosóficas e políticas da ____________ In: MORAES, Maria Celina Bodin. “Constituição e Direito Civil: tendências.” In: RT, p. 57. A autora complementa a lição: “a transposição das normas diretivas do sistema de direito civil do texto do Código Civil para a Constituição acarreta relevantíssimas conseqüências jurídicas que se delineiam a partir da alteração da tutela que era oferecida, pelo Código, ao ‘indivíduo’ para a proteção, garantida pela Constituição, à dignidade da pessoa humana e por ela elevada condição de fundamento da República Federativa do Brasil. O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade da pessoa humana não só no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e nem tampouco conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação (rectius, transmutação) do Direito Civil, de um direito que deixou de encontrar nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico” (p. 57). 258 100 atualidade, vendo-se ilhado num mar de microssistemas normativos atentos aos problemas sociais, mas em clara dissonância com a lógica civilista tradicional259, num inevitável e irremediável processo que Aguirre y Aldaz chama de ‘desagregação’260. 4.2.1 O enfraquecimento das fronteiras entre Direito Privado e Público As modificações ocorridas nos últimos tempos no âmbito social acabaram por se refletir na estrutura do sistema jurídico. A sua clássica divisão entre Direito Privado e Público sofre um inevitável enfraquecimento. A linha delimitatória desses dois setores do Direito apresentava-se bem definida e impermeável, pertencendo ao Direito Privado os direitos naturais e imanentes ao indivíduo, enquanto o Direito Público, de origem estatal, voltava-se à tutela dos interesses gerais. Somente era aceita a atuação do Estado na imposição de limites a liberdades individuais quando este ato encontrasse justificativa nas exigências dos próprios indivíduos. Essa visão, entretanto, passa a se tornar quase que imperceptível. O surgimento do Direito do Consumidor, a expansão do Direito Administrativo no âmbito urbanístico, assistencial e ambiental, entre outros fatores, acabaram por moldar um novo perfil para o ordenamento jurídico que não mais pode ser simplesmente dividido internamente entre Direito Público e Privado. Nas precisas palavras do jurista germânico Ludwig Raiser, “o ____________ Analisando a situação atual de crise do Direito Civil, Trazegnies Granda enxerga duas possíveis posturas para a doutrina civilista: “la primera estrategia há sido la del regliegue: en vista de las incursiones limítrofes y de las revueltas intestinais que habían logrado arrancar varias provincias al Derecho Civil, un poco pudorosamente los propios juristas civilistas han procedido a una retirada estratégica. En vez de pelear sus fronteras y discutir las razones por las que las leys especiales pretendián independizar territorios del Derecho Civil enabolando una autonomia conceptual, los civilistas han preferido ceder el terreno a cambio de asegurar la paz en áreas más reducidas. Sin embargo, esta estrategia es suicida; porque si el Derecho Civil há renunciado a esgrimir razones para mantener bajo su control esa provincia,? cómo puede pretender conservar otros territorios? Tarde o tempreano, los merodeadores avazan y termina procurándo, engañados por la ilusion de que en esa forma lograrán salvar ciertas áreas cada vez menores. La política del encogimiento es sumamente peligrosa, porque de tanto encogerse el Derecho Civil puede desaparecer. La otra estrategia es la de la transformación y que puede expresarse de la siguiente manera: no hay outra manera de conservar que transformando. Es así como se abandonan los baluartes doctrinarios clásicos y se aceptan nuevas formas de pensar que no responden necesariamente a la tradición civilista, marcada por el racionalismo y el individualismo de los últimos tres siglos. Esta politica de la conservación há sido utilizada en aspectos particulares por un importante número de juristas inteligentes, desde fines del siglo pasado” (In: GRANDA, Fernando de Trazegnies. Posmodernidad y Derecho, p. 40-1). 260 In: AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez. El derecho civil a finales del siglo XX, p. 20. Na ótica deste jurista, “la cuestión de las autonomias jurídicas a que vengo hacendo referencia, no puede, precisamente por su marcado caráter histórico, considerarse cerrada. Em efecto, se há señalado como una de las características de Derecho civil de nuestro tempo la ‘desintegración’ o ‘disgregación’, tratándose de una cuestión conocida desde hace siglos, cabría referirse, mejor, al fenômeno de progresiva aceleración en el proceso de formación y consolidación de setores jurídicos diferenciados. Así, se há hablado, ademas de los ya citados (y clásicos), del Derecho aeronáutico – o aéreo -, del derecho arrendaticio, del Derecho notarial, del Derecho bancário, del Derecho nuclear, del Derecho ambiental, del Derecho urbanístico, del Derecho informático o del Derecho de los consumidores (por señalar algunos)” (p. 20). 259 101 modelo de uma bipartição rígida da ordem jurídica, baseada na separação entre Estado e sociedade, em ambos os sistemas de Direito Privado e Público, fechados cada um sobre si, perde sua validade”261. Deixa de ser possível, então, definir com exatidão qual o território do Público e do Privado. O isolamento hermético das esferas individual e coletiva que marcou, de forma indelével, a sociedade liberal, é sucedido por uma nova realidade no modelo estatal social, em que estes dois setores passam a experimentar inevitável interpenetração. Assim, sob o impulso das transformações da sociedade civil e agrária em industrial, foi-se abandonando a concepção de singularidade do Direito Privado, visto até então como um sistema identificado pela sua contraposição ao Direito Público. A ação intervencionista ou dirigista do legislador criou uma série de ramos autônomos, condensando valores individuais e coletivos, fazendo surgir o Direito do trabalho, agrário, do consumidor, entre outros. Cria-se uma borda ao redor do tradicional âmbito civil, caracterizada pela permeabilidade entre as esferas pública e privada. Ao mesmo tempo que foram nascendo ramos ‘sociais’ do Direito, agregando princípios de Direito Público e Direito Privado, experimentou-se, também, uma forte influência daquele setor sobre vários dos principais institutos deste último, criando o que chegou a ser chamado por alguns de ‘publicização do Direito Privado’262, sem que este, contudo, perca a sua autonomia científica263. Nesse contexto, conceitos tradicionais de Direito Privado, até então encharcados pelos valores do Direito Civil Liberal, em especial o individualismo, passam a receber fortes ____________ In: RAISER, Ludwig. “O futuro do Direito Privado.” In: Revista da Procuradoria Geral do Estado, p. 19. O autor explica: “a confusão costumeira entre Direito Público e Privado, que é característica para os campos do Direito do Trabalho e de Direito Econômico, mostra-se, finalmente, também no campo da chamada administração da coisa pública. Para o ordenamento jurídico das empresas públicas e das relações de exploração por elas fundadas, assim como para a concessão de ajuda econômica de toda a sorte com os meios públicos para os particulares, isto é, para subvenções, créditos, garantias, etc., podem o estado ou o Município utilizar uma ampla extensão tanto às formas jurídicas de Direito Privado como de Direito Público. O Direito Privado utilizado para disciplinar o serviço de fins estatais ou locais (municipais, comerciais) passou a denominar-se “Direito Administrativo Privado”. (p. 15). 262 Ludwig Raizer observa que se se procura um quadro que expresse a relação entre direito privado e público dentro de nossa ordem jurídica global, então, depois do que foi dito, não se mostra apropriada a velha concepção de dois círculos fechados, interseccionando-se aqui e ali, mas também não é a proposta de Bullinger, em fundir ambos os círculos em um sistema unitário de direito comum. Mas, de acordo com a realidade, está o quadro de uma elipse com dois focos como centros. A força de irradiação de um ou de outro centro pode modificar-se através de decisão política, mas o sistema seria destruído se um dos pólos perdesse sua força autônoma” (In: “O futuro do Direito Privado.” In: Revista da Procuradoria Geral do Estado, p. 21). 263 Segundo Ricardo Lorenzetti, “el derecho civil exibe una progresiva referenciabilidad pública. Sus instituciones, otrora subjetivas, se vinculan progresivamente com el derecho público en un mundo econónico y jurídico cada vez má interrelacionado. La funcionalidad, y sobre tudo la eficácia de las instituciones de derecho privado exigen que se correlacionen con el derecho público” (In: “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 12). 261 102 influências do Direito Público. Ludwig Raiser chega a propor que a função desses institutos seja perspectivada de acordo com o grau de publicização que venha a experimentar264. Nesse mesmo sentido, é a lição de Gustavo Tepedino, no sentido de que “pode-se provavelmente determinar os campos do Direito Público ou do Direito Privado pela prevalência do interesse público, não já pela inexistência de intervenção pública nas atividades de Direito Privado ou pela exclusão de participação do cidadão nas esferas da administração pública”265. Constata-se, portanto, uma verdadeira situação de socialização do Direito Civil, que passa a ser dotado de um acentuado perfil social, numa clara superação dos paradigmas do modelo liberal266. Entretanto não se pode deixar de notar que este fenômeno representa uma via de mão dupla, num nítido processo de interação. O Direito Público, até então arredio à influência dos institutos jusprivatistas, passa a experimentá-los no seu processo de regulamentação das relações sociais. Na lição de Norberto Bobbio, ‘os dois processos, de publicização do Direito Privado e de privatização do Direito Público, não são de fato incompatíveis e realmente compenetram-se um no outro’, concluindo: ‘o primeiro reflete o processo de subordinação dos interesses privados aos interesses da coletividade representada pelo Estado que invade e engloba progressivamente a sociedade civil; o segundo representa a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos”267. ____________ In: RAISER, Ludwig. “O futuro do Direito Privado.” In: Revista da Procuradoria Geral do Estado, p. 25. Este autor explica: “Minha proposta parte, portanto, da disposição do Segundo campos de função, que correspondem a campos de vida típicos da nossa sociedade, empregando como critério de diferenciação o grau de publicidade ou publicismo desses campos com a mesma intensidade com que o conteúdo publicístico ocupa o primeiro plano, os princípios já acima nomeados como mais novos, definidos pela idéia de responsabilidade social, deverão fazer-se valer, no manejo das normas e institutos jurídicos do direito privado junto aos ou no lugar dos princípios jurídicos clássicos. Onde estes princípios jurídicos não bastem para produzir a ordem social e econômica desejada, o direito público deve intervir tanto para completar e embasar, quanto para delimitar e corrigir" (p. 25). 265 In: TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil, p. 19. 266 Nesse sentido, é a lição de Pinto Monteiro: “a falada socialização do direito civil é a forma por que corretamente se designa este fenómeno, de acentuação do componente social, consequente à superacão histórica (dos pressupostos) do liberalismo e individualismo jurídicos. Pretende-se alcançar uma verdadeira justiça material (em consonância com as funções que se atribuem ao Estado de Direito Social), que não ignore, antes tome em devida conta, as desigualdades reais, que, de facto, condicionam e limitam as possibilidades de realização dos diversos sujeitos. O que teve repercussão em todo o direito civil e afectou de modo especial dois princípios, o da autonomia privada e da responsabilidade civil (In: MONTEIRO, António Pinto. “O Direito do Consumidor em Portugal.” In: Revista de Direito Comparado Luso-Brasileira, Rio de Janeiro, Forense, v. 17, 1999, p. 130). 267 In: BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. Traduzido por Marco Aurélio Nogueira. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 27. Neste mesmo sentido afirma Thiago Sombra: “de uma relação de estagnação, a separação entre público e 264 103 Levadas em consideração essas observações, constata-se que atualmente não se pode falar em um Direito Privado totalmente autônomo, que possa ser exercido com exclusão do interesse público ou social. Neste sentido Carmem Lúcia Santos acrescenta que também não se pode conceber um interesse público puro e simples, pois esse é (ou deve ser) funcionalizado no sentido da realização dos direitos do cidadão268. 4.2.2 O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil O advento da Constituição Federal de 1988 instaurou uma nova ordem, inserindo no pensamento jurídico brasileiro um perfil diferenciado, mais comprometido com a realização dos valores que inspiraram a noção de Estado Social. Não se trata, entretanto, de fenômeno isolado, mas, sim, de reflexos de uma tendência que se faz sentir mundialmente, em função da adoção do chamado constitucionalismo social269. Esta nova realidade jurídica não tardou a se projetar sobre o campo das relações jurídico-privadas, gerando o que acabou por ser designado de Constitucionalização do Direito Civil270, sendo atribuído a este fenômeno a condição de principal ponto de apoio para a atual renovação do pensamento jurídico civilista, criando um verdadeiro ‘Direito Civil Constitucional’271. privado transformou-se em uma relação de interdependência e intercambiariedade no Estado Social de Direito. Não há, em verdade, como precisar qual dos dois ramos – público e privado - influencia com primazia o outro, uma vez que seu fluxo bidirecional ocorre com tal dinamicidade que impossibilita uma apreensão isolada e momentânea desse processo de interação” (In: SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais, p. 69). 268 In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. “Algumas reflexões acerca da Constituição como lei fundamental do Direito Civil.” In: RFD/UFP, Curitiba, v. 29, 1996, p. 155. 269 Nesse sentido, é a lição de Maria Celina Bodin de Moraes: “formalmente, este processo ocorreu no século XX, embora suas raízes sejam mais antigas. Com efeito, ele teve início na Constituição de Weimar, de 1919, e continuou na Constituição Italiana de 1948, na Lei Fundamental de Bonn, de 1949, na Espanhola de 1978 e, enfim, na Constituição Brasileira de 1988. De modo que aquele aspecto ‘constitucional’ do Direito Privado, em particular do Código Civil, pertence hoje, sem qualquer contraste, ao Direito Público, ao mais público – como diz Giorgiani – dos ramos do direito, ou seja, ao Direito Constitucional, e está presente nas longas constituições dos Estados Contemporâneos” (In: MORAES, Maria Celina Bodin; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). O Direito Civil Constitucional 1988-1998: Uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 127). 270 Antonio Maria Iserhard enfatiza que “a nova ordem constitucional sintetizada na magna carta de 1988 trouxe consigo a Constitucionalização do Direito Civil, e a exigência que o novo Código Civil seja o estatuto da pessoa humana, ao invés de continuar sendo o estatuto do homem, do individualismo, coisificação, próprio do Código Civil antigo” (In: “A idéia de sistema jurídico e o novo código civil: contribuição ao desafio hermenêutico da aplicação do direito.” In: RFD/UFRGS, p. 41). 271 Nesse sentido, manifesta-se Leonardo Mattietto, para quem o “Direito Civil Constitucional é o Direito Civil como um todo, já que não há como divisar nenhuma parte do Direito Civil que fique imune à incidência dos valores e princípios constitucionais. Logo, não só os institutos que receberam previsão constitucional compõem o Direito Civil Constitucional, mas a inteira disciplina civilística, nesse juízo renovado” (In: O Direito Civil Constitucional e a teoria dos contratos. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 104 O modelo liberal cultuava a necessidade de separação entre Estado e sociedade, dando às constituições o papel de simples leis orgânicas dos poderes políticos e, conseqüentemente, sem grandes influências no plano das relações privadas272. Esse panorama é radicalmente alterado pela implantação dos ideais do Estado Social, que passa a ter as Cartas Constitucionais como a ‘espinha dorsal’ de todo o ordenamento jurídico, em condições, portanto, de se refletir em todos os setores do Direito. Esse fenômeno, apto a mudar a face do Direito Privado, já estava sendo ensaiado há um considerável tempo, por meio da aproximação entre o Direito Público e Privado273, que há muito deixaram de ter fronteiras nítidas e perfeitamente delineadas. Entretanto, não se deve confundir a chamada ‘publicização do Direito Civil’ com a sua constitucionalização, pois aquela deve ser entendida como um fenômino tributário de um processo crescente de intervenção legislativa em geral infraconstitucional, característico do Estado Social do século passado, enquando o segundo tem por escopo reconhecer a posição central dos valores 2000, p. 170). Maria Celina Bodin de Moraes, por sua vez, considera ser possível falar-se em ‘Direito Civil Constitucional’ sob dois significados: “sob o ponto de vista formal, é direito civil constitucional toda disposição de conteúdo historicamente civilístico contemplada pelo Texto Maior; isto é, todas as disposições relativas ao clássico tripé do Direito Civil – pessoa, família e patrimônio -, porque presentes na Constituição, compõem o direito civil constitucional. O outro significado atribuído à expressão “Direito Civil Constitucional” é o que aqui nos interessa: de acordo com este segundo significado, é direito civil constitucional todo o direito civil, e não apenas aquele que recebe expressa indumentária constitucional, desde que se imprima às disposições de natureza civil uma ótica de análise através da qual se pressupõe a incidência direta, e imediata, das regras e dos princípios constitucionais sobre todas as relações interprivadas” (In: O Direito Civil Constitucional 19881998: Uma década de Constituição, p. 124). Na doutrina espanhola, Arce y Flóres Váldez apresenta a seguinte conceituação de “Direito Civil Constitucional”: “sistema de normas y princípios normativos institucionais integrados en la Constitución, relativos a la protección de la persona en sí misma y suas dimensiones fundamentales familiar y patrimonial, en el orden de sus relaciones jurídico-privadas generales, y concernientes a aquellas otras materias residualmente consideradas civiles, que tienen por finalidad fijar las bases más comunes y abstractas de la regulación de tales relaciones y materias, a las que son susceptibles de aplicación inmediatas o pueden servir de marco de referencia de la vigencia, validez e interpretación de la normativa aplicable o de pauta para su desarrollo”, advertindo: “el derecho civil constitucional se nos ofrece no como una parte del derecho civil sino como la ‘infraestructura’ del mismo” (In: El Derecho Civil Constitucional. Madri: Civitas, 1986, p. 178). 272 Conforme anota Julio Finger, “não é difícil perceber-se que, na medida em que se esperava do Estado a não intervenção na sociedade e suas relações, refletida nas Constituições tal exigência, também no plano normativo a influência destas no direito privado era nula” (In: “Constituição e Direito Privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do Direito Civil.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 87. 273 Na lição de Eugênio Facchini Neto, ao tratar da evolução histórica da constitucionalização do Direito Privado: “esse tema, na verdade, tem imbricações com o ocaso da visão dicotômica que dividia o mundo jurídico em direito público e direito privado, aflora as questões ligadas aos fenômenos da publicização do direito privado e da privatização do direito púbico, e relaciona-se com o esforço para tornar não só juridicamente eficazes, mas principalmente socialmente efetivos os direitos fundamentais” (In: “Reflexões histórico-evolutivas sobrea constitucionalização do direito privado.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 14). 105 constitucionais no ordenamento jurídico, atuando como verdadeiros fundamentos de validade de todo o sistema, inclusive no âmbito das relações de Direito Civil. O Código Civil de 1916 mantinha-se, ainda, apegado a sua concepção original, consolidando as doutrinas individualistas e voluntaristas do século XIX, que tinha como eixo temático o indivíduo na concepção liberal, ou seja, o sujeito de direito “contratante e proprietário”. O Direito Civil era o locus normativo privilegiado do indivíduo, enquanto tal, num claro afastamento com os valores políticos que ficavam alçados exclusivamente ao âmbito constitucional274. Nesse modelo liberal-burguês, havia a prevalência dos valores relativos à apropriação de bens sobre o ser275. Era, assim, ‘a Constituição do Direito Privado’, servindo para consolidação do modelo econômico liberal, tendo sido projetado para dar solução a todos os problemas da vida dos particulares. Cultuava-se, portanto, uma radical cisão ente o Direito Constitucional e as relações de âmbito privado276. Na dicção de Maria Celina Bodin de Moraes, o Código Civil de Bevilaqua representava o “estatuto da vida privada”, servindo para regular as relações do indivíduo isoladamente considerado, protegendo-o contra ingerências alheias, mormente aquelas provindas do ente estatal277. Nesse contexto, a codificação civil exercia uma espécie de ‘centralização’ do Direito Privado, regulando as relações subjetivas na sua integralidade. Como ensina Gustavo Tepedino, costumava-se dizer que o Direito Civil tinha no Código a sua verdadeira “constituição” e que a Constituição da República, em contrapartida, assumia o papel de um ____________ Conforme LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Constitucionalização do Direito Civil.” In: RIL, ano. 36, n. 141, jan.-mar. 1999, p. 99. Na precisa lição do autor, “o direito civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre foi identificado como o ‘locus’ normativo privilegiado do indivíduo, enquanto tal. Nenhum ramo do direito era mais distante do direito constitucional do que ele. Em contraposição à constituição política, era cogitado como constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal”. 275 Conforme Carmem Lúcia Ramos, acrescentando que este ambiente impedia “a efetiva valorização da dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou substancial” e concluindo: “foi este paradigma, inaugurado com a codificação francesa, o adotado pelo Código Civil Brasileiro de 1916. No texto francês, como no direito pátrio, a autoridade do Estado se conciliava com a soberania do indivíduo, com sua autonomia, decorrente do contrato social, que, no domínio econômico e dos contratos mantinha o Estado numa neutralidade estática, ignorando as desigualdades econômicas, aplicando o regime da igualdade a todos, fortes e fracos, perante a lei, cuja conseqüência foi fazer com que a vontade dos fortes passasse a dominar e oprimir, acabando por tornar-se um regime de privilégio dos fortes, baseado numa ética individualista” (In: “A constitucionalização do Direito Privado e a sociedade sem fronteiras.” In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando os fundamentos do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 5). 276 Como ressalta Ludwig Raiser: “o direito privado era coordenado ao império não-político da sociedade econômica; o direito público à Constituição e ao aparato administrativo do Estado autoritário. Sobre os fossos divisórios desses dois impérios apenas algumas pontes permaneceram no Estado de Direito Liberal, ao qual incumbia proteger a independência da sociedade contra os “ataques” do Estado” (In: “O futuro do Direito Privado.” In: Revista da Procuradoria Geral do Estado, p. 18) 277 In: MORAES, Maria Celina Bodin; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). O Direito Civil Constitucional 19881998: Uma década de Constituição 119. A autora reforça o seu posicionamento consignando: “O Código, para o Direito Privado, tem um papel verdadeiramente constitucional, no sentido de ser a Constituição dos Privados, contendo o estatuto completo dos cidadãos e incluindo, portanto, os limites à atividade do estado em relação a eles. O Direito Privado existe, principalmente, para evitar e impedir interferências por parte do Estado” (p. 119). 274 106 texto de princípios e programas, funcionando como mero limite para o legislador ordinário e traçando programas a serem desenvolvidos pela lei civil278. Entretanto essa centralidade do Código Civil entrou em colapso com a conscientização da ineficácia e inoperância desta concepção para atender a evolução das relações sociais. Houve, em especial a partir da segunda metade do século passado, em nosso país, como decorrência deste esgotamento do modelo codificado, a proliferação de um fenômeno de fragmentação da normatização das relações privadas, com a proliferação de uma série de legislações específicas aptas a melhor regular determinados setores da vida privada, como as relações de trabalho e de consumo, que acabaram sendo reconhecidos como ‘microssistemas’, consistentes em ‘universos legislativos’ de menor porte, criando uma espécie de ‘polissistema’279, que substitui definitivamente o monismo consagrado no Código Civil de 1916. Esse fenômeno foi sintetizado, na feliz expressão de Natalino Irti, como “descodificação”, gerando uma mudança estrutural no sistema jurídico de Direito Privado, relegando ao Código Civil a condição de legislação residual. Houve uma ‘quebra na unidade do sistema”, proporcionando que fosse buscado um novo referencial para a centralização do sistema jurídico, e, como ensina Maria Celina Bodin de Moraes, esse pólo foi deslocado, considerando-se a necessidade de busca de unidade do sistema e manutenção da hierarquia das fontes normativas, para a Constituição, base única dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico280. Assim o desgaste da importância do papel do Código Civil no sistema jurídico cedeu espaço para que os olhares dos operadores do Direito passassem a buscar outro destino, que são os princípios da Constituição, que, ao mesmo tempo, alargou-se, absorvendo vários dos princípios até então consolidados apenas no Direito Privado. Assim o texto constitucional passou a regular a família, a propriedade privada, os direitos da personalidade, que, até então, ____________ In: TEPEDINO, Gustavo. “A nova Propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição).” In: RF, p. 77. O autor complementa: “o quadro se coadunava, perfeitamente, com o sistema individualista do século XIX, caracterizado, juntamente, pela não ingerência do Estado na contratação privada e nas relações interindividuais” (p. 77). 279 Esta realidade pode facilmente ser observada em nosso contexto jurídico atual pela importância que adquiriram algumas leis especiais, de freqüente aplicação, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8078/90), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90), a Lei do Divórcio (Lei n. 6515/77) e a Lei dos Direitos Autorais (Lei n. 9610/98), Lei de Locação (Lei n. 8245/91), dentre outras, que acabaram por se consagrar como legítimos microssistemas normativos. 280 In: MORAES, Maria Celina Bodin; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). O Direito Civil Constitucional 1988-1998: Uma década de Constituição, p. 121. Nesse sentido é também a lição de Pietro Perlingeri: “a tarefa atual da metodologia consiste na elaboração de um sistema fundado em valores presentes no ordenamento jurídico, isto é, consiste na projeção dos princípios constitucionais sobre todo o tecido normativo, sobre cada uma de suas disposições”. 278 107 ficavam além de suas estreitas fronteiras, pois pela sua historicidade tradicionalmente coube ao Direito Civil fornecer as principais categorias, conceitos e classificações para todo o Direito281. Mas não se pode imaginar que apenas ocorreu essa migração de princípios do Direito Civil para a Constituição, pois houve, neste aspecto, uma via de mão-dupla, no sentido de que os parâmetros axiológicos da Constituição também passaram a ter influência direta e imediata na aplicação e interpretação dos institutos privatistas. Assim a solidariedade, a dignidade da pessoa humana, o ideal de igualdade (formal e material) tornam-se referências para a realização do Direito entre os particulares, chegando, em muitas vezes, a servir de norte para a funcionalização dos institutos tradicionais do Direito Privado, como a propriedade e os contratos. Nesse contexto, a contribuição da Constituição Federal de 1988 foi de fundamental importância282, pois, como destaca Gustavo Tepedino, ela retrata uma opção legislativa concordatária, em favor de um Estado Social destinado a incidir sobre um Direito Civil repleto de leis especiais283. Na clássica lição de Konrad Hesse, sintetizando esse fenômeno, o significado do Direito Constitucional para o Direito Civil consiste no desempenho da função de garantia, ____________ Carmem Lucia Ramos enfatiza este aspecto: “assim, ao recepcionar-se na Constituição Federal temas que compreendiam, na dicotomia tradicional, o estatuto privado, provocou-se transformações fundamentais do sistema de direito civil clássico: na propriedade (não mais vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada e vinculada à sua função social); na família (que, antes hierarquizada, passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que, via como sua fonte única o casamento, tornando-se plural quanto a sua origem) e nas relações contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de categorias específicas, como o consumidor, e inseriuse a preocupação com a justiça distributiva)” In: “A constitucionalização do Direito Privado e a sociedade sem fronteiras.” In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando os fundamentos do Direito Civil contemporâneo, p. 11). 282 Nesse sentido, Heloíza Barboza informa: “ao ser elaborada a Constituição de 1988, este, em resumo, o quadro do Direito Civil brasileiro que se pode dizer ainda vigente: de um lado o código civil, que por sua qualidade técnica, resistia e resiste como direito comum, e de outro, um verdadeiro cipoal de normas especiais que disciplinam as relações privadas, muitas ainda não harmonizadas com a nova ordem constitucional” (In: “Perspectivas do Direito Civil brasileiro para o próximo século”, p. 27. In: RFD/UERJ, Renovar, n. 6-7, 1998/1999, p. 32). 283 In: TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil, p. 8. 281 108 orientação e impulso284. A constituição proporciona meios para garantir a efetividade dos principais institutos jurídicos de Direito Privado, revestindo-os de um ‘reforço constitucional’, como ocorre com a propriedade, os direitos da personalidade e a livre iniciativa, que, elevados ao status constitucional, passam a gozar de maior valoração jurídica. Ao mesmo tempo, o Direito Constitucional exerce uma função de guia, orientando os rumos do Direito Civil, oferecendo-lhe diretrizes para o seu desenvolvimento, considerando que, pelo seu caráter mais político-social, é dotado de maior sensibilidade para absorver as transformações no pensamento social. Ainda, o posicionamento das normas constitucionais como ordem jurídica fundamental da comunidade, geralmente reconhecido pelos tribunais, acaba por orientar a realização prática do Direito Privado, na sua jurisprudência. Voltando aos ensinamentos de Konrad Hesse: o Direito Constitucional acaba por conceber-se como um lastro para o Direito Privado285. Assim Direito Privado atual abandona este perfil tradicional, não mais se fundando na valoração da propriedade ou das rendas, mas sim no ser humano e seus direitos fundamentais, de forma que, no dizer de Pietro Perlingieri, “a propriedade e a renda são agora encaradas com instrumentos para a realização da dignidade da pessoa humana”286. ____________ In: HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado. Traduzido por Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madri: Cuadernos Civitas, 1995, p. 83. O autor explica “la garantia de institutos jurídicos-privados, la salvaguarda de obligaciones estatales de tutela y también la citada función de guía pueden ay reforzar la liberdade jurídico-privada entendida como autodeterminación individual. Pueden tambiém tener transcendencia para los nuevos componentes sociales del Derecho Privado, conduciendo de esto modo a vinculaciones en el ejercicio de los derechos y a limitaciones de la autonomia privada. En ambas direciones impide lá Constituíssem que el péndulo oscile en demasía; produce así una cierta concordancia objetiva entre el orden del Estado social de Derecho y el contenido del ordenamiento jurídico-privado’ (p. 85). 285 In: HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado, p. 69. 286 In: PERLINGIERI, Pietro. “Normas constitucionais nas relações privadas.” In: RFD/UERJ, n. 6 e 7, Renovar, 1998/1999, p. 66. Nesse mesmo sentido é a lição de Heloíza Barboza: “de início, necessário é que se enfatize o ponto central dessa nova ordem jurídica, especialmente no que respeita às relações privadas: substituindo-se a ótica liberal, individualista, patrimonialista do século passado, por uma visão que se pode denominar humanista. O homem continua como centro de estruturação do sistema jurídico, porém, não mais como promotor da circulação de riquezas, e sim, como ser humano, que deve ser respeitado e assegurado em todas as suas potencialidades como tal. O patrimônio deixa de ser o eixo da estrutura social, para se tornar instrumento da realização de pessoas humanas. Em outras palavras, o homem não mais deve ser ator no cenário econômico, mas regente das atividades econômicas. Insista-se, o homem deve se servir do patrimônio e não ao patrimônio” (In: “Perspectivas do Direito Civil brasileiro para o próximo século”, p. 27. In: RFD/UERJ, p. 33). 284 109 Dessa forma, esta mentalidade constitucionalista remodela o Direito Civil tradicional287, possibilitando a releitura deste e da legislação especial sob os valores e princípios da Constituição288, de maneira a superar, definitivamente, a lógica patrimonial (proprietária, produtivista, empresarial) pelos valores existentes na pessoa humana289. Na afirmação de Müller Neves, o Direito Civil está penetrado por toda a ordem constitucional290. A lógica patrimonialista é incompatível com a implementação efetiva dos valores que alicerçam as constituições sociais, fundadas na dignidade da pessoa humana291. Como enfatiza Heloíza Barboza, o Código Civil clama por interpretação atual, à luz dos princípios constitucionais, mas não em uma modalidade acadêmica, no sentido do convencionalismo estreito, hostil a qualquer inovação, que, na verdade, se deixa guiar por valores do antigo sistema; mas uma interpretação de natureza científica, que com a correlata utilização da técnica jurídica, conduza ao adequado entendimento da norma, consoante os ditames ____________ Eugênio Facchini Neto aponta a existência de duas fases para o fenômeno da constitucionalização do direito privado: o sentido antigo e o moderno. Na primeira fase o Direito civil e o constitucional seguiam caminhos separados, cada um com seu próprio âmbito de incidência, de forma que as constituições eram concebidas como verdadeiros códigos de direito público. No sentido moderno, a idéia de constucionalização do Direito Privado ocorre sob dois enfoques. No primeiro deles vários institutos que tipicamente eram tratados apena nos códigos de Direito Privado (família, propriedade, etc.) passam a ser disciplinados também nas constituições. E outro aspecto a expressão constitucionalização do Direito Civil esa ligado às aquisições culturais da hermenêutica contemporânea, tais como a força normativa dos princípios, à distinção entre princípios e regras, à interpretação conforme a Constituição, etc. Assim, este autor conclui: “esse segundo aspecto é mais amplo do que o primeiro, pois implica analisar as conseqüências, no âmbito do direito privado, de deterinados princípios constitucionais, especialmente na área dos direitos fundamentais, individuais e sociais. Assim, o fenômeno passa a ser compreendido sob determinada ótica hermenêutica, aqula da interpretação conforme a Constituição” (In: “Reflexões histórico-evolutivas sobrea constitucionalização do direito privado.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 14). 288 Paulo Sanseverino, entretanto, mostra-se um pouco receoso em relação a esse movimento de fortificação dos ditames constitucionais no ordenamento jurídico: “não se discute a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana como norma fundamental de todo o ordenamento jurídico, nem a necessidade de uma ‘despatrimonialização’ do direito privado. Não há, igualmente, controvérsia acerca da supremacia da Constituição. Não se pode apenas concordar, é com a ‘ hiperinterpretação’ das normas constitucionais de molde a converter todo o ordenamento jurídico em Direito Constitucional” (In: Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 76). 289 Conforme Maria Celina Bodin de Morais, p. 28-29. Analisando o tema no sistema jurídico espanhol, Aguirre y Aldaz argumentam: “ en efecto, uno de los principales puntos de referencia de nuestra carta constitucional es la persona humana y sus valores; y en ello coincide con el Derecho civil”, concluindo “ en mi opinión, las lineas maestras de su futuro quehacer. Se há producido, si acaso, una intensificación de la presencia del valor ‘persona’ em el Derecho civil, a la par que una cobertura foral de este planteamiento” (In: El derecho civil a finales del siglo XX, p. 87-8). 290 In: NEVES, Gustavo Kloh Muller. “Os princípios entre a teoria geral do Direito e o Direito Civil Constitucional.” In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (org.) ; et al. Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 18. 291 Na lição de Paulo Luiz Netto Lôbo: “o desafio que se coloca aos civilistas é a capacidade de ver as pessoas em toda a sua dimensão ontológica e, por meio dela, seu patrimônio. Impõe-se a materizalização dos sujeitos de direitos, que são mais do que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais” (In: “Constitucionalização do Direito Civil.” In: RIL, p. 103). 287 110 constitucionais292. Assim Paulo Neto Lôbo afirma que essa mudança de atitude é substancial, pois deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição, e não está nos moldes daquele, como ocorria com freqüência no passado293. Dentre os valores constitucionais que passam a assolar as relações privadas, talvez o que mais se destaque é a noção de preservação e promoção da dignidade da pessoa humana294, que é elevada à condição de fundamento da República. 4.3 PANORAMA DO DIREITO CIVIL PÓS-MODERNO Apesar de suas fortes raízes, o Direito Civil também acabou por receber as influências do pensamento pós-moderno, o que lhe trouxe diversas e profundas modificações. Da esma forma que o movimento pós-modeno cria novos balizamentos ao sistema social, o ordenamento juscivilista também se vê radicalmente alterado por essa nova forma de atuação. Nesse compasso, muitos dos princípios orientadores do Direito Civil começam a ser repensados e burilados em consonância com os valores pós-modernos. Dessa forma, segue-se aos apontamentos das principais e mais visíveis mudanças imediatas que a onda pós-moderna traz ao Direito Civil. a) A repersonalização do Direito Civil: a (re)descoberta da pessoa ____________ In: BARBOZA, Heloisa Helena. “Perspectivas do Direito Civil brasileiro para o próximo século”, p. 27. In: RFD/UERJ, p. 34. 293 Conforme LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Constitucionalização do Direito Civil.” In: RIL, p. 100. Cabe, neste aspecto, transcrever a advertência de Aguirre y Aldaz:“conviene señalar cómo este labor de ‘constitucionalización’ no es un campo absolutamente virgen, si no que es ya un terreno roturado, sembrado y con abundantes frutos. Lo cual há tenido lugar, fundamentalmente, por tres vias: la legislación, la jurisprudencial y la doctrinal” (In: El derecho civil a finales del siglo XX, p. 86). 294 Maria Celina Bodin de Moraes ensina: “a raiz da palavra ‘dignidade’ é derivada do latim ‘dignus – ‘aquele que merece estima e honra, a quem se deve respeito, aquele que é importante’. Utilizamos esta palavra apenas para pessoas. Os gregos e os romanos também, mas não a usavam para todas as pessoas, apenas para um pequeno número delas. Tanto Aristóteles como Platão, por exemplo, consideravam que a maior parte dos seres humanos tinha natureza de escravos e servia apenas para a escravidão. Foi o Cristianismo que, pela primeira vez, concebeu a idéia de que a cada ser humano era preciso atribuir a deferência devida à dignidade de Deus porque somos todos seus filhos e, em conseqüência, todos irmãos. Daí a ordem cristã: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” – porque ele é igual a ti, é teu irmão. Há dois mil anos foram ditas estas palavras e ainda no século passado, há pouco mais de cem anos, havia escravidão legalmente permitida no Brasil” (In: O Direito Civil Constitucional 1988-1998: Uma década de Constituição, p. 125). 292 111 A pessoa é o conteúdo mais nuclear e permanente do Direito Civil295 e, por conseqüência, representa um dos conceitos civilistas diretamente atingido pela crise que se fez presente nesta disciplina jurídica nos últimos tempos. Assim o Direito Civil atual é marcado por uma onda preocupada em estabelecer a ‘repersonalização do indivíduo’, de forma a concluir uma longa trajetória histórica de emancipação da condição humana, uma vez que a categoria do sujeito de direito foi concebida pelos códigos oitocentistas a partir de uma concepção meramente virtual, divorciada da realidade296. Analisando esse fenômeno, Natalino Irti utiliza a expressão “riscoperta del privato”, no sentido de manifestar a ocorrência de uma espécie de refluxo em relação à fase anterior de excesso de expansão dos valores econômicos297. Num primeiro momento, tinha-se a presença do indivídualismo possessivo298, típico da concepção liberal-individualista que marcou a fase do liberalismo clássico. Posteriormente, passa-se à crescente socialização da atividade econômica, de um lado, e o aumento dos poderes públicos, de outro, que cercaram o individualismo fazendo com que este perdesse consideravelmente a sua energia vital, a ponto de ser relegado a critério de segunda ____________ Nesse sentido, AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez. El derecho civil a finales del siglo XX, p. 109, explicando: “la evolución históricas del Derecho civil há consistido, en gran medida, en un camino hacia su progressiva privatización, cuyo sentido último describe Diéz-Picazo con las siguientes palabras: ‘al caminar hacia la privatización, el Derecho civil há caminado hacia un verdadero objeto: la persona como ‘ser de fines’. Y éste es el valor permanente del Derecho civil: la defensa de la persona como ‘ser fines’. Con esto parece aislarse brillantemente todo el sentido interno del Derecho civil’. Esse proceso de privatización, traducido en el anclaje cada vez más fuerte del Derecho civil em la persona, há discurrido em forma paralela a la ampliación, también progresiva, del concepto jurídico de persona, hasta que la llegado a ser equivalente, en princípio, a ser humano (es lo que cabría denominar proceso e ‘humanización’ del Derecho civil): en nuestra cultura jurídica al menos ‘prima facie’, persona es todo ser humano, por el hecho de serlo – sin perjuicio de las matizaciones que habré de hacer más adelante -. Las viejas y conocidas palavras de Hermogeniano, ‘ hominum causa omne ius constitutum sit’, cobran ahora pleno sentido y pueden desarrollar mas perfectamente sus virtualidades. En esta misma línea, el Derecho civil no solo aparece como centrado funcionalmente em torno al concepto de persona, sino también teleológicamente; su sentido y su finalidad son la protección y el servicio a la persona, entendida como ser humano” (p. 110-1). 296 Conforme RAMOS, Carmem Lucia Silveira. “Algumas reflexões acerca da Constituição como lei fundamental do Direito Civil.” In: RFD/UFP, p. 152. 297 In: IRTI, Natalino. “Introduzione del incognite del Diritto Privato.” In: RDCiv, ano XXVI, prima parte, 1980, p. 3. O autor, no entanto, adverte: “altri strumenti giuridici, esigerebbe invice la soluzione, che possiamo chiamare ‘produttivista’ o ‘liberistica’. I nostri studi sarebbero allora inirizzati verso la tutela dell’autonomia negoziale, della proprietà privata, dei poteri organizzativi dell’ imprenditore. Lo ‘statuto del privato’ non servirebbe soltanto a proteggere l’ombrosa intimità dell’individuo, ma ad agevolare la sua presenza, la sua capacita di spansione nella vita econômica. A sciogliere, insoma, i ‘lacci e lacciuoli’, che oggi ne compromettono la libera criativitá” (p. 03). 298 Expressão utilizada por MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a Locke. Traduzido por Nelson Dantas. São Paulo: Paz e Terra, 1979. 295 112 ordem299. O pensamento social e jurídico voltava-se, asssim, ao coletivismo, no reinado das relações massificadas. Os códigos civis oitocentistas, nos quais pode ser enquadrado o Código de Bevilaqua, que até há pouco tempo serviu de orientação para o pensamento juscivilista em nosso país, concederam à pessoa uma condição de categoria jurídica abstrata, moldando-a para a assunção do papel de sujeito de direito, ou seja, ente capaz de assumir direitos e obrigações300. Teve-se, assim, por meio da pessoa sujeito de direito o oportuno preenchimento de um espaço essencial para a implementação das orientações jusfilosóficas da época, ou seja, a pessoa era apenas e simplesmente o pólo de relações jurídicas que carregam em si uma espécie de interesse de cunho patrimonial301. Nesse contexto,o Direito Civil do século passado ainda reproduzia a repetição da cansada e antiga fórmula romana da persona (máscara teatral utilizada pelos atores na antigüidade, como sentido de representarem uma personagem). O desgaste dessa visão da pessoa codificada se fez sentir no nosso sistema a partir do seu distanciamento em relação à pessoa real, inserida em um contexto que não encontra conforto no mundo do código. A ciência do direito passa, então, por uma verdadeira mudança de rumo, provocada por uma alteração radical no plano social e jurídico da noção de pessoa. ____________ Nesse sentido, GALASSO, Giuseppe. “Il Diritto Privato nella prospectiva post-moderna.” In: RDCiv, ano XXVI, prima parte, 1980, p. 13. Segundo este autor: “Gli spazi di libertà del post-moderno sono, cioè, da individuare e proteggere bem piú di quanto, per il ‘privato’, accadesse nell’epoca pré liberale. La cresciuta dinâmica ed estensione del ‘ personale’ appare dovuta, piuttosto, ad una redistribuizone del potere e ad equilibri nuovi fra i soggetti del ‘privato’. E sarebbero da studiare le eventuali connessioni di significato e di relazione oggetive del fenômeno con la sociologia della ‘ folla solitaria’: atomizzazione, decomunitarizzazione (se cosi si puó dire) delle libertà personali crescenti nella solitudine di un ‘privato’ meno forte, oggi, di ieri di fronte al publico”(p. 17). 300 Na lição de Jussara Meirelles, “analisando-se as várias disposições da nossa codificação, é possível afirmarse que o posicionamento dos indivíduos nas diversas relações jurídicas é determinado pela sua maior ou menor possibilidade de se enquadrar, em dado momento e segundo as circunstâncias determinadas, naquilo que a lei define como pessoa ou, salientando aqui a sinonímia tradicional, como sujeito de direito. Em tal sentido é que o sistema estabelece outros conceitos abstratos, tais como a capacidade, o estado da pessoa, o domicílio, o direito subjetivo, a obrigação, a responsabilidade” (In: O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 90). Nessa mesma orientação, Carmem Lúcia Silveira Ramos criticou a postura do Código Civil de 1916 em relação “à abstração e ambiguidade da noção de pessoa, como sinônimo de sujeito de direito, por seu artificialismo, por ser insuficiente para explicar a realidade, bem como por sua função na sociedade liberal-burguesa, no sentido de que não se trata de uma noção natural, mas jurídico-ideológica, surgida historicamente como efeito da estrutura social capitalista, e trabalhada com o intuito de ser ligada à idéia de liberdade do indivíduo” (In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. “Algumas reflexões acerca da Constituição como lei fundamental do Direito Civil.” In: RFD/UFP, p. 151-2). 301 Nesse sentido, Paulo Luiz Neto Lobo, em interessante observação, analisando o texto do Código Civil anterior, teve a oportunidade de apontar que o Livro I da Parte Especial deste texto normativo, que versava sobre direito de família, dentre os seus duzentos e noventa artigos (excluídos quinze que haviam sido revogados pela Lei 6515/77), cento e cinqüenta e um apresentavam conteúdo predominantemente patrimonial (In: A repersonalização das relações de família. O direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 64). 299 113 O indivíduo deixa de ser identificado apenas com interesses, econômica e materialmente, definidos, passando a ser reconhecido como o centro de aspirações e valores de ordem psicológica, afetiva e moral. É o retorno ao privado, numa espécie de sentimento nostálgico, refletindo os valores pós-modernos302, impulsionados por uma reflexão ética e tomada de importância dos direitos fundamentais303. Nas palavras de Paulo Nalin, resgatar o homem (antropocentrismo) não significa apenas renovar valores egoísticos contidos na visão civil tradicional, mas, sim, buscar o ‘homem existencial’, colocando-o no centro das atenções do ordenamento304. Enfrentando o tema, Orlando de Carvalho posiciona-se de maneira amplamente favorável a essa tendência de repersonalização do Direito Civil, ressaltando que a ciência jurídica, sem essa raiz antropocêntrica, é ininteligível, pois, não sendo este um sistema lógico como pretendia a jurisprudência dos conceitos, é, todavia, um sistema axiológico, no qual o ser humano preside como o primeiro e mais importante dos valores305. Nesse sentido não parece exagero apontar a pessoa como o ponto de fundamento de todo o Direito Civil contemporâneo, o verdadeiro coração deste ramo jurídico na sua fase ____________ Na lição de Erick Jayme, “uma das características da pós-modernidade é abertamente confessar-se ao sentimento. É o irracional que pressiona para a superfície. A esse movimento se aproxima na arquitetura a chamada ‘volta ao privado’ (Rückzug auf das Private), que Stefan Grundmann tão magistralmente demonstrou. Assim, também o Castelo-hotel ‘Vier Jahreszeiten’ em Berlin, projetado por Karl Lagerfeld que bem representa a arquitetura de sonhos da pós-modernidade, que com pedaços de lembranças e memórias visa atingir os sentimentos embevecidos dos hóspedes” (In: “Visões para uma Teoria Pós-moderna do Direito Comparado.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFRGS, p. 76). 303 Nesse sentido, manifesta-se Alexandre dos Santos Cunha: “a visão reducionaista do conceito de pessoa, operada pelo Direito oitocentista, fez com que o conceito perdesse totalmente o significado, tornando-se mera questão de técnica jurídica. A redescoberta da humanidade desse conceito foi fruto de uma reflexão ética, impulsionada pela emergência dos direitos fundamentais de segunda geração e pelo desenvolvimento, pela pandectística tardia, do conceito de personalidade” (In: Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do Direito Civil. A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, p. 238-9). 304 In: NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 246, afirmando textualmente: “o deslocamento do foco de interpretação do contrato do Código Civil para um sistema Civil – Constitucional é que enquadra o homem no centro das atenções do ordenamento. A Constituição brasileira tem nele – homem - seu ator maior, revelando um efetivo direito ‘antropocêntrico’, ao passo que o Código Civil trabalha com o homem ‘egocêntrico’. Não há necessário conflito entre as duas leituras, pois ambas trabalham com o mesmo titular de direitos e deveres. Todavia, à luz da Constituição, esse mesmo titular ou sujeito do Código Civil ganha uma discrição concreta, não meramente abstrata, na medida em que se importa a Constituição com os seus valores existenciais”. 305 In: CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e limites. 2. ed. Coimbra: Centella, 1981, p. 90. O autor explica que “é esta valorização do poder jurígeno do homem comum – sensível quando, como no direito dos negócios a sua vontade faz lei, mas ainda quando, como no direito das pessoas, a sua personalidade se defende, ou quando, como no direito das associações, a sua sociabilidade se reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua efectividade se estrutura, ou quando, como no direito das coisas e no direito sucessório, a sua dominialidade e responsabilidade se potenciam – é esta centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do direito civil o ‘foyer’ da pessoa, do cidadão mediano, do cidadão puro e simples. Mais do que em outro ramo do direito será, pois, aqui, o ‘hac sensu’, o ‘habitat’ jurídico da pessoa, da sua ‘liberté d’épanouissement’, da ‘ freie Entfaltung der Persönlichkeit’” (p. 92). 302 114 pós-moderna306. É a redescoberta da pessoa e de seus valores. Nas palavras de Gustavo Tepedino, ‘a pessoa humana – e não mais o sujeito de direito neutro e abstrato -, qualificada na concreta relação jurídica em que se insere, de acordo com o valor social de sua atividade, e protegida pelo ordenamento segundo o grau de vulnerabilidade que apresenta, em qualquer situação que reclame tutela, torna-se a categoria central do Direito Privado, redesenhado pelos valores constitucionais’307. b) A despatrimonizalização do Direito Civil: o percurso do ter ao ser O aumento da importância da pessoa no Direito Civil acarretou como conseqüência natural uma tendência de despatrimonialização desse setor do Direito, o que vem sendo constantemente apregoado pela doutrina abalizada308. De acordo com Paulo Nalin, a despatrimonialização guarda relação com a mudança que vai ocorrendo no sistema entre ‘personalismo’ (superação do individualismo) e ‘patrimonialismo’ (superação da patrimonialidade voltada a si mesma, primeiramente do ‘produtismo’ e, mais atualmente, do consumismo), de forma que há uma prevalência do sujeito face ao patrimônio309. Assim a ____________ Nesse sentido, é a lição de Mota Pinto: “a personalidade do Homem é para o direito um ‘príus’, que o Direito encontra (não cria), e que deve ser reconhecido e tutelado pela ordem jurídica – pode mesmo dizer-se que o imperativo de respeito em todos os homens da sua dignidade de pessoa, através da atribuição de personalidade jurídica, resulta da consideração de um ‘conteúdo mínimo de direito natural’ (no sentido de Hart), ou integra uma idéia de direito constitutivo do universo jurídico. A pessoa deve ser o centro das preocupações dos juristas, e o apelo que a estes é dirigido para a sua tutela jurídica emana do mais fundo substrato axiológico que constitui o direito como tal” (In: “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade no direito português.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.) A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 62. 307 In: TEPEDINO, Gustavo. “A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas.” In: RA, v. 100, dez. 2005, p. 167. 308 Em sentido contrário, deixando de reconhecer este fenômeno do Direito Civil pós-moderno, manifesta-se Adriano de Cupis, em texto clássico publicado no início dos anos oitenta. Na visão deste autor: “Che interessi e diritti di natura essenzialmente personale sovrastino interessi e diritti patrimoniali, fin qui ovviamente consento, in: base allá rivendicazione, sempre da me operata, dell’importanza della prima categoria di interessi e diritti. Ma, d’altra parte, non ritengo che tale importanza comporti una riduzione del contenuto patrimoniale del diritto privato, una consideravole emarginazione del momento econômico nell’ámbito privatistico, addirittura l’umiliazione, in: tale âmbito, dell’ispirazione econômica” (…) “non solamente il diritto privato dimonstra una considerevole forza di conservazione del contenuto patrimoniale, ma inoltre l’evoluzione della vita econômica, l’emersione di nuove e multiforme tecniche finanziarie nel mondo degli affari, l’influenza esercitata da recenti esperienze straniere, hanno introdotto nello stesso diritto privato numerosi esperienze straniere, hanno introdotto nello stesso diritto privato numerosi quanto nuovi istituti attinenti allá sua sfera patrimoniale: factoring, leasing, multiproprietà, mutuo di scopo, ecc., sono altrettanti aspetti dell’ accresciuta varietà degli istituti patrimonialistici del diritto privato. La vitalità di questo nel settore patrimoniale si manifesta, dunque, sotto un dúplice aspeto, conservativo ed espansivo”; e conclui: “in: conseguenza, all’invigorata difesa degli interessi personali non ha davvero corrisposto l’impoverimento del contenuto patrimoniale del diritto privato. Gli interessi patrimoniale continuano a premere, e non potrebbero non continuare a premere, sul diritto privato, perché ‘l’homo privatus’ è tuttora, in: larga misura, ‘homo oeconomicus’, portarore do esigenza economiche , il cui giusto soddisfacimento compete al diritto privato” (In: “Sulla ‘depatrimonializzazione’ del Diritto Civile.” In: RDCiv, ano XXVIII, 1982, p. 492 e ss.). 309 In: NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 250. 306 115 pessoa humana passa a ocupar o ponto central do pensamento jurídico contemporâneo, na medida em que o ser recebe a justa e devida valorização, em detrimento do ter, que assume uma função meramente complementar. Como afirma Jussara Meirelles,a excessiva preocupação com os valores patrimoniais não tem mais espaço na realidade contemporânea, pois agora os olhares jurídicos se voltam ao ser humano na sua total dimensão ontológica, cujos interesses de cunho pessoal se sobrepõem à mera abstração que o situava como simples pólo de relação jurídica310. Nesse sentido, Julio Finger sintetiza: “o Direito Civil, de um direito-proprietário, passa a ser visto como sua regulamentação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar seu desenvolvimento com dignidade”311. No entanto, é importante que se estabeleça uma clara orientação sobre o significado exato desse fenômeno, para que se possa compreender, de forma mais adequada, a sua atuação. De início, é necessário que se esclareça que a despatrimonizalização do Direito Civil não implica em total abandono dos aspectos patrimoniais por esta disciplina, mas, sim, que se estabeleça um redimensionamento desses para que se possa oportunizar a abertura de uma nova fase dessa seara jurídica, mais comprometida com a realização dos valores constitucionais312. No Direito pós-moderno, as instituições patrimoniais são relegadas à condição de meios a serviço do desenvolvimento integral da pessoa, de forma que o personalismo próprio dessa fase venha a desempenhar uma função positiva de intervenção sobre as figuras ____________ In: MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo, p. 111. 311 In: FINGER, Julio Cesar. “Constituição e Direito Privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do Direito Civil.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado, p. 95. Este autor ainda refere: “o Direito Civil constitucionalizado parece estar em busca de um fundamento ético que não exclua o homem de seus interesses não–patrimoniais, na realização patrimonial que sempre pretendeu ser” (p. 95). 312 Nesse sentido, é a advertência de Aguirre y Aldas: “así, estimo que la despatrimonialización no debe ser entendida como expulsión del Derecho Civil de las instituciones y valores patrimoniales (lo que equivaldría a un suicidio del Derecho civil, en mi opinión), ni tampoco a una marginación de los mismos, o a un giro copernicano en su consideración. Como he expuesto ya repetidamente, si el Derecho civil es el que regula las relaciones más habituales de los particulares entre si, no cabe prescindir de que buena parte de esas relaciones (quizá las mas necesitadas de específica regulación jurídica) son de caráter patrimonial. Lo que no mengua, por outro lado, el personalismo peculiar del Derecho civil” (In: El derecho civil a finales del siglo XX, p. 151). Na doutrina brasileira, Paulo Nalin leciona: “quando se faz referência à despatrimonialização do Direito Civil e conseqüente despatrimonialização do contrato, tem-se em vista a renovação dos propósitos do contrato contemporâneo, dentre o que se destaca atenção maior dispensada ao sujeito do que à produção e ao consumo, sem que com isso se sustente a superação do conteúdo econômico do negócio, mesmo que, minimamente, retratado. E nem poderia ser diferente, pois não se está a tratar do contrato à luz de uma economia planificada, mas sim, em livre mercado, não obstante funcionalizado” (In: Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 250). 310 116 patrimoniais, reconduzindo-as à condição que lhes é própria e evitando o seu crescimento desmesurado em prejuízo dos valores personalistas. Na doutrina española, Aguirre y Aldaz lecionam que “se puede decir que hay una subordinación institucional de los mecanismos patrimoniales, y de los valores que se refieren a ellos, con respecto a la persona (del mismo modo que un patrimonio concreto está al servicio de una persona concreta”313. Nessa mesma linha, é a lição de Tereza Negreiros: “a ‘despatrimonialização’ do Direito Civil dá-se a partir da funcionalização das relações intersubjetivas – domínio próprio da civilística - a princípios-valores como os da dignidade da pessoa humana, da justiça social e da igualdade substantiva. Esta releitura do Direito Civil, entretanto, não tem como impulso apenas a normativa constitucional, mas, bem assim, a legislação ordinária, que tal como na Itália, ‘tem favorecido (...) o processo de reconstrução do ordenamento no sentido constitucional”314. c) O surgimento de uma nova noção de sujeito: o percurso do indivíduo singular para o indivíduo coletivo A massificação social serviu de nutriente para a “economização” do pensamento jurídico, então mais comprometido com as aspirações patrimoniais do que com a preservação dos ‘elementos naturais’ que outrora serviram de alicerce para a construção dos ordenamentos jurídicos nacionais. Assim o ideário do indivíduo como célula da composição social, dotado de valores imanentes, passa então a agregar a noção de sujeito em termos econômicos. Surge um novo perfil do indivíduo, agora como agente inserido na atividade econômica. Na lição de Francisco Amaral, o legislador atual deve ter em vista o ser humano ‘in: concreto’, situado, não o sujeito de direito ‘in: abstrato’, próprio do direito liberal da modernidade315. A contratação massificada, por outro lado, adotou a técnica de agrupamento dos indivíduos singulares em função dos interesses econômicos ou sociais que lhe sejam comuns. Assim o indivíduo autônomo – contratante tradicional - passou a conviver com a presença de uma ‘individualidade plural’ formada por grupos ou setores portadores de interesses ____________ In: AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez. El derecho civil a finales del siglo XX, p. 152. In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 171-2. 315 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “Os princípios jurídicos na relação obrigatória.” In: RA, v. 99, set. 2005, p. 137. 314 313 117 homogêneos316. Nas exatas palavras de Cláudia Lima Marques: “um traço novo do Direito Contratual pós-moderno e a concentração no sujeito”317, complementando: “a nova teoria do sujeito é outra: o sujeito está fragmentado e é plural”318. Entretanto, ratificando a complexidade pós-moderna, todo este fenômeno é acompanhado, no plano jurídico, pela repersonalização, que resgata os valores da personalidade do sujeito, reforçados pela força penetrante dos Direitos Fundamentais, numa espécie de despatrimonizalização do Direito. A idéia do indivíduo plural surge da aceitação de uma nova situação jurídica subjetiva - status - com a tarefa de representação de grupos (consumidores, trabalhadores, aposentados) que pela comunidade de interesses, passam a ser tratados de forma homogênea319. Na observação de Rolf Kuntz, no plano das relações do mercado ganham relevância as negociações entre representantes de categorias, ou classes, diferentes, pois o indivíduo já não é mais só um exemplar da espécie humana, mas também um elemento de uma subspécie, uma categoria social determinada320. Estes grupos – estruturados em maior ou menor grau – refletem o aprisionamento do indivíduo a uma realidade imposta por um mercado transnacionalizado, que por razões de ordem econômica, não só é tolerada, como tutelada pelos diversos ordenamentos estatais321. ____________ Ludwig Raiser adverte: “como o individualismo do tempo passado, se eu vejo corretamente, se encontra em retirada maior junto à jovem geração, dá lugar a novas transformações pessoais de grupos, pode também continuar mudando o valor da posição dos institutos jurídicos individuais, inclusive o da propriedade privada, até hoje fortemente carregada de conteúdo ideológico. Porém essas transformações de hábitos de vida e concepções dificilmente significam o fim da esfera de vida privada, mesmo quando eles devem se impor em uma frente ampla, pois também esses grupos se encontram mais na fuga da esfera pública do que dentro dela” (In: “O futuro do Direito Privado.” In: Revista da Procuradoria Geral do Estado, 25). 317 In: MARQUES, Claudia Lima. “Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.” In: RTDC, ano 02, v. 08, out.-dez. 2002, p. 5. 318 MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, v. 23, dez. 2003, p. 57. 319 Conforme afirma Giovanni B. Ferri, “è parso, allora, che il diffondersi di queste ‘individualità plurali’ fosse espresione dell’esistenza e delloperare di nuovi forme di ‘status’ che, com il loro proliferare, tenderebbero o soppiantare la ‘cultura’ del contratto, e finibbero contemporaneamente per esprimere nuove forme di soggettività” (In: “La ‘cultura’del contrato e le strutture del mercato.” In: RDCiv, n. 11-2, nov.-dec. 1997, p. 853). 320 In: FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Rolf. Qual o futuro dos direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 22. O autor acrescenta: “Para desfrutar dos direitos definidos pela condição humana, é necessário neutralizar as diferenças de classes. Isto implica em repensar o direito e entendê-los como componentes de um sistema de pesos e contrapesos, destinados a cumprir, entre outras finalidades, a de corrigir os desequilíbrios produzidos pela operação dos mercados” (p. 23). 321 Giovanni B. Ferri exemplifica essa situação com o tratamento dispensado pelos diversos ordenamentos ao direito dos consumidores: “l’individualità plurale dei consumatori appare piuttosto una metafora per indicare l’emergere, nel mercato, di nuovi interessi o aggregazioni di interessi (e non di nuovi soggetti o di nuove situazioni soggettive), cui l’ordinamento statuale provede a dare rilevanza e tutela. Alle esigenze di tali novità, il legislatore, in: questi casi, socorre, creando nuovi modelli organizzativi del mercato, che, tenendo anche conto di talune posizione, di maggiore o di minore forza dei suggeti che del mercato sono i protagonisti, consentono che il gioco della concorrenza e degli acambi, della produzione e del consumo, si possa realizzare nel modo più rezionale, equilibrato ed efficiente possibile” (In: “La ‘cultura’del contrato e le strutture del mercato.” In: RDCiv, p. 858). 316 118 A fragmentação do sujeito surge com o modelo ‘pós-moderno’ no exato momento em que o sistema de uma economia de massas começa a apresentar sinais de esgotamento, numa crise de desaceleramento. A necessidade de constante renovação, fruto da própria lógica implementada pelo capitalismo de consumo, serve como reação a este sistema, exigindo um grau de diversificação cada vez mais constante e acelerado. É a derrocada dos modelos de organização taylorista e fordista, que não dispõem de aparatos técnicos para transpor esta nova dificuldade. As políticas Keynesianas de ‘Estado do bem-estar social’ também passaram a experimentar momentos de tormentosas crises, levando a uma renovação no modo de atuação do mercado. Como alternativa para o saturamento da massificação social, surge a sua antítese, representada pela fragmentação322, que se origina, inicialmente, como uma estratégia de reestruturação do processo de produção, que, por meio da busca de métodos mais flexíveis, substitui as antigas cadeias de produção que marcaram o fordismo. A descentralização e a diversificação ganham espaço, permitindo que se vislumbrem novos horizontes dominados por sistemas de redes de atuação323 e fomentados pelos avanços na área da informática e robótica. Essa mudança se faz sentir no plano das relações negociais. A cinzenta sociedade dominada pelos contratos massificados volta-se a novos rumos, traçados pelo reconhecimento da necessidade de diversificação e retorno da individualização. Entretanto, evidentemente não se está diante de um retorno ao antigo individualismo que marcou o modelo capitalista liberal, mas de uma repersonalização do indivíduo, outrora absorvido pela massificação social. Tratase de um processo, que, no caminho inverso à homogenização, volta-se às especificidades que ____________ Maria Severiano aponta: “a palavra-chave, quase mágica, que parece melhor refletir a ordem de algumas mudanças observadas nesta nova fase é a ‘fragmentação’, cujo valor básico, propulsor, foi a introdução de novas tecnologias geradas por novos processos de informação. Neste contexto, os dois novos objetivos centrais, responsáveis pela modificação na forma dos processos produtivos são: a integralização e a flexibilização (...) Nesse sentido,, o mundo ‘pós’, por ser fragmentado, seria mais democrático, individualizado e livre” (In: Narcisismo e Publicidade: uma análise psicosocial dos ideais de consumo na contemporaneidade, p. 81). 323 Como aponta Maria Severiano “o conjunto das empresas transnacionais está, de fato, ‘fragmentado’ no que diz respeito a sua organização. Pelo contrário, elas constituem um sistema de redes interligado por uma mentalidade empresarial única – o chamado ‘pensamento único’, atualmente tão em moda – que inegavelmente está a serviço dos interesses dos grupos organizados. Cada módulo, apesar de trabalhar separadamente, está ‘sinergicamente’ articulado aos demais através de um intenso fluxo de informações e um ideário comum, ditado, obviamente, pelos diretores das mega-corporações” (In: Narcisismo e Publicidade: uma análise psicosocial dos ideais de consumo na contemporaneidade, p. 83). 322 119 personalizam os grupos sociais, preocupando-se em adequar a produção para enfrentar esse processo de compartimentação social324. Entretanto, não se pode deixar ser seduzido pelo canto da sereia da individualização pós-moderna. Trata-se, sem dúvida, de uma forma de reorganização do modelo econômico capitalista, que, na ânsia de preservação, migra para uma nova fase, armado de estratégias diferenciadas. Não houve uma mudança do sistema econômico; continuamos sob as luzes do modelo capitalista, mais cândido e moderado, mas ainda dominado pelo mesmo rei: o mercado. A individualização em questão é, na verdade, uma pseudo-individualização325, criadora, por sua vez, de uma pseudo-liberdade, colocando na sociedade uma certa variedade de escolhas, todas, é certo, previamente pensadas, sopesadas e elaboradas no intuito de criação de uma sensação de autonomia aos indivíduos. O momento pós-moderno parece promover uma reconciliação entre os indivíduos e a sociedade, mas a realidade é outra. Como observa Maria Severiano, essa nova personificação serve apenas para criar uma intensificação ainda maior do consumo, agora atrelando a identidade do sujeito ao seu estilo de consumir326. Colocada como realidade inquestionável (e por enquanto irreversível), a fragmentação se faz sentir na órbita da teoria dos contratos, que precisará ao mesmo tempo absorvê-la e domesticá-la, permitindo que ela traga novos frutos numa abonança que recompõe os efeitos catastróficos que a tempestade da era da massificação dos contratos legou à teoria do direito. Dessa forma, a técnica jurídica reforça a necessidade de agrupar os ____________ Esse fenômeno da fragmentação e os seus reflexos no âmbito negocial não passam despercebidos por Heloísa Carpena, que, ao abordar o tema da publicidade, constata que: “o mercado, na perspectiva do produtor, se encontra crescentemente segmentado, e a comunicação, por conseqüência, cada vez mais dirigida a um ‘nicho’ específico que o anunciante pretende atingir. Esta segmentação é reflexo (e causa) de um outro fenômeno igualmente significativo: através do consumo, o indivíduo se comunica e se integra em grupos na sociedade. A partir de hábitos de consumo comuns, tais como a maneira de vestir, o gosto musical ou o carro preferido, os indivíduos se identificam e se agrupam” (In: MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. “Prevenção de Riscos no Controle da Publicidade Abusiva.” In: RDC, n. 35, jul-set. 2000, p. 125). 325 Esta pseudo-individualização do sujeito no mercado atual rende frutos, em especial, no campo da publicidade, onde é difundida em larga escala, como uma técnica de captação da atenção dos destinatários. Assim, os anúncios publicitários falam diretamente com o consumidor, utilizando-se de pronomes pessoais “tu”, “você” ou “nós”. Oliviero Toscani nota essa realidade observando que: “a publicidade é extremamente solícita para com aquele que compra (.) ela não se dirige à massa, mas à pessoa”, exemplificando: “eu sonhei e a Sony fez, Sempre com você (AGF), A técnica próxima de você (Brandt), Com você antes de tudo (Burroughs) , O seu parceiro (Crédit Iynnais), Pensamos como você (Daewoo), Perto de você (Havas Viagens), Sempre com você (Hewlett Packard), Seguimos você (Mondiale Seguros), Pensamos em você todos os dias (Monoprix-Uniprix), etc.” (In: A publicidade é um cadáver que nos sorri. Traduzido por Luiz Cavalcanti de M. Guerra. São Paulo: Ediouro, 1996, p. 36). 326 In: SEVERIANO, Maria Fátima Vieira. Narcisismo e Publicidade: uma análise psicosocial dos ideais de consumo na contemporaneidade, p. 95. 324 120 atos negociais em verdadeiras classes com lógica própria e orientado por pontos cardeais bem definidos e originais, como ocorre na teoria dos contratos de consumo, de trabalho e no comércio eletrônico, dentre outros. Mas além do reconhecimento da necessidade de fragmentação, não se pode olvidar da existência de vetores maiores, que permitem a ligação e orientação da teoria contratual, como ocorre em relação ao princípio da função social do contrato. A manutenção da idéia de sistema deve ser preservada, mas agora não como um modelo fechado, mas, sim, aberto e nitidamente influenciado pelo pensamento tópico. No emaranhado da contratação pós-moderna, a abertura do sistema é a característica que permitirá a sua flexibilidade, e a tópica o seu ponto de equilíbrio e segurança. d) A ‘principialização’ do Direito Civil No Direito Civil pós-moderno, nota-se um claro recurso do legislador aos princípios jurídicos, que passam a ser utilizados como uma técnica de abertura do sistema, ao lado das cláusulas gerias. Rompe-se com o paradigma moderno do modelo jurídico fundado na normatização estrita, no qual o legislador previamente estabelece soluções prontas para os problemas jurídicos, de forma abstrata. É o que Francisco Amaral designa de ‘principialização’ do Direito Civil327, de forma que esse ramo do Direito Privado, numa clara superação do positivismo dominante de outrora, passa a introspectar um sistema de princípios que lhe servem de fundamento, criando um modelo jurídico de textura aberta. Os princípios são dotados de uma generalidade que permite ao mesmo tempo resguardar a coerência do ordenamento, mantendo-se apegado às suas finalidades328, sem se apresentar como uma regra imediatamente prescritiva, vindo a tornar-se operante pelas mãos do intérprete, que desempenhará a tarefa de concretizá-los, numa atividade qualificada por ____________ In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma jurídico-decisório.” In: RBDC, p. 53. 328 Conforme observa Francisco Amaral: “princípios são os fundamentos que servem de alicerce ou de garantia e certeza a um conjunto de juízos. São pensamentos diretores de uma regulamentação jurídica, critérios para a ação e para a constituição de normas e institutos jurídicos, a que se recorre quando em face de situações a priori indeterminadas” (In: “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma jurídico-decisório.” In: RBDC, p. 69). 327 121 orge Mosset Iturraspe como verdadeira arte329. Encarregados, portanto, de contribuir para a unidade do sistema, auxiliando em sua interpretação, os princípios acabam por exigir do intérprete mais do que a realização de mera aplicação do Direito, mas, sim, uma efetiva tarefa de criação, de permanente construção jurídica. O intérprete, na aplicação dos princípios330, cria a norma para o caso concreto, tarefa que desempenha com o apego aos valores sociais dominantes, realizando uma interpenetração necessária entre o jurídico e o social, num novo processo de juridicização, afastado daquele que era desempenhado no contexto da modernidade, apegado a raciocínios lógico-dedutivos de nítido viés positivista331. Como leciona Mosset Iturraspe, os princípios não proporcionam soluções por simples aplicação e, sim, oferecem um ponto de apoio ou de partida para uma fundamentação que leve em consideração as peculiaridades de cada litígio, para que se possa chegar a uma solução que sirva de resposta ao justo332. ____________ In: ITURRASPE, Jorge Mosset. “El Arte de juzgar del juez en relación a las cláusulas abiertas.” In: Lecciones y Ensayos, v. 72-3 e 4, Abeledo-Perrot, 1998/99, p. 105. Segundo este autor: “esa atividad judicial, calificada como ‘arte’, viene a cubrir una doble faceta, ajena por completo a la concepción del juez como una simple ‘máquina de subsunción’. De un lado, la labor judicial es ‘creadora de Derecho’, en cuanto que integra el ordenamiento jurídico, salvando sus lagunas que a los tribunales imponen las leys. Y, por outra parte, posibilita ‘pronunciar’ el Derecho, cumpliendo con la función de aplicación y realización del mismo” (p. 105). 330 Fracisco Amaral sintetiza as diversas possibilidades de princípios: “podem distinguir-se em princípios positivos, transpositivos e suprapositivos. Ou ainda em princípios constitucionais e princípios institucionais, conforme pertençam à ordem jurídica superior da Constituição Federal ou à legislação ordinária, servindo, neste caso, de orientação e fundamento aos principais institutos de direito privado, especificamente, a personalidade, a família, a propriedade, a obrigação e o contrato. Ou ainda em princípios normativos verdadeiros elementos de direito positivo, e informativos. No direito brasileiro, são princípios constitucionais, superiores, que se projetam no direito privado, os princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Já no campo das obrigações, são princípios institucionais, ou legislativos, os princípios da autonomia privada, o da boa-fé e o da responsabilidade patrimonial. Em matéria contratual, destacam-se ainda os princípios da liberdade de associação e o da função social do contrato. Nos direitos reais, o princípio da função social da propriedade. No direito de família, o princípio da igualdade dos cônjuges e o princípio da igualdade dos filhos. Os princípios informativos, não se incorporando aos institutos jurídicos, não valem com direito positivo material, não representam direito efetivo, são para o legislador e não mais para o juiz, apenas critérios guias, úteis para o desenvolvimento do direito. São princípios jurídicos informativos do Código Civil, os princípios da socialidade, da eticidade e o da operabilidade ou concretude” (In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma jurídico-decisório.” In: RBDC, p. 70-1). 331 Como observa Francisco Amaral: “o modelo tradicional, seguido pelos intérpretes do Código Civil de 1916 mantinha-se fiel ao modelo da modernidade. Separava o processo de criação do processo de aplicação do direito, e considerava objetivo do intérprete a compreensão do sentido e o alcance da norma, para depois construir a regra específica. Fazia-se uma primeira e distinta interpretação teórica e doutrinal para chegar-se a uma segunda, a interpretação prática ou operativa, no sentido de implicar já uma decisão jurídica. Hoje se considera a interpretação jurídica com uma operação intelectual única e integral. Não mais a interpretação da lei, mas em um ato de realização do direito, reconhecendo-se que a interpretação jurídica é essencialmente a compreensão do critério normativo da concreta solução do problema” (In: “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma jurídico-decisório.” In: RBDC, p. 76). 332 In: ITURRASPE, Jorge Mosset. “El Arte de juzgar del juez en relación a las cláusulas abiertas.” In: Lecciones y Ensayos, p. 106. 329 122 Nesse contexto, assume-se uma nova técnica de interpretação e concretização do direito, abandonando-se o método exegético-analítico e passando a adoção de critérios valorativos, onde o social e o ético passam a orientar o aplicado jurídico na construção do direito para o caso concreto. Nas palavras de Francisco Amaral, “vive-se em outra época, outras são as exigências sociais. Por isso, também, outro modelo de interpretação jurídica deve seguir os intérpretes do Código, sob pena dele não realizar o seu espírito de inovação, permanecendo como um sistema formalmente vazio e materialmente insuficiente para a tarefa de construir o direito da sociedade contemporânea, pós-industrial ou pósmoderna”333. Há uma mudança do próprio modelo da aplicação do direito, que, abandonando o tradicional ‘paradigma da aplicação’, assume o ‘paradigma da construção jurisprudencial’334. Assim, na concretização do jurídico, o juiz irá valer-se da textura aberta do sistema para, otimizando os princípios jurídicos, assumir uma verdadeira atitude criadora, dotada de inegável carga axiológica. Esse novo perfil do Direito Civil está mais de acordo com a realidade da sociedade atual, caracterizada pela complexidade, o pluralismo, a fragmentação, a velocidade, o apego à informação, incompatível, portanto, com o monismo jurídico e com o monopólio estatal na produção do Direito. No contexto da pós-modernidade, o Direito deixa de expressar-se como um sistema de normas e passa a fundar-se num sistema de procedimentos. d) Abandono da neutralidade e leitura interdisciplinar O modelo de Código Civil adotado em nosso país em 1916 mostrou-se literalmente compromissado com os ideais do Estado Liberal, de forte índole individualista e mascarado por uma pseudoneutralidade, o que era uma marca das legislações de sua época335, pois, como ____________ In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma jurídico-decisório.” In: RBDC, p. 77. O autor complementa: “O novo Código Civil brasileiro pode vir a ser, se os juristas brasileiros compreenderem o sentido e o fundamento axiológico de suas disposições, o ‘iter’ de passagem para a pós-modernidade no campo do direito civil, do que será prova a vigência do pensamento jurídico como razão prática, dotado de uma intenção axiológico-normativa, e o sentido de afirmação específica em concreto no processo decisório” (p. 78). 334 Na lição de Mosset Iturraspe: “si antes se aludia a la ‘boca del juiz que repete las palabras de la ley’ – Montesquieu – y ahora mencionamos esse quehacer como una ‘arte’, significa que hemos pasado del ‘mecanicismo’ a la ‘creación’; de la personaje ‘repetidor’ a outro artista de los justos y de lo equitativo” (In: “El Arte de juzgar del juez en relación a las cláusulas abiertas.” In: Lecciones y Ensayos, p. 105). 335 Carmem Lúcia Ramos, escrevendo ainda sob a vigência do Código Civil de Bevilaqua, alertava: “o Código Civil em vigor foi redigido sob a influência de idéias individualistas, de conotação positivista, prevalentes ao final do século XIX. Presente em seus dispositivos está o mito da neutralidade do Estado Liberal, a visão do interesse público apenas como a forma de se assegurar melhores condições para o exercício e o desenvolvimento dos direitos privados. Trata-se de uma codificação regida para regular a sociedade civil” (In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. “Algumas reflexões acerca da Constituição como lei fundamental do Direito Civil.” In: RFD/UFP, p. 151). 333 123 observa Edson Fachin, esse tem sido o tom da formulação do projeto ideológico de sustentação do Direito Civil nos últimos dois séculos, ou seja, um sistema pretensamente neutro, calcado em abstratas categorias jurídicas, destinado a ser impessoal, praticamente intangível e com pretensões de perenidade336. Entretanto, a postura tradicional do Direito Civil como um sistema neutro teve o início de sua derrocada com as primeiras inserções de efetividade do Estado Social, experimentadas no século passado. O Período atual, da sociedade pós-moderna, encerra definitivamente essa fase histórica do Direito Civil, que passa a ser alçado a uma disciplina comprometida com as aspirações sociais consagradas no Estatuto constitucional. O mito da neutralidade do Direito Civil, típico da concepção moderna, cede espaço e abre caminho para um ‘novo Direito Civil’, comprometido com a consagração dos valores constitucionais, com a realização pessoal e social dos indivíduos337, influenciado, em grande dose, pela aspiração de efetivação dos Direitos Humanos. Assim o movimento pós-moderno lhe atribui novo perfil338, despido do que Paulo Neto Lôbo designou de ‘falácia dessa visão estática, atemporal e desideologizada do Direito Civil’339. O caráter neutro outrora outorgado ao Direito Civil era reflexo da compreensão que se estabelecia entre direito e tempo, ou seja, mais pontualmente, das influências que o tempo exerce sobre o Direito. ____________ In: FACHIN, Luiz Edson. “Limites e possibilidades da nova teoria geral do Direito Civil.” In: RFD/UFP, p. 50. Nas palavras deste autor: “O direito do homem sozinho, centrado numa hipotética auto-regulamentação de seus interesses privados, e conduzido pela insustentável igualdade formal, serviu para emoldurar o bem acabado sistema jurídico privado. Daí deriva a disciplina das noções de personalidade, ato jurídico e capacidade. Conciliando liberdade formal e segurança, a base da teoria geral das relações privadas foi o que sustentou, no domínio econômico, o ‘laisser faire’ da Escola Liberal. Esse mecanismo se refletiu no distanciamento propositado entre o direito e as relações de fato excluídas do sistema” (p. 51). 337 Nesse sentido, a lição de Carlos Ghersi: “en este sentido, sustenemos que el Derecho es un sistema que debe asegurar la convivencia social – no la dominación - preservando la calidad de vida por medio de la redistribuición de los beneficios económicos producto del crescimiento y el desarrollo – no la concentración de riquezas – evitando las marginalizaciones de cualquier tipo – económicas, culturales, etcétera – pues de lo contrario entraremos en el siglo XXI de la mano de la esclavitud consentida por el miedo y la necesidad” (In: “Los limites del Derecho como orden social justo (reflexiones para la posmodernidad jurídica).” In: Lecciones y Ensayos, Abeledo-Perrot, 1995. v. 63, p. 30). 338 Nesse sentido, Tereza Negreiros observa que “todos esses marcos do direito civil projetados nas codificações foram, pouco a pouco, sem exceção, sendo superados ao longo do seculo XX. A começar pela função social da propriedade, passando pela função social do contrato – os dois pilares conceituais e ideológicos do direito civil -, indo até o campo da responsabilidade por atos ilícitos, tendentes à objetivação, para não mencionar as mutações havidas no direito de família e a emergência e o desenvolvimento dos direitos da personalidade, por todos estes pontos de vista o direito civil refletiu a história do século XX e suas oscilações no que respeita à concepção do indivíduo frente à sociedade e ao Estado. Ora, o que há de tão extraordinário na afirmação de que o direito civil do início do século XXI está muito distante do direito civil codificado a partir do início do século XIX?” (In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 7). 339 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Constitucionalização do Direito Civil.” In: RIL, p. 100. 336 124 A permanente inter-relação entre tempo e direito tem sido marcada por constantes e infindáveis atritos, pois longe está de representar uma convivência passiva. Verifica-se uma tentativa constante de busca de subordinação de um elemento ao outro. Ora o tempo aprisiona o Direito, ora ocorre o inverso, em permanente tentativa de capturas recíprocas. Como observa o jurista colombiano Trazegnies Granda, sob uma perspectiva positivista radical toda norma pretende paralisar o tempo, eliminá-lo340. O tempo representa o movimento, as mudanças, o que fere as aspirações do positivismo jurídico, que pressupõe a imutabilidade da norma durante toda a sua existência. Entretanto, a vitalidade do tempo teima em bater de frente com o formalismo do sistema jurídico; se faz refletir de forma indelével nas áreas que compõem o entorno do Direito, acarretando uma inevitável penetração no pensamento jurídico. e) A fragmentação legislativa do Direito civil A acelerada evolução social propiciada pelas sucessivas revoluções que assolaram a nossa sociedade (industrial, tecnológica e informática) assumiu a responsabilidade pela onda de crescente multiplicações dos desafios apresentados ao Direito Civil, o que acabou por ultrapassar em muito as forças de sua codificação, trazendo à tona a fragilidade do modelo tradicional. Note-se que, nessa época, a necessidade de reproduzir uma idéia de segurança e certeza acabava por difundir o entendimento de que a noção de Direito Civil se identificava com o seu respectivo Código. Esta experiência se fez sentir, de forma especial, nas últimas décadas, dando origem a um movimento de revitalização das figuras tradicionais da sociedade civil – pessoa, família, contrato, responsabilidade civil, propriedade -, com o fito de adequá-los a essa nova realidade. O instrumento preferido para fazer frente a essa necessidade de renovação foi a criação de ____________ In: GRANDA, Fernando de Trazegnies. Posmodernidad y Derecho, p. 3. O autor explica esta questão, dizendo: “la história positivista del Derecho – o cuando menos, la ideologia positivista de la historia jurídica – tiene un carácter cataclísmico; no está constituida por una evolución gradual en donde las cosas van modificando poco a poco su color, sino que se manifesta sólo a través de esas grandes convulsiones que son el parto (la promulgación) y la muerte ( la derogación) de la norma. Es por dicirse que toda norma es un momento con vocación de eternidad o una eternidad provisional” (p. 04). 340 125 diversas leis especiais, que, num curto espaço de tempo, se alastraram e modificaram irremediavelmente a face do nosso Direito Privado341. Assim, o Direito Civil atual experimenta um fenômeno jurídico de ordem mundial no sentido da proliferação de leis externas à codificação central, gerando o que acabou por ser designado de ‘a idade dos microssistemas’, caracterizada por uma constante e crescente conquista de território por leis especiais, com o rompimento da generalidade secular que marcava as grandes codificações civis. Dentre as causas que fundamentam esta nova sistemática do Direito Civil está, em especial, o alijamento dos códigos, que se vêem substituídos pelas constituições no seu papel secular de indicador dos princípios essenciais do sistema jurídico. Assim passou-se de um monossistema centrado nos códigos ao plurissistema, fundado nas constituições342. Outra situação que pode ser apontada como responsável pela abundância de leis especiais é, sem dúvida, a obsolescência técnica das soluções tradicionalmente oferecidas pelos Códigos, seja pela mudança de visão em relação às ideologias de seus conteúdos, ou pelo surgimento de novos problemas e necessidades decorrentes das mudanças econômicas, sociais e tecnológicas343. A todas essas causas é necessário que se some também o saturamento da concepção racionalista e totalizante que marcou a fase áurea das grandes codificações nos últimos séculos, de forma que não mais de aceita que os códigos civis mantenham o papel central do sistema. Como afirma Aguirre y Aldaz, uma das características da codifição foi o intento de alcançar uma sistematização orgânica do Direito Civil, organizando-o de maneira coerente ____________ Conforme observa Jussara Meirelles, “essa nova realidade fez com que o civilista contemporâneo passasse a direcionar sua atenção à defesa da pessoa e dos seus interesses inalienáveis, afastado-se do ideal de defesa da burguesia. Novas preocupações tomam espaço, tais como: a função social da empresa, a repersonalização do direito das obrigações e do direito de família, o direito à saúde, o direito à moradia, etc.” (In: MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo, p. 110). 342 Nesse sentido, leciona Aguirre y Aldaz: “el papel central que hasta fechas recientes asumía el Código, correspondería ya a la constitución, texto enunciador de los princípios y directrices actuales, que después serán desarrollados por las leyes especiales. La conclusión de todo ello es que se ha pasado, de un monosistema, centrado en el Código civil, y a cuyo alredor girarían las leyes especiales, pero también el Código civil, formando cada uno su peculiar microsistema” (In: El derecho civil a finales del siglo XX, p. 51-2). 343 Conforme AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez. El derecho civil a finales del siglo XX, p. 62. 341 126 om os princípios e regras difusíveis da razão natural, de forma que o código acabava por esgotar o Direito Civil, encerrando em si todo o sistema344. Esse panorama cultuando a concepção da importância de conservação de um sistema construído racionalmente para servir com mecanismo de garantia de segurança jurídica caiu por terra a partir do momento em que a codificação - rígida e fechada – passou a representar grave entrave à evolução do Direito Civil. f) O diálogo das fontes como forma de manutenção da coerência interna do sistema Na complexidade crescente da vida contemporânea, o que inquestionavelmente se projeta nas relações privadas conduz a uma insuficiência da legislação civilista, que não consegue a sua emancipação apenas por meio de uma interdisciplinaridade interna, ou seja, interação com outros ramos do Direito. Mostra-se necessária uma efetiva interação com os mais diversos campos do conhecimento, numa verdadeira multidisciplinaridade. O primeiro aspecto que a pós-modernidade projeta no âmbito do Direito Civil é o enfrentamento do pluralismo, que se realiza por meio do reconhecimento da diversidade de fontes. No âmbito interno do Direito Privado o Código Civil passa a ter um convívio necessário, com uma série de leis esparsas dedicadas a matérias específicas e que, em sua grande parte, formam verdadeiros microssistemas jurídicos que lhe são anteriores, como ocorre com o Código de Defesa do Consumidor, a legislação inquilinária e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como aponta Cláudia Lima Marques, “efetivamente, cada vez mais ____________ In: AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez. El derecho civil a finales del siglo XX, p. 65. Este autor destaca: “pero hay algunas otras causas, no tan aludidas, pero igualmente presentes, que se fundan, al menos parcialmente, en la concepción racionalista ilustrada de Código. Éste es – o se pretendió que fuera – un corpo orgánico, cerado, con pretenciones de complitud, que guarda en si, si o todas las soluciones, sí cuando menos la posibilidad de ‘inventarlas’; un cuerpo, además, dotado de coherencia interna, en el que la reforma de un precepto es capaz de afectar, si no a todos los demás, sí a un número indeterminado, de localización sistemática heterogênea. Partiendo de estas ideas – a las que responde formalmente el Código -, se entiende que el legislador, formado en ellas, en parte por respeto al Código, pero en parte también por las dificuldades que entraña su reforma (debidas a la concepción que determinó su redación), prefiera promulgar una ley especial, que forma una unidade propria, foralmente autónoma respecto del Código. Ello, antes que afrontar una modificación parcial del Código, que, además de otras dificuldades prácticas, presenta el problema (tantas veces comprobado en las sucesivas reformas parciales de nuestro Código) del mantenimiento de esa coherencia interna, aunque sea en su aspecto más negativo y elemental de evitación de contradicciones, por medio de la identificación y reforma de todos los preceptos afectados, en las sedes más diversas. Un problema, pues, de comodidad legislativa, ocasionado por el propio intento del codificador decimonónico de crear un texto complejo, cerrado, orgánico y autosuficiente. Los problemas se revelam mayores, por otro lado, si se tiene en cuenta que muchas de las leyes extracodiciales contienen no sólo normas civiles, sino otras de difícil encaje en un texto civil (penales, administrativas)” (p. 62-4). 344 127 se legisla, nacional e internacionalmente, sobre temas convergentes. A pluralidade de leis é o primeiro desafio do aplicador da lei contemporâneo”345. Assim o grande enfrentamento do Direito Civil pós-moderno é vencer os seus conflitos legislativos internos, chegando a uma harmonia que permita a sua atuação de forma eficiente e justa. Dentro do pensamento pós-moderno, entretanto, não há espaço para os tradicionais conflitos de leis, fruto de aparentes antinomias legislativas, que propiciavam a busca da prevalência de uma norma sobre a outra, resultando a inevitável exclusão da norma preterida, do ordenamento jurídico. O pluralismo pós-moderno leva ao convívio das diferenças, numa permanente comunicação que se concretiza pela coordenação entre as normas, o que Nathalie Sauphanor denomina de ‘coerência derivada ou restaurada’ (cohérence dérivée ou restaurée)346. Assim, uma vez consolidada a fragmentação legislativa do Direito Civil, tem início a busca de novos critérios que possam assegurar a preservação de uma visão sistemática deste ramo jurídico. Erick Jayme propõe a implementação de uma nova metodologia apta a enfrentar os desafios da aplicação e aparentes conflitos das diversas normas que formam o tecido do Direito Civil atual, qual seja, o chamado diálogo das fontes347, numa aplicação ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 51. In: SAUPHANOR, Nathalie. “L’influence du Droit de la Consummation sur le systeme juridique.” In: LGDJ, Paris, 2000, p. 32. Nesse sentido, é a lição de Cláudia Lima Marques: “Em outras palavras, nesta visão ‘perfeita’ ou ‘moderna’, teríamos a tese (lei antiga), a antítese (lei nova) e a conseqüente síntese (a revogação), a trazer clareza e certeza ao sistema (jurídico). Os critérios para resolver os conflitos de leis no tempo seriam assim apenas três: anterioridade, especialidade e hierarquia, a priorizar-se segundo Bobbio, a hierarquia. A doutrina atualizada, porém, está à procura hoje mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que à exclusão. É a denominada ‘coerência derivada ou restaurada’ (cohèrence dèrivèe ou restaurèe), que em um momento posterior à decodificação, à tópica e à micro-recodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso Direito contemporâneo, a evitar a antinomia, a incompatibilidade ou a não-coerência” (In: “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 51-2). 347 Cláudia Lima Marques informa: “em seu Curso Geral de Haia, de 1995, o mestre de Heidelberg, Erick Jayme, ensinava que, em face do atual ‘pluralismo pós-moderno’ de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo. Cada vez mais se legisla, nacional e internacionalmente, sobre temas convergentes. A pluralidade de leis é o primeiro desafio do aplicador da lei contemporâneo. A expressão usada comumente é ‘conflito de leis no tempo’, a significar que haveria uma colisão ou conflito entre os campos de aplicação dessas leis. Assim, por exemplo, uma lei anterior, como o Código de Defesa do Consumidor, de 1990, e uma lei posterior, com o novo Código Civil brasileiro de 2002, estariam em ‘conflito’, daí a necessária ‘solução’ do ‘conflito’ através da prevalência de uma lei sobre a outra e a conseqüente exclusão da outra do sistema (ab-rogação, derrogação, revogação)”, acrescentando: “o grande mestre Erick Jayme propõe então a convivência de uma segunda solução ao lado da tradicional: a coordenação destas fontes. Uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em conflito sistema, afim de que seja restabelecida a sua coerência, isto é, uma mudança de paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico (ou do ‘monólogo’) de uma só norma possível a ‘comunicar’ a solução justa) à convivência destas normas, ao diálogo das normas para alcançar a sua ‘ratio’, a finalidade ‘ narrada’ ou ‘comunicada’ em ambas” (In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 665-7, respectivamente). 346 345 128 simultânea, coerente e coordenada de fontes legislativas heterônomas, sempre orientada sob a luz dos ditames e valores constitucionalmente estabelecidos. Nas palavras de Cláudia Lima Marques, “diálogo porque há influências recíprocas, diálogo porque há aplicação conjunta das outras duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja solidariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre as fontes prevalentes (especialmente em matéria de convenções internacionais e leis modelos) ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato. Uma solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferenciado aos diferentes)”348. g) O “renascimento” do debate sobre os direitos humanos e a influência dos direitos fundamentais nas relações privadas Os debates sobre a necessidade de observância dos direitos humanos, no contexto do pensamento pós-moderno, retoma o seu papel de destaque dentro do cenário jurídico, proporcionando um olhar crítico sobre as conseqüências éticas das grandes evoluções tecnológicas da atualidade. Desse modo, a proteção dos direitos humanos, apesar de sua mundialização, representa um dos grandes pontos de resistência aos efeitos maléficos da globalização. Assim há um revavol dos direitos humanos e, por conseqüência, de sua versão positivada pelo perfil racionalista, ou seja, os direitos fundamentais. No plano do Direito Privado em especial, é amplamente aceita na doutrina jurídica contemporânea a idéia de percepção da emanação de eficácia horizontal desses direitos fundamentais, o que irá encontrar, no seio do Direito Civil contemporâneo, um terreno fértil para essa experiência. Dentre os direitos fundamentais que irradiam sua eficácia no pensamento civilista, o que mais se destaca, até por sua posição angular de fundamento da República, é o princípio da ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 667-8. A autora ensina que no contexto da pluralidade pós-moderno, o operador do direito deve estar apto a trabalhar com “fontes plurais que não mais se excluem - ao contrário mantêm as suas diferenças e narram simultaneamente suas várias lógicas (dia-logos), cabendo ao aplicador da lei coordená-las (‘escutando-as’), impondo soluções harmonizadas e funcionais no sistema, assegurando efeitos úteis a estas fontes, ordenadas segundo a compreensão imposta pelo valor constitucional” (p. 664). 348 129 dignidade da pessoa humana349. Na dicção de Alexandre Cunha este postulado “não obstante a sua inclusão no texto constitucional, é, tanto por sua origem, quanto pela sua concretização, um instituto basilar do Direito Privado. Enquanto fundamento primeiro da ordem jurídica constitucional, ele o é também de Direito Público. Indo mais além, pode-se dizer que é a interface entre ambos: o vértice do Estado de Direito”350. 4.4 A PÓS-MODERNIDADE E O SISTEMA CONTRATUAL 4.4.1 O contrato no ambiente pós-moderno: reconstrução de uma teoria A complexidade que marca a sociedade pós-moderna se faz refletir, também, na forma de abordagem das figuras jurídicas de maior destaque, que se mostram receptivas às influências desse modelo de pensamento. No campo da teoria dos contratos, a situação não é diversa. A conceitualização do contrato no ambiente pós-moderno não pode mais ser obtida de forma unidimensional, exigindo do observador uma visão multifocal, que, ao mesmo tempo, possa ver as várias faces da figura negocial que, de forma articulada, irão compor o seu todo, superando as diferenças, contradições e ambigüidades. De maneira bastante perspicaz, Teubner sugere que a construção do sistema ‘contrato’ passe pela diferenciação de três planos distintos: “o plano da interação entre as partes; o plano da instituição, em que, em nível intermediário, estão em causa conexões institucionais, designadamente, com o mercado; e o plano da sociedade, em que são ____________ 349 Segundo Alexandre Cunha, “a Constituição de 1988, já em seu art. 1º, inciso III, eleva a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento da República. O princípio ali expresso, no entanto,informa todo o texto constitucional, emanando dele uma série de outros dispositivos. É o caso da igualdade formal (art. 5º, inciso I), do direito geral de ação (art. 5º, inciso II), da liberdade religiosa (art. 5º, inciso IV), da liberdade de expressão (art. 5º, inciso IX), da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (art. 5º, inciso X), da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, inciso XI), do livre exercício profissional (art. 5º, inciso XIII), do sigilo processual (art. 5º, inciso LX), dos direitos sociais do art. 6º, dos princípios gerais da atividade econômica do art. 170, da usucapião constitucional dos arts. 183 e 191, do direito à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215), ao desporto (art. 217) e a um meio ambiente ecológicamente equilibrado (art. 225) da proteção da família (art. 226 a 230); e das tutelas da integridade física (art. 5º, inciso III) e do dano moral e a imagem (art. 5º, inciso V)” (In: Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do Direito Civil. A reconstrução do Direito Privado, p. 255-6). 350 In: CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do Direito Civil. A reconstrução do Direito Privado, p. 260. 130 tematizadas as exigências que o sistema social, no seu conjunto, ou alguns sistemas parciais (com relevo para o ordenamento jurídico) colocam ao contrato”351. Essa abordagem, por certo, não considera a questão contratual dividida em compartimentos estanques, pois não há como se aceitar a existência de linhas de separação nítidas e categóricas na identificação desses enfoques. Qualquer análise do contrato pósmoderno passa pela interação desses três aspectos. Como pontua Souza Ribeiro, cada um desses planos indica uma prevalente direção de sentido, exigindo uma integração reflexiva das outras dimensões e de seus respectivos princípios conformadores, concluindo que: “o problema da teoria dos contratos é, basicamente, o de coordenar e compatibilizar em ‘estruturas de expectativas’ coerentes os diferentes estímulos e orientações de regulação que de cada elemento provém”352. Nesse contexto, então, a pós-modernidade está a exigir que os princípios vetores dos contratos se acomodem em cada um desses três planos da teoria contratual. Assim a principiologia contratual terá que, ao mesmo tempo, servir como instrumento que propicie a auto-realização dos contratantes, permita a utilização do contrato como meio adequado de troca e cooperação no mercado e, ao mesmo tempo, ainda obtenha a harmonia com os demais valores cultuados pelo ordenamento social em considerado em sua totalidade. Na afirmação de Claudia Lima Marques, hoje o contrato é somente o instrumento de circulação das riquezas da sociedade, hoje é também instrumento de proteção dos direitos fundamentais, realização dos paradigmas de qualidade, de segurança, de adequação dos serviços e produtos no mercado353. O pensamento pós-moderno exige do contrato, portanto, a coexistência de um plano interno de comunicação entre as partes em sintonia com os planos externos de ordem institucional e social. Dessa forma, o vínculo pessoal estabelecido entre os contratantes ganha novas tonalidades que lhe são atribuídas pela inserção de um determinado campo de atuação, relacionando-o com pontos de ordem supra-individual. Como ensina Joaquim de Souza Ribeiro, numa “visão alargada, o consenso das partes é pensado em conjunto com o ‘ambiente’ em que se manifesta, integrando com fatos constitutivos e modelado, um sistema ____________ Apud In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 11. 352 In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 12. 351 131 de coordenação vinculativa de ações individuais, aberto à comunicação com outros sistemas de enquadramento e de referência”354. Assim a concepção pós-moderna de contrato exige uma abordagem ao mesmo tempo preocupada com a relação interna entre as partes, a inserção do pacto no contexto do mercado e a realização de valores sociais, ambos ao mesmo tempo e de forma sincronizada, numa espécie de harmonia do contrato como um todo. Mas, para que essa tarefa de ‘decomposição controlada’ dos pactos nesses três planos possa ser realizada sem a perda de controle, mantendo-se a unidade da concepção de contrato, mostra-se necessária a aceitação da presença de nega-princípios que realizar a ligação desses enfoques. A desconstrução e segmentação mostram-se mais eficaz na dissecação analítica de um instituto jurídico, mas deixa o risco de perda de identidade deste ou, pelo menos, da criação de uma multiplicidade de identidades nem sempre em sintonia. De acordo com nosso modelo positivado, os princípios que possuem a aptidão para desempenharem com sucesso esta tarefa são o da função social dos contratos e o da boa-fé, consagrados expressamente nos artigos 421 e 422 do Texto Civil Codificado355. Essa aceitação da viabilidade de uma visão ampla que possa servir de elo aos diferentes planos de enfoque do contrato, além de permitir a otimização dessa figura negocial, reforçada pela idéia de unidade, acaba também por mexer na órbita eficacial desse instrumento negocial, alargando o espectro de seus efeitos tanto no plano subjetivo (contratos com eficácia perante terceiros), como no âmbito temporal (eficácia pré e pós-contratual)356. In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 180. 354 In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 15. 355 Nas palavras de Claudia Lima Marques, “em tempos pós-modernos é necessária uma visão crítica do direito tradicional, é necessária uma reação da ciência do direito impondo uma nova valorização dos princípios, dos valores de justiça e eqüidade e, principalmente, no direito civil, do princípio da boa-fé objetiva, como paradigma limitador da autonomia de vontade. Caso contrário, o próprio direito brasileiro, ao privilegiar os mais fortes, levará à opressão e exclusão dos mais fracos na sociedade. A crise atual leva a pensar na necessidade de proteção da vontade do consumidor, como ideal utópico remanescente da metanarrativa da modernidade, de tratamento desigual aos desiguais”, acrescendo: “nesta visão, as normas jurídicas são, portanto, instrumentos que ajudam a determinar a realidade social, conforme os objetivos considerados justos e desejáveis para aquela sociedade. O direito pode ser, portanto, instrumento de justiça e inclusão social na sociedade atual, instrumento de proteção de determinados grupos na sociedade, de realização de novos direitos fundamentais, de combate ao abuso do poder econômico e a toda atuação dos profissionais que seja contrária à boa-fé no tráfico entre consumidores e fornecedores no mercado” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 185-6 e 187, respectivamente). 356 Conforme Cláudia Lima Marques, ‘são tempos de relações contratuais múltiplas, despersonalizadas, e a durar no tempo e a se estender a toda uma cadeia de fornecedores de serviços e produtos. Tempos que impõem uma visão da obrigação como um processo muito mais complexo e duradouro do que uma simples prestação contratual, um dar e um fazer momentâneo entre parceiros contratuais teoricamente iguais, conhecidos e 353 132 A conscientização dessa nova realidade tem estimulado os doutrinadores que se debruçam sobre o estudo do contrato. A pós-modernidade gera uma retração do Estadoprovidência, o que acarreta uma reformulação política e jurídica. A ânsia reguladora do Direito cede espaço para o reconhecimento da autonomia e da existência de uma lógica funcional própria das áreas em que ele incide357. A inquestionável congruência entre o Direito e a realidade social põe em xeque a “hiperlegalização” da sociedade358, embora, no plano do sistema dos contratos mantenha-se válida a existência de um caráter dualista em que se tem o convívio harmônico de áreas de ordenação privada com outras de intervencionismo mais ou menos acentuado, constituindo um sistema plural do contrato359. Nesse sentido, Ricardo Lorenzetti enxerga a existência de uma crise da noção de negócio jurídico como instrumento de autoregulamentação de interesses privados, vislumbrando uma nova fase nas relações contratuais, a qual designa de “posnegocialidade”360. No sistema contratual brasileiro atual, embora tenhamos vários modelos de contratos escolhidos livremente.” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 186). 357 Conforme RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 117-8. 358 Como pontua Souza Ribeiro, “o direito expressa-se no trabalho de realização em forma de regras de processos, atribuição de competências, padrão de organização. A tarefa do direito seria, pois, dominantemente, não a imposição de fins, mas oferecer um meio de coordenação dos diferentes fins dos interessados, envolvendoos em processos institucionais de comunicação, segundo a lógica da discussão argumentativa. A racionalidade processual não resulta da normatização do exterior, mas sim de uma autonormação. Ao contrário da racionalidade material, que pressupõe um critério normativo substancial, um sistema de valores (com predomínio da idéia de justiça), como princípio da organização social, ela, de acordo com a filosofia moral formalística, apenas guia a produção de normas. Nesta sua forma estrutural, o direito ‘regula processos, não resultados’; não preenche fins, mas uma ‘metafinalidade’: a abertura do ‘horizonte de possibilidades de regulações jurídicas’, possibilitando processos de aprendizagem” (In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 118). 359 Conforme In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 122. 360 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “La Nueva Teoría Contractual.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 813. O autor, entretanto, não se furta de comunicar a existência de acentuada crítica por parte, em especial, da doutrina italiana, a esta noção pós-moderna do negócio jurídico (Nesse sentido, SCALISI, Vicenzo. “La teoria del negozio giuridico a cento anni dal BGB.” In: RDCiv, 1998, p. 535 e TRABUCHI, Alberto. “Il contratto come fatto giuridico, l’acordo, l’impegno.” In: Silloge per Opo, I, Padova, 1992, p. 4). 133 representativos da pós-modernidade, como se verifica nitidamente no time-sharing361, na cessão de espaço em centros comercias, na franquia empresarial, o exemplo mais emblemático do pós-intervencionismo é encontrado na possibilidade de autotutela coletiva por meio de convenções coletivas de consumo, firmadas entre associações representativas dos interesses envolvidos. A autonomia das associações de consumidores que acordam com entidades empresarias se coloca integralmente à margem de uma regulamentação autoritária, sem interferência normativa exterior. Assim é possível apontar as seguintes características contratuais, como marcas da nova realidade que lhe é imposta pelo pensamento pós-moderno: a) dinamicidade das relações negociais: o modelo tradicional de contrato estático, com a influência do pensamento pós-moderno, passa a ceder espaço para uma nova visão negocial, criando um modelo dinâmico, múltiplo, complexo e mais atento à tarefa de efetivamente representar a combinação de instrumentos econômicos e a tutela do interesse das partes. Os contratos tradicionalmente estáticos, como a compra e venda, sintetizados em uma obrigação de dar, dinamizam-se e ganham corpo em termos de complexidade, coligando-se com outras espécies contratuais e/ou compondo formas múltiplas e diversificadas, como acontece em relação ao leasing, alienação fiduciária, time-sharing, etc. Como afirma Cláudia Lima Marques, passamos de um contrato bilateral e comutativo para o modelo de contrato múltiplo, conexo, triangular ou plúrimo, em cujos nos pólos encontramos uma variada gama de sujeitos, como o fornecedor direto e a cadeia de fornecedores indiretos e sujeitos ____________ Na precisa lição de Cláudia Lima Marques: “o professor Erick Jayme considerou que o contrato de timesharing pode ser definido como o modelo de contrato da época pós-moderna. O time-sharing pode ser definido como um contrato múltiplo e complexo, visando o uso habitacional de um imóvel, de um complexo de imóveis, assim como o uso dos serviços conexos a esta fruição, tudo por certo tempo e a cada período de um ano. É paradigmático, pois possui uma série de características que podem ser classificadas como pós-modernas, a começar pelo seu objeto, que é o lazer temporário, o uso de um imóvel em uma área turística e serviços conexos, por uma semana ou duas a cada ano. Também há que se destacar a natureza dos direitos assegurados aos consumidores, direitos múltiplos, mas nem todos de natureza real, já que a multipropriedade no mais das vezes não transfere nem envolve direitos de propriedade, só direitos reais de uso. Estes direitos limitados de uso aliados a uma grande quantidade de serviços anexos prestados podem mesmo permitir a tipificação deste contrato como predominantemente um contrato de fornecimento de serviços. Outra característica pós-moderna é a multiplicidade de agentes que este fornecimento de serviços envolve e a fruição dos direitos de uso assegurados pelo contrato de time-sharing, desde o organizador o incorporador ou verdadeiro proprietário do imóvel e do complexo turístico até o simples vendedor, o verdadeiro proprietário, o administrador do imóvel e do complexo de turismo, os fornecedores diretos de alimentação, de passeios, etc. É muitas vezes um contrato ‘sem fronteiras’ ou internacional, pois as áreas e complexos turísticos muitas vezes localizam-se em outro país que o de domicílio ou nacionalidade do consumidor, e a participação em ‘círculos de troca internacionais’ torna possível que a fruição do direito de uso temporário se dê em qualquer país” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 184). 361 134 protegidos (individuais ou coletivos), como o consumidor-contratante, o consumidor stricto sensu e os consumidores equiparados362. b) a desmaterialização do objeto do contrato: a pós-modernidade, com os seus valores, traz como conseqüência imediata para o campo dos contratos o surgimento de novos referenciais econômicos, de forma que o tradicional apego aos bens materiais – móveis e imóveis – passa a dividir espaço e importância com os de caráter imaterial ou desmaterializado (fazeres e serviços). Na lição de Cláudia Lima Marques “se, na idade média, os bens economicamente relevantes eram os bens imóveis, na idade moderna, o bem móvel material, indiscutivelmente que hoje, na idade atual pós-moderna, valorizado está o bem imaterial (software etc.) ou o desmaterializado ‘fazer’ dos serviços, da comunicação, do lazer, da segurança, da educação, da saúde, do crédito. Se são esses bens imateriais e fazeres que são a riqueza atual, os contratos que autorizam e regulam a transferência dessas ‘riquezas’ na sociedade também têm de mudar, evoluir do modelo tradicional de dar a compra e venda para modelos novos de serviços e dares complexos, adaptando-se a este desafio desmaterializante e plural pós-moderno”363. c) a valorização do equilíbrio informativo: a pós-modernidade encerra, definitivamente, a consolidação da comunicação. É a era da informação, e o contrato não fica alheio a essa nova realidade. O silêncio eloqüente do primeiro período da massificação contratual é substituído pela necessidade de uma contratação informada, em toda a extensão de sua processualidade. O déficit de informações, que por um longo período foi utilizado como instrumento para a obtenção de maiores proveitos negociais, passa a ser concebido como um dos mais ameaçadores vícios de adequação e justiça contratuais. A informação tornou-se, então, elemento integrativo do contrato. d) Regime jurídico plural dos contratos: O critério do diálogo das fontes, vital para a sistematização do Direito Civil pós-moderno, se faz sentir com especial ênfase no âmbito do Direito Contratual. Do método tradicional do contrato com regime geral e único mudou-se para a técnica do contrato com regime plural. Tal realidade reflete a fragmentação que assolou o sistema de Direito Privado, atualmente repleto de normas especiais (microssistemas). Assim uma mesma relação contratual passa a ser a destinatária, ao mesmo tempo, da aplicação de ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 180. 363 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 180-1. 362 135 uma série de leis gerais e especiais, num convívio forçado de normas de diferentes hierarquias e finalidades, trazendo consigo o que Cláudia Lima Marques designou de problema de solução das antinomias364. e) a internacionalização do Direito Contratual: Um olhar atento sobre o panorama atual do Direito dos Contratos permite a identificação de dois caracteres que se encarregaram de delinear a nova etapa do pensamento jurídico contratual: a ‘internacionalização’ das regras negociais e o enfraquecimento das fronteiras entre os contratos civis e mercantis. O primeiro aspecto que na, verdade, assola todas as relações pertencentes ao Direito Civil atual é a ‘internacionalização’ das regras jurídicas, que se faz sentir com toda a sua pujança, em especial, no âmbito contratual. O direito dos contratos, já há algum tempo, vem trilhando um caminho de abandono da tradicional limitação aos confins de um determinado ordenamento jurídico nacional, partindo, então, para a conquista de novos horizontes. Essa ‘transnacionalização’ das regras contratuais veio com um impacto avassalador sobre o direito interno dos diversos países, postando-se como um fenômeno que pretende estabelecer-se de forma definitiva, sem paradas ou recuos. Tal situação é devedora da nova dimensão assumida pela figura do ‘mercado’, que, no fluxo da globalização, estabeleceu novos parâmetros a serem observados nas trocas econômicas. Sendo o contrato o instrumento por excelência que alimenta o mercado, o reflexo dessa nova realidade na teoria dos contratos mostra-se inevitável. O mercado acaba por fornecer uma espécie de fórmula para as trocas individuais365. Assim, como consectário da ‘universalização’ do Direito Civil, tem-se a ‘transnacionalização’ do direito dos contratos, com o influxo da globalização do ‘mercado’. A ‘aldeia global’ se nutre e retroalimenta por meio de trocas, que, portanto, necessitam de regras harmônicas, capazes de permitir um efetivo diálogo negocial. A heterogeneidade do Direito Contratual, enclausurado nos limites territoriais de um Estado, mostra-se um considerável entrave à evolução das relações negociais, representando ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 182. 365 Conforme explica Giovanni B. Ferri: “nel nostro tempo, il mercato vada assumendo sempre piú una dimensione, come suol dirsi, transnazionale; e com questo termine intento non solo e non tanto referirni ai confini dell’Europa, ma anche e soprattutto a quelli, piú vasti, dunque, che la dimensione ormai globale (e, dunque, mondiale) del commercio va conferendo ai mercati”, acrescentando que “il modelli giuridici sono sempre circolati nell’ambito di sistemi giuridici omogenei, in: specie se collegati, com modelli politici, economici e socialli simili fra loro” (In: “La ‘cultura’del contrato e le strutture del mercato.” In: RDCiv, p. 8434). 364 136 uma visão ultrapassada, contemporânea de um período marcado pela visão nacionalista da economia366. No sistema jurídico europeu, anda a passos largos a tentativa de introdução de uma legislação contratual comum a todos os países da Comunidade Econômica Européia. Na busca de concretização desse objetivo, existe uma iniciativa coordenada por Giuseppe Gandolfi, unindo esforços de um grupo internacional de juristas da Accademia dei giusprivatisti europei para esboçar um Codice europeo dei contratti. Outra tentativa em avançado trabalho é a Comissão Lando, que em 1995 publicou um projeto de principles of European Contract Law. f) a unificação interna da teoria contratual: O outro ponto de relevância no panorama atual do Direito dos Contratos é o fato de essa figura negocial estar servindo para enfraquecer a tradicional linha divisória entre os limites do Direito Civil e do Direito Comercial. Tal situação é nitidamente constatada na sistemática proposta pela codificação civil atual, que acaba por apresentar tratamento unificado aos atos negociais civil e mercantil367. Como destaca, com precisão, o jurista italiano Giovanni B. Ferri, em uma sociedade industrializada, o avizinhamento ou, até mesmo, a sobreposição dos dois setores do Direito Privado, tradicionalmente separados, aparece como uma realidade que se impõe368. O desgaste que a primeira fase da globalização – fria, avassaladora e maniqueísta – causou à teoria contratual foi de proporções inimagináveis. A massificação das relações negociais enfraqueceu a teoria dos contratos, retirando, inclusive, a energia criativa que acompanhava e florescia a doutrina contratual. Essa nova fase social proporciona uma necessária ‘recuperação’ do status do contrato, que ressuscita enquanto verdadeiro ato negocial. ____________ Como aponto Giovanni B. Ferri: “l’ultima guerra mondiale há sicuramente ‘preparato il superamento dello stato nazionale e il superamento della sovranità statale’, la stessa ‘indipendenza territoriale non è condizione sufficiente per costruirvi su la sovranità, poichè l’indipendenza territorial non vale as assicurare la libertà delle determinazione nel campo della politica internazionale e neppure nell’ordine economico” (In: “La ‘cultura’del contrato e le strutture del mercato.” In: RDCiv, p. 844). 367 De acordo com Claudia Lima Marques, “com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o paradigma máximo da boa-fé, que caracterizava o modelo contratual do CDC, generalizou-se por todos os contratos no Direito Privado brasileiro (art. 113, 187, e 422 do CC/2002), seja um contrato entre iguais, dois civis ou dois empresários, seja entre dois diferentes, um contratante profissional, o fornecedor, um contratante leigo e vulnerável, o consumidor, logo, este último um contrato de consumo. Parece-me, pois, neste momento de generalização (pois em tempos pós-modernos a generalização geralmente leva à desconstrução), necessário reforçar o paradigma e evitar que se enfraqueça” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Novos temas na teoria dos contratos: confiança e o conjunto contratual.” In: RA, v. 100, dez. 2005, p. 79-80) 368 In: FERRI, Giovanni B. “La ‘cultura’del contrato e le strutture del mercato.” In: RDCiv, p. 846. 366 137 Cabe ainda trazer à colação a modificação na teoria contratual causada pela onda pós-moderna e mais algumas considerações. Assim como a pluralidade de fontes e a diversidade marcam o pensamento pósmoderno, em sentido amplo, a abordagem da noção de contrato, sob este viés, faz com que se reconheça a existência de uma multiplicidade de fatores encarregados da atribuição de efeitos contratuais. Percebe-se, portanto, uma fragmentação do contrato atual, que, como a sociedade, evolui pela atuação de diversos subsistemas autônomos. Ricardo Luiz Lorenzetti, abordando essa questão, explica que “el ‘ideal’ del contrato está fragmentado: hay relaciones por adhesión, de consumo, megacontratos entre grandes empresas, relaciones com las pequeñas empresas, los vínculos internacionales, y muchos otros”369. 4.4.2 A Constitucionalização do contrato Um dos pilares de maior sustento do Estado Social é encontrado no perfil de dimensionamento de sua ordem econômica, registrado inequivocamente em seu texto constitucional. É na ordem econômica constitucional que são encontrados os alicerces que fundam a opção político-econômica de um Estado. O contrato, por sua vez, atua como instrumento de realização da ordem econômica. Como ensina Paulo Neto Lôbo, a atividade econômica pode ser concebida como um complexo de atos contratuais direcionados a fins de produção e distribuição de bens e serviços que atendem as necessidades humanas e sociais370. Assim os princípios gerais da ordem econômica servem de balizadores do perfil da teoria contratual. Dentre os valores constitucionais da ordem econômica encontra-se também o objetivo de assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, a qual importa na redução das desigualdades sociais (art. 3º e inciso III do art. 170 da CF). ____________ In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “La Nueva Teoría Contractual.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 813-4. O autor sintetiza sua visão argumentado que “frente a esta diversificación, no es sensato mantenerse en la simplicidad, porque ella conduce a la esterilidad e ineficacia de las herramientas jurídicas. Hay que acetar la diversificación generando respuestas diferenciadas y ajustadas a cada ‘fattispecie’. No es más que poner a la ciencia jurídica a tono com el resto de las ciencias y cin la sociedad; la pluralidad es una característica de la pósmodernidad, así como la segmentación es inherente a una economia evolucionada. En le contrato hay pluralidad de factores de atribución de los efectos abligacionales, los cuales pueden surgir de la autonomia de la vonluntad, pero también de la apariencia, la buena fe o la autorresponsabilidad del agente. Esta afirmación no lleva a suprimir la autonomía privada: en el plano de los princípios conserva su rol preponderante, pero en el ámbito de las reglas, no lo mantiene, porque variá según el supuesto hecho” (p. 814). 370 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Constitucionalização do Direito Civil.” In: RIL, p. 107. 369 138 Dessa forma, na lição de Leonardo Mattietto, “a conformação clássica do contrato, individualista e voluntarista, cede lugar a um novo modelo deste instituto jurídico, voltado a obsequiar os valores e princípios constitucionais de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana. O contrato deixa de ser apenas instrumento de realização da autonomia privada para desempenhar uma função social”371. Somando-se a esta situação, o movimento de releitura do Direito Civil sob a ótica dos valores constitucionais serve de reforço à noção de constitucionalização do contrato, em especial pelo novo contorno que Nesse contexto recebe a noção de autonomia da vontade e, conseqüentemente, a liberdade contratual. A constitucionalização do Direito Civil acabou por criar uma ótica de funcionalização dos seus institutos, a serviço da consagração das aspirações sociais, o que se projeta na idéia de autonomia da vontade, que passa então a sofrer uma série de modificações, pois projeta no âmbito da autonomia negocial a necessidade de condicionamento às regras e princípios constitucionais372. Dessa forma, como ressalta Tereza Negreiros, por via da constitucionalização passam a fazer parte do horizonte contratual noções e ideais como a justiça social, solidariedade, erradicação da pobreza e a proteção do consumidor, de forma a indicar que o direito dos contratos não está a latere do projeto social articulado pela ordem jurídica atual373. Assim, o processo de constitucionalização do Direito Contratual pode ser resumido em dois pontos de especial relevância: a troca dos valores agregados ao individualismo egoístico pela concretização dos valores da solidariedade social e a dignidade da pessoa humana. A solidariedade social, representativa dos valores de referência do Estado Social, assistencialista e preocupada com o atendimento às necessidades básicas da população, é ____________ In: MATTIETTO, Leonardo de Andrade; TEPEDINO, Gustavo (coord.). O Direito Civil Constitucional e a teoria dos contratos, p. 179. 372 Tereza Negreiros ressalta: “por outras palavras e sem desvios, ‘a autonomia privada não é um valor em si e, sobretudo, não representa um princípio subtraído ao controle de sua correpondência e funcionalização ao sistema de normas constitucionais” (In: Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 218). Neste mesmo sentido é a lição expressada por Maria Celina Bodan de Moraes: “assim é que qualquer norma ou cláusula negocial, por mais insignificante que pareça, deve se coadunar e exprimir a normativa constitucional. Sob esta ótica, as normas de direito civil necessitam ser interpretadas como reflexo das normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada (porque regulamentação da vida cotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana. Em conseqüência, transforma-se o direito civil: de regulamentação da atividade econômica individual, entre homens livres e iguais, para regulamentação da vida social, da família, nas associações, nos grupos comunitários, onde quer que a personalidade humana melhor se desenvolva e a sua dignidade seja mais amplamente tutelada” (In: “A caminho de um Direito Civil Constitucional.” In: RDCI,, p. 28). 371 139 refletida também nas relações negociais, em que assume a condição de vetor de orientação aos contratantes. É o abandono do individualismo e a assunção de uma ética social374. Por outro lado, também de acordo com os ditames da Constituição da República, cabe ao direito dos contratos, como a qualquer ramo do direito, a tarefa de promover e tutelar a dignidade da pessoa humana, valor supremo de nossa ordem jurídica. No dizer de Maria Celina Bodin de Moraes, qualquer norma ou cláusula contratual que pareça, deve se coadunar e exprimir a normatiza constitucional sob essa ótica; as normas de Direito Civil necessitam ser interpretadas como reflexo das normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada (porque regulamentação da atividade cotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana. Uma das mais marcantes balizas no processo de ‘constitucionalização’ do contrato ocorreu com a inserção da proteção do consumidor dentre o catálogo de direitos fundamentais do texto constitucional e a sua ratificação como princípio condicionante da ordem econômica constitucional. Neste sentido se expressa Maria Celina Bodin de Moraes, dizendo que nada é mais representativo deste novo caráter tutelar assumido pelo direito contratual constitucionalizado que o Código de Defesa do Consumidor375. Tal situação representou um verdadeiro divisor de águas na história da teoria contratual pátria, criando um novo estágio de nosso ordenamento contratual. Paulo Luiz Neto Lôbo, analisando esse fenômeno, ensina que “menos que um modismo, é a adequada resposta do direito ao fenômeno crescente da oligopolização e globalização da economia, que tornou o consumidor um figurante passivo e hipossuficiente, afetando a própria noção atual de cidadania”376. In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 107-8. Gustavo Tepedino explica que a “família, propriedade, empresa, sindicato, universidade, bem como quaisquer microcosmos contratuais devem permitir a realização existencial isonômica, segundo a ótica da solidariedade constitucional. Sendo assim, não configuram espaços insuscetíveis ao controle social, como queria o voluntarismo, justamente porque integram uma ordem constitucional que é a mesma tanto nas relações de direito público quanto nas de direito privado” (In: “A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas.” In: RA, p. 156). 375 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas. 376 In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Responsabilidade por vícios nas relações de consumo.” In: Revista de Direito do Consumidor, v. 14, p. 32. 374 373 140 4.4.2.1 O contrato como ‘ponto de encontro’377 entre os direitos fundamentais e as relações particulares A influência dos direitos fundamentais sobre as relações entre particulares é atualmente um tema constante na dogmática jurídica, quer na doutrina nacional, quer na estrangeira. Durante um longo período, o processo de consolidação dos direitos humanos permaneceu represado pelas ostensivas barreiras que separavam categoricamente o Direito Público e o Direito Privado; o tema concentrava-se nos limites do primeiro, quer no âmbito internacional, sendo objeto de tratados e convenções, ou no direito interno, ficando cingido aos textos de ordem constitucional378. Por meio desse debate, na visão de Naranjo de La Cruz, os direitos fundamentais recuperam a sua antiga dimensão como direitos naturais invocáveis frente a todos, passando a assumir a condição de núcleo material em torno do qual se de articulam toda e quaisquer relações jurídicas379. Nesse sentido, reforça o também jurista espanhol, Luis Prieto Sanchís:“que un derecho fuera fundamental significaría, entre otras cosas, que no podría quedar derogado em ningún género de relación jurídica”380. Esse debate sobre a eficácia das normas tuteladoras dos direitos fundamentais sobre a órbita das relações jurídicas privadas acabou sendo versado na doutrina e na jurisprudência sobre várias designações, de forma que Ingo Sarlet indica as seguintes designações adotadas para designá-la: ‘eficácia privada’, ‘eficácia em relação a terceiros’ (Drittwirkung), ‘eficácia externa’ ou ‘eficácia horizontal dos direitos fundamentais’381. ____________ Expressão cunhada por In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 255. 378 Gustavo Tepedino explica os motivos desta realidade: “isto porque a estrutura dogmática que dominou as grandes codificações européias do século XIX, e definiu as linhas mestras da doutrina tradicionalmente dominante, baseia-se na ‘summa diviso’ herdada do direito romano, que estrema o direito público e o direito privado. Inspirado pelas idéias jusnaturalistas que exaltavam o indivíduo, o direito civil destinava-se a assegurar a liberdade de contratar e a franca apropriação de bens, ao passo que a doutrina dos direitos humanos, consolidada no século passado, engendrou mecanismos de proteção do indivíduo em face do Estado. Cuida-se, pois, de duas faces da mesma moeda. A sublimação do indivíduo no direito civil dá-se pela autonomia da vontade, enquanto as garantias fundamentais, concebidas pelo direito público, afastam a ingerência do Estado da esfera privada” (In: “A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas.” In: RA, p. 154). 379 In: apresentação a obra de SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais, p. 18. 380 In: nota introdutória à obra de SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais, p. 21. 381 In: SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 113. O autor explica que as duas últimas expressões 377 141 Claus-Wilhelm Canaris, ao enfrentar este fértil tema, indica que o caminho ara a sua compreensão passa pela busca de resposta a três indagações: sobre quem é o destinatário dos direitos fundamentais, a indicação do agente que pratica o comportamento objeto do exame realizado com base nos direitos fundamentais e a função objetivada na aplicação dos direitos fundamentais382. A primeira questão diz respeito à chamada ‘eficácia externa’ (Drittwirkung) dos direitos fundamentais no âmbito das relações entre os sujeitos de Direito Privado, passando-se a considerá-los como seus destinatários tanto enquanto direitos subjetivos quanto na condição e normas objetivas383. Assim, os direitos fundamentais podem ser considerados na concretização das cláusulas gerais juscivilistas384. Em relação a indagação sobre o agente que pratica o comportamento objeto do exame realizado com base nos direitos fundamentais, a resposta não parece ser complexa. “assim como o problema propriamente dito da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, encontraram a sua primeira formulação na doutrina constitucional alemã, já se tem inclusive afirmado tratar-se de autêntico artigo de exportação jurídica made in: germany” (p. 113). Na seqüência, o autor apresenta uma interessante abordagem crítica em relação às designações em questão: “cumpre afastar a expressão ‘eficácia privada’,já que muito genérica, além de não colocar em destaque o ponto central da problemática ora examinada. Todavia, constata-se que até mesmo a denominação habitualmente mais utilizada na doutrina e jurisprudência alemã (eficácia em relação a terceiros – Drittwirkung) não escapa de uma análise crítica, tendo encontrado um número considerável de opositores inclusive no seu país de origem. Dentre os diversos argumentos citados, cumpre destacar que, de fato, não se trata pontualmente de um terceiro nível eficacial (ou de uma terceira classe de destinatários), mas sim de um segundo nível, já que está em pauta a vinculação dos particulares (relação horizontal) em contraposição à clássica e inconteste vinculação das entidades estatais, no âmbito das relações (verticais) entre particular e Estado. Mas também este argumento e, portanto, a expressão eficácia horizontal têm sido rejeitados, principalmente em face da circunstância de que expressiva parcela da doutrina acabou aderindo à concepção segundo a qual, em se tratando de uma relação entre um particular e um detentor de um poder social, isto é, uma relação caracterizada pela desigualdade, estar-se-ia em face de uma configuração similar que se estabelece entre particulares e o Estado e, portanto, de natureza vertical, já que a existência de uma relação horizontal pressupõe tendencial igualdade. Por derradeiro, verifica-se que sobre a designação genérica ‘eficácia privada’ ou ‘eficácia em relação a terceiros’ (Drittwirkung), até mesmo na doutrina alemã, registram-se diversas análises que acabam abordando, de forma nem sempre precisa e distinta, a vinculação do legislador privado e o problema da vinculação dos particulares “. E o autor conclui: “filiamo-nos aos que preferem tratar o tema sem o título ‘eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares’ ou mesmo ‘ vinculação dos particulares – ou das entidades privadas – aos direitos fundamentais’, por traduzir, de forma mais precisa e fidedigna, a dimensão específica do problema, já destacada” (p. 114). 382 In: CANARIS, Claus Wilhelm. “A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemanha.” In: RBDC, v. 28, 2005, p. 17. 383 Na observação de Thiago Sombra, “vale ressaltar que a concepção de uma sociedade aberta dos intérpretes alcança seu ponto máximo de coerência lógico-jurídica a partir da idéia de eficácia dos direitos fundamentais entre particulares. Além de pré-compreender a normativa jusfundamental, cada contratante ainda promoverá a atividade de aplicador dessas normas jusfundamentais, o que, inevitavelmente, elevará o sistema jurídicoconstitucional a parâmetros de excelência no que tange ao princípio da máxima efetividade” (In: SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais, p. 77). 384 Conforme CANARIS, Claus Wilhelm. “A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemanha.” In: RBDC, p. 19. Gustavo Tepedino observa que “no caso brasileiro, a introdução de uma nova postura metodológica, embora não seja simples, parece facilitada pela compreensão, mais e mais difusa, do papel dos princípios nas relações de direito privado, sendo certo que a doutrina e jurisprudência têm reconhecido o caráter normativo de princípios como o da solidariedade social, da dignidade da pessoa humana, 142 Sendo o Constituição o texto normativo máximo e de referência de todo o ordenamento, não restam dúvidas de que os destinatários dos regramentos acerca dos Direitos Fundamentais são tanto os entes públicos como os particulares. A terceira indagação levantada por Claus-Wilhelm Canaris aponta que os direitos fundamentais podem conduzir a uma complementação e correção do Direito Privado pela via do desenvolvimento judicial do Direito385. Ingo Sarlet indica a existência de discussão doutrinária sobre a forma de visualização da eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações jurídico-privadas, havendo defensores de uma ‘vinculação direta’ dos particulares aos direitos fundamentais e aqueles de que esta vinculação ocorreria apenas de forma mediata ou indireta386. O primeiro posicionamento encontra respaldo na aceitação de que os direitos fundamentais consolidam-se como normas que expressam valores aplicáveis a toda a ordem jurídica, refletindo o ideal de unidade da ordem jurídica, de forma a incluir também o Direito Privado, que não pode permanecer à margem dessa realidade. Já para a segunda corrente doutrinária, a eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações jurídicas-privadas seria mediata (Mittelbare Dritwirkung), pois encontraria a sua realização por meio da interpretação e integração das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, que seria realizada de acordo com os valores decorrentes dos direitos fundamentais. O autor posiciona-se pela aceitação da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, mas adverte sobre a realização de uma análise tópicosistemática, que tenha em consideração as peculiaridades dos casos concretos, numa solução que possibilite a ponderação dos valores em pauta, pois não se pode olvidar que estamos frente à situação em que os dois particulares são destinatários e promotores ao mesmo tempo das regras definidoras dos direitos fundamentais387. da função social da propriedade, aos quais se tem assegurado eficácia imediata nas relações de direito civil” (In: Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. Temas de Direito Civil, p. 219). 385 In: CANARIS, Claus Wilhelm. “A influência dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado na Alemanha.” In: RBDC, p. 25. 386 In: SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado, p. 121 e ss. 387 In: SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado, p. 159. Nas palavras do autor: “vale repisar aqui que, no âmbito da problemática da eficácia dos direitos fundamentais entre os particulares, vislumbra-se inequivocamente a necessidade – em face do conflito entre a autonomia privada (e liberdade contratual) e outros direitos fundamentais – de uma análise tópico-sistemática, calcada nas circunstâncias específicas do caso concreto e que, de modo geral, deverá ser tratada de forma similar às hipóteses de colisão (conflito) entre direitos fundamentais de diversos titulares. A meta posta é a de buscar-se sempre uma solução embasada na 143 De acordo com a lição de Pereira da Silva a eficácia horizontal ou externa dos direitos fundamentais388 se manifesta de três formas: (a) quando a norma infraconstitucional concretiza os direitos fundamentais; (b) quando a norma infraconstitucional estabelece cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que deverão ter o seu conteúdo preenchido pela aplicação dos paradigmas constitucionalmente estabelecidos; e (c) quando a Constituição regula a matéria, mas não há norma inferior concretizadora, sequer por meio de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, caso em que deverá haver a aplicação direta das regras constitucionais as relações interprivadas389. Entretanto, apesar da amplitude que o tema da aplicação dos direitos fundamentais entre os particulares se projeta no âmbito do privado em geral, é no âmbito dos contratos em que o assunto ganha maior destaque, considerando-se que ambas as partes contratantes ostentam o estatus de merecedores da proteção constitucional e, portanto, destinatários dos direitos fundamentais. Como enfatiza Thiago Sombra, o contrato conquista o posto de instrumento de realização por excelência dos direitos fundamentais na medida em que a promoção da liberdade contratual é necessariamente permeada pela concretização do princípio da dignidade da pessoa humana390. ponderação de valores em pauta, norteada pela busca do equilíbrio e concordância prática (Hesse), caracterizada, em última instância, pelo não-sacrifício completo de um dos direitos fundamentais em questão, assim como pela preservação, na medida do possível, da essência de cada um” (p. 159). 388 In: PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. “Vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias.” In: RDPub, v. 82, p. 41, esclarecendo que “a unidade do sistema jurídico leva a que quando se aplica uma lei, não é ela, apenas, que se está a aplicar, mas todo o Código e todo o sistema legislativo no seu conjunto, pelo que entre a Constituição e a norma de Direito Privado a aplicar não se verifica um hiato, mas um contínuo fluir. Este fluir contínuo é facilitado pelo fato de, por um lado, as Constituições não se limitarem a consagrar a categoria de direitos contra o Estado, mas de se referirem, também, de forma explícita ou implícita, à autonomia privada; por outro lado, as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados do Direito Privado serem tão amplos que o seu conteúdo pode ser, facilmente, preenchido pelos valores constitucionais”. 389 Daniel Sperb Rubin elaborou interessante observação quanto à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, no seguinte sentido: “disso, se pode tirar duas conclusões básicas: a) no estado de natureza, o homem já tinha certos direitos que, hoje, são consagrados pelo ordenamento jurídico como direitos fundamentais; mas no estado natural não existia o ente Estado, razão pela qual tais direitos fundamentais eram concebidos entre indivíduos; e b) se aceitarmos a posição de Locke, os direitos fundamentais não podem ter seu campo de incidência diminuído com a transição do estado de natureza para o estado social, senão que, ao contrário, terão seu campo de incidência aumentado, pois agora não são mais apenas os direitos dos indivíduos entre si, mas também, direitos dos indivíduos perante o Estado. Assim, se Locke estiver certo, concluímos, numa perspectiva jusnaturalista, que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais teria, de uma certa maneira, precedido à eficácia vertical” (In: “Direito privado e Constituição – contratos e direitos fundamentais.” In: Revista do Ministério Público, v. 44, jan.-mar. 2001,. p. 107). 390 In: SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais, p. 72-3. O autor reforça o entendimento: “ora, o contrato, enquanto elemento corporificador dos interesses individuais, representa, decerto, o instituto de direito privado em que o livre desenvolvimento da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana afloram com maior vigor” e “com o abandono da visão de um indivíduo 144 Nota-se, neste momento, que o resultado concreto da soma de diversos fatores responsáveis pelo rompimento com o modelo jurídico da modernidade (enfraquecimento das fronteiras entre Direito Público e privado391, mudança do eixo de gravidade do Direito Civilconstitucional e nova abrangência da eficácia das normas constitucionais, atuando ativamente sobre todo o sistema jurídico), proporciona uma nova fase do Direito contratual, apto a receber e refletir os direitos fundamentais em toda a sua essência. O comprometimento dos Tribunais com os direitos fundamentais do indivíduo, nestes incluídos os direitos humanos, é a única forma de permitir que as relações negociais sirvam como instrumento de inclusão social dos indivíduos, para que este adquira condições de plena realização de sua liberdade. patrimonializado, decorrente do arcabouço normativo concedido pelas normas jusfundamentais, o contrato recebe uma nova função, instrumento realizador dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Nesse contemporâneo arranjo social, além das tradicionais fórmulas de limitação, os direitos fundamentais também constituem limites à manifestação da autonomia privada nas relações contratuais” (p. 74-75). 391 Thiago Sombra lembra que “a idéia de uma estagnada separação entre direito público e direito privado acarretou , durante anos, uma influência negativa sobre os grandes privatistas que acabaram por apregoar uma ordem jurídico-privada incólume à influência e à proteção assegurada pelos direitos fundamentais. A realização dos direitos fundamentais, por intermédio dos contratos de direito privado, seria uma excelente forma de aproximação do direito público e direito privado, de maneira a manter uma harmoniosa relação de interdependência” (In: SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais, p. 76-7). 145 Essa foi a opção da Corte Constitucional Alemã392, que desde 1993 vem determinando a observância dos direitos da personalidade no controle de cláusulas de contratos bancários393, o que deverá servir de inspiração para os tribunais de nosso país. Como ensina Luís Afonso Heck, se conteúdo do contrato para uma parte é invulgarmente agravante e, como compensação de interesses, manifestamente inadequado, então os tribunais não devem satisfazer-se com a afirmação ‘contrato é contrato’394. ____________ Sobre o assunto escreve Luís Afonso Heck, inicialmente narrando os casos concretos que deram origem a dívidas excessivas para as forças patrimoniais dos devedores, e após indicando a posição assumida pelo Tribunal Constitucional Alemão: “o caso concreto (...) o pai da proponente do recurso constitucional trabalhava, primeiro como agenciador de imóveis. Ele construía e vendia apartamentos. Em 1982 ele solicitou para a caixa econômica municipal a duplicação de seu limite de crédito de 50.000 para 100.000 marcos. Quando a caixa econômica municipal pediu uma garantia, a proponente, então, com 21 anos, assinou em 1982 um documento de fiança impresso com quantia máxima de 100.000 marcos, afora os deveres acessórios. O aumento foi então concedido. A proponente obteve crédito para a conta de crédito um direito de assinatura mas, ela mesma, não dispunha de bens. Ela não tinha formação profissional, estava preponderantemente desempregada e recebia, ao tempo da declaração de fiança, 1.500 marcos líquido (...) o segundo recurso constitucional - a proponente afiançou-se em 1979 de sua própria dívida diante do banco demandante para a garantia de um ‘empréstimo de seguro’ que havia sido concedido a seu cônjuge na quantia de 30.000 marcos. Na época da declaração de fiança ela estava sem rendas e bens”. Nestes casos, a posição do Tribunal Constitucional Alemão foi no sentido da promoção dos direitos fundamentais:“A Lei fundamental contém em seu título de direitos fundamentais decisões básicas jurídico-constitucionais para todos os setores do direito. Essas decisões básicas desdobram-se por meio daquelas prescrições que dominam diretamente o campo jurídico respectivo e têm, sobretudo, também significado na interpretação de cláusulas gerais jurídico-cíveis. Quando os parágrafos 138 e 242 remetem, em geral, aos bons costumes, aos costumes de tráfico, assim como à boa-fé, eles pedem dos tribunais uma concretização pelo critério de concepções de valores que são, em primeiro lugar, determinadas pelas decisões de princípio da constituição. Por isso os tribunais cíveis estão obrigados, em virtude da constituição, a considerar, na interpretação e emprego das cláusulas gerais, os direitos fundamentais como ‘ linhas diretivas’. Se eles desconhecem isto e decidem, por conseguinte, em prejuízo de uma parte processual, então eles a violam em seus direitos fundamentais” (In: “Direitos Fundamentais e sua influência no Direito Civil.” In: RDC, v. 29, p. 51-2). 393 Conforme informa Cláudia Lima Marques, o aresto de referência foi o BverfG Beschl. v. 19.101993-1BvR 567/89 u.la., e explica que “a novidade foi considerar contrária aos bons costumes uma exigência mais fictícia do que real, isto é, um aval por uma pessoa sem patrimônio, um filho estudante ou uma dona de casa, sem condições reais de pagar a dívida (muito superior as suas possibilidades atuais) e que necessitaria passar toda a sua vida a trabalhar para pagá-la, uma verdadeira dívida asfixiante se exigida no futuro. Para concretizar a cláusula geral do par. 138 e par. 242 do BGB, as Cortes deveriam, segundo a Corte Constitucional alemã, utilizar-se da noção de direitos fundamentais do indivíduo (no caso concreto um estudante de medicina de 21 anos, que serviu de avalista de dívida do pai, um pequeno comerciante) a desenvolver sua personalidade (desenvolvimento da personalidade econômica e social) no futuro. Como conseqüência este contrato de garantia deveria ser considerado contrário aos bons costumes e à boa-fé, logo ineficaz, uma vez que o garante não tinha nem patrimônio, nem trabalho e estava fazendo uma quase ‘consignação’ de seu futuro. A Corte Constitucional expressamente ordenou às cortes civis o controle do conteúdo dos contratos de crédito bancários, nos quais o contratante mais fraco é obrigado a suportar cargas anormais para suas condições pessoais (superendividamento, no original, Überschuldung)” (In: “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, v. 22, set. 2002, p. 75). 394 In: HECK, Luís Afonso. “Direitos Fundamentais e sua influência no Direito Civil.” In: RDC, p. 52. 392 146 4.4.3 A nova ética contratual e a revitalização do elemento confiança como suporte da dinâmica das relações sociais Miguel Reale, ao defender o projeto legislativo que se consolidou no Código Civil atual, em inúmeras oportunidades, insistiu no posicionamento da ética como um dos vetores cardeais do novo Direito Privado395. O princípio da eticidade efetivamente trespassa a codificação civil atual, refletindo-se nitidamente em diversos de seus dispositivos396, numa aproximação do ético e do jurídico que parece ser definitiva. Na dicção de Miguel Reale, a eticidade acaba por atribuir mais importância aos critérios éticos-jurídicos do que aos critérios lógico-formais no processo de concretização do Direito397. Entretanto, como adverte Francisco Amaral, o significado desse critério é mais extenso, não ficando restrito à crítica da sistematicidade lógico-formal do positivismo, mas representando também a crença de que o equilíbrio econômico dos contratos é a base ética de todo o Direito obrigacional398. A onda da pós-modernidade revitaliza todo o sistema social, fazendo submergir valores já conhecidos do tráfico social, mas que estavam encobertos pelo pragmatismo cru que marcou o apogeu da massificação social. Dentre os valores revitalizados pelo pensamento pós-moderno, ganha destaque o elemento confiança. Como leciona Claudia Lima Marques, “a fase atual da pós-modernidade está a necessitar uma resposta de valorização do paradigma da confiança, pois nossos tempos parecem fadados ao aumento dos litígios e da desconfiança entre agentes econômicos (classes e instituições)”399. É a busca de uma ____________ In: REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 8 e ss. Esta influência da ética na legislação central do Direito Civil atual pode ser constatada em especial nos seguintes artigos: 156 (estado de perigo); 157 (lesão subjetiva); 187 (abuso de direito); 422 (princípio da boa-fé objetiva) e 478 (resolução do contrato por onerosidade excessiva). 397 In: REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil, p. 8. 398 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “Os princípios jurídicos na relação obrigatória.” In: RA, p. 136. Este autor explica: “implica isso um maior conhecimento teórico do direito, na medida em que uma das funções da doutrina é precisamente a de auxiliar o juiz e o legislador na criação normativa, e também, um maior grau de poder e de responsabilidade do juiz, chamado não a aplicar, mas a criar o direito para o caso concreto. Deste modo, o novo Código confere ao juiz, como já mencionado, o poder não só de suprir lacunas como também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com os valores éticos. A influência deste princípio no legislador demonstra a não-aceitação por este do dogma da plenitude da ordem jurídica, vendo-a como um sistema aberto, flexível e lacunoso, donde a necessidade de recurso à integração e a conseqüente importância dos princípios jurídicos” (p. 136). 399 In: MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no comércio eletrônico e a chamada nova crise do contrato: por um direito do consumidor aprofundado.” In: RDC, v. 57, p. 11. 396 395 147 necessária resposta à crise da confiança400. O convívio em sociedade não possibilita, por óbvio, um conhecimento integral de todos os fatos ou relações, de forma que a incerteza nos acompanha em todos os momentos401. No tráfego jurídico, a situação não é distinta. Assim, para que se tenha um convívio saudável, dotado de um grau de segurança que permita a interação social segura, foi desenvolvida a idéia de tutela jurídica da confiança, que atua como mecanismo redutor de riscos decorrentes da inevitável limitação de conhecimento. A confiança passa a reassumir sua tarefa de elemento de ligação na construção de uma vida em relação402. Tão apregoada pelos antigos, na sombra da ética e da moral, a confiança ganha nos dias atuais um perfil mais de ordem estrutural das relações em sociedade, atuando na base destas e envolvendo-a durante toda a sua dinâmica. Na afirmação de Niklas Luhman, a ____________ A expressão ‘crise da confiança’ é utilizada por Claudia Lima Marques, ao ensinar: “observando os escritos sociológicos e jurídicos dos últimos anos, parece que a crise da pós-modernidade aprofundou-se e que o atual Direito do Consumidor e a dogmática contratual estão sendo mais uma vez desafiados;. Esta ‘nova’ crise teria ocorrido após os atentados de 11.09.2001, em Nova Iorque, que afetou a base comum de todas as relações – hoje globalizadas – que é a confiança, afetando assim o contrato e o direito, que deveriam justamente formalizar, concretizar e regular estes vínculos de confiança: é a crise da confiança. Parece-me, assim, que novamente - estamos diante de uma ruptura (Umbruch) de bases sociais e jurídicas comuns, uma crise pósmoderna mais interna e dogmática-fundamental, do que a anterior, mais sociológica. De qualquer forma, em 2005, Alan Tourraine lançou seu ‘plaidoyer pour’, um novo paradigma mais cultural e social, menos econômico, político ou uniformizante das condutas, frente à ruptura da segurança e do senso comum que, para ele, significou o ataque terrorista “aqueles edifícios simbólicos em solo norte-americano, porém teriam quebrado com as bases globalizadas da ética e da convivência antes existentes” (In: “Proteção do consumidor no comércio eletrônico e a chamada nova crise do contrato: por um direito do consumidor aprofundado.” In: RDC, p. 15). 401 Carlos Rezzónico anota que “en muchos casos, el principio de la confianza gobierna situaciones com independencia de que aquellos a quienes les concierne sean conscientes de su efectividad. Así, cuando alguien totalmente desconocido para el dueño del negocio entra a un restaurante, se sienta a una mesa y pide una comida, normalmente ésta le será servida sin su previo pago, lo que – extremando el análisis significa que alguien sufre una pérdida patrimonial temporaria a la espera del equivalente dinerario. Pero, ? por qué se actúa así? En nuestro ejemplo vemos, en acción, la confianza del dueño del restaurante en que su cliente no se irá sin pagar, pero com ello, también, la confianza en el ‘mecanismo normal de desarrollo de las cosas’ en la experiencia de la vida diaria. Pues lo normal es que los clientes paguen lo que consumen y no que se vayan sin pagar: es la fe en que la inmensa mayoria de casos similares y anteriores. El tráfico comercial moderno no tolera una desconfianza para cada acto, lo que produciría un desquicio en todo el sistema” (In: Principios Fundamentales de los Contratos. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 394). 402 Cláudia Lima Marques, após informar que, para os mestres alemães, “a confiança é um elemento central da vida em sociedade e, em sentido amplo, é a base da atuação/ação organizadora” (geordnetenHandelns) do indivíduo”, cita Karl Larenz, para quem “o princípio da confiança é a base inerente ao direito privado e tem suas raízes no personalismo ético: a pessoa livre, social e racional determinará a si mesmo (Selbstbestimmung), responderá pelos seus atos (Selbstverantwortung) e respeitará a dignidade das outras pessoas (Achtung der Personwürde)” (In: “Violação do dever de boa-fé de informar corretamente. Atos negocias omissivos afetando o direito/liberdade de escolha. Nexo causal e falha/defeito de informação e defeito de qualidade nos produtos de tabaco e o dano final morte. Responsabilidade do fabricante do produto, direito à ressarcimento dos danos materiais e morais, sejam preventivos, reparatórios ou satisfatórios.” In: RT, v. 835, maio. 2005, p. 90-1). 400 148 confiança é um elemento central da vida em sociedade403, atuando como um fator de redução da complexidade social, conseqüência inevitável da liberdade404. Se no passado a simples proteção da liberdade era suficiente para o alcance da segurança almejada pelos indivíduos em seu convívio comunitário, hoje esse objetivo é atingido pela tutela da confiança nas suas mais variadas dimensões. A relevância do elemento confiança também se faz sentir no plano da ciência do Direito, no qual ele assume um papel de destaque, sendo uma verdadeira ‘ferramenta’ jurídica no sentido de potencializar a necessidade de coerência nos comportamentos que constroem as relações jurídicas. Nesse sentido, Karl Larenz afirma que a confiança é a base do tráfego jurídico e princípio máximo de todas as relações jurídicas. Assim, no contexto atual, a confiança chega a representar uma nova fonte de direito. Como explica a jurista argentina Celia Weingarten, “en la esfera del derecho constytue una ventana por la cual el elemento ético ingresa en el mundo jurídico, ya sea como principio básico de la vida social – sin la cual sería imposible concebir la convivencia en la sociedad – y también y fundamentalmente creando ‘deberes específicos de conducta conforme a las expectativas creadas y razonables por parte de los sujetos portantes”405. ____________ In: LHUMAN. Niklas. Confianza. Barcelona: Anthropos, 1996, p. 5. Nas palavras do autor: “la confianza, en el más amplio sentido de la fe en las expectativas de uno, es un hecho básico de la vida social. Por supuesto que en muchas situaciones, el hombre puede en ciertos aspectos decidir si otorga confianza o no. Pero una completa ausencia de confianza le impediría incluso levantarse en la mañana. Sería víctima de un sentido vago de miedo y de temores paralizantes. Incluso no sería capaz de formular una desconfianza definitiva y hacer de ello un fundamento para medidas preventivas, ya que esto presupondría confianza en otras direcciones. Cualquier cosa y todo sería posible. Tal confrontación adrupta con la complejidad del mundo al grado máximo es más de lo que soporta el ser humano” (p. 05). 404 In: LHUMAN. Niklas. Confianza, p. 39. O autor explica: “los tres componentes de la relación de confianza (la sustitución de un orden interno y su propia problemática por el orden externo más complejo, junto con su problemática; la necesidad de aprender; y el control simbólico) confirman nuestra hipótesis de que la confianza está asociada con la reducción de la complejidad, y más específicamente de la complejidad que llega al mundo como consecuencia de la liberdad de otros seres humanos. La confianza funciona así, para compreender y redicir esta complejidad” (p. 51). 405 In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños. Mendonza: Ediciones Jurídicas Cuyo, 2003. A autora explica também que “nos encontramos frente a una herramienta socio-jurídica-económica y cultural que traza nuevas caminos y amplia la visón de la realidad y que tiene el valor de un verdadero princípio general del derecho” (p. 23). 403 149 A confiança, Nesse contexto, passa a atuar como fonte do direito, agregando-se aos valores tradicionalmente apontados como criadores de relações jurídicas406, como ocorre em relação à boa-fé objetiva. Note-se, entretanto, que a tutela da confiança, elevada à categoria de relevante valor jurídico, atua de forma autônoma em relação à boa-fé, embora possa, com esta, aparecer freqüentemente de forma agregada. Como explica Celia Weingarten, “el principio de derecho que presidía nuestro derecho ha sido tradicionalmente el de la buena fe, que si bien también expresa algún aspecto de la confianza en la actuación correcta del otro, pensamos que el principio de la confianza, elaborado para esta posmodernidad es un concepto más abarcativo pues significa un ‘nuevo criterio de conducta’ que tiende a la realización de las legítimas expectativas objetivamente suscitadas por situaciones de muy diversa índole”407. Ao mesmo tempo que a confiança passa a atuar como fonte de direito, o seu caráter generalizante permite, ainda, a sua visualização também como uma espécie de princípio geral de direito, de forte conteúdo ético, que busca preservar as expectativas legítimas despertadas na dinâmica das relações sociais408. No âmbito dos contratos, como lembra Cláudia Lima Marques, a proteção da confiança se justifica na medida em que normalmente atua como condição, influência decisiva ou causa da conduta negocial409. ____________ Daniela Jacques sintetiza este fenômeno afirmando que “a tutela da confiança implica, assim, uma revisão das fontes e dos planos jurídicos. A concepção clássica concebia a lei e o ato jurídico ‘lato sensu’ (ato jurídico proveniente da vontade do homem) como fonte de obrigações e ainda esta obrigação somente se fazia presente se o ato e a lei fossem válidos. A proteção da confiança se concentra no plano da existência, no plano dos fatos, e confere tutela jurídica ao concentrar-se nos efeitos (plano da eficácia) que provocam no seio social ao proteger os interesses legítimos que determinados comportamentos têm o condão de gerar” (In: “A proteção da confiança no Direito do Consumidor.” In: RDC, n. 45, jan-mar. 2003, p. 106). 407 In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños, p. 24. Diverso é o entendimento manifestado pelo Jurista português Menezes Cordeiro, que posiciona a confiança como uma decorrência do princípio da boa-fé, podendo ser identificada em duas espécies de tutela: “as provisões de confiança objeto de disposição específica e as que provêm de institutos gerais, informados por conceitos indeterminados. No primeiro caso, está uma série de dispositivos estudados e propósitos da boa-fé (subjetiva) a que se podem acrescentar outros, onde o legislador não referiu, de modo expresso, a boa-fé; no segundo, ocorrem aplicações variadas da boa-fé objetiva” (In: Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almeida, 1984, p. 1247). 408 Na doutrina argentina, Carlos Rezzónico escreve: “las expectativas deben ser legítimas y fundadas, lo que excluye tanto la confianza ingenua como la temerária, aspecto que sólo puede dicirse en cada caso y que surgirá de un análisis de la entera relación, individual y del grupo, así como de las eventuales relaciones anteriores que pudieron unir a las partes” (In: Principios Fundamentales de los Contratos, p. 377). 409 In: MARQUES, Claudia Lima. “Novos temas na teoria dos contratos: confiança e o conjunto contratual.” In: RA, p. 85. 406 150 4.4.3.1 A importância da confiança nas relações massificadas: a sua atuação na publicidade e a confiança derivada da marca A despersonificação decorrente da massificação das relações gera a necessidade de estabelecer elementos de segurança mais incisivos, que acabam por assumir o papel de elemento de estruturação dessa relação. Como destaca Daniela Corrêa Jacques, “em tempos que se intensifica a complexidade das relações, aumenta o anonimato e a distância entre os indivíduos, é necessário um marco institucional para a confiabilidade que ganha importância cada vez maior para a funcionalização do mercado”410. No campo da publicidade, a confiabilidade do consumidor é conquistada por meio de técnicas requintadas que envolvem e até direcionam o contratante. Mas, por outro lado, a atuação publicitária cria expectativas legítimas que devem ser cumpridas de forma adequada, correspondendo à confiança que nela foi depositada. A credibilidade do anúncio publicitário conduz o consumidor em seu processo de tomada de decisões, de forma que a realização destas expectativas se impõe de forma categórica. Há, na atuação publicitária, uma espécie de vinculação por atuação dirigida, com ou sem contrato, fundada pontualmente na confiança que o ato de publicidade disseminou no mercado411. No contexto da economia massificada, além da publicidade, a marca também acaba por despertar a confiança dos contratantes consumidores. Inicialmente, a marca era simplesmente um indicativo de procedência dos produtos ou serviços, deixando transparecer a empresa responsável pela colocação desses no mercado. Essa vinculação produto-empresa (ou serviço-empresa), com o passar do tempo e com o aumento das distâncias entre os pólos da relação de produção e consumo, passou a representar a reputação e tradição das empresas. A marca atua como forma de representação do empresário, sendo seu símbolo e imagem, representando até mesmo a qualidade do produto ou serviço própria empresa. Assim a marca ____________ In: JACQUES, Daniela Corrêa. “A proteção da confiança no Direito do Consumidor.” In: RDC, p. 115. A autora acrescenta que “como não é possível para o consumidor conhecer toda a complexidade que envolve o fornecedor (seus parceiros, sua solvência, quem são os responsáveis pelos atos de gestão, seus investimentos, etc.) ele confia na sua apresentação externa e simplificada, que pode ser simplesmente a marca, a imagem da empresa, a sua reputação ou a sua participação no mercado” e que “toda esta complexidade, resulta alteração nos modos de relacionamento entre o fornecedor e o consumidor, e a extrema especialização da organização econômico-social. São sistemas em que o indivíduo não se relaciona com outro indivíduo, mas com um sistema de indivíduos, especialistas pelas características tecnológicas que apresentam, sendo que o indivíduo somente se relaciona com a sua apresentação exterior” (respectivamente, p. 115-6). 411 Nesse sentido, MARQUES, Claudia Lima. “Vinculação Própria Através da Publicidade? A nova visão do Código de Defesa do Consumidor.” In: RDC, n. 10, abr-jun. 1994, p. 07. 410 151 indica o grau de confiabilidade que o agente de produção assume no mercado, propiciando assim a conquista de novos clientes412. O papel que a marca desempenha na sociedade de consumo pós-moderna é de extrema importância, não apenas como forma de fomento à aquisição de produtos, mas, em especial, como veículo de comunicação413. Jean Baudrillard chega a colocá-la como o “conceito cardeal da publicidade”414. Entretanto, além de a marca transportar o consumidor a um mundo de sonhos, realizando seus desejos de inserção social, ela também assume a função de conferir tranqüilidade e segurança aos consumidores. A influência de marcas poderosas pode até influenciar toda uma nação, inserindo-se na psique coletiva de forma indelével. 4.4.3.2 A interpretação econômica dos contratos A figura do contrato sempre cumpriu função de natureza econômica, quer no plano individual, quer no âmbito da macroeconomia. Como lembra Ricardo Luiz Lorenzetti, a própria introdução do contrato no Código Civil Francês representou uma busca de equilíbrio entre a pretensão da classe comerciante de acesso aos recursos da terra e as exigências da ____________ Daniela Corrêa Jacques explica que “a marca ou nome comercial de um produto ou serviço de uma empresa garante o grau de sua confiabilidade e que o consumidor não irá sofrer danos, pois objetivamente ela gera essas expectativas no consumidor. Assim, aparece um elemento que as empresas incorporam e que se encaixa no sistema socioeconômico, jurídico e cultural de tal forma que esta segurança está ‘posta’ na sociedade, mais além dos próprios consumidores individualmente” (In: “A proteção da confiança no Direito do Consumidor.” In: RDC, p. 123). 413 José S. Martins, ao abordar o poder da marca, explica que: “todas as grandes marcas do mundo têm em sua imagem um espírito, uma emoção e uma personalidade bem definidas: Ex. Mallboro – o domínio de seu território; Coca-Cola – emoção e vitalidade; Calvin Klein – a sofisticação simples; Benetton – solidariedade e respeito humano; Hugo Boss – veste os líderes; Levi’s – o rústico autêntico; Nike – o espírito cosmopolita revolucionário; Omo – reconhecimento e valorização da dona de casa; Impulse – o sonho de cinderela; BMW – poder e sofisticação; - Channel – a elegância clássica; Free – inteligência e espontaneidade” (In: O poder de imagem: o uso estratégico da imagem criando valor subjetivo para a marca. Intermeios, Comunicação e Marketing, 1992, p. 7). 414 In: BAUDRILLARD, Jean. O sistema de objetos. Traduzido por Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 199. No contexto da sociedade de consumo, a marca se integra à própria personalidade do consumidor, fazendo parte de sua vida, suprindo carências naturais, chegando a ponto de substituir relacionamentos humanos. A marca passa a exercer papel fraternal: é um amigo que acompanha o consumidor, que por ostentar certa marca, afasta a solidão. 412 152 classe proprietária, em defesa da propriedade415. Na forte expressão de Humberto Theodoro Júnior, o contrato sem função econômica simplesmente não é contrato416. Entretanto, apesar desses aspectos, a teoria clássica alimentava o entendimento do contrato como um fenômeno econômico neutro. Essa fase da neutralidade dos contratos representava um acompanhamento à própria idéia de neutralidade do Direito, em especial do Direito Civil. Na lição de Atilio Anibal Alterini, “el análisis económico del derecho debe ser sometido por el jurista a la crítica axiológica, partiendo de los valores fundamentales, humanidad y dignidad, y atendiendo a la justicia, equidad, seguridad, orden y paz social”417. A concepção pós-moderna do Direito abandona definitivamente essa concepção de neutralidade do ordenamento jurídico, que passa a admitir a sua finalidade de instrumento de redistribuição. Em especial, no plano dos contratos, esses efeitos econômicos distributivos vêm à tona. No contexto atual, o contrato assume o papel de mecanismo propulsor da ordem econômica, representando um instrumento de concretização dos princípios que lhe servem de fundamento. É por meio do contrato que a ordem econômica se manifesta, devendo este, portanto, expressar os valores constitucionais que orientam a estrutura econômica. 4.5 PRINCIPAIS TÉCNICAS CONTRATUAIS TIPICAMENTE PÓS-MODERNOS 4.5.1 Contratos cativos de longa duração Dentre as novas realidades surgidas pela massificação das relações negociais, pode ser destacado o surgimento e o crescimento acelerado de contratos cativos de longa ____________ In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 10. O autor lembra ainda que “o princípio do ‘solus concensus obligat’ favorecia a classe dos comerciantes”. 416 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 101. Nesse sentido, Abreu Barroso e Soares da Cruz anotaram que “seu substrato é a patrimonialidade, melhor ainda, a economicidade, pois opera exclusivamente nas relações que tem por base o elemento econômico. Não obstante as partes sejam movidas por interesses subjetivos (ideal, moral e cultural) ao se obrigarem contratualmente, ainda assim o contrato terá que resultar objetivamente numa operação econômica” (In: “Funcionalização do contrato: o Direito Privado e a organização econômico-social contemporânea.” In: RBDC, v. 28, Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, 2005, p. 182-3). 417 In: ALTERINI, Atílio Aníbal. “Teoría de los costos. La seguridad jurídica”, p. 30. In: Temas de Derecho Privado. Ciclo de mesas redondas, v. VI, publicação do Departamiento de Derecho Privado de la Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidade de Buenos Aires, 1995, p. 32. 415 153 duração418, típicos da contratação de massa, que, como o nome já indica, criam uma posição de ‘catividade’ ou ‘dependência’ dos consumidores (clientes). Claudia Lima Marques lembra que a catividade, elemento essencial deste modelo, deve ‘ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais ou imateriais, de publicidade massiva e métodos agressivos de “marketing’, de graves e renovados riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança, quanto ao seu futuro” 419. Portanto há uma inequívoca ‘mensagem’ que subliminarmente deflui dessa nova modalidade negocial - como condutora da catividade, garantindo longa vida a esta relação que é a promessa de algo futuro, que servirá como elemento impulsionador da relação contratual para a perpetuidade. Nessa nova realidade contratual, a relação negocial é formada contando, em muito, com a expectativa criada no consumidor: promessa de status, de segurança, de tranqüilidade, entre outros valores. Assim noção sobre os contratos cativos de longa duração deve ser buscada em dois elementos essenciais que lhe servem de referência: o tempo e a catividade. O primeiro encerra ____________ A expressão ‘contratos cativos de longa duração’ foi criada por Cláudia Lima Marques, na 2ª edição de sua clássica obra sobre Contratos no Código de Defesa do Consumidor. A autora informa que: “em 1995, Carlos Alberto Ghersi lançou na Argentina seu livro ‘La Posmodernidad Jurídica’, comentando a criação de um ‘contrato sem sujeito’ ou um contrato tão coletivo que seria despersonalizado, de vontade altamente fragmentada, contrato plural e quase permanente, de adesão e de execução continuada no tempo (com um modelo assemelhado nos contratos do Direito do Trabalho), chamando atenção para um elemento novo que denominou ‘catividad’ intrinseca destes contratos ‘sem sujeito’. No mesmo ano tive a oportunidade de assistir,. na Academia de Haia, o curso geral de meu mestre, Erik Jayme, que estudou os efeitos da pós-modernidade no direito, em especial destacando o pluralismo dos agentes, de sujeitos de direito, de vínculos conexos, de leis aplicáveis ao mesmo caso, assim como a importância dos direitos humanos no novo direito privado, e considerou o contrato de time-sharing como modelo de contrato pós-moderno. Assim, na segunda edição de meu livro sobre contratos, em 1995, resolvi denominar estes contratos novos da sociedade pós-moderna de ‘contratos cativos de longa duração’, emprestando de Ghersi a expressão catividade, de Larenz (e no Brasil, da obra de Clóvis do Couto e Silva) a noção de obrigação como processo e como totalidade de cooperação e boafé, para aceitar a teoria do grande mestre de Heidelberg, Érik Jayme, que existe uma crise da pós-modernidade que afeta os contratos e seu modelo, a exigir uma adptação da dogmática dos contratos para poder fazer frente aos desafios do final do século XX e início do século XXI. A demoninação ‘contratos cativos de longa duração’ acabou sendo feliz, pois ajudou a concretizar o fenômeno, descrevendo-o de certa maneira na própria expressão, e evitou reações radicais dos que acreditavam não existir uma pós-modernidade” (In: “Novos temas na teoria dos contratos: confiança e o conjunto contratual.” In: RA, p. 88-9). Esta autora aponta também a possibilidade de utilização de outras nomenclaturas para designar esta nova realidade negocial: ‘contratos múltiplos’, ‘serviços contínuos’, ‘relações contratuais triangulares’, ‘contratos de serviços complexos de longa duração’ e ‘contratos pós-modernos’ (In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 92). 419 In: MARQUES, Claudia Lima. “Contratos bancários em tempos pós-modernos – primeiras reflexões.” In: RDC, p. 19. 418 154 a idéia de continuidade ou, pelos menos, a aptidão para terem uma longa duração, o que identifica, em grande parte, essa modalidade contratual420. Entretanto a existência de contratos de longa duração, ou seja, que se estendem no tempo, já é bastante conhecida da teoria contratual, que os contrapõe aos contratos de execução instantânea, que são aqueles que se cumprem por uma só prestação421. Na sistemática tradicional, são encontradas diversas fórmulas contratuais que representam essa modalidade vinculada à longa duração, como a locação, o mútuo, o depósito, entre outros. Assim é inevitável a identificação do elemento catividade, pois é ele que irá, essencialmente, particularizar esta espécie. A catividade deve ser compreendida em dois momentos. Inicialmente, ela é representativa das técnicas de marketing utilizadas antes da formação do contrato, de forma a convencer o contratante em relação às conveniências da contratação. Trata-se de situação típica da sociedade pós-moderna na qual vivemos422. Para o desempenho desse papel, são desenvolvidas modernas técnicas publicitárias que envolvem os consumidores, levando-o muitas vezes a firmar a contratação sem uma adequada reflexão. O aparato de marketing que geralmente acompanha os contratos cativos costuma ser muito incisivo e preparado para atingir diretamente a vontade dos destinatários e garantir um número cada vez maior de contratações. Da mesma forma, o momento de execução dessas práticas é cuidadosamente escolhido, visando chegar ao consumidor quando este se encontra despreparado para resistir às tentações típicas da atual sociedade de consumo. ____________ Cláudia Lima Marques apresenta os seguintes exemplos de contratos cativos de longa duração: “ as novas relações banco-cliente, os contratos de seguro-saúde e de assistência médico-hospitalar, os contratos de previdência privada, os contratos de uso de cartão de crédito, os seguros em geral, os serviços de organização e aproximação de interessados (como os exercidos pelas empresas de consórcio e imobiliárias), os serviços de transmissão de informações e lazer por cabo, telefone, televisão, computadores, assim como os conhecidos serviços públicos básicos, de fornecimento de água, luz e telefone por entes públicos ou privados” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 79). 421 Segundo Francesco Messineo, o contrato instantâneo é aquele que “comporta una sola ejecución en cuanto esta ejecución agota su razón de ser. En este caso se llama de ejecución única o instantánea, con lo que se quiere significar, no que el contrato recibe ejecución inmediata – ésta es otra cosa –sino que el contrato se ejecuta uno actu, es decir, con una solutio única, y con esto mismo queda agotado” (In: Doctrina general del contrato. t. I, p. 429). 422 Diez-Picazo explica esse fenômeno: “no basta el fenómeno externo de la aglomeración o de las multitudes para que se pueda hablar de ‘masas’ y de ‘sociedades de masas’. De algún modo el hecho característico, aunque constituya una redundancia, es que la sociedad no es de personas, sino de masas. Las masas se piensan como conjuntos humanos en los cuales el hombre se integra como um ser anônimo y despersonalizado” (In: Derecho y masificación social, tecnología y derecho privado, p. 23). 420 155 A intensidade e insistência da publicidade são elevadas ao grau máximo, de forma a atingir toda a sociedade, por um lapso temporal cada vez maior, gerando maior garantia de eficácia no sentido de formação de contratos. Mas a questão que parece se destacar Nesse contexto é o caráter de convencimento da “catividade”, em que a empresa se apresenta como a concretizadora das mais diversas aspirações do indivíduo, seja de ordem estética, psicológica, emocional ou social. A empresa assume o papel de realizadora de sonhos, cativando o consumidor; ela é a parceira que vai levá-lo até onde ele sempre quis estar. A técnica da catividade é, em suma, um processo de sedução dos consumidores. Um segundo aspecto da catividade é vislumbrado após a formação do contrato, no qual essa expressão passa a ser entendida como situação de dependência e fragilidade do consumidor frente ao contrato firmado, o que é facilmente perceptível nos contratos de seguro-saúde e em diversas situações da seara bancária. O contrato cativo de longa duração, uma vez estabelecido, passa a fazer parte da vida do consumidor, de forma inseparável, de forma extremamente significativa para o seu convívio em sociedade. O contrato é o seu ponto de segurança para enfrentar as intempéries da vida, tornando-se uma necessidade de extrema importância, inclusive para a sua realização pessoal. Assim os contratos cativos de longa duração podem ser entendidos como aqueles típicos da sociedade pós-moderna, que têm a sua formação aparelhada por intensas formas de marketing, que se estendem no tempo, passando a fazer parte da vida do consumidor, de forma que a sua manutenção passa a tornar-se uma necessidade do contratante. Apesar da fluidez dos modelos negociais pós-modernos, é possível arriscar a indicação de alguns aspectos que, de alguma forma, se fazem presentes nos contratos cativos de longa duração. Entretanto tais características representam apenas uma tendência, o que confirma a complexidade pós-moderna. A primeira característica a ser verificada nos contratos cativos de longa duração é o desapego à normatividade, ou seja, a atipicidade. Percebe-se a presença desse aspecto nos contratos que compõem o sistema de cartão de crédito, time-sharing, relações negociais entre lojistas e empreendedores de shopping centers, entre outros. Alguns contratos cativos de longa duração, entretanto, possuem tipicidade - como os contratos de seguro saúde e de franchising – mas a insuficiência do texto legislado para o 156 enfrentamento das questões práticas que surgem é latente, ensejando a necessidade de se buscar a solução por meio de princípios, que muitas vezes extrapolam a temática contratual tradicional – princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social, etc. Muitos desses modelos novos que compõem o conjunto de contratos cativos de longa duração buscam a sua inspiração nos contratos tradicionais, mas dão a eles nova roupagem, num revestimento mais complexo e otimizado, de forma a atender com mais eficácia as necessidades de realidade social, como acontece em várias modalidades de contratos bancários. Outra técnica utilizada é a combinação de modelos contratuais tradicionais, gerando novas fórmulas, como a união dos contratos de seguro com a prestação de serviços de saúde. Essa forma mantém a atualização dos modelos negociais e garante a sua inovação, que vai resultar numa maior eficiência no atendimento dos anseios sociais423. Um segundo aspecto que pode ser apontado é a massificação dos contratos cativos de longa duração, pois eles são típicos da era da globalização, são contratos de massa (firmados por meio de adesão e/ou vinculados à condições gerais de contratação). Outra característica, que o próprio nome indica, é o fato de esses contratos terem a sua duração diferida no tempo. A aptidão para a longevidade marca os contratos cativos. No dizer de Cláudia Lima Marques, cria-se um “verdadeiro processo de convivência necessária entre a empresa fornecedora de serviços e os consumidores”424 . Tal realidade traz à discussão a necessidade de manutenção do equilíbrio contratual em todo o seu tempo de duração e a busca de critérios seguros para a obtenção desse escopo. Em muitas situações, o advento de novas realidades sociais durante a vida do contrato poderá causar dificuldades na ____________ Os contratos cativos de longa duração, entretanto, não podem ser confundidos com os contratos em rede, embora mantenham, em relação a estes, considerável aproximação, pois ambos representam um novo viés dos contratos na pós-modernidade. Ana López Frias aponta a existência da conexão contratual quando vários sujeitos celebram dois ou mais contratos distintos que representam uma estreita vinculação funcional entre si, em razão de sua própria natureza, ou da finalidade que os informa, vinculação esta que é ou pode ser juridicamente relevante (In: FRIAS, Ana López. Los contratos conexos: estúdio de supuestos concretos y ensayo de una construcción doctrinal. Barcelona: José Maria Boch Editor S. A. 1994, p. 273). Assim as redes contratuais representam uma técnica de divisão da participação contratual entre várias empresas, de forma a gerar uma relação complexa, como ocorre nos contratos de turismo. Cabe notar que, apesar de vários contratos em rede poderem apresentar-se com longa duração – contratos de seguro-saúde – isso nem sempre acontece. A combinação entre contratos em rede e a catividade vinculada a longa duração costuma mostrar-se bastante fértil e prodigiosa, quase que numa justaposição perfeita, mas tratam-se de modelos autônomos, que podem subsistir de forma isolada. 424 In: MARQUES, Claudia Lima. “Contratos bancários em tempos pós-modernos – primeiras reflexões.” In: RDC, p. 28. 423 157 manutenção do sinalagma do pacto425, exigindo redobrada atenção para evitar a ocorrência de desequilíbrio no contexto da relação contratual. Neste tema da manutenção do sinalagma contratual, existe ainda a problemática ocasionada pela incorporação de novas tecnologias e o custo de manutenção do pacto. Surge aqui a preocupação com o chamado sinalagma funcional426, que deve manter-se adequado. A inserção de novas tecnologias, por si só, não pode representar motivo justo para a realização ____________ O sinalagma genético representa o equilíbrio inicial que serve de núcleo rígido da equação contratual. As relações temporalmente extensas exigem uma maior flexibilidade na conformação do sinalagma inicial, sem é claro permitir o seu abandono, para que o contrato continue a desempenhar a sua função durante toda a contratualidade. Se este sinalagma for rompido, o pacto deixa de desempenhar a sua função original, possibilitando que os contratantes se utilizem de instrumentos rígidos de proteção de seus legítimos interesses, como a revisão forçada da contratação, por meio de apelo à tutela jurisdicional, ou até mesmo a busca da resolução do contrato. A principal ameaça que o transcurso do tempo poderá trazer ao sinalagma genético dos contratos de longa duração é, inequivocamente, a questão relativa à alteração do preço contratado. É claro que não se espera que um contrato de duração diferida no tempo, por um vasto período, se mantenha inalterado, principalmente em países onde os surtos inflacionários são constantes ou cíclicos. No Direito Francês, este aspecto foi estudado por Jacques Ghestin e Marc Billiau, que analisaram especificamente a questão do “preço nos contratos de longa duração” e vincularam a sua fixação aos aspectos da duração útil e justa do contrato (In: El precio en los contratos de longa duración. Traduzido por Moisset de Espanés e Ricardo de Zavalía. Buenos Aires: Zavalia, 1990, p. 19). A duração útil do vínculo negocial está relacionada diretamente com a possibilidade de produção dos efeitos que são imanentes à espécie contratual. Tal questão refere-se exatamente ao fim econômico-social que norteia o contrato. Por outro lado, não se pode olvidar da duração justa que se relaciona ao papel de troca desempenhado pela figura dos contratos. A duração justa é fator de equilíbrio, que deve se fazer presente desde a fase pré-contratual até o completo exaurimento dos efeitos do contrato firmado. E, como lembra Jacques Ghestin e Marc Billau, a ausência de uma duração justa proporciona a dominação de uma parte contratante sobre a outra, enquanto que a falta de duração útil retirará a coerência econômica do contrato, frustrando a sua rentabilidade (p. 19). Assim, o sinalagma é o referencial que se fará presente durante toda a sua contratualidade. Na doutrina Argentina, Ricardo Lorenzetti ressalta este aspecto especificando: “en los contratos de larga duración, el objeto es una envoltura, un cálculo probabilístico, un sistema de relaciones que se modifica constantemente en su interior com finalidades adaptativas. Esta qualidade deve ser preservada puesto que lo contrario, toda fijación produce la inadaptabilidad del contrato” (In: “El objeto y las prestaciones en contratos de larga duración: a propósito de la medicina prepaga, servicios educativos , contratos de suministros y asistencia.” In: Suplemento LL, ano LXI, nº 167, p. 02). Este autor, ao abordar o tema, sugere um roteiro a ser seguido no julgamento da reciprocidade dinâmica dos contratos de longa duração; “En un primer momento, comparativo, corresponde: - describir el objeto y el contenido de las obligaciones conforme lo acordaron las partes en el momento genético.- detallar las modificaciones que se pretender hacer de modo comparativo, indicando que cambian respecto del sinalagma genético. Efectuada esta comparación, hay que establecer si hay una afectación de la relación de equivalencia. Siguiendo con el ejemplo de la medicina prepaga, puede ocurrir que este cambie el listado de médicos por otro de similar nivel científico, o que el tomógrafo por uno de otra marca, lo que no impacta en la conmutatividad. Si el cambio, se verifica que hay una mudanza substancial que altera esa relación como el cambio de precio, o de calidad, puede suceder que: - el cambio produce una mejora en la situación de la otra parte: en este caso no hay ilicitud contractual alguna. – el cambio empeora la situación de la otra parte: ello puede ocurrir de un modo perceptible, como cuando se cambian el precio o calidad, o bien de una manera indirecta como cuando se alteran las obligaciones accesorias o secundarias impactando de esta manera en el resultado final” (p. 2.). 426 Karl Larenz explica a existência de duas espécies de sinalagmas, quais sejam, o genético e o funcional: ‘el sinalagma ‘genético no significa outra cosa que la vinculación (die Verknüpfung) del deber de prestación de cada parte com el de la outra en la voluntad jurídico-negocial de las partes. No se trata sino de outra palabra jurídica el Tatbestand ‘contrato reciprocamente obrigatório’ .”el sinalagma funcional significa la permanencia de los deberes de presta ción principales y recíprocos de las partes, em referencia a su realización y a las consecuencias de las alteraciones em las prestaciones” (apud In: REZZÓNICO, Juan Carlos. Principios Fundamentales de los Contratos, p. 328). 425 158 de reajustes que elevem excessivamente o valor contratado, pois, no momento da formação do contrato, houve, implicitamente, o ajustamento sobre o binômio preço-qualidade, o qual deve ser conservado durante toda a duração do contrato427. Tal realidade é encontrada com mais freqüência em relação à prestação de serviços de seguro saúde. Nesses casos, resta claramente evidenciado que pode ser exigido do fornecedor uma busca constante pela atualização do objeto do contrato, pois esta é a expectativa criada no momento da contratação e, por conseqüência, integra o contrato. O custo dessa constante atualização tecnológica deve ser absorvido pela própria empresa fornecedora, que encontrará recursos no abandono de técnicas antigas - geralmente mais onerosas e menos eficazes – e na incorporação constante de novos usuários, entre outros meios428. E, finalmente, pode ser apontado como qualidade dos contratos cativos de longa duração a criação de uma situação de dependência, que vai servir como causa eficiente de manutenção no contratante da vontade de continuação da relação negocial. ____________ Enfrentando este tema no Direito Argentino, Ricardo Lorenzetti leciona que: “planteado el conflicto, el Derecho debe responder tratando de lograr la adaptabilidad de los cambios en una relación de equivalencia. Ello significa que, tratándose de un vínculo contractual y de base conmutativa, es preciso que esas modificaciones no alteren la relación de cambio. Por ello, deben ser incorporados preservando la relación de equivalencia deseñada en la celebración del contrato” (In: “El objeto y las prestaciones en contratos de larga duración: a propósito de la medicina prepaga, servicios educativos , contratos de suministros y asistencia.” In: Suplemento LL,, p. 2). Este autor, então, apresenta dois métodos que entende adequados para realizar a devida absorção dos impactos das novas tecnologias nos contratos de longa duração: “se el cambio es tal que altera la causa del negocio porque afecta la calidad comprometa de un modo substancial, puede dar lugar a calificación de abusividad, o a la rescisión por parte de la parte contraria – la evaluación puede hacerse a través del standard del contratante medio, examinando si el sujeto de esas características contrataría en las condiciones que se apresentan” (p. 3). Entretanto o autor aponta a exitência ainda de outros dois critérios que designa de complementares: “en Chile se ha indicado que la faculdad de estas empresas de adecuar los contratos de salud a los cambios, no puede ser interpretada de una manera tan amplia que queda ser en los hechos una situación unilateral de un plan por otro, porque se cambian sustancialmente las condiciones del contrato cuya vigencia en el tiempo la propia ley pretende asegurar. En realidad, las modificaciones no se juzgan por si mismas, sino por su resultado final – otro criterio que agrega la Corte de Santiago es el de la generalidad. Los cambios deben prescindir de condiciones personales del filiado y ser generales. No deben ser discriminatorios” (p. 3). 428 Esse tema é enfrentado por Ghersi, Weingarten e Ippolito, que expressamente se manifestam Nesse sentido,: “en cuanto al costo, no nos cabe ninguna aduda que debe ser soportada por la empresa, y de ninguna manera debe materializarse en un incremento valorativo de las cuotas. Esto es así por varias razones: (a) está dentro del denominado riesgo – costo empresario, (b) al incorporar al usuario, asumió la obligación implícita de un adecuado servicio, es decir, que tácitamente estaba involucrada la actualización tecnológica (y de acuerdo con lo que verosímilmente las partes entendieron o pudieron entender, obrando, con cuidado y previsión, a, 1198, Cód. Civil), y (c) la incorporación constante de nuevos usuarios, va financiando la incorporación tecnológica. En ultima instancia, el calculo actuarial – como en los seguros – demuestra que la expectativa de servicios es menor que la masa de dinero incorporada” (in: Contrato de medicina prepaga, apud LORENZETTI, Ricardo Luis. “El objeto y las prestaciones en contratos de larga duración: a propósito de la medicina prepaga, servicios educativos , contratos de suministros y asistencia.” In: Suplemento LL, p. 4). 427 159 No sistema atual, as agressivas estratégias de marketing se encarregam de manter o atrativo do contrato por longo período de tempo. O contratante vai se envolvendo nessa rede, e o contrato passa a fazer parte de sua vida, o que pode ser percebido nas relações bancárias pela técnica do superindividamento, na qual, por meio de novações contratuais sucessivas429 ou pelo fornecimento ao mesmo tempo de diversos serviços – pluralidade de contratos – há um ‘aprisionamento’ do cliente. Há ainda a contribuição proporcionada pela realidade social, que fortalece a necessidade da manutenção dos contratos cativos, como ocorre com os contratos de segurosaúde, que, em face da ineficácia do sistema público de saúde, vão se eternizando. Assim os contratos cativos de longa duração são uma realidade já consolidada nas relações negociais da pós-modernidade. Há muito deixaram de representar o futuro e passaram a integrar, de forma necessária, o atual convívio em sociedade, onde o homemsocial e o homem-econômico se confundem numa única realidade, cabendo ao Direito proporcionar mecanismos eficazes para monitorá-los para que sejam formas sempre vinculadas a sua natural função socioeconômica, a serviço, portanto, dos anseios sociais. Não se pode conceber a possibilidade de essa nova e necessária modalidade contratual servir de ‘aprisionamento” dos contratantes mais débeis, que se tornaram dependentes da sua manutenção. Se os contatos cativos de longa duração vieram para acompanhar o indivíduo na sua existência em sociedade, devem servir para auxiliá-lo na sua constante e incessante busca de crescimento e realização pessoal. Nesse contexto, as soluções jurídicas apontadas para os diversos problemas que surgem nos contratos cativos de longa duração devem estar em compasso com a efetividade dos direitos fundamentais consagrados na Carta Constitucional, que, no dizer de Luís Afonso ____________ 429 Cláudia Lima Marques aponta que “a jurisprudência gaúcha respondeu a esta ‘renegociação contratual prejudicial ou revisão abusiva’ de forma clara. Considerou viável a revisão e o controle do conteúdo de toda a relação, em suas várias fases e contratos negociados. A relação é efetivamente continuada, é um contrato cativo de longa duração, em que o consumidor, na prática, aceitará qualquer negociação, mesmo que abusiva ou a ele estranhamente prejudicial para que não vençam antecipadamente seus débitos e tenha tempo de cumprir sua prestação” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Contratos bancários em tempos pós-modernos – primeiras reflexões.” In: RDC, p. 34-35). 160 Heck, representam elemento de unidade da ordem jurídica430, ensejando a consolidação do fenômeno conhecido com filtragem constitucional, que consiste em determinar que toda ordem jurídica deva ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados431. O contrato, independentemente do tempo de sua duração, deve ser fonte de reforço da liberdade pessoal e jamais servir como um cativeiro invisível que aprisiona e, ao mesmo tempo, retira a dignidade do contratante mais vulnerável. 4.5.2 Contratos relacionais: a contribuição teórica de Ian R. Macneil A perspectiva clássica apresenta o contrato como uma simples combinação de acordos de vontades, promessas que se combinam para a formação do vínculo negocial. Esta perspectiva de posicionamento das partes frente a frente, além de potencializar os conflitos, cria a falsa percepção de que o contrato representa uma transação negocial isolada do contexto social, numa compreensão atomista do contrato. Cria-se uma espécie de “presentation”, tornando-se o futuro como presente, estabelecendo as regras contratuais numa ilusão de integralidade. Essa antecipação isola o contrato no tempo - como se isso fosse possível - considerando o contrato como algo alheio ao elemento temporal, no qual se poderia dispor hoje do futuro, numa espécie de planificação da relação negocial. Cria-se um contrato sem presente ou futuro, ou seja, atemporal, isolado. Wallace Lightsey adverte que tal noção acaba por ocultar o fato de que a confiança, as expectativas e as obrigações que decorrem do pacto derivam de uma variedade de fontes, que não as promessas contratuais, tais como a dependência geral entre os membros de uma sociedade desenvolvida, os costumes e as ____________ In: HECK, Luís Afonso. “Direitos Fundamentais e sua influência no Direito Civil.” In: RDC, p. 53, onde o autor aborda a temática no Direito Alemão, explicando que “depois da segunda guerra, a influência do direito constitucional sobre o direito civil encontra-se no plano jurisprudencial, isto é, no do aperfeiçoamento e desenvolvimento do direito. Dito em outras palavras: na constituição estão os pressupostos da criação, validez e realização das normas da ordem jurídica infraconstitucional e ela determina, em grande medida, também o seu conteúdo; assim, ela converteu-se em um elemento de unidade da ordem jurídica total da comunidade e, nisto, ela não só exclui uma separação entre direito constitucional e outros setores jurídicos, especialmente do direito privado, mas também uma coexistência estanque destes setores e, com isso, ela desenvolve, simultaneamente, aquele efeito que cimenta a unidade, a qual pressupõe a existência e efeito normativo da constituição mesma” (p. 53-4). No mesmo sentido, na doutrina civilista italiana, Pietro Perlingieri aponta que “o papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional” (In: Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Traduzido por Maria Cristina e Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 6). 431 Conforme BARROSO, Luís Roberto. “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro – pós modernidade, teoria crítica e pós-positivismo.” In: Revista do Ministério Público, Porto Alegre, nº 46, jan-mar. 2002, p. 63. 430 161 normas de um ramo de negócios ou a comunidade social a que as partes pertencem, transações similares ou prévias entre elas e o próprio desenvolvimento da relação432. Assim a necessidade de visualização do contrato envolvido numa matriz social inspirou Ian R. Macneil a formular uma teoria contratual sob a dimensão relacional, na qual a planificação contratual segue um modelo ‘aberto´, que permite uma constante permeabilidade com a realidade social que lhe servirá de norte para suprir a ausência de integralidade. A teoria contratual tradicional não mostra preocupação com a compreensão sobre a inter-relação do contrato com as circunstâncias exteriores, deixando, portanto, de reproduzir esse intercâmbio no tratamento jurídico destinado ao contrato. Esta teoria dos contratos relacionais tem origem no sistema anglo-saxão, em estudos desenvolvidos especialmente por Ian Macneil433. Nessa concepção, a relação contratual ganha a estrutura de um processo que permitirá o desenvolvimento de seu objeto no decorrer do tempo de duração do vínculo. Nas palavras de Charley Del Marmol, o contrato tem sua biologia própria. Uma vez concluído, o contrato continua. Vive. Executa-se. Renegocia-se. Recebe adaptações434. Ian Macneil perspectiva os chamados relational contracts como um pólo de um continuum que tem, em seu contrapólo, a discrete transaction435. ____________ In: A Critique of the Promisse Model of Contract, Willian and Mary Law Review, v. 26, 1984, p. 44, apud In: GOMES, Julio. “Cláusulas de Hardship.” In: MONTEIRO, António Pinto (cord.) Contratos: actualidade e evolução, p. 171. 433 O Tema é diretamente enfrentado pelo autor na obra de MACNEIL, Ian R. The new social contract: an inquirity into modern contractual relations. New Haven and London: Yale University Press, 1980. 434 In: Refléxions sur l’utilisation des techniques contractuelles dans la vie des affaires, Journal des Tribunax, 1973, n. 4814, p. 70, apud GOMES, Julio. “Cláusulas de Hardship.” In: MONTEIRO, António Pinto (cord.) Contratos: actualidade e evolução, p. 176. 435 Na exlicação do autor: “discrete contract is one in which no relation existis between the parties apart front he simple Exchange of goods. Its paradigman is the transaction of neoclassical microeconomics. But as will de seen, erery contract, even such a theoretical transaction, involves relations aprte from the exchange of goods itself. Thus every contract is necessarily partially a relational contract, that is, on involving relations other than a discrete Exchange. (...) The first kind of relational contract includes all the interwined Exchange behavior of a primitive community. Such a community enjoys an independent economy with relatively little specialization, relative stability, and little fundametal change. The other type of relation is the modern contractual relation, intricately interconnected with a larger society of great complexity, involving extremely elaborate specializations, and subject to constant change. These two kinds of relations result in two sets of axes. Both start at the same point, the discrete transaction. But one runs from to the primitive community; the other runs to the typical modern contractual relation. Use of these two axes will reveal some important differences between the two kinds of relations. If the word is drifting toward neotribalism, it is ‘neo’, not old, tribalism; if we are in a new world of status and dead contract, it is not the status of Henry Maine or the torts of Grant Gilmore but phenomena quite different from both” (In: The new social contract: an inquirity into modern contractual relations, p. 10-1). De maneira bastante didática, Souza Ribeiro exemplifica esta ótica de visualização dos contratos em relational contracts e discrete transaction: “esta última reduz-se a uma simples troca de bens, nenhuma outra relação, a não ser essa, existindo entre as partes. Como exemplo pode apontar-se o enchimento do depósito de gasolina numa estação de serviço. A troca não tem passado nem futuro, não fundando expectativas, excepto, por parte do condutor, a de que o posto terá gasolina disponível e, por parte do fornecedor, a de que qualquer automobilista que pare para abastecer terá meios para pagar. A relação gasolina-dinheiro é a única que importa. No modelo ‘relacional’, cuja figuração mais rica é o casamento, a relação prolonga-se no tempo, gera mais complexas interdependências e expectativas, as prestações e deveres estão menos predeterminados, encontrando-se sujeitos a mecanismos de adaptação, com vista à preservação da relação e a integralidade dos papéis das partes” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 18). 432 162 Como destaca Ricardo Lorenzetti, a obrigação se desmaterializa, transformando-se em uma envoltura que permite a criação de um sistema de relações que se modifica constantemente em seu interior, para ganhar adaptabilidade436. O autor cita como exemplo de contrato relacional os vínculos estabelecidos no campo das ‘networks’, que se consubstanciam em relações entre empresas baseadas na confiança e cooperação437. São exatamente os elementos confiança e cooperação que cimentam os contratos relacionais, dando-lhes uma estrutura ao mesmo tempo segura e flexível, em conformidade com as exigências da economia moderna. Cria-se e nutre-se uma constante tensão entre reciprocidade e solidariedade. Em síntese, os contratos relacionais pressupõem relações complexas entre os contratantes, de modo que os vínculos pessoais de solidariedade, confiança e cooperação são determinantes. Como afirma Noemi Nicolau, se entiende que en los contratos relacionales el lucro es más el resultado de mutua cooperación que de la astúcia en la negociación438. Assim, enquanto para a teoria clássica do contrato o ponto de referência está centrado no acordo originalmente estabelecido, sob a perspectiva relacional este deve ser buscado considerando-se a relação na sua integralidade. 4.5.3 Redes contratuais O sistema contratual atual, em uma parte considerável de ocasiões, tem renunciado ao isolamento, não sendo raras as ocasiões em que os contratos se apresentam vinculados a outros, formando o que se passou a conhecer como ‘pacotes’ de fornecimento de produtos ou de prestação de serviços. Como afirma Ricardo Lorenzetti, surge uma nova forma de ‘operação econômica’, que se vale de vários contratos como instrumentos para a sua plena realização, num sistema de verdadeiras ‘redes contratuais’439. ____________ In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito da UFRGS, p. 41. O autor esclarece que o contrato, neste contexto, “presenta un objeto materialmente vacío, porque en realidad se pactuan procedimientos de actuación, reglas que unirán a las partes y que irán especificando a lo largo del proceso de cumplimiento. Los vinculos de larga duración tienen un carater procesal, en el sentido de que el objeto no es una prestación consistente en un dar o en un hacer determinado, sino determinable” (p. 41-2). 437 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito da UFRGS, p. 42. 438 In: NICOLAU, Noemi Lídia. El rol de la buena fé en la moderna concepción del contrato. Tratado de al buena fe en el derecho. t. I, p. 330. 439 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito da UFRGS, p. 27. 436 163 Por meio desta técnica contratual pós-moderna, contratos tradicionalmente concebidos de forma singular, autônoma, passam a ser agrupados e articulados de modo a formar um sistema negocial com características próprias e destinado a cumprir uma determinada função prático-social, no mais das vezes diferenciada daquelas presentes nos negócios jurídicos que o compõem. Nas palavras de Rodrigo Xavier Leonardo, há uma coordenação de contratos diferenciados estruturalmente, porém interligados por um articulado e estável nexo econômico funcional e sistemástico440. Esse fenômeno da contratação por meio de ‘redes’ reproduz a noção de unidade de operação econômica, que, pela sua natural complexidade, acaba por não encontrar um único modelo contratual de referência, recebendo, assim, um tratamento especial obtido pela configuração de contratos (típicos ou atípicos) vinculados a atender a determinada finalidade. É o que Rodrigo Xavier Leonardo chama de causa sistemática441. Este autor aponta três requisitos para que se reconheça uma “rede contratual”: a ) conexão entre contratos, b) surgimento de uma causa sistemática, c) verificação de um propósito comum442. Característico do mundo pós-moderno, é possível enxergar-se nesta técnica negocial um forte viés dos ideais da solidariedade e cooperação empresarial, com o fito de adequação às exigências de um mercado forte e globalizado, gerando uma considerável facilitação na produção e distribuição de mercadorias e nas prestações de serviços mais complexos. Nesse sentido, Rodrigo Xavier Leonardo leciona que se pode defender a existência de efeitos paracontratuais dos contratos em rede, pois a paraeficácia dos contratos em rede pode ser sintetizada ‘em um dever geral de proteção em favor do sistema explicitado nos diversos deveres laterais provenientes dos objetivos de ordem sistemática assim destacados, sem prejuízo de um dever de proteção dos destinatários finais dos produtos e serviços ofertados mediante rede de contratos443. ____________ In: LEONARDO, Rodrigo Xavier. “A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexos a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.” In: RT, v. 832, jan. 2005, p. 103. 441 In: LEONARDO, Rodrigo Xavier. “A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexos a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.” In: RT, p. 103. O autor explica:“note-se que uma rede de contratos, entretanto, não pode ser confundida com um simples conjunto de contratos ou com uma pluralidade de contratos. É necessário que entre os dois ou mais contratos que formam o sistema exista um vínculo fiuncional, um nexo objetivo, que justifique a percepção de uma rede: a ligação entre os diversos contratos deve refletir uma mesma operação econômica que é propiciada ou potencializada pela união referida” (p. 103). 442 In: LEONARDO, Rodrigo Xavier. “A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexos a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.” In: RT, p. 103. 443 In: LEONARDO, Rodrigo Xavier. “A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexos a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.” In: RT, p. 104. Este autor observa que: “a teoria 440 164 Apesar de a atual legislação civilista não tratar pontualmente da coligação de contratos, a conjugação dos dispositivos pertinentes à função social do contrato (art. 421 do CCB) e do princípio da boa-fé (art. 422 do CCB) lhe proporcionam o conforto necessário para que atuem numa clara perspectiva funcional444. 4.5.4 Contratos eletrônicos A técnica da contratação eletrônica, que teve o seu surgimento na década de noventa, criou um espaço novo de comércio, representado pela rede mundial de computadores – internet445, o que passou a representar um dos exemplos mais paradigmáticos de contratação pós-moderna. Entretanto, conforme aponta Cláudia Lima Marques, a doutrina mundial mostra-se uníssona no sentido de que é necessário estabelecer normas diferenciadas para a interpretação das redes contratuais não surge como mais uma teoria jurídica de laboratório, como um produto fértil da mente dos juristas. Em sentido diametralmente contrário, as bases da teoria das redes contratuais surgem a partir da necessidade de buscar respostas para a interligação funcional entre contratos desenvolvidos pelos agentes econômicos em busca de uma maximização dos lucros e minimização dos riscos vivenciados em mercados altamente competitivos” (p. 109). 444 No Direito Civil alemão, a reforma do BGB (Shuldrechtsmodernisierungsgesetz), utilizando a expressão contratos coligados, dedicou um espaço normativo a esta espécie: “par. 358, 3. Um contrato de fornecimento de bens ou de realização de outra espécie de prestação e um contrato de financiamento para o consumo são conexos quando o empréstimo serve, total ou parcialmente, para o financiamento de outro contrato e ambos constituem uma unidade econômica. É pressuposta uma unidade econômica especialmente quando o mesmo empresário financia a contraprestação do consumidor, ou em caso de financiamento por meio de um terceiro, quando o financiado contribua com o fornecedor de bem durante a prestação ou durante a celebração do contrato de empréstimo com consumidores”. 445 Cláudia Lima Marques informa que “os autores alemães denominaram o comércio eletrônico de ‘colocação eletrônica à distância’ de produtos e serviços (elektromische Fernabsatz), de ‘negócio eletrônico’ (elektronische Geschaeftsverkehr), ou de negócios através da Internet (Geschaeftsverkehr über das Internet). A doutrina brasileira prefere denominá-los contratos eletrônicos, contratos por computador” (In: “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 47). 165 dos contratos do comércio eletrônico envolvendo consumidor446. O viés pós-moderno nestas espécies de contratação é inequívoco, criando uma dobra histórica nas formas e técnicas de contratação. O primeiro aspecto pós-moderno a chamar a atenção é a ‘desumanização’ peculiar destas formas de contratação, em que o fornecedor é ‘virtual’ e o consumidor massificado447, representado por uma senha ou assinatura eletrônica. É um consumidor sem face. Há, nas contratações eletrônicas, o mais alto grau de impessoalidade já experimentado na história dos contratos448. Em interessante enfoque, Carlos Alberto Ghersi, ao analisar a contratação no ambiente pós-moderno, faz referência ao que designa de “contrato sem sujeito”, no qual, através de processos abstratos, são evitadas negociações, quebrando a resistência do adquirente, obtendo uma efetiva submissão deste contratante, sobre o efeito das condições impostas pela ‘proposta’ contratual, situação que parece representar adequadamente as ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 50. A autora explica: “Necessário é, porém, destacar a vulnerabilidade especial do consumidor quando se utiliza do meio eletrônico. Em outras palavras, o meio eletrônico, automatizado e telemático, em si, usado profissionalmente pelos fornecedores, para ali oferecerem seus produtos e serviços aos consumidores, representa aos consumidores leigos, um desafio extra ou vulnerabilidade técnica. O consumidor não é – mesmo que se considere – um especialista ou técnico em computadores e na Internet. Esta ‘falha tecnológica” é geral, mas não desanima, ao contrário, fascina a maioria. É típica da pós-modernidade. Apesar desta ‘falha tecnológica’ ou vulnerabilidade frente ao meio virtual, milhares de consumidores, sem medo, negociam, compram e participam até mesmo de leilões e outros ‘divertimentos’ consumistas sem censura, através da rede mundial da Internet. Atuam eles sem conhecimento técnico, sem fronteiras, sem território, sem passado, sem experiência e com uma fluida confiança, justamente no Direito ‘do Consumidor’, e em uma vaga (e muitas vezes inexistente) proteção ‘internacional’ dos mais fracos, confiando nas respostas pelo menos razoáveis que a Justiça dará. É um contexto novo de superficialidade, hedonismo consumista e insegurança pósmoderna” ( p. 75). 447 Conforme In: MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 67. Esta mesma autora, em outra obra, explica “como afirmarmos anteriormente, nestas contratações à distância, por meios eletrônicos – e-mail, por internet (on-line) – ou por outros meios de telecomunicação em massa (telemarketing) TV, TV a cabo etc.), há uma certa ‘desumanização do contrato’ (disumanizzazine del contratto). A impessoalidade aqui é levada a graus antes desconhecidos, sendo que todas as técnicas de contratação de massa antes comentadas se unirão (do contrato de adesão ao marketing agressivo, à catividade do cliente, `a internacionalidade intrínseca de muitas relações, à distancia entre fornecedor e consumidor), a ponto de criarem um fenômeno próprio e diferente com este ‘meio/instrumento usado para a contratação” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 184). 448 Conforme SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato, p. 45. 446 166 relações negociais firmadas por meios eletrônicos449. Entretanto, para este autor, não passa despercebido que, sob o enfoque filosófico-sociológico, esse ‘contrato sem sujeito’ é uma aberração, pois submete as relações sociais ao que pode ser designado de ‘coisificação total’, sendo necessário ‘rehumanizar’ a estrutura do contrato450. Um outro toque pós-moderno é vislumbrado na forma utilizada para a concretização da contratação, pois esta se desenvolve em silêncio, sem diálogo, ou melhor, num ‘diálogo silencioso’, de forma que a formação do contrato é mais conduzida pela imagem, pela conduta de apertar um botão do que pela linguagem451. Ainda não pode ser olvidado o fato de a negociação virtual instaurar uma nova noção de ‘tempo real’, impondo o chamado ‘tempo virtual’. Por fim, há ainda um evidente sentido pós-moderno no fenômeno da ‘desterritorialização’ do contrato eletrônico, pois esta técnica da negociação desconhece limites territoriais ou nacionais. ____________ 449 In: GHERSI, Carlos A. La posmodernidad jurídica, p. 59. O autor ressalta: “La distribución de beneficios en estos modelos contractuales sin sujeto del posfordismo, resultan de imposible negociación a nivel individual y obviamente rompen, no sólo conceptualmente sino ideológicamente el contrato y además implicarán seguramente una reformulación en el modo de normativizarlos”, concluindo: “queremos sintetizar nuestro pensamiento de la seguinte manera: la relación intrinseca de la estructura contractual sin sujeto, implica una disyunción funcional para los sujetos del negocio jurídico; genera una relación colectiva de estratos económicos, crucial para asegurar al libre arbitrio de las empresas en la distribución de los beneficios del contrato, la tasa de ganacia; simultáneamente es en los términos de distribicuón de ingresos un control en las oportunidades de movilidad y tal vez lo más trágico se diseña por la contratación un modelo de la vida social, ya que el benefíciario no puede discutir ni cuantía, ni la calidad de la prestción” (p. 64-5). 450 In: GHERSI, Carlos A. La posmodernidad jurídica, p. 66. 451 In: MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 67. A autora explica: “também há que se destacar o uso metodológico da imagem, da conduta social típica e do silêncio dos consumidores. Assim, entrando no mundo virtual dos ‘sites’ (imagens), o caminho é repleto de imagens) e um simples tocar no teclado significa aceitação, um simples continuar um caminho virtual de imagens, sons e mínimas palavras, significa uma declaração de vontade tácita, um simples continuar no ‘site’, em silêncio, abrindo wraps sem protestar ou cortar a conexão, pode significar um determinado tipo de contratação ou declaração negativa ou positiva” (p. 67-8). 167 CAPÍTULO 2: OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS NO ÂMBITO DA PÓSMODERNIDADE 1 OS MEGA-PRINCÍPIOS CONTRATUAIS NO AMBIENTE PÓS-MODERNO: A FUNÇÃO SOCIAL E A BOA-FÉ A pós-modernidade 452 jurídica, com suas características de pluralismo e fragmentação , impõe a necessidade de que seja concebida a existência de princípios maiores, capazes de proporcionar uma certa unidade ao sistema contratual. Tais preceitos passam a exercer o papel de vértices, servindo como orientadores de toda a temática negocial, atuando como pontos de convergência entre o antigo e o novo na teoria dos contratos. A seleção desses princípios leva em consideração as suas capacidades de servirem como instrumentos que incorporem os valores da sociedade pós-moderna, num constante diálogo com as premissas constitucionais do novo Estado Social, refletindo-se na orientação aos demais preceitos que formam a tessitura do sistema de contratos de Direito Privado. Dessa forma, com inspiração na metodologia proposta pelo Código Civil atual, nosso parâmetro normativo maior no plano da legislação privatista, tomam-se, para o desempenho desta tarefa, os princípios da função social e da boa-fé, os quais descortinam a matéria normativa dos contratos na legislação central do Direito Civil, numa espécie de preâmbulo de todo o Direito dos contratos, compondo o ‘núcleo rígido’ ou ‘eixo cardeal’ da teoria geral dos ____________ Na lição de Erik Jayme: “o ponto de encontro entre a cultura pós-moderna e o direito são os valores que tem em comum (...). O primeiro deles, já mencionado, é o pluralismo (Pluralismus). Não apenas o pluralismo de formas, mas também de estilos. E também de estilos de vida, é a idéia da autonomia em escolher seu próprio modo de vida. O mundo pós-moderno é caracterizado por um ‘direto à diferença’ (droit à la difference)” (In: “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFGRS, p. 60). Este mesmo autor aponta ainda: “dentre os valores básicos da pósmodernidade destaca-se o reconhecimento do pluralismo, da pluralidade de estilos de vida e a negação de uma pretensão universal à maneira própria de ser (die Absage an universelle Ansprüche eigener Anschauungen). Isto pode ser dito de forma mais radical: É a aceitação do não conciliável (Hinnahme des Unvereinbaren). Lyotard escreve: ‘Le vasoir postmoderne n’est pas seulement l’instrument des pouvoirs. Il raffine notre sensibilité aux différences et renforce notre capacité de supporter l’incommensurable’. Em português: O saber, a condição pósmoderna não é somente um instrumento de poder. Ele desenvolve, refina nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável, o inconciliável (das Unvereinbare zu ertragen). Na teoria do direito, encontramos tentativas de explicação para as grandes diferenças; como se a causa original (Entstehungsursachen) para determinadas regras fosse a ‘path dependence’ ou o jogo de coincidências no sentido da Teoria do Caos. O que chama a atenção, porém, que não só se reconhece esta interdependência, mas sim se a aceita. Uma explicação racional poderia ser o fato de que as diferenças fomentam a concorrência. Por trás de tudo, porém, está a idéia da pluralidade” (In: “Visões para uma Teoria Pós-moderna do Direito Comparado.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFRGS, p. 73). 452 168 contratos. Neste sentido, Waldírio Bulgarelli, mesmo antes da vigência da legislação civil atual, já afirmava que a boa-fé objetiva e a função social do contrato são como ‘salvaguardas da injunção do jogo do poder negocial”453. É da combinação desses dois princípios que irá surgir a nova teoria contratual, comprometida ao mesmo tempo com os valores sociais e a renovação da ética nas relações negociais, de forma a consolidar as aspirações constitucionais. Na dicção de Cláudia Lima Marques, a nova concepção do contrato é no sentido de potencializar o caráter social deste instrumento jurídico, para o qual não só o momento da manifestação de vontade (consenso) importa, mas onde também e, principalmente, os efeitos do contrato são levados em conta454. A função social dos contratos, embora não seja um tema integralmente novo na nossa temática contratual455, ganha um fôlego especial, proporcionado pela sua normatização no artigo 421 do Código Civil, determinando que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Esta postura normativa, somada ao próprio perfil da nova legislação, tornam inequívoco o reconhecimento da importância da função social como verdadeiro vetor do Direito contratual pós-moderno, consciente dos reflexos que as relações negociais geram no contexto social. Segundo Paulo Nalin, este princípio cardeal do Direito dos contratos se apresenta em dois níveis: intrínseco e extrínseco. O primeiro refere-se a princípios novos ou redescritos (igualdade material, eqüidade, entre outros), decorrentes da cláusula constitucional da solidariedade. O segundo está vinculado ao “fimcoletividade”, rompendo com a tradicional cultura da relatividade dos efeitos do contrato, preocupando-se com as suas repercussões no largo campo das relações sociais456. ____________ In: BULGARELLI, Waldirio. Questões contratuais no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 1993, p. 99. 454 In: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 210. 455 Como refere Judith Martins-Costa, “a atribuição de uma função social ao contrato não deveria, pois, já por isto, ser objeto de estranhamento. Até porque uma tal atribuição insere-se no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos, a qual, há muitas décadas, já não seria novidade em doutrina e mesmo no plano legislativo, bastando recordar a célebre fórmula que, uma vez posta na Constituição de Weimar, ingressou nas Constituições do século XX como tentativa de buscar um novo equilíbrio entre os interesses dos particulares e necessidades da coletividade (In: “O Direito Privado como um ‘sistema em construção’- as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro.” In: RT, v. 753, jul. 1998, p. 39). Na doutrina nacional, o tema da função social dos contratos já era encontrado em diversas obras de Orlando Gomes (In: Transformações gerais do direito das obrigações, e Novos temas de Direito Civil, Forense, Rio de Janeiro, 1983,), Marta Vinagre (In: “A outra face do contrato.” In: RDCI, p. 102), Giselda Hironaka (HIRONAKA, Giselda M. Fernandes Novaes. “A função social do contrato.” In: RDCI, n. 45, p. 141) e Mario Aguiar Moura ( “Função social do contrato.” In: RT, v. 630, p. 248). 456 In: NALIN, Paulo. “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, v. 12, p. 56. 453 169 De outro lado e até como forma de complementação da noção de função social, numa espécie de justaposição simbiótica, é encontrado o princípio da boa-fé objetiva457. Trata-se de princípio-valor, derivado do ativismo jurisprudencial que, nas últimas décadas, acabou por consolidar-se no nosso sistema contratual, ganhando um lugar cativo neste ambiente jurídico. Inicialmente inserido na legislação consumerista, passa agora a ser reconhecido expressamente na codificação civil, acompanhando todo o vínculo negocial, desde a fase antecedente à contratação até a fase que a sucede. Trata-se de revestimento da relação que a potencializa a comunicar-se com os valores da pós-modernidade jurídica, em especial respondendo pela concretização da ética nos negócios, critério de adequação tão caro ao Direito contratual atual e que deve se fazer presente em qualquer abordagem do tema dos contratos. Pode-se perceber, assim, o surgimento de uma terceira onda da evolução do pensamento sobre a teoria contratual, tributária da condição pós-moderna e imposta pelo saturamento do modelo capitalista tradicional, assolado pela globalização econômica. O esteio desse paradigma pós-moderno dos contratos é representado pelo papel de destaque desempenhado pela idéia socializante como desbravadora do novo rumo a ser percorrido nas relações negociais contemporâneas. A função social e o respeito aos ditames éticos da boa-fé nos contratos se impõe não apenas como um adereço que busca dar aparência humanista ao tratamento jurídico dispensado aos contratos e jogar no esquecimento a plasticidade da teoria contratual tradicional, mas como necessidade que se consolida como o grande antídoto que dará solução à anomia crônica na qual foi lançada a realidade contratual. O reconhecimento da ética e do valor social do contrato não é um luxo, mas um ato de coragem e ousadia na tarefa inesquivável de reavivar a teoria dos contratos, antes que ela pereça de forma definitiva. ____________ 457 Bruno Miragem ressalta que os princípios da função social dos contratos e da boa-fé são “conceitos reciprocamente complementares, expressão de paradigmas éticos para o direito (as janelas para o ético a que se refere Josef Esser ao estudar a cláusula de boa-fé), é impositivo que se observe a utilidade de cada uma destas cláusulas para conformação da autonomia contratual” (In: “Diretrizes interpretativas da função social do contrato.” In: RDC, v. 56, p. 30). O autor explica ainda que “este caráter de complementaridade entre a boa-fé e a função social, em face dos avanços decorrentes da aplicação da primeira no direito brasileiro, pode dar causa a que a função social não apenas determine a geração de efeitos independentes da boa-fé, mas que igualmente qualifique o sentido e o resultado da aplicação deste princípio. Esta função qualificadora exercida pela função social sobre a boa-fé não determina, a priori, a criação/origem de deveres distintos daqueles que a doutrina e jurisprudência já reconhecem (ainda que isso seja possível). Trata-se de uma distinção de intensidade quanto aos deveres jurídicos ou aos limites já estabelecidos pela boa-fé, como os deveres de colaboração, lealdade, e respeito às expectativas legítimas. A função social, assim, dado o seu caráter mais afeto aos interesses da comunidade (sociedade), coloca-se princípio qualificador da boa-fé (mais afeta aos interesses e expectativas das partes do contrato)” (p. 30-31). 170 Nesse contexto, os princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, como padrão de conduta, devem assumir uma posição privilegiada como verdadeiros princípios-vetores da teoria contratual moderna – ou pós-moderna458, não como meras normas programáticas, mas como a pedra angular que irá ao mesmo tempo dar validade aos demais preceitos da teoria contratual e servirá como mecanismo de dosagem das suas respectivas intensidades, de forma a garantir que o tema não será assolado e sufocado por visões singulares e de caráter padronizante, mas se manterá ostentando a sua vitalidade característica, que credencia o contrato como instrumento indispensável para o adequado funcionamento da engrenagem social459. Os postulados da função social dos contratos e da boa-fé devem atuar como amálgamas sistematizadores da principiologia das relações negociais, garantindo a unidade na diferença e evitando que a tópica inseparável da realidade negocial venha a se tornar elemento de difusão e desacerto dos postulados que dão sustento à teoria dos contratos. Como observa Humberto Theodoro Junior, enquanto o princípio da boa-fé tem atuação no âmbito interno da relação contratual, o postulado da função social atenta para os reflexos que os efeitos dos contratos projetam na sociedade460, numa adequada justaposição. Esses mega-princípios da teoria contratual atuarão ao lado dos demais preceitos que regem a vida jurídica contratual, ora como potencializador de seus conteúdos, ora como limitador de sua intensidade. A sua dimensão é a de ‘peso’ e ‘valor’, utilizando-se as expressões de Dworkin, exigindo, portanto, para a sua atuação concreta, uma operação de ____________ Nesse sentido, manifesta-se Francisco Amaral, ao afirmar que “a função social se afigura como princípio superior ordenador da disciplina da propriedade e do contrato, legitimando a intervenção legislativa do Estado e a aplicação de normas excepcionais, operando ainda como critério de interpretação das leis. A função social é, por tudo isso, um princípio geral de atuação jurídica, um verdadeiro ‘standard’ jurídico, uma diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programática que não colide nem ineficaciza os direitos subjetivos, apenas orienta o respectivo exercício na direção mais consentânea com o bem-comum e a justiça social” (In: “A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional”, p. 36. In: BFDC, p. 39). 459 Como ensina Paulo Nalin, “atualmente, os princípios gerais do direito são a fonte normativa de direta aplicação ao caso concreto, tornando desnecessária a sua estabilização no âmbito da lei para poderem ser aplicados pelo julgador. É saudável a estabilização do princípio no texto legal, mas, na sua falta, não se admite a timidez que prevaleceu ao longo do séc. XX. O princípio é fonte do Direito, dotado de diversas funções, dentre as quais a de servir como base normativa (fonte direta) de julgamento. Aprisionar os princípios nos limites da lacuna da lei (integração) e na interpretação do texto legal significa não avançar e, para assim proceder, seria necessário se conformar com o estado geral das coisas, o que é incompatível com a realidade social brasileira e contrária à missão do jurista” (In: “Introdução à problemática dos princípios gerais de direito e os contratos.” In: Contratos e sociedade. Curitiba: Juruá, 2004. v. 1, p. 23) 460 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 51. 458 171 articulação com outros preceitos da teoria contratual. Jungidos aos diversos princípios que dão vida à reprodução jurídica da realidade negocial e servindo como o seu fio condutor, os onipresentes postulados da função social e da boa-fé lhes proporcionarão a efetividade que há muito acalenta o ideário da doutrina contratual. Será o caminho mais breve da passagem da tese para a práxis, mas certamente não despido de intensa dose de dificuldades, tanto à ordem jurídica como também à cultural. Nesse sentido, a doutrina jurídica argentina, manifesta-se Rubén S. Stiglitz, apontando o caminho a ser seguido no trato desta questão: “quizá, al cabo, alcanzar la armonía entre las disciplinas requiera por parte del estado (del poder legislativo o judicial) una suficiente dosis de solidariedad, sensibilidad o – si se quiere – humanidad, para que el contrato sea lo que debe ser, un instrumento de convivencia y de paz social”461. ____________ 461 In: STIGLITZ, Rubén S. Autonomía de la voluntad y revisión del contrato, p. 04. 172 2 UM NOVO PARADIGMA NA TEORIA DOS CONTRATOS: A FUNÇÃO SOCIAL462 2.1 A BUSCA DE IDENTIFICAÇÃO DO SENTIDO DA EXPRESSÃO “FUNÇÃO SOCIAL” A identificação do exato sentido da expressão função social não é tarefa que possa ser desempenhada sem dificuldades. Trata-se de questão complexa que enseja a ponderação de diversos valores e o enfrentamento de distintos posicionamentos doutrinários e que, de longa data, vem acompanhando o pensamento jurídico, embora tenha vindo a se consolidar definitivamente no período que se seguiu ao final da primeira grande guerra mundial463. Abordando o assunto no nosso sistema, Moreno Talavera se manifesta dizendo que a função social: “significa a prevalência do interesse público sobre o privado, bem como a magnitude do proveito coletivo em detrimento do meramente individual, é fenômeno massivo que, modernamente, inspira todo o nosso ordenamento jurídico, rompendo o padrão retributivo contido no brocardo ‘suun cuique tribuere – dar a cada um o que é seu’ e tentando fundar as bases de uma justiça de natureza mais distributiva” e conclui: “a função ____________ Cabe frisar que o tema da função social do contrato será abordado sem qualquer comprometimento com a vertente teórica em voga no século XIX, conhecida como teoria da função econômico-social dos contratos, vinculada à análise da causa em correlação com a tipicidade e licitude contratual, de repercussão legislativa e doutrinária, em especial, na Itália. Sobre esta formulação teórica, veja-se GORLA, Gino. El Contrato. Traduzido por José Ferrandis Vilella. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1959, p. 243- 68. 463 Conforme informa Eberhard Eichenhofer, já em meados de 1889, em conferência proferida na Universidade de Viena, Otto Von Gierke referia: “il nostro diritto privato serà sociale, oppure non serà” e “abbiamo bisogno però anche di un ‘diritto privato’ nel quale, nonostante ogni garanzia dell’intangibile sfera dell’individuo viva ed operi l’idea della colletività. Detto chiariamente: nel nostro diritto privato deve cadere una goccia dell’olio socialista” (In: “L’utilizzazione del Diritto Privato per Scopi di Politica Sociale.” In: RDCiv, v. 43, n. 2, 1997, p. 193). Leon Duguit responde a indagação, sobre o que é função social, utilizando-se da seguinte explicação: “el hombre no tiene derechos, la colectividade tampoco los tiene. Hablar de derechos del individuo, de derechos de la socedad, decir que preciso conciliar los derechos del indivíduo con los de la colectividade, es hablar de cosas que no existen. Pero todo individuo tiene en la sociedad una cierta función que llenar, una cierta tarea que ejecutar. No puede dejar de cumplir esta función, de ejecutar esta tarea, porque de su abstención resultaría un desorden o cuando menos un perjuicio social. Por otra parte, todos los actos que realice contrarios a la función que le incumbe serán socialmente reprimidos” (In: Las transformaciones del derecho (público y privado). Buenos Aires: Heliasta, 1975, p. 180-1). 462 173 social do contrato exprime a necessária harmonização dos interesses privados dos contratantes com os interesses de toda a coletividade”464. Assim a função social está diretamente relacionada aos ideais do Estado Social, representando uma conseqüência, no plano privado, deste modelo estatal. Visto o tema no contexto das dimensões ou gerações de direitos, a idéia social é decorrência dos direitos de terceira dimensão, dentre os quais ganham especial relevo os direitos sociais e seus desdobramentos. Posteriormente, a matéria é reforçada pela próxima geração de direitos, os direitos de quarta dimensão, em especial pela implementação de técnicas de concretização do direito de solidariedade465. De forma bastante perspicaz, o jurista lusitano Cassalta Nabis aponta a idéia de solidariedade como sendo, sobretudo, ‘a expressão de um certo fracasso da estadualidade social, um fracasso que é resultado tanto dos limites naturais que a escassez de meios coloca à realização estatal dos direitos econômicos, sociais e culturais, como do seu retrocesso actual que o abrandamento do desenvolvimento econômico, de um lado, e o egoísmo pós-moderno, de outro, vieram suportar’466. Cabe frisar, entretanto, que a função social representa uma noção multisignificativa, pois se reflete não apenas no fator econômico, mas também em outros ambientes, como o social, cultural e ecológico, entre outros467. Junqueira de Azevedo, ao abordar o princípio da função social do contrato, mesmo anteriormente a sua positivação pela legislação civil atual, já destacava que ele “impõe, ao ____________ In: TALAVERA, Glauber Moreno. “A Função Social do Contrato no Novo Código Civil.” In: Revista do Centro de Estudos Judiciários, n. 19, p. 94, out.-dez. 2002. 465 Casalta Nabais, inspirado nos estudos de Javier de Lucas, diferencia a ‘solidariedade dos antigos’ e a ‘solidariedade dos modernos’. A primeira seria ainda atrelada aos valores da Revolução Francesa, concedida como uma virtude indispensável nas relações com os outros, própria dos grupos primários, cujo modelo referencial seria a entidade familiar. A ‘solidariedade dos modernos’ representa um princípio jurídico e político cuja realização passa pela comunidade estatal, política e pela sociedade civil. (In: “Algumas considerações sobre a solidariedade e a cidadania.” In: BFDUC, v. LXXV (1999), p. 149). 466 In: NABAIS, José Caslata. “Algumas considerações sobre a solidariedade e a cidadania.” In: BFDUC, p. 153. O autor explica que a solidariedade conjuga-se com o egoísmo pós-moderno: “de facto, enquanto, de um lado, se arranca o indivíduo e a sua família à esfera da proteção social do estado e se atira, através sobretudo da porta da desregulamentação, para a voragem do mercado, de outro lado, lança-se-lhe pela janela, o colchão da solidariedade cívica, por certo para amortecer o embate. Ou, noutra formulação, ao mesmo tempo que se expulsa o cidadão pela porta, abre-se a janela ao consumidor” (p. 170). 467 A advertência é de Sans dos Santos, ensinando que “não se pode interpretar no caso concreto a função social apenas com vista à economia (embora esta venha a englobar, no mais das vezes, variada gama de áreas do conhecimento), pois se o direito provém da sociedade não é possível esquecer-lhe tal amplitude. Alçar a economia ao único conteúdo possível da função social da propriedade é olvidar que (felizmente) nem tudo na sociedade depende dessa ciência. (In: A Função Social do Contrato. Florianópolis: OAB/SC, 2004, p. 142). 464 174 jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais”468. Nesta mesma linha de raciocínio, Cláudia Lima Marques, ao traçar as balizas do Código Civil atual, em especial no pertinente à matéria contratual, aponta: “o outro elemento novo, neste olhar mais pós-moderno dos contratos e do campo de aplicação do NCC/2002, é a função. Em outras palavras, como a relação pode ser civil, comercial e de consumo, não há como retirar da análise do aplicador da lei a visão funcional desta relação de contrato daí resultante. Como antes mencionamos, há uma diferença de paradigma no fato do Direito Privado atual concentrar-se não mais no ato (de comércio ou de consumo/destruição) e sim uma atividade, não mais naquele que declara (liberdade contratual), mas no que recebe a declaração (confiança despertada), não mais nas relações bilateriais, mas nas suas redes, sistemas e grupos de contratos. Há uma nova visão finalística e total (holística) da relação contratual complexa atual”469. A função social, portanto, está no coração do contrato, irrigando todas as suas fases e fazendo pulsar como um organismo vivo, real, sensível aos movimentos sociais. O contrato passa de uma função econômico-individual para uma função econômico-social, de forma que deve ser revisada a sua vinculação com a ordem macrossocial470. Nas felizes palavras de Érica Canuto, o contrato não existe por si, ele tem como razão de ser uma função, tanto quanto o direito que o contém471. ____________ In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Princípios do novo Direito Contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual.” In: RT, p. 116. Entretanto, este mesmo autor não poupa forças ao tecer críticas ao Código Civil atual, em especial por conter ‘noções vagas’, para manter a todo custo a concepção de unidade do direito privado, e indica como exemplo exatamente a previsão de função social dos contratos (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “O Direito pósmoderno e a Codificação.” In: RFD/USP, p. 10) e explica: “o novo paradigma exige vetores materiais, diretrizes, e não fórmulas vazias, próprias de uma axiologia formal, cujo ‘recheio’ é posto, arbitrariamente pela autoridade (juiz ou membro do Poder Executivo). Para a expressão ‘função social’, por sua vez, os próprios constituintes de 1988, no espírito da pós-modernidade, ainda que, como é obvio, alheios ao que acontece na teoria, deram vetores materiais para a sua caracterização (v. art. 182, 2º e art. 186 da Constituição)” (p. 8). 469 In: MARQUES, Claudia Lima. “Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do ‘diálogo das fontes’ no combate às cláusulas abusivas.” In: RDC, p. 89. 470 Conforme Ricardo Lorenzetti,“la relación interpartes no es indiferente para los demás, en un mundo interrelacionado; lo que hacen dos incide sobre los demás. Se trasladan permanentemente valoraciones, normas, y efectos económicos individuales el resto de la comunidad, generándose un nudo de tensión” (In: “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 9). 471 In: CANUTO, Érica Verícia de Oliveira. A fronteira da autonomia de vontade e a função social do contrato. Questões controvertidas no direito das obrigações e dos contratos. Método, 2005, p. 247. 468 175 2.1.1 A funcionalização dos institutos jurídicos de Direito Privado A idéia de função é ínsita ao Direito Moderno, trazendo a noção de finalidade ao sistema jurídico e orientando os seus institutos. Como ensina Luis Renato Ferreira da Silva: “ao supor-se que um determinado instituto jurídico esteja funcionalizado, atribui-se a ele uma determinada finalidade a ser cumprida, restando estabelecido pela ordem jurídica que há uma relação de dependência entre o reconhecimento jurídico do instituto e o cumprimento da função”472. A onda reformadora do pensamento jusprivatista traz em seu contexto o fenômeno da funcionalização de seus principais institutos, com especial destaque à propriedade e ao contrato, ou, como prefere Judith Martins-Costa, tem-se, na atualidade, uma tendência de funcionalização dos direitos subjetivos, que passam, então, a condicionarem-se a uma função respectiva, como abandono do mito jusracionalista que o eleva ao status de realidade ontológica, esfera jurídica de soberania do indivíduo473. Na expressão de Francisco Amaral, a referência à função social ou econômico-social de um princípio, instituto ou categoria jurídica significa o approccio do direito com as demais ciências sociais, a sociologia, a economia, a ciência política, a antropologia, numa reposta às solicitações que a sociedade contemporânea faz do jurista, considerado não mais como a ‘figura tradicional de cultor do Direito Privado, ancorado aos dogmas das tradicionais características civilistas’, mas atento à realidade do seu tempo, a exigir-lhe uma postura crítica perante a inércia do sistema tradicional em prol de uma ordem mais justa na sociedade474. ____________ In: SILVA. Luis Renato Ferreira. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 134. 473 In: MARTINS-COSTA, Judith. “O Direito Privado como um ‘sistema em construção’- as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro.” In: RT, p. 39. A autora explica: “portanto, o direito subjetivo de contratar e a forma de seu exercício também são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder tendo em vista certa finalidade ou a atribuição de um poder que se desdobra como dever, posto concebido para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, podendo atingir também a esfera dos interesses alheios” (p. 39). 474 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional”, p. 36. In: BFDC, p. 36-7. O autor aponta ainda que “a funcionalização dos institutos jurídicos significa, então, que o direito em particular e a sociedade em geral, começaram a interessar-se pela eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só no tocante ao controle ou disciplina social, mas também no que diz respeito à organização e direção da sociedade, através do exercício de funções distributivas promocionais ou inovadoras, abandonando-se a costumeira função repressiva, principalmente na relação do direito com a economia. Daí falar-se em função econômico-social dos institutos jurídicos inicialmente em matéria de propriedade e, depois, de contrato” (p. 37). 472 176 No plano da eficacização, a atribuição de função social aos institutos jurídicos de Direito Privado representa o estabelecimento de limites a serem observados no manejo do Direito tradicional, sempre sob o sol da utilidade social. O sistema jurídico somente serve enquanto propiciar o crescimento da sociedade, numa clara conscientização político-jurídica da necessidade de ruptura com a dogmática do Direito Privado liberal. Voltando aos ensinamentos de Francisco Amaral, emprestar ao Direito uma função social significa considerar que a sociedade se sobrepõe ao interesse individual, o que justifica a atuação do Estado no sentido de promover a igualdade material e acabar com as injustiças. Função social significa não individual, sendo critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades da ordem econômica 475. A funcionalização dos institutos jurídicos representa a abertura de um novo caminho para um ambiente ideológico e sistemático que realiza a concretização dos interesses sociais, mas sem desconsiderar ou eliminar o indivíduo476. Forma-se uma combinação necessária entre estes dois setores, que evoluem sob a inspiração dos valores constitucionais de justiça e solidariedade social. No dizer de Paulo Nalin e Carlos F. Castro, funcionalizar significa impor aos clássicos institutos jurídicos do liberalismo – propriedade privada, família e contrato – um novo ritmo ideológico constitucional477. Por outro lado, como destaca Francisco Amaral, “a funcionalização dos institutos jurídicos significa, então, que o Direito e a sociedade começam a interessar-se pela eficácia das normas, não só no tocante aos conflitos, mas também no que diz respeito à organização da sociedade, abandonando-se a função repressiva tradicionalmente atribuída ao Direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva, promocional e inovadora, principalmente na relação do Direito com a economia”478. ____________ In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional”, p. 36. In: BFDC, p. 38. 476 Como destaca Paulo Castro Rangel: “as sociedades democráticas (e, bem assim, uma comunidade internacional cada vez mais globalizada) fundam-se, todos o sabemos, no princípio da dignidade humana, também designado de ‘axioma antropológico’” (In: “Diversidade, Solidariedade e Segurança (notas ao redor de um novo programa constitucional).” In: ROA, p. 829). Nesse sentido, é emblemática a expressão lavrada por Baptista Machado: “valor absoluto da pessoa valor” (In: MACHADO, Baptista. Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade na Constituição de 76. Coimbra, 1982, p. 93). 477 In: NALIN, Paulo; CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. “Economia, mercado e dignidade do sujeito.” In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (org.); et al. Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 119. 478 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “O contrato e sua função institucional”, p. 109. In: Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, p. 113-4. 475 177 Essa função promocional, de influência Bobbiana, torna o legislador um criador de técnicas de encorajamento, estimulando a aproximação do exercício de institutos jurídicos aos valores socialmente relevantes, afastando o Direito da sua imagem tradicional como ordenamento protetivo-repressivo. Na lição de Norberto Bobbio, essa situação reflete a realidade das constituições pós-liberais, nos quais além da tutela da garantia, aparece também a da promoção479. 2.1.2 A funcionalização dos institutos jurídicos e a abertura do sistema A noção de sistema vem acompanhando o Direito há um longo período, mas somente ganhou relevância com o refinamento do pensamento jurídico, fruto do labor da pandectística germânica e da escola do positivismo que o seguiu. O pensamento positivista do século XIX caracterizou-se pela pré-disposição à criação de um sistema jurídico forte que conseguisse estancar a insegurança jurídica reinante até então, decorrente da fraqueza do Judiciário frente ao poder aparentemente inacabado da nobreza e do clero. Para alcançar a rigidez esperada, acresceu-se à força da lei a noção de completude do ordenamento positivado, sem lacunas ou flexibilidade, numa clara pretensão totalizante480. Esse modelo, que deixava uma margem mínima de criação para o intérprete e relegava ao aplicador da lei a papel secundário no fenômeno da concretização do Direito, ____________ In: BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione: nuovi studi di teoria del diritto. Milão: Edizione di Comunità, 1977, p. 25. Utilizando como referencial as disposições da Constituição Italiana, o autor exemplifica: “secondo la nostra costituzione la Repubblica ‘promouve le condizione che rendono effectivo’ il diritto al lavoro (art. 4, comma 1o.); ‘promuove le autonomie locali’ (art. 5); ‘promuove lo sviluppo della cultura’(art. 9, comma 1o.); ‘promuove e favorisce gli accordo e le organizzazioni internazzionali interesi ad affermare e regolare i diritti del lavoro’(art. 35, comma 3o.); ‘promuove e favorisce l’incremento’ della cooperazione (art. 45, comma 1o.). Inoltre ‘agevola con misure economiche e altre providenze la formazione della familia’ (art. 31, comma 1o.); ‘dispone provvedimenti a favore della zone montane” (art. 44, comma 2o.); ‘incoraggia e tutela il risparmio’ (art. 47, comma 2o.); ‘favorisce l’acesso del risparmo popolare ala proprietà ecc.’ (art. 47, comma 2o) . La contrapposizione tra il vechio e il nuovo modello costituzionale emerge dal raffronto tra l’art. 2, in: cui si dice che la ‘Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabili dell’uommo’e l’art. 3 dove si dice che ‘è compito della Repubblica rimuovere gli ostacoli ecc.’, cioè tra l’affermazione di un compito meramente protettivo che si attua per lo più mediante la tecnica delle misure negative e l’affermazione di un compito promozionale che si attua per lo più atraverso misure positive. Inostri studiosi di diritto contituzionale hanno ormai da tempo richiamato l’attenzione sulla contrapposizione tra misure autoritative e coercitive e misure di stimolo o d’incentivazione: questa contrapposizione coglie bene il passagio all’uso sempre frequente delle tecniche d’incoraggiamento” (p. 25). 480 Conforme Tércio Ferraz Junior: “o direito constitui uma totalidade, que se manifesta no sistema de conceitos e proposições jurídicas, em íntima conexão. Nesta totalidade que tende a fechar-se em sim mesma, as lacunas aparentes devem sofrer uma correção, no ato interpretativo, não pela ‘criação’ de nova lei especial, mas pela redução de um caso dado a lei superior na hierarquia lógica” (In: “Conceito de sistema no Direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica de Emil Lask.” In: RT, 1976). 479 178 criou o que, posteriormente, passou a ser reconhecido como sistema fechado. Havia o temor de que a absorção de conceitos extrajurídicos viesse a ter um caráter ‘desagregante’ do sistema. A apoteose final da idéia de sistema fechado veio com a ampla aceitação da necessidade de existência de grandes codificações. O saturamento do pensamento positivista clássico apresentou-se como uma ‘crônica anunciada’, pois o aceleramento das transformações sociais não tardou a tornar a malha normativa, se não obsoleta, pelo menos limitada. Assim o dogma da completude do ordenamento jurídico, e com ele o apogeu da noção de sistema fechado, perderam definitivamente o seu posto no pensamento jurídico481. Criaram-se microssistemas legislativos, houve a redescoberta do papel dos princípios jurídicos, acompanhado de uma inevitável ampliação da liberdade de atuação doutrinária e pretoriana, que assumiram uma nova forma de atuação no cenário da aplicação e criação do Direito. Essa nova realidade foi reconhecida como o marco da flexibilização do sistema jurídico, que, de fechado e hermético, ganha flexibilidade e passa a se integrar com as demais disciplinas sociais, não sendo mais possível ‘pôr a ordem jurídica entre parênteses’482. Nasce, assim, a noção de sistema jurídico aberto, e com ela a consolidação da importância do caráter instrumental das figuras que compõem a fiação do tecido jurídico. Na precisa afirmação de Claus-Wilhelm Canaris, abertura do sistema permite a modificabilidade dos valores fundamentais da ordem jurídica, de forma que este fenômeno deve mostrar-se associado à própria historicidade do Direito e de seus institutos483. Assim, enquanto o positivismo jurídico do Estado liberal apregoava a noção de sistema fechado, o modelo do estado social reflete no Direito a necessidade de abertura do sistema, dotado de considerável permeabilidade capaz de fazê-lo sensível às mudanças sociais. A funcionalização dos conceitos jurídicos foi a única forma encontrada para permitir uma transição saudável e ____________ Como observa Judith Martins-Costa: “no universo ‘craquelé’ da Pós-modernidade não tem sentido, nem função, o código total, totalizador e totalitário, aquele que, pela interligação sistemática de regras casuísticas, teve a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos válidos na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida civil em um mesmo e único corpus legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura” (In: “O Direito Privado como um ‘sistema em construção’- as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro.” In: RT, p. 26). 482 Expressão utilizada por AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. “Interpretação.” In: RA, n. 45, p. 17. 483 In: CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. Traduzido por A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 107. O autor explica: “a abertura do sistema ‘objetivo’ resulta da essência do objecto da jurisprudência, designadamente da essência do direito positivo como um fenômeno colocado no processo da história e, como tal, mutável” (p. 110). 481 179 segura entre esses dois modelos tão díspares, sem o abandono de toda a construção jurídica resultante de séculos de esforços propulsores da evolução do pensamento jurídico. Entretanto essa ‘abertura do sistema’ somente se mostra viável se houver o que Orlando de Carvalho designou de ‘projeto social global’, ou seja, a existência de um feixe de fins – econômicos, sociológicos, políticos, jurídicos – correspondendo cada um deles a uma necessidade sócio-histórica cuja integral satisfação equivaleria, em certo âmbito, ao triunfo da estratégia que a sociedade se atribuiu484. Nas palavras deste autor: “o projecto social recolhe, na sua informação, seguramente um legado histórico – nenhuma sociedade surge ‘ex nihilo’ e, por isso, nenhum projecto de sociedade, por mais inaugurante ou transformante -, introduz valores inéditos (porventura, até contravalores), repristina eventualmente valores perimidos ou revigora valores em crise e, sobretudo, inscreve-se num certo mundo, num certo grau de civilização e de consciência”485. Técnica de ímpar importância para proporcionar essa modificação no sistema jurídico é a elaboração proposital de espaços abertos, na forma de cláusulas gerais, ou seja, conceitos abertos que permitam a inserção de valores metajurídicos na concretização do Direito486. Na visão de Judith Martins-Costa, a Codificação Civil atual realizou uma clara opção, pela técnica legislativa que privilegia a utilização de cláusulas gerais, sob a perspectiva da construção e reconstrução do sistema jurídico de Direito Privado contemporâneo, tendo em ____________ In: CARVALHO, Orlando de. “Para um novo paradigma interpretativo: o projecto social global.” In: BFDUC, v. LXXIII, 1997, p. 10. O autor explica a correlação entre projeto social global e sistema: “falamos de projecto social global e de sistema de Direito. Não são evidentemente a mesma coisa, até no simples plano valorativo. Em outros planos, a sua diferença é flagrante: quer porque o segundo é um instrumento do primeiro, quer porque este é mais rico e heterogêneo que aquele (inclui valores de outra ordem e natureza), quer porque, sendo o primeiro síntese continuamente reflectora e recriadora dos ideais sócio-históricos emergentes, das suas lutas, das suas tensões, das suas recíprocas exaltações ou exclusões, é algo de vivo e ebuliente – diremos pois: é uma caldeira – e, por isso, algo de muito mais móvel e osmótico do que o segundo, tendencialmente ‘figé’, tendencialmente móvel e estanque, visto o seu fim de normatização de condutas. Por outro lado, ao primeiro tendem a repugnar as lacunas, as ausências de malha, as rupturas; é naturalmente autopoiético, reconstruindo permanentemente o tecido, sob pena de necrose ou entropia; enquanto ao segundo as lacunas são congênitas, como o são, já o vimos, os expedientes ou simulacros, os ‘pis-aller’, dificilmente podendo afirmar-se uma autocriação ou autopoiese verdadeira” (p. 11). 485 In: CARVALHO, Orlando de. “Para um novo paradigma interpretativo: o projecto social global.” In: BFDUC, p. 13. 486 Nesse sentido, a lição de Orlando de Carvalho: “o êxito do Direito é meramente probabilístico. Drama que se agrava com o facto de o Direito ser necessariamente lacunoso, e de ter de recorrer a expedientes que o tornam ainda menos inequívoco: cláusulas gerais, conceitos indeterminados, discricionariedades, individualizações – que, longe de serem patológicos, são fisiológicos ao seu processo de actuação. Já não falando dos conceitos de ser (Wesensbegriffe), que a norma não dá (nem tem que dar), mas que são freqüentemente integrantes do seu programa. Em face deste meio falível e corruptível, é claro que a instância de controle, o ‘Leitbild’ decisório, tem de decorrer da função que o Direito desempenha. E essa função decorre do projecto que a ‘societas’ realiza e cada momento, da sua ‘purposeful enterprise’, para falarmos como Fuller” (In: “Para um novo paradigma interpretativo: o projecto social global.” In: BFDUC, p. 12.) 484 180 vista as necessidades de inter-relações entre o Código Civil, a Constituição Federal e as leis que, regulando matérias especiais, compõem o que se convencionou chamar de microssistemas legislativos487. Ainda na linha dos ensinamentos desta autora, o Direito Civil atual busca a sua inspiração metodológica na Carta Constitucional, farta em modelos jurídicos abertos, de forma que a Codificação Civil necessita de janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos, mesmo os extrajurídicos, vinculando-a, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais. Tal papel é desempenhado, em especial, pelas cláusulas gerais, como meio legislativo hábil a permitir o ingresso, no ordenamento jurídico de codificado, standards, de princípios de valorativos, ainda inexpressos de legislativamente, máximas conduta, arquétipos exemplares comportamento, deveres de conduta não previstos legislativamente, direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico e de diretivas econômicas, sociais e ____________ 487 In: MARTINS-COSTA, Judith. “O Direito Privado como um ‘sistema em construção’- as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro.” In: RT, p. 25. Diz a autora: “a missão de apreender e disciplinar as tipologias sociais relevantes na vida civil, permitindo a captura, incessante, e progressiva, das novas realidades, foi o escopo da metodologia seguida pelos autores do Projeto de Código Civil. Assim expressa o relator do Projeto no Senado Federal, Senhor Josaphat Marinho já nas primeiras linhas do parecer pela aprovação (...) o Projeto de Código Civil em elaboração no caso de um para o nascer de outro século, deve traduzir-se em fórmulas genéricas e flexíveis, em condições de resistir ao embate de novas idéias (...), seguindo o pensamento manifestado pelo Presidente da Comissão Elaboradora do Projeto, Miguel Reale, já em 1975, na Exposição de Motivos apresentada pelo Ministro da Justiça. Afirmava, desde então o insigne professor a necessidade de a codificação do Direito Privado, nos dias atuais, apresentar-se não mais modulada, metodologicamente, em modelo rígido, revelando-se, antes, através de modelos abertos, expressos mediante uma ‘estrutura normativa concreta (...) destituída de qualquer apego a meros valores formais abstratos, o que seria alcançado se plasmadas, no Código, soluções que deixem margem ao juiz e à doutrina, com freqüentes apelos a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, eqüidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações etc.” (p. 37). 181 políticas488. Como afirma Humberto Theodoro Júnior, a atitude do Codificador Civil no sentido de adotar a técnica das cláusulas gerais representa um estímulo constante à convivência com os princípios e regras constitucionais, que durante a maior parte do século XX permaneceram à margem das indagações dos civilistas e operadores do Direito Civil489. Clóvis do Couto e Silva, mesmo antes da aprovação do Código Civil atual, já advogava a necessidade da existência de um ‘código central’ , dotado de cláusulas gerais490. A relatividade dos institutos jurídicos exige que eles sejam agregados à realidade social que o cerca, garantindo ao mesmo tempo o desempenho da função social e a abertura ____________ In: MARTINS-COSTA, Judith. “O Direito Privado como um ‘sistema em construção’- as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro.” In: RT, p. 26. Segundo a autora, “esses novos tipos de normas buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídicos indeterminados’. Por vezes – e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas -, o seu enunciado, em vez de traçar punctualmente a hipótese e as suas conseqüências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao ‘corpus’ codificado, do que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios, diretrizes e máximas de conduta, e constante formulação de novas normas” e ainda “dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, respostas a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou para outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão dessas características, esta técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial e não legal” (p. 28-9, respectivamente). Este entendimento é acompanhado por Paulo Nalin: “como o sistema, agora se abre em cláusulas gerais, que reclamam outros saberes, os quais nem sempre pertencem ao próprio sistema jurídico, será fundamental compreender o direito numa ordem sistemática, nucleado, sempre, na Carta Constitucional, pois somente ele contempla os valores sociais que preencherão a moldura da regra do conceito aberto ou em branco. Em outros termos, a cláusula geral não se satisfaz com o conceito jurídico em si, devendo ser preenchida com fatos e valores de julgamento. Os valores, por sua vez, estão precipuamente anotados na Constituição da República, sendo imprescindível compreender a nova etapa do direito civil” (In: “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 52). 489 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 124-5. O autor complementa, explicando: “a leitura do Código de 2002 não poderá ser feita por meio da ótica pandectística que serviu de sustentação ao Código de 1916. Não haverá, contudo, de servir de palco de uma destruição de valores e conquistas da civilização que o gerou. E jamais se admitirá que seus operadores se afastem dos princípios maiores que a ordem constitucional sobrepõe ao ordenamento do direito privado. Nenhum princípio invocado pelo Codificador pode ser visto como absoluto e de aplicação desvinculada das garantias fundamentais traçadas pela Carta Magna. É nelas, acima de tudo, que os aplicadores deverão buscar os limites dentro dos quais legitimamente haverão de usar as cláusulas gerais e os princípios éticos preconizados pelo novo Código Civil” (p. 136-7). 490 In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. “O Direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro.” In: RA, Porto Alegre, v. 40, 1987, p. 148-9. 488 182 do sistema491. Na lição de Tereza Negreiros, sustentar-se a abertura do sistema jurídico implica admitir mudanças que venham de fora para dentro, provindas de fontes não imediatamente legislativas, acatando a noção de que o Direito, como dado cultural, não se traduz num sistema de ‘auto-referência absoluta’492. A correlação entre a funcionalização dos institutos jurídicos e a abertura do sistema é inevitável. Somente a atuação instrumental permite a flexibilização do ordenamento. A própria eficácia das cláusulas gerais e dos princípios como fatores de mobilidade do sistema apenas pode ser plenamente atingida se os institutos jurídicos mostrarem-se maleáveis, num claro comprometimento com a sua função social. Na síntese de Paulo Nalin, tratar de funcionalização do contrato, assim como da funcionalização de qualquer instituto jurídico, significa, em especial, reconhecer a abertura do Direito Civil à fontes jurídicas que se localizam para além da base do seu próprio código e, não raro, do próprio Direito, pois a não-compreensão de tal realidade implica ver o Direito com os olhos voltados para o século XIX493. 2.2 UM OLHAR CONSTITUCIONAL SOBRE O TEMA DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO A Constituição Federal de 1988 marcou, de forma inequívoca, o início de uma nova etapa no pensamento jurídico brasileiro. Foi instituído um verdadeiro constitucionalismo social, que lançou suas âncoras nos diversos setores do Direito, fundado no compromisso com a manutenção de uma sociedade democrática que tenha como valor-centro a dignidade da pessoa humana, sem desconsiderar a importância da tutela dos valores sociais. Este é o perfil das Cartas Constitucionais atuais, que, para além de confirmar os paradigmas revolucionários legados pelo pensamento francês: ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, põem força e destaque em três outros postulados, numa nova trilogia democráticos, representados pela ‘diversidade, ____________ Orlando de Carvalho observa que: “os próprios espaços ‘abertos’ que a ordem jurídica contém – bons costumes, boa-fé, interesse público, etc. – não são omissões da decisão social, buracos normativos à merce dos operadores ou do seu pessoal critério, interno ou externo (no sentido de Dworkin: o de um ‘fully commited participant’ ou o de um simples ‘external observer’). Até aí se excluem as ‘fugas de régie’: a função do intérprete é apenas a de buscar, de uma massa mais ou menos caótica de informação disponível, a que se mostre concretamente idônea do prisma do projecto socila global. Sem o selo deste último, toda a impositividade é falaciosa” (In: “Para um novo paradigma interpretativo: o projecto social global.” In: BFDUC, p. 13). 492 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 162-3. 493 In: NALIN, Paulo. “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 52. 491 183 solidariedade e segurança’494. Cria-se, assim, uma nova fórmula constitucional, precursora da absorção de valores pós-modernos e ainda mais comprometida com a tarefa promocional do Estado-Direito. Este é o programa para o grande desafio constitucional do novo século que se inicia 495. O constitucionalismo moderno deixa transparecer uma cláusula implícita segundo a qual todo o ordenamento deverá estar em conformidade com os valores constitucionais, criando uma espécie de subordinação do sistema infraconstitucional à estrutura axiológica estabelecida pela Constituição496. É o que Konrad Heese denominou de força normativa da Constituição497, determinando assim um novo perfil para a relação entre o Direito Público e o Direito Privado. Como pontua Judith Martins-Costa, nessa concepção a Constituição passa a ser perspectivada como detentora de princípios objetivos e ativos, funcionado como medida normativa das regras e dos atos jurídicos nos momentos de sua gênese, desenvolvimento, interpretação e aplicação, de forma que as normas de hierarquia infraconstitucional só podem ser lidas em função dos princípios constitucionais que com ele se relacionam498. No campo das relações privadas, nada passou despercebido por essa onda renovadora dos valores sociojurídicos. Na seara do Direito de Família, as alterações trazidas pelo texto constitucional foram de extraordinário espírito renovador, ensejando o nascimento de um novo perfil a essas relações. No Direito dominial a questão não se mostrou diversa. Várias foram as alterações que privilegiaram a função social da propriedade, estabelecendo novos paradigmas para o exercício do domínio, em especial quanto à propriedade imobiliária. No Direito dos negócios a influência do texto constitucional também foi de suma importância, embora os seus reflexos nessa área não tenham sido percebidos de forma imediata. Aos poucos, o tema foi ganhando relevância, pelo trabalho incansável de nossos doutrinadores e pela interpretação dispensada pelos Tribunais ao enfrentar as questões ____________ Conforme DENNINGER, Erhard. Diritti del’Uomo e Legge Fondamentale. Turim, 1998, p. 19-20. In: RANGEL, Paulo Castro. “Diversidade, Solidariedade e Segurança (notas ao redor de um novo programa constitucional).” In: ROA, p. 842. 496 Natalino Irti explica que “l’ordenamento giuridico costituisce un’unità sistematica; tale unità è sorreta dalla legalità costituzionale, cioè dall’insieme dei ‘valori’ accolti nella Carta repubblicana; questi valori orientano l’interpretazione delle legge, il lavoro costruttivo della dottrina, la decisione dei casi concreti. Infine, i valori costituzionali offrono la ‘giustificazione’ delle norme ordinarie” (In: Scuole e figure del diritto civile. Milão, Giuffré, p. 436). 497 In: HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Traduzido por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. 498 In: MARTINS-COSTA, Judith. “Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro.” In: RDC, p. 137. 495 494 184 contratuais. A nova ordem estabelecida pela Constituição Federal de 1988 imprimiu o respeito a valores que se refletem diretamente na condição do ‘sujeito’ nas relações contratuais, que, de ‘contratante civil - privado’, passa a ‘contratante constitucional’ destinatários dos mais caros axiomas que serviram de inspiração ao constitucionalismo social. O contratoindividualista abre espaço para a inserção do contrato-social, marcado pelo revestimento da moldura constitucional499. Como destaca Paulo Nalin: “contendo a Carta uma verdadeira ‘força geradora’ do Direito Privado, destinada tanto ao legislador como ao juiz e para os demais órgãos do Estado. O Código Civil não pode mais ser visto como uma categoria superior de ‘Carta’ constitucional, como acontecia nos diplomas oitocentistas, sempre fundados sobre o instituto da propriedade e dos bens pertencentes aos particulares. Atualmente, aquele antigo desenho não mais prevalece, perante uma Constituição normativa que se põe, no centro de seu ordenamento, a pessoa humana, consagrando a ela um valor preeminente. É com base nesta relocação das figuras legais que se busca reconstituir a idéia de contrato, sempre centrada na figura da pessoa humana (sujeito contratante) e na sua proteção constitucional”500 . Agora, a legislação civil atual optou por consagrar expressamente o princípio da função social dos contratos, estabelecendo, em eu artigo 421, que: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, afastando-se assim das premissas individualistas que marcaram o Código de Beviláqua501. Trata-se, portanto, de uma clara influência do texto constitucional, como refere Miguel Reale: “um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição de 1988, a qual, nos incisos XXII e XXIII do art. 5º, salvaguarda o direito de propriedade que ‘atenderá a sua função social’. ____________ Outro não é o entendimento apresentado por Paulo Nalin, mesmo antes do advento do Código Civil atual, anotando que o novo conceito de contrato “decorre da constatação histórico-política decadente do conceito voluntarista, total e absoluto, inserido no ordenamento privado nacional e da leitura do contrato, `a luz da constituição”, e conclui: “a função social do contrato é presença indispensável em trabalho que verse sobre o tema, após a Constituição Federal de 1988” (In: Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 27-8). 500 In: NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 46-7. Mais adiante, o autor sintetiza seu pensamento, dizendo: “a funcionalização do contrato, penso, seja um fenômeno que nasce no Brasil, juntamente com a Carta de 1988, primeira a enaltecer a dignidade do homem como princípio fundamental da República” (p. 233). 501 Paulo Nalin lembra que: “a cláusula da solidariedade contratual, singular e coletiva, apresenta-se como a grande mola propulsora ideológica da CLT, desde a década de quarenta, efetivando a dignidade do contratante trabalhador. Tão forte a intervenção do Estado na legislação trabalhista que, por vezes, esquece-se da sua origem civil e da sua natureza contratual” (In: Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 76). 499 185 Ora, a realização da função social da propriedade somente se dará se igual for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade”502. Humberto Theodoro Júnior, entretanto, adverte que foi mais fácil detectar e definir a já antiga função social da propriedade do que a moderna função social do contrato, pois o efeito do exercício de um Direito real sobre o meio social se mostra mais intuitivo que transplantar o efeito de um negócio puramente pessoal para o campo dos interesses sociais503. Nesta mesma linha, Tereza Negreiros afirma que, de modo semelhante ao que ocorre com a propriedade, também o contrato, uma vez funcionalizado, se transforma em um ‘instrumento de realização do projeto constitucional’504. Assim o contrato passa a canalizar os valores constitucionais, transmitindo-os aos particulares nas suas relações negociais, de forma que se reconheça, na funcionalização das situações jurídicas, uma concretização da ordem constitucional. Trata-se da efetivação, agora em texto infraconstitucional, da vocação solidarista que delineia os valores constitucionais505. A Carta Magna consagra o valor da solidariedade em diversas passagens, desde o seu preâmbulo, ao destacar o objetivo de assegurar o exercício ____________ 502 In: REALE, Miguel. Função Social do Contrato. Disponível em: . O autor ainda explica “o que o imperativo da ‘função social do contrato’ estatui é que este não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária a terceiros, uma vez que, nos termos do art. 187, ‘também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Nesse mesmo sentido, é a lição de Tereza Wambier: “a função social dos contratos significa que estes devem desempenhar ‘papel na sociedade’ representando um meio de negociação sadia de seus interesses e não uma forma de opressão. Percebe-se no artigo 421 do Código Civil nítida influência do artigo 5º, XXIII, da Constituição Federal. Assim como a propriedade perdeu, pelo menos em parte, seu caráter de direito absoluto, já que ‘a propriedade obriga’ (art. 150 da Constituição de Weimar, o mesmo ocorreu com a liberdade de contratar (fundamentalmente, de estabelecer o conteúdo dos contratos). Para trás destas idéias está a vontade de encontrar um equilíbrio entre os interesses dos particulares e os da coletividade” (In: WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. “Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – A função social do contrato.” In: RT, v. 831, jan. 2005, p. 64). 503 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 81. 504 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 208. 505 Na lição de Paulo Nalin: “são amplas, e logo imprecisas, as bases conceituais da função social do contrato, ora amarradas à quebra do individualismo, ora à cláusula geral da solidariedade, tendo em vista a igualdade substancial, a tutela da confiança dos interesses envolvidos e do equilíbrio das parcelas do contrato. A falta de unidade científica, na definição e na caracterização, é natural para o estádio de desenvolvimento do tema, ao menos no Brasil, impulsionado que foi, recentemente, pela Carta de 1988, com a expressa funcionalização da propriedade. Mas os valores constitucionais e os princípios infraconstitucionais privados, dos quais destaco a solidariedade (valos) e a boa-fé (princípio), o segundo fundado no primeiro, se apresentam como âncora teórica segura para se descrever a função social do contrato” (In: “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 55-6). 186 dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, passando por seus princípios fundamentais, nos quais destaca como fundamento da República os valores sociais da livre iniciativa, chegando aos objetivos fundamentais da República, com referência à construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Cabe destacar ainda a opção constitucional de vincular os princípios gerais da ordem econômica à finalidade de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Em interessante abordagem sobre a função social da propriedade, Gustavo Tepedino realiza construção argumentativa que acaba por localizar a função social como sendo noção de ‘conteúdo pré-determinado’, pois já vem orientada pelos princípios fundamentais da República, fixados no artigo 1º da Carta Constitucional, em especial a dignidade da pessoa humana 506 , que entra em consonância com os objetivos fundamentais da República – erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais -, pontuando: “é a própria Constituição, nos princípios e objetivos fundamentais da República, a determinar que a função social seja conceito vinculado à busca da dignidade humana e à redistribuição de rendas, através da igualdade substancial de todos507. 2.3 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO SISTEMA DO CÓDIGO CIVIL A função social pode ser considerada como a alma do Código Civil, pois, nas palavras do próprio Miguel Reale, foi o ‘sentido social’ que presidiu os trabalhos de elaboração de seu projeto508. Assim o legislador civil, ao reconhecer expressamente a ____________ Neves Soto frisa que, “a função social do contrato deverá atender ao que determina a norma constitucional, direcionando-se sempre, em sua aplicação, para o atendimento da dignidade da pessoa humana como valor maior e objetivo fundamental da República brasileira (art. 1º, III, da CF/88)”. (In: SOTO, Paulo Neves. “Novos perfis do Direito Contratual.” In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (org.); et al. Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 261). 507 In: TEPEDINO, Gustavo. “A nova Propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição).” In: RF, p. 75. Cabe trazer à colação a seguinte passagem da exposição deste autor:“A Constituição da República criou princípios fundamentais, em sua parte introdutória, os quais não teriam razão de existir não fossem para instrumentalizar todo o tecido constitucional e as regras consideradas pelo constituinte como fundamentais, a formar uma espécie de parâmetro interpretativo para os demais preceitos, e pressupostos para a inteligência de todos os institutos previstos pelo Texto e dispostos no mesmo grau hierárquico” (p. 75). 508 In: REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil, p. 2. Este autor afirma: “o ‘sentido social’ é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor” e “se não houve a vitória, houve o triunfo da ‘socialidade’, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana” (p. 7). 506 187 importância da vinculação do contrato a uma função social, além de propiciar uma maior flexibilidade ao sistema, dotando-lhe da flexibilidade necessária para a sua plena eficácia social, colocou fim à ‘era do isolamento’ dos contratos509. O novo codex civilista aceita a influência de outros subsistemas sociais na temática contratual, numa indispensável interação, posicionando o contrato num panorama mais amplo que aquele proporcionado pela simples aceitação de que apenas o consentimento circundava a vida do pacto510. Nesse sentido, manifesta-se Gunther Teubner, frisando que: “a relação contratual aparece então definida como um conjunto de acções cujo ordenamento interno não depende unicamente do consenso mas também, simultaneamente, das exigências próprias das diferentes esferas sociais”511. Desse modo, a nova visão de contrato leva para além da esfera individual, adquirindo uma faceta pública, de forma que, mais do que comprometido com a realização plena e absoluta da autonomia privada, mantém-se vinculado à concretização de valores sociais relevantes. Nesse sentido, é a observação de Paulo Nalin:“a percepção da tutela do interesse social do contrato interprivado parece ter sido a força motriz que inspirou os redatores do novo Código Civil, na parte referente às obrigações”512. ____________ Ricardo Lorenzetti, ao tratar do “principio de socialidad” dos contratos, explica: “a la sociedad le interessa que haya buenos contratantes, que obren bien, socialmente, y ello configura un nuevo espiritu contractual que puede denominarse ‘principio de socialidad’. En base a ellos se inponen obligaciones a los contratantes. Veremos algunas de estas: - Se les exige que desarrollen una ordinaria diligencia, en el cumplimiento de la prestación debida, y esos comportamientos se juzgan en base a un standart: el bonus pater familia, en el buen profesional, Ellos no tienen su fuente en el contrato. – El deber de comportarse de buena fe da fundamento a obligaciones precontractuales de información y no apartamiento abusivo. – Paulatinamente se va exigiendo al contratante moderno que cuide la ecologia, lo que causa obligaciones de protección a terceros. – El ejercicio regular del derecho de domínio también produce obligaciones hacia terceros” (In: “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 16). 510 Friedrich Kessler, citado por Souza Ribeiro, observa que “em amplas esferas de nossa vida econômica e social o contrato já não é assunto privado, mas uma ‘instituição social, que não diz respeito apenas aos interesses de ambas as partes. Desse modo, uma análise do actual direito dos contratos exclusivamente, com base no conceito de manifestação de vontade e do acordo não seria ajustada ao contrato como instituição social” (In: O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 19). 511 In: TEUBNER, Gunther, O Direito Como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 234. O autor acrescenta: “esta concepção de contrato como sistema social aparece nos recentes trabalhos de J. Schmidt. Recusando um conceito assente num paradigma empírico-individualista cujos elementos seriam o credor e o devedor, aquele autor considera que ‘os elementos sistémicos não são as pessoas empíricas mas antes interações sociais, ou seja, ordens de acção racionalmente ordenadas’. Isto vem pôr a nu a relação do sistema com o meio envolvente, mostrando como evoluem as estruturas próprias do contrato em face da economia, da política ou do direito” ( p. 234-5). 512 In: NALIN, Paulo. “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 57. 509 188 A função social do contrato, tal como prevista no contexto da legislação civil513, é acompanhada dos demais princípios que formam a tessitura da teoria contratual criando uma nova visão do instituto514, de forma que, como ressalta Tereza Negreiros, a função social, muito além de ser mais um princípio com finalidades delimitativas, é elemento de qualificação do contrato515. Esse argumento é reforçado pelos ensinamentos de Judith Martins-Costa, no sentido de que a função social é elemento integrante do próprio conceito de contrato516. ____________ Cabe trazer à colação perspicaz observação formulada por Tereza Arruda Alvim Wambier, no sentido de que, “embora não existisse a regra expressa, parece-nos poder-se sustentar que se está diante de princípio que, de um certo modo, já existia no sistema, cuja formulação agora explicita no art. 421 do Código Civil não faz, senão, evidenciar que, nos dias de hoje, este princípio ganhou ainda mais relevância” (In: WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. “Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – A função social do contrato.” In: RT, p. 64). 514 Mônica Bierwagen afirma que o contrato deve observar tanto a ótica individual-coletiva, uma vez que a garantia de igualdade de condições dos contratantes ao permitir a justa circulação de riquezas resulta num bemestar coletivo, quanto da ótica coletivo-individual, em que a proteção do grupo social é, em última instância, o asseguramento da igualdade e da liberdade individuais (In: BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras dos contratos no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 40). 515 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 208. Segundo a autora, “a noção de função social convida o intérprete a deixar de lado uma leitura do direito civil sob a ótica voluntarista, e a buscar em valores sociais que o ordenamento institui como fundamento de todos os ramos do direito - sejam eles predominantemente públicos ou privados – novos horizontes de aplicação dos tradicionais princípios norteadores do direito dos contratos. Assim, muito além da liberdade individual, passam a integrar a axiologia contratual a justiça, a igualdade, a solidariedade, e demais valores que, sob a ótica civilconstitucional são essenciais à tutela da dignidade humana no âmbito da ordem econômica” (p. 208). 516 In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999, p. 354. 513 189 Assim o legislador civil optou por inserir expressamente o princípio da função social no texto da codificação civil, em seu artigo 421, dispondo que a liberdade de contratar517 será exercida em razão e nos limites da função social do contrato518, no que foi aplaudido pela doutrina jurídica pátria. Entretanto, na época de elaboração do anteprojeto do Código Civil, recebeu críticas sob a alegação de fundar-se num conceito impreciso e capaz de causar ____________ Cabe apontar, aqui, que a dicção escolhida pelo legislador “liberdade de contratar” não parece ter sido a mais adequada, pois mostra-se mais adequada a expressão “liberdade contratual”, uma vez que aquela indica a liberdade em firmar ou não o contrato, enquanto esta expressa a idéia de liberdade de determinar o conteúdo do contrato ou, ainda, de criar contratos atípicos. O projeto de lei de lavra do deputado Ricardo Fiuza, por sugestão de Antonio Junqueira de Azevedo e Álvaro Villaça de Azevedo, propõe a alteração do texto do artigo 421 do Código Civil, que passaria a ter a seguinte redação: “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Quanto à proposta de supressão da expressão “em razão”, constante do texto original, a doutrina é tormentosa, aparentemente prevalecendo o entendimento no sentido favorável a sua extirpação do texto legislativo. No entanto, Paulo Nalin é enfático ao defender a manutenção da expressão em questão no texto do artigo 421 do Código Civil: “melhor seria manter a liberdade contratual em razão e nos limites da função social, conquanto esta se apresente, de fato, como a essência da nova contratualidade. Ora, até a Constituição de 1988, o núcleo do contrato sempre foi a vontade contratual e a sua causa, a circulação atributiva proprietária. Após a atual Carta Constitucional, o núcleo do contrato reside na solidariedade e a sua causa codivide espaço entre os interesses patrimoniais inerentes ao contrato, enquanto instrumento de circulação de riquezas, e os interesses sociais o raciocínio decorrente da nova redação proposta, leva à conclusão de que o voluntarismo e o patrimonialismo ainda se posicionam como núcleo e causa do contrato, sendo meramente periféricos (limite) o interesse social coletivo e a solidariedade entre os contratantes. A reforma proposta do novo Código Civil não se harmoniza com os valores constitucionais antes acentuados e, muito menos, com o espírito do próprio código, motivo pelo qual dele se destaca, sendo melhor preservar a redação original” (In: “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 57). Bruno Miragem, entretanto, em perspicaz observação, pondera que: “outra crítica bastante difundida é o modo como se utilizou, na redação do artigo 421 do Código, a referência a que a liberdade de contratar será exercida ‘em razão’ da função social do contrato. Trata-se, evidentemente, do ponto de vista semântico, de uma imprecisão, assim como do ponto de vista jurídico, de uma contradição insuperável com a noção de liberdade, interpretar-se a disposição como se predispondo um único modo de exercício da liberdade de contratar. Esta hipótese não oferece, entretanto, a melhor interpretação, porquanto não se pode admitir a idéia de que o exercício de uma liberdade seja vinculado a um sentido singular de função social, que por sua natureza é termo sujeito a preenchimento de seu significado pelo aplicador do direito. Daí porque nos parece que a melhor interpretação do texto – autorizada do ponto de vista semântico – é de que a expressão ‘em razão’, seja entendida como determinação para que se considere, sempre, a função social do contrato. Ou seja, que se interprete devidamente como ‘consideração à função social do contrato” (In: “Diretrizes interpretativas da função social do contrato.” In: RDC, p. 28). 518 Quando da apresentação do Anteprojeto de Código Civil, Miguel Reale assim justificou a inserção de regra específica em relação ao princípio da função social: “Firme consciência da realidade econômica a revisão das regras gerais sobre a formação dos contratos e a garantia de sua execução eqüitativa, bem como as regras gerais sobre resolução dos negócios jurídicos em virtude de onerosidade excessiva, às quais vários dispositivos se reportam, dando a medida do propósito de conferir aos contratantes estrutura e finalidades sociais. É um dos tantos exemplos de atendimento da ‘socialidade’ do direito (...) Neste contexto, bastará, por conseguinte, lembrar alguns outros pontos fundamentais, a saber: ...(c) tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais das boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica”. 517 190 insegurança aos negócios519, o que ainda é encontrado, embora de maneira escassa, em autores da atualidade520. Criou-se, assim, um tencionamento entre a liberdade de contratar, outrora elevada a condição de preceito cardeal da teoria contratual e valores sociais do contrato. Dessa forma, a liberdade contratual recebe uma ótica funcionalizada, de tal forma que os contratantes são compelidos a dar ao contrato uma finalidade socialmente relevante, ____________ Giselda Hironaka informa que, quando da discussão do anteprojeto do Código Civil atual no Congresso Nacional, foi oferecida uma emenda de alteração do texto sobre a função social do contrato, proposta por Tancredo Neves, nos seguintes termos: “É uma disposição da maior inconveniência, porque significa que, fora dos limites da função social do contrato, não pode ser exercida a liberdade de contratar. Acontece que o conteúdo de ‘função social do contrato’ é impreciso. A conseqüência será que, subordinada a esses requisitos, a liberdade de contratar, que é fundamental dentro do regime da livre iniciativa, fica fundamente atingida. Melhor será dizer: “Ao interpretar o contrato e disciplinar a sua execução, o juiz atenderá a sua função social’. Será um meio mais razoável: nem despreza a função social do contrato, nem subordina a liberdade de contratar a um conceito que venha a instilar insegurança aos negócios” (In: “A função social do contrato.” In: RDCI, p.14950). No mesmo sentido, mas já na vigência do Código Civil atual, é o entendimento manifestado por Daisy Gogliano: “cada qual ao seu modo dirá que está a realizar uma ‘função social’. O capitalista, o empresário, etc., naquele ‘slogan’, como ‘gerador de empregos’. O consumidor, o cidadão comum, o hipossuficiente, igualmente, argüirá em seu benefício a função social, a reclamar o abatimento do preço em face da onerosidade excessiva. Não se sabe o que é função social. Depende do tempo. Justamente é o que conduz a norma contida no artigo 421 do Código Civil, no exercício da liberdade contratual. Cada sujeito buscará , dentro de uma possível compreensão subjetiva, a sua função social. O que é social para um não será para outro, dada a relatividade do contrato” (In: GOGLIANO, Daisy. A função social do contrato (causa ou motivo). Rio de Janeiro, v. 334, ago. 2005, p. 38-9). Em sentido contrário, manifesta-se Paulo Nalin, entendendo que o contexto atual do Direito proporciona que se busque uma nova noção de segurança: “resta patente, Nesse sentido,, que, se o conceito de justiça contratual transitou do voluntarismo contratual para a solidariedade social, o conteúdo da segurança jurídica também se modificou. E qual seria ele? Para cumprir o valor constitucional da solidariedade, isto é, para se alcançar o contrato funcionalizado, são inadmissíveis efeitos contratuais que aniquilem uma das partes do contrato, que vulnerem um setor da cadeia de consumo, que distanciem as posições econômicas envolvidas. Enfim, a segurança jurídica contratual se posiciona, atualmente, no equilíbrio inicial, se o contrato é de execução instantânea, ou na sua constância, quando se trata de contrato de execução sucessiva ou diferida. Na prática, mostra-se imperioso não permitir o aniquilamento de nenhum dos contratantes e de fazer cumprir, com vigor, os valores constitucionais da solidariedade” (In: “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 60). 520 Nesse sentido, é a manifestação de Ives Gandra Martins: “não vejo na ‘inovação’ inovação. Apenas explicitação de algo que deflui do próprio texto constitucional e que não pode ser examinado sem os temperos próprios da hermenêutica jurídica, para que a segurança e a certeza do direito não sejam abaladas. A renovação é, portanto, a meu ver, apenas explicitação de aspecto que sempre, no direito comtemporâneo, norteou as fórmulas contratuais que a ‘clausula rebus sic stanbtibus’ de certa forma, já introduzida, pela imprevisibilidade de fatos não examinados quando das pactuações. A inovação, portanto, data, pelo menos, do Código de Hamurabi, em que função social do contrato estava valorizada no cânone 48, coluna XIV, assim redigido: ‘ XIV – Par. 48. Si un señor tiene una deuda y (si) el dios Adad há inundado su campo y há destrozado la cosecha, o bien (si) a causa de le sequía, el campo no produce grano, en ese año no entregará grano a su acreedor; cancelará su tablilla (de contrato) y no pagará el interés de ese año’. Nada a acrescentar sobre a função social prevista pelo Codificador sumeriano, há quase 4.000 anos” (In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. A função social do contrato. Aspectos controvertidos do novo Código Civil: Escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves, São Paulo: RT, p. 341. 519 191 consentânea com o intuito coletivo521, atribuindo-se um poder-dever ao sujeito, ou seja, um poder que só existe na medida em que se cumpre o fim para o qual foi constituído522. Nesse contexto, nota-se a opção legislativa pela inserção do ditame da função social dos contratos por meio da técnica da cláusula geral, dotada de uma vagueza proposital que permitirá uma atuação construtiva por parte dos operadores do Direito, pois, como lembra Luis Renato Ferreira da Silva, o “código não seguiu o mesmo caminho didático, informando qual seria a função social e qual ou quais os mecanismos para assegurá-la. Isto restou ao intérprete fazer”523. Preenchendo essa dúvida, Paulo Nalin sugere que a ocorrência de inobservância do postulado da função social do contrato seja motivo para o reconhecimento do que designa de ‘nulidade virtual’, explicando: “um contrato desprendido de sua função social sempre trará consigo um objeto ilícito, uma vez que contraria a ordem jurídica e a finalidade constitucional, de modo a eivá-lo de nulidade, mesmo que não prevista a sanção”524. ____________ Humberto Theodoro Júnior, de maneira didática, apresenta uma série de exemplos de função social do contrato prejudicada por abuso da liberdade de contratar: “a) induzir a massa de consumidores a contratar a prestação ou aquisição de certo serviço ou produto sob a influência de propaganda enganosa; b) alugar imóvel em zona residencial para fins comerciais incompatíveis com o zoneamento da cidade; c) alugar quartos ou apartamentos de prédio residencial, transformando-o em pensão; d) ajustar contrato simulado para prejudicar terceiros; e) qualquer negócio de disposição de bens em fraude à credores; f) qualquer contrato que, no mercado, importe o exercício de concorrência desleal; g) desviar-se a empresa licitamente estabelecida em determinado empreendimento, para a contratação de operações legalmente não permitidas, como, v. g., uma fatorizadora que passa a contratar depósitos como se fosse instituição bancária; ou a instituição financeira que, em lugar das garantias reais, permitidas pela lei, passa a adotar o pacto de retrovenda ou compromisso de compra e venda, burlando assim a vedação legal do pacto comissório; h) a agência de viagens que sob a aparência de prestação de serviços de seu ramo, contrata na realidade o chamado ‘turismo sexual’, ou a mediação no contrabando ou em atividade de penetração ilegal em outros países; i) enfim, qualquer tipo de conhecimento que importe desvio ético ou econômico de finalidade, com prejuízo para terceiros” (In: O contrato e sua função social, p. 57-8). 522 Conforme CARDOSO, Patrícia. “Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera como devedor na violação do pacto contratual.” In: RTDC, v. 20, Padma, out.-dez. 2004, p. 127. A autora ressalta ainda que “tal assertiva não significa a supressão da liberdade contratual, a qual continua sendo um dos pilares do direito contratual. Apenas abranda-se a panacéia individualista liberal, que busca a liberdade a todo custo e a qualquer preço, o que, por si só, garantia a justiça contratual e a utilização social do contrato. Acreditava-se que o indivíduo, centro do ordenamento jurídico, só poderia ter existência plena caso lhe fosse garantida a total e irrestrita liberdade em todos os setores de sua vida privada, incluindo-se aí o direito de pactuar livremente as suas convenções” (p. 128). 523 In: SILVA. Luis Renato Ferreira. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição, p. 135-6. 524 In: NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 242. Neste mesmo sentido é a lição de Humberto Theodoro Júnior: “se o contrato não cumpre sua função, isto é, se revela ofensivo a direitos de terceiros ou agride interesses de ordem pública caros ao consenso da sociedade e se mostra incompatível com comandos cogentes do direito positivo, ao juiz compete aplicar-lhe a sanção da nulidade ou da ineficácia, conforme o caso. Se isto não for suficiente para evitar prejuízo de terceiros, a tutela dos prejudicados consistirá em impor aos infratores a responsabilidade civil, sujeitando-os ao ressarcimento próprio dos atos ilícitos” (In: O contrato e sua função social, p. 146). 521 192 Note-se a exata dicção do texto legislativo, estabelecendo que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social. Ao colocar a questão nestes termos, o codificador inseriu a função social como algo imanente ao exercício legítimo da liberdade contratual e não como uma situação de eventual restrição da liberdade negocial. O legislador civilista consagra a noção de função social do contrato também em relação aos pactos firmados anteriormente à vigência do Código Civil atual, estabelecendo, no parágrafo único de seu artigo 2045, regra no sentido de que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos para assegurar a função social do contrato. Percebe-se, aqui, a relevância que este postulado ganha no contexto da atual teoria dos contratos, sendo colocado expressamente como ‘preceito de ordem pública’. Em síntese, a função social do contrato não deve ser tratada apenas como uma mera restrição à liberdade de contratar, mas, sim, de uma orientação sobre como contratar525. 2.4 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: ESTÁGIOS DA CONCEPÇÃO Tomando-se em consideração a noção de função social do contrato como um verdadeiro princípio-vetor do ordenamento jurídico, não há como deixar de reconhecer a sua inevitável permeabilidade com os fatores que compõem a realidade social. Há um inequívoco comprometimento entre o conteúdo da noção de função social e a narrativa prevalente no âmbito social. Para tanto, é possível apontar alguns estágios que o tema tem experimentado com o decorrer da sua evolução. 2.4.1 A função social como discurso legitimador de valores ideológico-políticos Uma das primeiras vertentes sobre o sentimento a ser atribuído à utilidade-função social do contrato é apresentado pelo Direito Italiano do final da segunda metade do século passado, em que, em especial por influência da previsão contida no artigo 1.322, parágrafo 2º ____________ Conforme WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. “Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – A função social do contrato.” In: RT, p. 64. A autora explica ainda que: “é interessante observar que a limitação da liberdade de contratar (de estabelecer o conteúdo do contrato) não é pura e simplemente não gerar efeitos indesejáveis no âmbito social). A lei fala ‘em razão e nos limites da função social do contrato’. Isto significa que o contrato deve ser, em si mesmo, positivo para a sociedade, e não, pura e simplesmente, deixar de gerar mal. É que a cláusula geral do artigo 421 do Código Civil é restritiva (contratos não devem gerar influência negativa para a sociedade) e regulativa (os contratos devem ser concebidos de modo a gerar bons frutos à sociedade)” (p. 64). 525 193 do Código Civil desse país (“Le parti possono anche concludere contratti che non appartengano ai tipi aventi una disciplina particolare, purché siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo l’ordenamento giuridico”), a utilidade social dos pactos negociais era imposta como forma de colaboração com o regime autoritário fascista. Dessa forma, o princípio da função social do contrato servia para trazer ao Direito ideais metajurídicos, em especial vinculados a certa ordem política 526. Nesse contexto, além dos tradicionais limites negativos vinculadores da licitude do contrato (observância de ordem pública e bons costumes), surge um novo elemento a ser considerado, como uma espécie de limitação positiva: a correspondência do pacto negocial aos interesses gerais da sociedade. Nota-se, aqui, uma certa influência da noção de causa. Constituída sobre base de sustentação frágil, essa concepção de função social não ultrapassou os limites temporais dessa época de austeridade política italiana, onde a utilidade social do contrato representa comprometimento com os fins estatais527. 2.4.2 A função social do contrato como valorização de posições jurídicas individuais Uma outra concepção de função social do contrato pode ser concebida sob a ênfase da funcionalização de posições jurídicas individuais, como ocorre em relação à propriedade, à empresa e na questão da autonomia de vontade contratual. Por meio da noção de função social, é possível atravessar as barreiras da abstração típica das primeiras codificações, em especial aquela concernente à noção clássica do negócio jurídico528. ____________ Atilio Guarneri confirma essa situação, informando que “la regola di cui all’art. 1322, capoverso, c.c. è frutto di un’esigenza quasi angosciosa, di un’ossessione del legislatore del codice civile del 1942 di realizzare un controllo generalizzato degli atti di autonomia privata, onde garantirne la rispondenza a fini sociali, poi scomparse com la caduta dell’ordinamento corporatuvo” e “un simile fenomeno attesta il prevalere nella redazione finale del codice di una scuola di pensiero, fino ad allora minoritaria, che sull’onda del modello germanico nazionalsocialista propugnava la sempre più larga utilizzazione delle clausole generali al fine di trasferire all’interno del sistema del diritto civile principi politici metalegali, elaborati daí rappresentanti del regime fascista” (In: GUARNERI, Attilio. “Meritevolezza dell’interesse e utilità sociale del contratto.” In: RDCiv, ano XL, parte prima, 1994, p. 814 e 799, respectivamente). 527 Attilio Guarneri traz a colação as lições de Emilio Betti “corifeo di simile atteggiamento antiformalista, favorevole a una larga utilizzazione delle clausole generali è Emilio Betti, che propugna una teoria delle fonti e dell’interpretazione affancata daí principi del positivismo legalista e al tipo di interprete politicamente neutrale, agnostic, quasi una macchina, che compie operazioni automatiche di deduzione e di sussunzione, contrappone il tipo di giurista politicamente impegnato e responsabile dei giudizi di valore che è sempre chiamato a dare come interprete dello spirito di un certo popolo in un dato momento storico, giusta gli insegnamenti della scuola storica e della dottrina romantica. Clausole generali tradizionali o di nuovo conio sono uno degli strumenti preferiti di questa opera interpretativa di elaborazione di regole metagiuridiche ed etico-politice” (In: GUARNERI, Attilio. “Meritevolezza dell’interesse e utilità sociale del contratto.” In: RDCiv, 800). 528 Rodrigo Xavier Leonardo explica: “a expressiva abstratabilidade da noção de negócio jurídico é fruto de um sofisticado pensamento que oportuniza não apenas o desprestígio de uma perspectiva funcional: por meio da 526 194 Neste âmbito, na função social do contrato, o controle exercido em nome deste princípio permite a busca de uma efetiva adequação contratual, afastando situações que desnaturam o vínculo contratual como técnica de trocas, servindo para identificar a melhor forma de manutenção ou busca da igualdade substancial, a tutela do contratante economicamente mais forte. 2.4.3 A função social como forma de consagração dos princípios constitucionais: o reflexo da constitucionalização do Direito Civil sobre a teoria contratual Como referido e analisado anteriormente, a teoria contratual, no ambiente pósmoderno, sofre uma influência direta dos princípios escolhidos pela Constituição para servirem de referência e orientação à nossa ordem jurídica. É o ‘espírito social’ que constitucionaliza o contrato, atribuindo-lhe novos valores. A noção clássica do pacto como ponto de encontro e realização exclusiva dos interesses dos contratantes abre espaço para a consagração dos valores constitucionais de proteção também dos interesses da coletividade. Nesse âmbito, é possível apontar os principais objetivos do princípio da função social dos contratos: 2.4.3.1 A função social como concretização do projeto constitucional no âmbito das relações privadas: a terceira e quarta dimensão/geração de direitos A doutrina constitucionalista que se dedica ao estudo da evolução dos direitos fundamentais costuma dividir o seu itinerário em “gerações”, representativas de etapas de consolidação destes direitos. Os direitos de primeira geração, de base liberal, consagram a separação do Estado e sociedade, dividindo-se em direitos civis ou liberdades individuais e os direitos políticos. Os direitos fundamentais de segunda geração surgem com as preocupações do Estado Social, consolidando deveres impostos ao Estado; são os direitos sociais, econômicos e culturais. Complementando essas etapas, surgem os direitos de terceira geração, assim entendidos como direitos de solidariedade, cooperação ou fraternidade, de categoria unitária de negócio jurídico dissolvia-se toda e qualquer referência às concretas relações econômicas, em homenagem à igualdade formal decorrente do binômio sujeito de direito e direito subjetivo” e que “nos demais códigos sob o mesmo viés liberal, pode-se dizer que a perspectiva funcional foi ocultada não por acaso, mas por uma escolha que, com o tempo, transformou-se em conformismo metodológico” (In: “A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexos a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.” In: RT, p. 108). 195 projeção tanto interna com internacional. Criam-se, assim, novos direitos, destinados à proteção de interesses coletivos, de minorias, e de cooperação entre os povos, num comprometimento de encaminhar a humanidade para a consagração de uma solidariedade global. Cria-se, assim, um ideal de fraternidade e solidariedade, que passa a ser expresso pelas Declarações de Direitos, irradiando-se por todo o ordenamento e criando um projeto social a ser implementado também pelo Direito. Portanto não parece exagero apontar que é Nesse contexto que o fenômeno da constitucionalização do contrato encontra o seu ponto máximo. Deve ainda ser apontada a indicação feita por parte da doutrina constitucionalista no sentido de reconhecer a existência de uma quarta geração, que representa um desdobramento em relação aos direitos de terceira geração, no sentido de propiciar a sua adequada concretização. Nesse ponto, ganha relevo à proteção a dignidade da pessoa humana, de forma que o Estado e a sociedade passam a preocupar-se com a auto-realização das diversas potencialidades humanas, quer como individuo isolado ou como membro de um grupo social, tanto de natureza econômica, política, social, cultural ou psicológica. Há ainda quem prefira enxergar, nesta quarta geração, os direitos dos grupos sociais mais vulneráveis (consumidores, crianças, idosos, portadores de necessidades especiais), num claro comprometimento com a aceitação e promoção do pluralismo529. É nesse ambiente que verte o ideal de função social dos institutos jurídicos, em especial na questão contratual, que passa então a manter-se comprometida com este ‘projeto social’. Os ideais de fraternidade e solidariedade passam, assim, a integrar a teoria contratual, na versão da função social. Assim o Direito Civil, como concretizador dos valores constitucionais, realiza o itinerário traçado pela Carta Maior. 2.4.3.2 A função social do contrato como busca de justiça social Um dos princípios cardeais da ordem econômica exposta na Constituição Federal é a liberdade de iniciativa, considerado como o esteio de sustentação do projeto de ____________ Na visão de Paulo Bonavides: “são direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de 529 196 desenvolvimento econômico proposto pela Carta Maior. Mas como observa Humberto Theodoro Junior a livre iniciativa não é o único valor ponderável na ordem econômica constitucional, pois o desenvolvimento econômico deve ocorrer vinculadamente ao desenvolvimento social530, concluindo “o Estado social, porém, não se alheia aos problemas que o abuso da iniciativa contratual pode gerar no meio social em que os efeitos da convenção privada irão repercutir. Se algum dano indevido a terceiro ou à coletividade for detectado, a autonomia contratual terá sido exercitada de forma injurídica”531. A ordem econômica é orientada pelo ideal de justiça social (art. 170 da Constituição Federal), o que, no plano das relações contratuais, vem ao encontro do princípio da função social. O contrato é o elemento nuclear da atuação econômica, servindo, portanto, como instrumento de concretização do projeto econômico maior. Em síntese, função social do contrato, ao gerar efeitos externos ao vínculo, proporciona uma nova dimensão do ideal de justiça social, que, no dizer de Francisco Amaral, insere-se em uma outra categoria, a justiça geral, correspondente aos deveres das pessoas em relação à sociedade, superando-se o individualismo jurídico em favor dos interesses comunitários532. Nesta mesma linha de entendimento é a lição de Antonio Junqueira de Azevedo, segundo a qual “a idéia de função social do contrato esta claramente determinada pela Constituição, ao fixar como um dos fundamentos da República o valor social da livre iniciativa”533. Assim, o ditame da observância da função social passa a ser um critério de orientação de mercado, direcionando as condutas dos contratantes no sentido de gerar um ambiente saudável, de solidariedade e cooperação, onde a concorrência passa a ser apenas um dos elementos do mercado, e não o seu fim 534 . Como afirma Paulo Nalin a funcionalização máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência” (In: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 571). 530 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 33. 531 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 33. 532 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “O contrato e sua função institucional”, p. 109. In: Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, p. 114. Este entendimento é reforçado pela lição de Humberto Theodoro Júnior: “entre todas as pessoas, há de prevalecer o princípio constitucional da solidariedade (CF, arts. 1o, IV, e 3o., I). É para que isto se concretize que se exige do contrato o desempenho de uma função social: nem o contrato pode prejudicar terceiros, nem estes podem prejudicar o contrato” (In: O contrato e sua função social, p. 121). 533 In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Princípios do novo Direito Contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual.” In: RT, p. 116. 534 Nesse sentido, manifesta-se Daniel Ustárroz: “a função social, longe de clausular-se em obrigação pontual, expande-se até outras, precavendo situações conflituosas no futuro. Daí falar-se em sua função profilática, 197 constitucional alcança a todos os operadores do mercado, sejam entes coletivos ou pessoas naturais, havendo inclusive um papel social para os contratos mercantis535. Entretanto, não se pode olvidar que a função social e a função econômica do contrato são coisas distintas, uma não substitui nem anula a outra, pois devem coexistir harmonicamente536. As exemplificações mais emblemáticas da atuação do princípio da função social como instrumento para a concretização da justiça social na ordem econômica é encontrado nas limitações impostas à liberdade contratual com o intuito de tutelar a livre concorrência, com o combate às técnicas de dominação de mercado (trusts e formação de cartéis) e na proteção dos consumidores, partes mais débeis nas relações de mercado (proibição de práticas comerciais abusivas, de publicidade ilícita e reconhecimento legal de abusividade de cláusulas contratuais). Em relação a este último aspecto, Humberto Theodoro Júnior salienta que se protege o consumidor para que a economia de mercado seja a mais sadia e a mais desenvolvimentista, dentro do ideal econômico da livre concorrência, e do ideal social do desenvolvimento global da comunidade537. 2.4.3.3 A função social do contrato como tutora do princípio da liberdade contratual No plano da teoria contratual, o princípio da liberdade contratual representa a reprodução mais fidedigna dos ditames da autonomia privada, ponto de sustentação da teoria contratual clássica. Particularizada, no campo dos contratos, como autonomia de vontade, de liberdade de contratar, essa noção é a responsável pela manutenção do apego aos paradigmas do negócio jurídico bilateral. A relação contratual, como modelo de manifestação de vontade dos agentes participantes do pacto, é que dá sustento à narrativa jurídica da liberdade nos contratos. entendida na aptidão para corrigir distorções em casos futuros, orientando o mercado em como proceder” (In: USTÁRROZ, Daniel. A responsabilidade contratual no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Aide, 2003, p. 35) 535 In: NALIN, Paulo. “A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro.” In: RDP, p. 59. 536 Conforme lição de THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 104. O autor acrescenta ainda: “a tendência do direito contratual moderno é no sentido de banir do mercado como um todo (e não apenas no mercado de consumo) o ‘abuso de posição de domínio contratual’, de forma que mesmo entre empresários as infrações aos princípios éticos (da boa-fé objetiva, desequilíbrio econômico, lesão, etc.) devem comprometer a validade dos contratos e cláusulas” (p. 74). Cláudio Luiz Bueno de Godoy reforça este entendimento: “afirma-se, então, que, sob o aspecto da promoção do solidarismo, o contrato, na sua função atual, deve ter efeito distributivo, o que significa também compreendê-lo como instrumento não só da racionalização da atividade econômica, mas também, além desse, como objetivo maior de garantir ou mesmo facilitar o acesso ao consumo.” (In: GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato: os novos princípios contratuais, p. 129). 198 É no ato de formação do contrato que o agente afirma a sua autonomia e tem a oportunidade de atuar como sujeito ativo capaz de traçar os rumos de sua existência social, livre das peias estatais. Entretanto, para não se incorrer no grave erro experimentado no passado, pela assunção cega do modelo socioeconômico do liberalismo, a liberdade de contratar é consagrada na legislação civil como o abre-alas do positivismo nos contratos, mas atrelada, irretorquivelmente, ao postulado da função social 538 . Outro não pode ser o entendimento ao se fazer uma passagem de olhos, mesmo breve e superficial, sobre o texto expresso no artigo 421 da Codificação Civil atual: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. A vinculação da liberdade de contratar ao desempenho da função social do vínculo pode, inicialmente, aparentar apenas amarras invisíveis, mas, na verdade, é ostentadora de extraordinária resistência, capaz de servir de instrumento de formatação da autonomia de vontade com um grau de eficácia jamais alcançado no passado, mesmo no período áureo do dirigismo contratual539. In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 68. Paulo Nalin, ainda na vigência do Código Civil anterior, afirmou: “na verdade, o Projeto não funcionaliza o contrato, mas a liberdade contratual, pondo em nível de condicionante (note-se não se trata de condição s.s.) o exercício da liberdade de contratar (princípio geral para os contratos) ao que o Projeto denomina de razão e limites da função social. Cláusula geral que é, caberá ao intérprete apontar o sentido e a função do princípio máximo do contrato moderno, que é a liberdade contratual” (In: Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 230). 539 Ugo Magello, analisando o direito privado italiano, que em muito serviu de inspiração para a nossa nova codificação civil, mostra um certo descrédito sobre a possibilidade de compatibilização da automonia contratual com a função social, dizendo: “Tra autonomia privata e utilità sociale esiste una tale diversità di piano che l’una non può ritenersi strumentale all’altra. Se l’autonomia privata è strumento de interessi privati, non è ipotizzable che essa sai necessariamente, in: linea di principio, anche e in: agni caso, strumento d’interessi sociali. Gli intreressi privati possono anche non concidire com gli interessi sociali: in: tal caso se il divario si risolve in: un conflito diffuso e rocorrente, tale da turbare l’ordine sociale, il valore dell’utilità sociale legitima l’intervento dello Stato per limitare normativamente l’autonomia dei privati, ma non impore direttamente ai privati di rinunziare alla realizzazione negoziale dei loro interessi. D’altra parte mi sembra veramente eccessivo pretendere daí privati di comprimere discrezionalmente il proprio di autonomia in: razione della utilità sociale: sai perchè la volutazione dele’utilità sociale comporta una série di conoscenze e di informazione che i privati nolmalmente non hanno, sai perchè la mediazione tra interessi privati e interessi sociali è compito dello Stato e delle altre forze sociale legittimate a farlo, non certo del soggeto privato quando autoregola i propri interessi” (In: MAGELLO, Ugo. “Il problemi di legittimità e di disciplina dei negozi atipici.” In: RDCiv, n. 05, 1987, p. 496). 538 537 199 Assim a liberdade de contratar ganha um novo significado, que abandona, de certa forma, o terreno do consensualismo e passa a ostentar foros de maior relevância, chegando a servir como instrumento de consagração dos mais acalentados valores sociais 540 . Como afirma Mariana Santiago, a par da função individual do contrato, de circulação de riquezas para a satisfação pessoal, deve ser percebida a função social do contrato mesmo, como decorrência da heteronomia da vontade, impedindo que a função econômica se desenvolva com desrespeito ao princípio da dignidade humana541. Trata-se de uma proposta de coordenação da autonomia contratual, que encarna propósitos individuais, com os valores sociais da coletividade. Constata-se que a condição para que este princípio venha a ter uma plena realização está exatamente na aceitação da funcionalização da figura do contrato, inspirada nos mais preciosos preceitos de justiça contratual. Como sintetiza Rui de Alarcão, o contrato “constitui uma área primordial de liberdade e autonomia, por um lado, e, por outro, de desenvolvimento econômico-social”542.A liberdade de contratar não pertence mais apenas ao indivíduo; é agora um valor social, que não pode ser olvidado na técnica contratual, sob pena de contrariedade ao postulado maior da função social do pacto543. Assim, como ensina Francisco Amaral, o problema da autonomia privada e, por conseqüência, da liberdade ____________ Paulo Nalin explica: “a questão é de remodelação geral do velho princípio, ou de seu relançamento, então ilustrado com as novas cores constitucionais da funcionalização. Significa dizer que remodelá-lo não implica restringir a atividade privada. Afastá-lo, de algum modo, da nossa realidade econômica e jurídica, além de vir ao encontro do preceito constitucional anteriormente referido, estaria em sentido contrário à história política mundial recente, em face da que queda das economias planificadas e da ineficiente intervenção legislativa do Estado, no sentido de, genericamente, reformular o pensamento social sobre a autonomia privada. Sem dúvida alguma, o princípio da livre iniciativa, aqui visto como braço especializado da autonomia privada, é a força geradora das economias privada e pública brasileira, interna e externamente concebidos” (In: Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 167). 541 In: SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato, p. 97. Nessa mesma linha, é a conclusão apresentada nas Jornadas de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, na ementa n. 23: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. 542 In: ALARCÃO, Rui. “Contrato, Democracia e Direito.” In: RBDC, p. 5-6. 543 Nesse sentido, é a lição de Antonio Junqueira de Azevedo: “não é possível que, ao final do século XIX, os princípios do direito contratual se limitem àqueles da ‘survival of the fittest’, ao gosto de Spencer, no ápice do liberalismo sem peias; seria fazer ‘tábula rasa’ de tudo que ocorreu nos últimos cem anos. A atual diminuição do campo de atuação do Estado não pode significa a perda da noção, conquistada com tanto sofrimento, de tantos povos e tantas revoluções, de ‘harmonia social’. O alvo hoje é o equilíbrio entre sociedade, Estado e indivíduo. O contrato não pode ser considerado como um ato que somente diz respeito às partes; do contrário, voltaríamos a um capitalismo selvagem, em que a vitória é dada justamente ao menos escrupuloso. Reduzido o Estado, é preciso, agora, saber harmonizar a ‘liberdade individual’ e a solidariedade social” (In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Princípios do novo Direito Contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual.” In: RT, p. 119-20). 540 200 contratual, é, essencialmente, o da imposição de limites, no sentido de reproduzir as exigências crescentes de solidariedade e de sociabilidade544. O papel da liberdade contratual como elemento de legitimação da conservação da cansada tentativa de separação entre o público e o privado cai por terra. O contrato – e, conseqüentemente, a liberdade que lhe dá vida – é social. Suas bases de sustentação não estão apenas no plano do Direito Privado, mas na própria tessitura social, que, ao mesmo tempo em que conforta o seu nascimento, faz dele um elemento indispensável para a composição da dinâmica da engenharia das trocas sociais. Nessa linha de argumentação, Pietro Pierlingieri destaca que ‘a autonomia privada, como poder de autodeternimação, não mais encontra justificativa em si, fazendo-se merecedor de tutela o ato que a exprime apenas quando corresponda a uma função que o ordenamento considere socialmente útil” 545. Nesse contexto, constata-se que, na verdade, a tensão existente entre o princípio da liberdade contratual, no seu revestimento tradicional, e os ideais da função social do contrato nada mais representam que a revitalização do antigo conflito entre a idéia individualista e os valores sociais no Direito Privado, que ainda se mantém latente. Por outro lado, deve ser notado que a proliferação de leis especiais de caráter social, compondo uma série de microssistemas legislativos, característica típica do dirigismo estatal, não foi suficiente para imprimir com êxito uma efetiva concepção social da autonomia privada. Tal constatação é feita também no sistema italiano, por Mario Barcelona 546. Assim a força legitimadora dos contratos é reposicionada. Não será mais a vontade dos agentes, mas, sim, o seu desempenho no teatro social que irá servir como indicativo da narrativa da teoria contratual. ____________ In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional”, p. 36. In: BFDC, p. 35. 545 In: Il Diritto civile nella legalità costituzionale, p. 136, apud GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato: os novos princípios contratuais, p. 25. Este autor explica que “tem-se, assim, que o ato em si de iniciativa já deve exprimir um conteúdo valorativo que o faça digno de proteção jurídica, de tutela pelo ordenamento. Não se crê haja como que uma ‘ultima praia’, para usar a expressão lembrada por Gustavo Tepedino, ou um espaço totalmente infenso ao influxo da atuação promocional, destarte positiva, das normas de intervenção, devendo a manifestação de vontade já trazer em si um conteúdo que se possa valorar de acordo com um programa constitucional e legal. E, assim sucedendo, por si só o exercício da liberdade contratual já revela um conteúdo de promoção das escolhas valorativas do sistema. Exatamente nesse ponto, de resto, a nova noção de autonomia privada claramente mostra sua relação com a função social do contrato” (p. 24-5). 546 In: BARCELONA, Mario. “L’idea del social nella teoria del diritto privato: il caso italiano (ma non solo)”, p. 721. In: RTDPC, 1997, p. 721. 544 201 2.4.3.4 A função social do contrato e os valores ambientais A preocupação com o meio ambiente ocupa um espaço de ímpar importância dentre as prioridades do Estado contemporâneo, de forma que as várias diretrizes políticas, jurídicas e econômicas convergem para a sua proteção. O jurista português Pereira Silva chega a afirmar que a tutela do meio ambiente tornou-se uma tarefa inevitável (Schicksalsaufgabe) do Estado atual, levando alguns autores a se referirem a “Estado de ambiente’ (Umweltstaat) ou a ‘Estado protetor do ambiente’ (Umweltvorsorgestaat)547. Nessa mesma linha, é a lição de Gomes Canotilho, afirmando que, dentre os valores atuais do Estado de Direito, paralelamente à juridicidade, democracia e socialidade, encontra-se a sustentabilidade ambiental548. Nota-se, portanto, a vinculação necessária do modelo de Estado atual com a proteção e promoção do meio ambiente, o que é sintetizado por Abreu Barroso na afirmação de que o Estado, permeado pelas fronteiras que a pós-modernidade lhe imprime, assume um caráter ambiental, que, contudo, se vê consubstanciado com Estado de Direito 549 . Outro não é o itinerário traçado pelo nosso modelo constitucional, que expressamente estabelece na Carta Maior a previsão de que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225) e fundar a Ordem Econômica, dentre outros princípios, na defesa do meio ambiente (art. 170, VI)550. ____________ In: SILVA, Vasco Pereira. Da proteção jurídica ambiental: os denominados embargos administrativos em matéria de ambiente. Lisboa: Associação da Faculdade de Direito de Lisboa, 1997, p. 5. 548 In: Estado de Direito, Lisboa, Gravida, 1999, apud BARROSO, Lucas Abreu. A função ambiental do contrato. Questões Controvertidas no Direito das Obrigações e nos Contratos: série grandes temas de Direito Privado. Método. v. 04, p. 284, que, complementando a lição do jurista português, explica: “destarte, as qualidades do Estado em nossos dias relacionam-se com o fato de se apresentar como um Estado de Direito, constitucional, democrático, social e ambiental. Quanto a esta última qualidade, vale dizer que o Estado ambiental é aquele Estado comprometido com a sustentabilidade ambiental” (p. 284). 549 In: BARROSO, Lucas Abreu. A função ambiental do contrato. Questões Controvertidas no Direito das Obrigações e nos Contratos: série grandes temas de Direito Privado, p. 285. 550 Leite Sampaio aponta: “ os direitos de quarta geração estão ainda em definição e ainda não despertaram o consenso entre os estudiosos. Seriam, para uns, desdobramento da terceira geração, como destaque necessário para a vida permanente e saudável na Terra, compondo os direitos integracionais a uma vida saudável ou a um ambiente equilibrado, como se afirmou na Carta da Terra ou Declaração do Rio de 1992, repetindo-se no Manifesto de Tenerife e, incluindo-se ao lado da proteção da cultura, na cláusula 9 do Documento Final do Encontro de Ministros da Cultura do Movimento dos Países Não-alinhados, realizado em Medelín, na Colômbia, entre 3 e 5 de setembro de 1997. Reconhece-se os direitos à vida das gerações futuras; a uma vida saudável e em harmonia com a natureza e ao desenvolvimento sustentável” (In: Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 298). 547 202 Tais dispositivos constitucionais tornam-se condicionantes, ao mesmo tempo, da atuação estatal e particular, vinculando, desta forma, a autonomia privada, o que vem a se refletir nos contratos e na sua função social, que deverá estar atenta às imposições da ordem jurídica ambiental. Trata-se de evidente comprometimento da teoria contratual pós-moderna com os valores sociais, pois, como refere Ulrich Beck, “la naturaleza ya no puede ser pensada sin la sociedad y la sociedad ya no puede ser pensada sin la naturaleza”551. Em síntese, a aceitação do postulado de que os contratos estão comprometidos com os ideais sociais traz por conseqüência um compromisso dessa figura jurídica com os valores de caráter ecológicos e ambientais552. Lucas Abreu Barroso é enfático ao dizer que “as funções social e ambiental do contrato, deste modo, integram o conjunto de princípios estruturantes do Estado de Direito democrático e ambiental, com força ‘vinculante para definir toda a atividade de interpretação e aplicação do Direito, consubstanciando-se em substrato inarredável na consolidação da cidadania e na estruturação do Estado de justiça ambiental”. Assim, como já referido reiteradas vezes, o contrato deve ser objeto de promoção e concretização dos valores sociais, servindo para proporcionar benefícios ao convívio em sociedade, o que somente é possível se houver um claro comprometimento com questões que se projetam no ambiente social, dentre os quais encontramos a busca de melhor qualidade de vida em sociedade 553 , ou seja, de forma a proporcionar um ecodesenvolvimento ____________ In: BECK, Ulrich. La sociedad del risco: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Padóis, 1998, p. 89. Roberto Senesi Lisboa explica: “a proteção ambiental compreende: a conservação dos ‘habitats naturais’ (rios, Florestas, mares e paisagens), a restauração das áreas danificadas e a conciliação do progresso com a manutenção da qualidade de vida ambiental. Todos estes recursos são aproveitados pelo homem, para o seu próprio desenvolvimento. O meio ambiente é, destarte, de extrema importância tanto para a economia local como para a regional, a nacional e, até mesmo, a internacional. Ao conceder a forma de sustentação e de desenvolvimento físico e psíquico do ser humano, o meio ambiente possibilita, por via reflexa, o seu desenvolvimento econômico e social. É correto, nesses termos, afirmar que a regulamentação do meio ambiente constitui um componente da regulação da economia, inclusive a globalizada, incumbindo ao poder público a adoção de medidas pelos métodos de gestão compatíveis: a intervenção normativa sobre a atividade privada; a internalização dos custos da poluição ambiental, como tributo, no preço final do produto ou do serviço; e o contrato-programa, entre autoridade pública e indústria” (In: “O contrato como instrumento de tutela ambiental.” In: RDC, v. 35, p. 184-5). 553 Como refere Roberto M. López Cabana, ‘a todos nos debe preocupar la contaminación del aire, del agua y del suelo, y estamos legitimados para reclamar soluciones, porque la cuestión concierne no sólo a la calidad de vida, sino a la propria superveniencia de la especie humana’. In: “Ecologia y consumo.” In: RDC, v. 12, p. 25. 552 551 203 sustentável554. Roberto Senesi Lisboa propõe a adoção de ‘contratos-programas’ como instrumento de efetividade da atuação do Poder Público na promoção e defesa do meio ambiente, a ser celebrado com as empresas, para prevenir e reparar a poluição ambiental, de forma que poder-se-ia negociar a instalação de equipamento não poluentes ou o tratamento de efluentes em troca de benefício fiscal compatível555. Esta seria uma forma de concretização da previsão constitucional de que cabe ao Poder Público, na gestão da política nacional de meio ambiente, “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente“ (art. 170,V, da CF). Embora aparentemente ser inquestionável o fato de que a função social do contrato passa pelo respeito à proteção ao meio ambiente, não pode ser olvidado que este é, talvez, o ideal mais distante da nossa realidade atual. No sistema econômico atual, o mercado ainda é guiado pela competição fundada na oferta de melhores preços, o que, no mais das vezes, é incompatível com a questão ecológica. A opção pelo uso de ‘tecnologias limpas’ geralmente acarreta aos empresários um maior custo de produção, que acaba se projetando no preço final das mercadorias. Tal situação irradia-se ainda no próprio âmbito do consumo, pois, como fiz López Cabana, “como la produción limpa suele ser más onerosa, muchas veces el proprio público suele preferir, por ejemplo, electricidad más barata a aire más puro” 556. É necessário que a sociedade pós-moderna traga a cultura da “demanda de qualidade”, em que a qualidade dos produtos represente o principal elemento diferenciador do mercado, servindo assim para a obtenção de uma melhor qualidade de vida dos consumidores. ____________ Como afirma Roberto Senesi Lisboa: “o ecodesenvolvimento sustentável deve ser realizado em todas as suas modalidades, a saber: a social, para a redução entre as diferenças de padrões de vida entre os mais o os menos abastados; a econômica, para a alocação e o gerenciamento mais eficiente dos recursos e dos investimentos; a cultural, para a modernização e a integração sempre à luz da continuidade da cultura do povo, observado o ecossistema no qual ela foi constituída originariamente; a espacial, para uma melhor distribuição dos assentamentos humanos e da atividade econômica; e a ecológica, para o melhor aproveitamento do ecossistema, com a intensificação do uso do potencial dos seus recursos” (In: “O contrato como instrumento de tutela ambiental.” In: RDC, p. 185). 555 In: LISBOA, Roberto Senesi. “O contrato como instrumento de tutela ambiental.” In: RDC, p. 193. Segundo este autor: “contrato-programa não é ato condição, uma vez que o poder público também obriga-se perante a empresa a lhe trazer algum benefício, como contraprestação da obrigação que ela tem de desempenhar, para defesa do meio ambiente. O contrato-programa, na realidade, não se restringe à proteção e à regeneração ambiental, pois deve ser celebrado em qualquer outro setor de interesse social, pois ele permite a execução do plano de metas estabelecido pelo poder público. Desse modelo contratual é que deriva o chamado contrato de desenvolvimento, regido pelas leis portuguesas para a exportação e a habitação. Em Portugal, o Estado socorre-se constantemente desse modelo contratual, cujo interesse social é manifesto, pois a finalidade precípua é obstar a prática que possa se consubstanciar poluente em desfavor dos interesses difusos ambientais” (p. 193). 556 In: CABANA, Roberto M. Lopez. “Ecologia y consumo.” In: RDC, p. 25-6. 554 204 Tal “qualidade dos produtos” não pode ser vista, entretanto, apenas sob o enfoque de refinamento tecnológico de produção, mas principalmente pelo comprometimento com os valores ambientais, de forma que a sua produção seja realizada sem o custo da deterioração do meio ambiente. A legislação de tutela do consumidor é pródiga em previsões relativas ao ‘consumo sustentável’, em evidente compasso com o movimento ecologista. Desde a fase précontratual da publicidade, nota-se a preocupação do sistema normativo de Direito do Consumidor com a proteção do meio ambiente, que considera abusiva a manifestação publicitária que ‘desrespeite os valores ambientais’ (art. 37, 2º)557. A questão ecológica é uma preocupação geral, que então passa também a fazer parte do ‘mercado’ e ser um dos pontos de pauta da efetiva proteção ao consumidor558. ____________ Roberto Senesi Lisboa exemplifica: “a abusividade da publicidade, neste caso, pode ser direta ou indireta, por meio de mensagem subliminar. Por exemplo, um produto quimicamente prejudicial ao ar ou às águas deve ter a sua circulação proibida. No entanto, o produto biodegradável acaba por atender as normas de defesa do consumidor, não se podendo considerar abusiva a publicidade relativa, a menos que o seu teor contenha elemento estranho às características do produto que se revele prejudicial ao direito ambiental. Um exemplo lembrado pela doutrina é a publicidade que estimula o consumidor a adquirir uma motosserra, mediante a apresentação de imagens de corte de uma árvore centenária ou localizada em uma área de preservação ambiental” (In: “O contrato como instrumento de tutela ambiental.” In: RDC, p. 192). 558 No 5º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, por iniciativa de Roberto Senesi Lisboa, foram apresentadas as seguintes proposições:“1. As modificações socioeconômicas ocorridas a partir da revolução industrial tornam necessária a revisão dos princípios gerais do contrato. Para que o contrato possa atender a sua função social, é de se reconhecer que o princípio da relatividade dos efeitos (res inter alios), que permite aos contratantes exercer a ‘oponibilidade interna’ contra os terceiros que inviabilizem a satisfação dos seus interesses, submete-se ao atendimento de interesses socialmente mais relevantes, dentre os quais destaca-se a proteção ao consumidor e a proteção ambiental. Permite-se, destarte, a ‘oponibilidade externa’ em desfavor dos interesses dos contratantes, se os interesses: individuais de terceiros determinados forem mais relevantes que os das partes. Também cabe ‘oponibilidade externa’ na defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos, socialmente mais relevantes que os dos contratantes, como é o que sucede com a proteção do consumidor e a proteção ambiental, que são reguladas por normas jurídicas de ordem pública. 2. A proteção ao meio ambiente, através de métodos de conservação e de regeneração das áreas danificadas, essencial para que a globalização econômica obtenha os resultados almejados do equilíbrio ecológico internacional. 3. O desenvolvimento sustentável somente pode ser obtido através de medidas de desenvolvimento econômico que não esgotem os recursos ambientais e nem causem qualquer dano à biosfera. O equilíbrio ecológico somente pode ser alcançado mediante a conciliação entre o crescimento econômico e a preservação e regeneração ambiental, devendo-se preferir o sacrifício temporário do desenvolvimento econômico, enquanto não se encontrar medida alternativa que não propicie o esgotamento dos recursos ambientais e nem degradação da biosfera. 4. As normas de proteção ambiental têm como finalidade última a preservação da espécie humana, pois as medidas preventivas, ao obstar prejuízos à flora e à fauna, e as reparatórias, consistem preferencialmente na recomposição ‘in natura’, buscam a manutenção do equilíbrio ecológico e o asseguramento do desenvolvimento físico e psíquico do homem. 5. A proteção ambiental é indispensável para a garantia da vida, da saúde e da segurança das pessoas e, porque não dizer, dos consumidores e dos próprios fornecedores. 6. A proteção eficiente ao meio ambiente é decorrência da função social da propriedade e conduz a preservação das espécies, tornando viável e eficaz a tutela do consumidor, no mercado, assim como das demais pessoas. 7. A publicidade ou o contrato de consumo que violarem valores ambientais são suscetíveis de oposição. No primeiro caso, pela cessação de sua veiculação, na defesa dos interesses difusos dos consumidores (art. 29 da Lei 8.078/90). Na segunda hipótese, por meio da ‘oponibilidade externa’, na defesa dos interesses difusos ambientais (art. 225 da Constituição Federal, e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81). 8. O contrato programa é um instrumento de gestão administrativa de alta importância e que deveria ser utilizado, possibilitando ao poder público obter efetivamente a execução de sua política nacional de meio ambiente, por se constituir em um meio de assunção de obrigação da empresa de prevenir e recuperar o ambiente e eventual fixação de uma contraprestação lícita” (In: LISBOA, Roberto Senesi. “O contrato como instrumento de tutela ambiental.” In: RDC, p. 197). 557 205 2.4.3.5 A função social como critério de eficácia do contrato O preceito da necessidade de observância da função social nos contratos, além de irradiar efeitos em relação à órbita externa do pacto, foi elevado, pela legislação civil, à condição de critério de eficácia da própria relação contratual. O parágrafo único do artigo 2035 do Código Civil determinou expressamente que ‘nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”559. Assim, como já referido anteriormente, a função social passa a fazer parte do contrato, sendo um de seus elementos. A opção legislativa demonstra o grau de importância atribuído à função social, vista não apenas como um princípio orientador ou programático, mas, sim, como preceito de ordem pública, de observância obrigatória560. O Estado pós-moderno, ciente de suas responsabilidades e das naturais limitações dos particulares de trilharem negociações em consonância com os preceitos primários da justiça social, opta por realizar o que foi designado por Fernando Scaff de intervencionismo assistemático, ou seja, a adoção de medidas esporádicas de controle econômico, para fins específicos561. Dessa forma, o Estado regulador seleciona pontos de relevância no âmbito das relações particulares, alçando-os à condição de ordem pública562. Assim ocorreu com a noção de função social, como forma de garantia de efetividade deste mega-princípio. ____________ Martins Boulos informa: “existem outros códigos civis que expressamente condicionam a validade do contrato à não-contrariedade aos preceitos de ordem pública. Nesse sentido,, exemplificativamente, citamos os seguintes: art. 8o. do CC de Quebec, art. 1343 e 1344 do CC italiano e art. 21 do CC argentino”, explicando: “qualquer disposição contratual que atente contra o princípio da função social do contrato ou contra as demais normas que o asseguram carece de valor, pois incompatível com a norma contida no artigo ora em comento, que, como se disse, é de imperabilidade absoluta” (In: “A autonomia privada, a função social do contrato e o novo Código Civil, Aspectos controvertidos do novo Código Civil, estudos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves.” In: RT, 2003, p. 132). 560 Nas palavras de Vilaça de Azevedo: “para que esse espírito de fraternidade nos contratos se preserve, no âmbito do direito interno, têm os Estados modernos lançado mão de normas cogentes, interferindo nas contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões” (In: O novo Código Civil Brasileiro: tramitação; função social do contrato; boa-fé objetiva; teoria da imprevisão e, em especial, onerosidade excessiva (laesio enormais), Aspectos controvertidos do novo Código Civil, escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: RT, 2003, p. 33). 561 In: SCAFF, Fernando. Responsabilidade do Estado Intervencionista. São Paulo: Saraiva, 1990. 562 Na lição de Carlos Maximiliano: “a distinção entre questões de ordem pública e de ordem privada consiste no seguinte: entre as primeiras o interesse da sociedade coletivamente considerada sobreleva a tudo, a tutela do mesmo constitui o fim principal do preceito obrigatório; é evidente que apenas de modo indireto a norma aproveita aos cidadãos isolados, porque se inspira antes no bem da comunidade do que no do indivíduo; e quando o preceito é de ordem privada sucede o contrário: só indiretamente serve o interesse público, à sociedade considerada em seu conjunto; a proteção do interesse do indivíduo constitui o objetivo primordial” (In: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. São Paulo: Forense, p. 176). 559 206 3 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A SUA ATUAÇÃO NOS CONTRATOS NA FASE DE TRANSIÇÃO ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE A boa-fé é um princípio geral de direito563 que, por força da construção pretoriana e da ousadia doutrinária, tornou-se um dos postulados de maior importância e repercussão no Direito contratual atual564. Menezes Cordeiro afirma que a boa-fé surge com freqüência no Direito Civil, desde a sucessão testamentária, com incidência decisiva nos negócios jurídicos, nas obrigações, na posse e na constituição de direitos reais, informando previsões normativas e nominando importantes vetores da ordem privada565. A largura do seu conceito lhe dá um caráter avassalador sobre a teoria dos contratos, orientando-o em toda a sua extensão566. Nas palavras de Noemi Nicolau a boa-fé, além de permitir a concretização do plano de valores de ____________ Noemi Nicolau ensina que a boa-fé é “un principio general del derecho que se encuentra en la cúspide del ordenamiento jurídico. En él tienen su fuente otros principios ordenadores de la vida jurídica, tales como el principio de confianza, y los principios que fundamentan la teoria del abuso de derecho, la doctrina de los proprios actos, la teoria de la lesión subjetivaobjetiva, la teoria de la imprevisión. Creemos que todos ellos derivan de la buena fe y que, si bien por haber alcanzado perfiles proprios, se le reconece autonomia, en esencia, constituyen aplicaciones concretas de aquella” (In: El rol de la buena fé en la moderna concepción del contrato. Tratado de al buena fe en el derecho, p. 323). Luis Díez-Picazo, no entanto, adverte que: “al enfrentarnos con el tema de la buena fe conviene no perder de vista que son probablemente dos cosas distintas la idea escueta de buena fe y el principio general de buena fe. Buena fe a secas es un concepto técnico-jurídico que se inserta en una multiplicidad de normas jurídicas para describir o delimitar un supuesto de hecho. Por ejemplo: el matrimonio contraído de buena fe produce efectos civiles aunque sea declarado nulo (art. 69 CC); el poseedor de bunea fe hace suyos los frutos percibidos mientras no se interrumpa legalmente la posesión (art. 451 CC); para que la renuncia del contrato de sociedad surta efecto, ‘debe ser hecha de buena de en tiempo oportuno’ (art. 1705, apartado 2, CC). Otra cosa distinta es el principio general de buena fe. Aquí la buena fe no es ya un puro elemento de un supuesto de hecho normativo, sino que engendra una norma jurídica completa, que, además, se eleva a la categoria o al rango de un principio general de derecho: todas las personas, todos los miembros de una comunidad juridica deben comportarse de buena fe en sus reciprocas relaciones. Lo que significa varias cosas: que deben adotar un comportamiento leal en toda la fase previa a la constitución de tales relaciones (diligencia in: contraendo); y que deben también comportarse lealmente en el desenvolvimiento de las relaciones ya constituidas entre ellos. Este deber de comportarse según buena fe se proyeta a su vez en las dos direcciones en que se diversifican todas las relaciones jurídicas: derechos y deberes. Los derechos deben ejercitarse de buena fe; las obligaciones tienen que cumplirese de buena fe” (In: DÍEZ-PICAZO, Luis. Prólogo à obra El princípio general de la buena fe, de Franz Wieacker. Editorial Civitas, 1977). 564 Conforme Junqueira de Azevedo, “à medida que vem diminuindo a intensidade do conflito entre autonomia da vontade, de um lado, e intervenção estatal, de outro, temos a impressão que o direito privado, parcialmente liberto daquela gestão ideológica, vem adquirindo novo alento, especialmente nos temas relativos aos negócios jurídicos e aos contratos; nas novas análises, a cláusula geral da boa-fé objetiva representa, hoje, uma das linhas mais importantes” (In “Responsabilidade précontratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no Direito Comum”, p. 23. In: RDC, v. 18, abr.-jun. 1996, p. 25). 565 In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 2. O autor arremata: “as figuras de ponta da civilística estão-lhe associadas: a culpa na formação dos contratos, o abuso de direito, a modificação das obrigações por alteração das circunstâncias e a complexidade do conteúdo obrigacional. Institutos antigos e criações do pensamento jurídico cristão têm-na como referência: a posse, a aquisição de frutos, as benfeitorias e o casamento putativo. Figuras variadas, num regresso constante e inesperado, incluem-na, a níveis diversos, nas regulações que estabelecem: a morte presumida, a condição, a simulação, a ação pauliana, o enriquecimento sem causa e a acessão” (p. 02). 566 Hector Masnatta, na doutrina argentina, observa: “el princípio de la buena fe no es sólo un requisito específico de la relación contractual. Ya dizimos que es un predicado general que há de estimarse vigente em toda la vida del derecho” (In: MASNATTA, Héctor. La excesiva onerosidad sobreviniente y el contrato. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1968, p. 17). 563 207 um ordenamento jurídico, possui uma enorme transcendência em matéria contratual, porque é um dos elementos da própria estrutura do contrato567. A boa-fé representa um ideal, ou seja, um modelo de conduta que expresse um comportamento médio em determinado contexto social; logo, como ensina Heloisa Carpena, depende de interpretações baseadas em noções imprecisas e mutáveis, cujo conteúdo irá variar de acordo com as condições culturais568, que pode ser considerada como paradigmática. É o agir de acordo com os preceitos éticos cultivados pela coletividade, sempre dentro de um ideal de justiça, de comportamento probo e honesto. Na seara do direito dos negócios, certamente não há tema mais presente nos debates jurídicos que o relativo ao princípio da boa-fé569, seus limites e as funções que exerce no contexto das relações de troca econômica. Muito se tem escrito sobre o assunto, sob os mais variados enfoques, a ponto de Guido Alpa referir que ‘la letteratura sulla clausula generale di buona fede É sterminata, sai nell’esperienza italiana, sai nelle esperienze degli altri ordinamenti continentali570. 3.1 O CONCEITO DE BOA-FÉ NO SISTEMA JURÍDICO Na lição de Judith Martins-Costa, a expressão “boa-fé” mostra-se semanticamente dotada de ‘vagueza’ ou ‘abertura’ e, portanto, depende sempre de uma adequada ____________ In: NICOLAU, Noemi Lídia. El rol de la buena fé en la moderna concepción del contrato. Tratado de al buena fe en el derecho, p. 329 e 323. 568 In: CARPENA, Heloisa. Abuso de direito nos contratos de consumo. São Paulo: Renovar, 2001, p. 84. 569 Vera Fradera sintetiza a discussão sobre a natureza jurídica da Boa-fé, explicando: “a respeito da exata natureza da boa-fé objetiva, se norma jurídica, ‘standard’ ou princípio, grassa intensa controvérsia, a despeito de toda a literatura existente a respeito desse tema. As principais codificações tem adotado ora uma oposição ora outra, ou duas ao mesmo tempo. O ‘Code Napoleón’, por exemplo, concebe a boa-fé como ‘standard’, na maioria das hipóteses, sem excluir outras acepções (v. arts. 550, 1130 e 1870). Já no BGB, por força da interpretação jurisprudencial, a boa-fé é vista como princípio geral de direito, de aplicação obrigatória, dotado de força cogente muito mais amplo do que o simples princípio jurídico do direito dos contratos) v. parágrafos 242, 157, 162, 320 e 815) (...) O nosso Código Civil, assim como no francês, a concepção de boa-fé objetiva é polissêmica, ora ‘standard’, ora princípio, mas nessa última acepção, ainda não alcançou os mesmos níveis da aplicação realizada pelos tribunais alemães, ao longo do tempo” In: “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro. v. 17, p. 157. Neste estudo, a boa-fé será entendida Nesse sentido, polissêmico, ora abordada como “standard’, ora como princípio. 570 In: Il Diritto Giurisprudenziale in: Itália e nel Mondo, Atas do Congresso realizado em Cagliari/Chia, 15-17 junho de 1995, p. 31, apud FRADERA, Vera Maria Jacob de. “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 127. 567 208 concretização numa abordagem contextual571. No Direito, esta noção pode adquirir distintos significados, de acordo com o ambiente em que é utilizada. Num primeiro momento, boa-fé pode ser traduzida como o oposto de má-fé, ou seja, indicativo de condição de espírito do agente. Há, ainda, a utilização da expressão como indicativo de comportamento honesto, probo, leal. Em relação ao primeiro caso, a doutrina convencionou a utilização da designação boa-fé subjetiva e, ao segundo, boa-fé objetiva. No âmbito dos contratos, o aspecto objetivo da boa-fé ganhou relevância especial, sendo este o sentido que será analisado, trazendo regras objetivas de honradez ao comércio jurídico, decorrente do comportamento digno de crença, capaz de produzir expectativas legítimas e dignas de tutela jurídica. Em didática síntese, Heloisa Carpena aponta os seguintes significados à boa-fé objetiva: correção, fidelidade, coerência, cuidado, cooperação, razoabilidade, justiça, decência, sentido ético comum, solidariedade e lealdade572, todos comprometidos com uma nova visão de contrato, que, ao mesmo tempo que serve como instrumento de realizações econômicas, propicia uma relação justa e solidária, a consagrar os valores sociais. Como afirma Carlos Rezzónico, o princípio da boa-fé traz à tona a noção de relevância do componente ‘extrapessoal’ de estimação da conduta, constituído pela valoração social a respeito dos atos e procedimentos negociais573. O Princípio da boa-fé objetiva traduz a idéia de existência de um standard , ou seja, um modelo ideal de conduta social. Como enfatiza Francisco Amaral, a boa-fé é regra de comportamento que se funda na honestidade, retidão, lealdade, impondo um dever de conduta não abusiva e razoável574. É a aceitação e exigência de observância de um comportamento considerado paradigmático que deverá acompanhar o exercício de todo Direito subjetivo, sob pena de este vir a ser considerado como antijurídico. ____________ In: MARTINS-COSTA, Judith. “Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito Privado brasileiro.” In: RF, v. 382, p. 119-20. A autora complementa ratificando: “isto significa dizer que a expressão boa-fé não tem um conteúdo ‘imanente’ ou ‘substancialista’, mas contextual, estreitamente ligado às circunstâncias, aos ‘fatores vitais’ determinantes do contexto de sua aplicação. Há, evidentemente, um conteúdo mínimo – o ‘honeste vivere’ ciceriano – mas a especificação deste conteúdo será sempre ‘relacional’ aos demais dados do contexto no qual incidente, inclusive aos dados decorrentes do fenômeno da pré-compreensão” (p. 120). 572 In: CARPENA, Heloisa. Abuso de direito nos contratos de consumo, p. 86. A autora explica ainda: “a noção de boa-fé é imprecisa, fluida e mutável, variando não apenas em função de transformações na ordem econômica, mas principalmente em atenção às incessantes e velozes mudanças culturais que caracterizam a chamada pós-modernidade”. 573 In: REZZÓNICO, Juan Carlos. Principios Fundamentales de los Contratos, p. 486. 574 In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “Os princípios jurídicos na relação obrigatória.” In: RA, p. 139. 571 209 A abordagem da boa-fé, em especial na temática contratual, portanto, deixa transparecer a necessidade de aceitação de um Direito pluralista, dotado de variedade de fontes (jurídicas e metajurídicas), aproximando o raciocínio jurídico ao pensamento de diversos ramos do conhecimento, permitindo assim uma imprescindível interpenetração entre estes. É a concretização da lição de Boaventura de Souza Santos: “vivemos num mundo de porosidade e, portanto, também de porosidade ética e jurídica, de um Direito poroso constituído por múltiplas redes de ordens jurídicas que nos forçam a constantes transições e transgressões. A vida sócio-jurídica do fim do século é constituída prela intersecção de diferentes linhas de fronteiras e o respeito de umas implica necessariamente a violação de outras”575. Trata-se de evidente sintoma do sistema pós-moderno, instigador do abrandamento de fronteiras e vinculado ao pluralismo576. 3.2 A EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE BOA-FÉ NO DIREITO CONTRATUAL A boa-fé é um princípio que acompanha a atuação jurídica pelo menos desde a antigüidade romana. No dizer de Tereza Negreiros, a ancestralidade da boa-fé pode ser associada à do próprio Direito, na medida em que a idéia de uma conduta leal e confiável – substrato da boa-fé - integra a essência do Direito na sua dupla fundamentação de viabilizar a justiça e dar segurança às relações subjetivas577. Judith Martins-Costa, em sua tese de doutoramento, aponta uma tríplice raiz histórica para a moderna noção de boa-fé: o Direito romano, o Direito canônico e o Direito germânico medieval578. Seguindo esses passos, podemos sintetizar as origens do princípio da boa-fé a partir do sistema romano. ____________ In: ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Traduzido por Wanda Capeller e Luciano de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 239. Heloisa Carpena observa que “o reconhecimento da multiplicidade de fontes do vínculo contratual é expressão da despatrimonialização do direito privado, que passa a ser informado por elementos morais” (In: Abuso de direito nos contratos de consumo, p. 79. 576 Nesse sentido, a lição de JAYME, Erik. “Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – PPGDir/UFGRS, p. 60. 577 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 1. A autora explica: “a conexão assim vislumbrada entre a idéia de Direito e o conteúdo ético evocado pela boa-fé implica, numa perspectiva de assimilações mútuas, que a conceituação desta reflita a conceituação daquele. Sob este aspecto, portanto, as tantas dificuldades em conceituar boa-fé – chamada também por isso, de ‘une mer sans rivages’- revelam apenas um pequeno córrego que aflui ao grande oceano pressuposto pela eterna questão acerca do que seja o conteúdo (mínimo) do Direito, suas fronteiras com a moral e a ética” (p. 1-2). 578 In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 110 e ss. 575 210 A primeira manifestação do princípio da boa-fé é encontrada na Lei das Doze Tábuas, na norma “patronus si clienti fraudem fecerit esto, embora, como adverte Judith Martins-Costa, alguns autores preferem apontar-lhe uma maior ancianidade, vinculando-a à própria fundação de Roma579. Assim a boa-fé deita as suas raízes na ‘iudicia bonae fidei’580 do sistema romano, como indicativo de determinada forma de atuação dos julgadores em face do caso concreto, guardando uma clara similitude com a sua fórmula atual581. Judith MartinsCosta, reconhecendo a extraordinária dimensão obtida pela noção de fides, põe em relevo três setores de sua atuação: as relações de clientela, os negócios contratuais e a proteção possessória, sendo o primeiro a sua marca mais remota, o segundo o seu âmbito de incidência no Direito obrigacional e o derradeiro a sua influência no setor dos direitos reais 582. Vera Fradera ensina que, inicialmente, no sistema romano, a expressão fides guardava um sentido religioso, representando a deusa da palavra dada, da fé jurada à protetora dos segredos, governando a confiança entre os homens e protegendo os fracos contra os poderosos583. Posteriormente, no plano jurídico, Cícero traçou o seu conteúdo, consubstanciado na fides do donus vir romano, que representava a atitude social do cidadão ____________ In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 111. Conforme Francisco Amaral: “os ‘bonae fidei iudicia’ eram, precisamente, ‘acciones civiles in personam’ (não ‘in: rem’) cujo ‘iudicium’ atribuía ao juiz uma grande margem de apreciação discricionária, isto é, o poder de estabelecer, a seu critério, tudo quanto o demandado devesse dar ou fazer com base no princípio da boa-fé” (In: AMARAL NETO, Francisco dos Santos. “A Boa-fé no Processo Romano”, p. 33. In: RJ, UFRJ. Rio de Janeiro, v. 01, n. 01. (novas séries), jan.-jun. 1995, p. 42). 581 Na lição de Clóvis do Couto e Silva, “o princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano, criando o Direito do caso” (In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. “O princípio da boa-fé no Direito Brasileiro e Português, Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português.” In: RT, São Paulo, 1980, p. 53). 582 In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 111-2. A autora explica: “as relações de clientela implicavam a existência de deveres de lealdade e obediência por parte do ‘cliens’ em troca da proteção que lhe era dada pelo cidadão. Traduzindo a relação entre pessoas juridicamente desiguais, o cidadão livre (patrício) e o cliente, as relações de clientela são dominadas pela ‘fides’, compreendida tanto como poder do patrão (poder de direção) e dever do cliens (decer de obediência), quanto sob a forma de promessa de proteção, ‘acto pelo qual uma pessoa era recebida na ‘fides’ de outra”; e “no contexto das relações negociais entre os privados, fundamentalmente nas relações mercantis, a ‘fides’ atuava como elemento catalisador do conteúdo econômico dos contratos, porque, funcionalmente, constringe as partes a ter claro e presente qual o conteúdo concreto dos interesses que se encontram no ajuste, clarificação esta necessária para vincular os contratantes ao leal adimplemento das obrigações assumidas: tanto mais intensa é a necessidade privada de constrição quanto menor a força do Estado para constringir externamente os contratantes ao cumprimento das obrigações assumidas”; e “do domínio negocial a noção de ‘fides bona’ passa, horizontalmente, ao campo dos direitos reais, notadamente em matéria de usucapião, transmudando, por igual, o seu significado: de expediente técnico utilizado pelo pretor para decidir as causas tendo em conta todas as circunstâncias vinculadas ao litígio, a expressão passa a adquirir um diverso significado, considerando-se a intenção ou o estado de ignorância do beneficiário do usucapião” (p. 112, 116 e 123, respectivamente). 583 In: FRADERA, Vera Maria Jacob de. “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 139. 580 579 211 romano que auxiliava os demais, sem prejudicar outros. Era a fidelidade à palavra empenhada, conduta esperada de todo homem honesto 584. Dessa forma, a incidência da boa-fé nos atos negociais, no período romano, foi cria do chamado ‘Direito Pretoriano’, expressão utilizada por Junqueira de Azevedo, para se referir a atuação dos pretores no sentido de ajudar, suprir e corrigir o Direito Civil: “o Direito Cretoriano veio adjuvandi, supplendi, vel corrigendi juris civilis gratia” 585. A atuação da boa-fé no Direito canônico polariza-se exatamente sobre dois âmbitos de forte incidência da ‘bona fides’ romana: na proteção possessória e nos contratos consensuais. Entretanto, numa conotação mais típica deste sistema, a boa-fé nestes aspectos está relacionada à ‘ausência de pecado’. Como explica Judith Martins-Costa, enquanto o Direito romano, considerando a dimensão técnica da boa-fé, promoveu a sua bipartição – consoante aplicada às obrigações ou à posse - , o Direito canônico operou a sua unificação conceptual sob o signo da referência ao pecado, o que equivale a dizer da ausência de pecado, situando-a em uma dimensão ética e axiológica compatível com o sentimento geral do Direito canônico”586. Apesar de o estudo da boa-fé germânica medieval representar conquista recente da ciência histórica do Direito587, a não-correspondência lingüística entre a designação alemã de boa-fé (Treu und Glauben) e bona fides serve como indicador da existência de uma boa-fé genuinamente germânica. Essa teria evoluído a partir de um instituto tipicamente medieval: o ____________ Conforme FRADERA, Vera Maria Jacob de. “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 139. 585 In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos.” In: RT, v. 775, p. 14. O autor esclarece essas funções desempenhadas pela boa-fé no sistema romano dos pactos, explicando que a atuação adjuvandi supre as lacunas e falhas do contrato, a função supplendi desenvolve a existência dos deveres anexos e a corrigendi atua na limitação de cláusulas abusivas. 586 In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 130. 587 Segundo Menezes Cordeiro, “quando se trata, na Alemanha, de indagar eventuais raízes germânicas de institutos vigentes: a partir de meados do séc. XIX, numa projecção jurídica das aparências culturais que dominam a unificação tardia da Alemanha, os institutos germânicos foram exaustivamente aprofundados; em exagero, pretendeu-se, mesmo, reportar à tradição alemã, realidades jurídicas associáveis, com facilidade maior, ao Direito romano da recepção. Na boa-fé, isso não sucedeu. Apesar das dificuldades de transposição linguística, a boa-fé germânica era endossada, com unanimidade, sempre à ‘bona fides’ romanística. Descontando tomadas de posições não fundamentadas, pode afirmar-se que só a partir da década de quarenta, com estudos linguísticos de Pretzel e de Neumann, de 1950, com a tese jurídica de Nesemann e, definitivamente, em 1974, com o estudo aprofundado de Strätz, se delinearia o alcance do perfil da boa-fé germânica, na teoria moderna da boa-fé” (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 162-3). 584 212 juramento de honra, que servia de reforço a um débito588. Os traços fundamentais da boa-fé germânica medieval são a objetividade e o irracionalismo. O primeiro está relacionado à preocupação com a exterioridade, sem apego aos institutos ou estados de consciência; fundamental seriam sempre os julgamentos da opinião pública. Como decorrência da objetividade, o irracionalismo surge com o desapego ao cientificismo, explicado por António Menezes Cordeiro: a boa-fé germânica era antes de molde a provocar, nos sujeitos do espaço jurídico, perante comportamentos determinados, reações espontâneas de adesão ou de repulsa, de acordo com os padrões culturais de atuação, em vigor na época, concluindo ‘a boa-fé germânica conseguiu a objetivação à custa do racionalismo. Tornou-se num elemento afectivo, cuja presença é, ainda hoje, detectável na boa-fé e no Direito”589. Entretanto, a primeira grande codificação que reconheceu a importância deste princípio foi o Código Civil Alemão (BGB)590, no qual, por influência da teoria da confiança, ____________ Menezes Cordeiro, entretanto, alerta:“não existe unanimidade quanto aos efeitos jurídicos do juramento de honra. Uma posição germanista clássica vê nele o empenho da lealdade: uma vez celebrado, colocaria o juramento numa sujeição a um poder de agressão pessoal, por parte do credor. Beyerle lê nele, contudo, uma simples manifestação de linguagem grandiloquente: a lealdade não poderia ser objecto de empenhamento. As fontes são, quanto a este ponto, contraditórias: os anais da cavalaria medieval admitem-no; as fontes jurídicas só aparecem, porém, a partir do sec. XVI, recebê-lo, com um conteúdo, então, efectivo. Seja como for e ainda que tardiamente, a boa-fé germânica relaciona-se com o juramento de honra. Apesar da existência documentada da ‘quebra de honra’, motivada não apenas pelo desrespeito do juramento de honra e a utilização da boa-fé germânica fora do conceito desse juramento, o contacto existiu e foi determinante: a boa-fé assumirá o conteúdo do juramento de honra, traduzido no dever de garantir a manutenção e o cumprimento da palavra dada. Nesta linha evolutiva, a boa-fé germânica traduziria, ainda, a confiança ou crédito cristalizados em certa pessoa, evoluindo depois, para a segurança geral, inspirada nesta confiança, estabelecida em nível de comunidade jurídica e, por osmose, para a regra de comportamento social, necessário ao estabelecimento dessa confiança. No comércio, em especial, revestiria o conteúdo do cumprimento exacto dos deveres assumidos” (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 175-6). 589 In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 176. 590 Cabe destacar que o princípio da boa-fé passou praticamente despercebido pela legislação civil francesa, como expõe Menezes Cordeiro: “conclua-se pelo fracasso da boa-fé no espaço juscultural francês. Prevista no Código Napoleão com a coloração jusracionalista que, na altura, se lhe impunha, ela foi incapaz de evoluir à medida que lhe quebraram as amarras de origem. Imagem do bloqueio geral derivado de uma codificação fascinante e produto das limitações advenientes de um positivismo ingênuo e exegético, a boa-fé napoleônica veio a limitar-se à sua tímida aplicação possessória e, para mais, em termos de não levantar ondas dogmáticas” (In: Da boa-fé no Direito Civil, p. 267). Este mesmo autor informa que o BGB refere-se a boa-fé objetiva em cinco parágrafos: 157 (‘os contratos interpretam-se como exigir a boa-fé, com consideração com os costumes do tráfego’); 162, 1 e 2 (‘quando a verificação da condição seja, contra a boa-fé, impedida pela parte a quem ela desfavoreça, tem-se por ocorrida’ e ‘quando a verificação seja, contra a boa-fé, provocada pela parte a quem favoreça, tem-se por não ocorrida); 242 (‘o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego’), 320, 2 (quando, por uma das partes, apenas tenha havido uma prestação parcial, a contraprestação não pode, contudo, ser recusada quando a recusa, segundo as circunstâncias, em especial, por causa da pequenez relativa do que falta, seja contrária à boa-fé’), e 815 (‘a restrição por não ocorrência do resultado visado com a prestação é excluída quando fosse, desde o princípio, impossível e o autor da prestação soubesse disso e quando este, contra a boa-fé, tenha impedido tal resultado’). Note-se que estas indicações são anteriores à reforma do BGB. 588 213 o princípio da boa-fé, na condição de cláusula geral591, ganhou ressonância ao servir como instrumento para o destaque do conteúdo ético no Direito contratual592. O Código Civil Alemão, por meio de seu parágrafo 242 – o devedor está obrigado a executar a prestação como exige a boa-fé, com observância dos usos do tráfico - difundiu o princípio da boa-fé objetiva em praticamente todos os sistemas jurídicos ocidentais593, explicitando-o pelo uso da expressão “True und Glauben”, onde o primeiro termo representa o dever de conduta leal e o segundo a confiança594 595 . Assim, a boa-fé objetiva assume o caráter de dever de conduta, fundado na lealdade e na confiança, presentes em todas as etapas do itinerário contratual – desde a fase pré-contratual até o período posterior à extinção da obrigação. ____________ Franz Wieacker comenta: “la grandeza y la miseria del parágrafo 242 resultan de las inevitables antinomias del concepto mismo de Derecho. Oportunidad y racionalidad, o mejor, justicia del caso concreto y validez general, son elementos necesarios del Derecho y de la Justicia, que frecuentemente se hallan en conflito en la realidad. En este conflicto, la apelación a las cláusulas generales entraña una aspiración a la justicia del caso concreto y una inclinación a limitar la igualdad ante el Derecho. Esta contraposición no se puede solucionar si se persiste en la línea de análisis de la que suelen partir los partidarios y adversários de las cláusulas generales. Unos y otros coinciden en que la cláusula general es una norma jurídica positiva, esto es, un mandato general de la ley, dirigido al juez, que, consecuentemente, en el caso de reenvío a la ‘buena fe’ o a los ‘usus del tráfico’, el juiz ejecuta o cumple simplemente un juicio lógico o subsunción. Según esta idea, la norma se diferencia de los demás preceptos jurídico-positivos únicamente por dos notas: de un lado por su configuración indeterminada (precisamente en cuanto cláusula general) y de otro lado por el reenvio que hace a preceptos (buena fe) o criterios sociales (usus del tráfico) no positivados, sino metajuridicos” (In: WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Traduzido por Jose Luis Carro. Madri: Editorial Civitas, 1977, p. 32-3) 592 O princípio da boa-fé possui duas conhecidas vertentes: uma de aspecto objetivo e outra subjetiva. A primeira domina as relações obrigacionais, sendo elevado à categoria de princípio geral dos contratos. Já a boa-fé subjetiva, por sua vez, está relacionada aos aspectos psicológicos do agente, como elemento da vontade. No presente estudo, importa a abordagem da primeira forma de manifestação da boa-fé, reconhecida como objetiva. 593 A influência do texto germânico pode ser sentida no artigo 239º do Código Civil Português, artigo 1198 do Código Civil Argentino (com a redação dada pela reforma de 1968), e o artigo 1136 do Código Civil Unificado Italiano, entre outros. Como afirma Tereza Negreiros: “Não é exagero afirmar que os contornos atuais da boa-fé objetiva no pensamento jurídico ocidental são resultado direto da doutrina e, principalmente, da jurisprudência alemã. É comumente reconhecido que o desenvolvimento da cláusula geral da boa-fé constante do BGB pelo Poder Judiciário daquele país foi o principal responsável pela difusão do princípio em outros sistemas de direito codificado” (In: Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 4849). 594 Carlos Rezzónico ensina que “utilizado de manera separada, el vocablo Treu significa literalmente lealdad y reconoce, entre otros orígenes, el gótico triggwa (cuerda, lazo); se relaciona con las ideas de confianza, sinceridad, proceder a conciecia , entrega inquebrantable, exacta correspondencia, relación de deber moral de correspondencia recíproca, cumplimiento inconcidional de una prestación, etcétera. En cuanto al concepto Glauben, significa creencia y – siempre tomado independientemente – en el linguaje jurídico es de utilización infrecuente, aunque, de todas las maneras, es significativa la relación con el vocablo acreedor (Glaudiger), en que se resalta el aspecto de creencia” (In: Principios Fundamentales de los Contratos, p. 498-9). 595 Nas palavras de Franz Wieacker “las nuevas creaciones ético-jurídicas que hoy suelen invocarse con base en el parágrafo 242 escapan totalmente - como hemos ya señalado – a la codificación y a la exposición cientifica. El legislador no es dueño del futuro de su sociedad y la historia se ha burlado siempre del intento de dirigir sus enormes poderes por cauces previamente establecidos. Razón de más para que nuestra tarea deba consistir en disviar las mareas en calma, dominarlas y dirigirlas hacia un trabajo util” (In: El principio general de la buena fe, p. 98). 591 214 No sistema jurídico nacional, o postulado da boa-fé custou a receber o reconhecimento legislativo que merece, de forma que, durante um longo período da história no nosso Direito Privado, este princípio vigorou a margem do Direito positivado, em que pese a existência de breve referência a ele no artigo 1443 do Código Civil de Bevilaqua, quando do tratamento do contrato de seguro (“o segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”) e no vetusto Código Comercial de 1850, que, em seu artigo 131, ao traçar as linhas diretrizes para a interpretação dos contratos mercantis, dispunha: “Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguinte bases: 1. A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato”. Entretanto, como afirmou Ruy Rosado de Aguiar Junior, este texto permaneceu letra morta por falta de inspiração da doutrina, e de nenhuma aplicação dos tribunais596. Mas não pode deixar de ser reconhecido, como destacava Clóvis do Couto e Silva, que o caráter essencial deste princípio independe da sua recepção legislativa.597 Entretanto, talvez pela tradição positivista, houve no direito pátrio um certo retardo na absorção e compreensão das potencialidades do princípio da boa-fé objetiva, de forma que, durante muito tempo, o Direito Civil ignorou os recursos decorrentes da aplicação da boa-fé em sentido objetivo, restringindo-se, por décadas, aos limites da boa-fé no sentido subjetivo, prevista expressamente na nossa legislação598. Assim, durante um largo período, o tema da ____________ In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo.” In: RDC, n. 14, abr-jun. 1995, p. 21. 597 In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 29-30. Na lição deste autor: “o princípio da boa-fé no Código Civil Brasileiro, não foi consagrado, em artigo expresso, como regra geral, ao contrário do Código Civil alemão. Mas o nosso Código Comercial incluiu-o como princípio vigorante no campo obrigacional e relacionou-o também com os usos de tráfico. Contudo, a inexistência, no Código Civil, de artigo semelhante ao parágrafo 242 do BGB não impede que o princípio tenha vigência em nosso direito das obrigações, pois se trata de proposição jurídica, com significado de regra de conduta. O mandamento da conduta engloba todos os que participam do vínculo obrigacional e estabelece, entre eles, um elo de cooperação em face do fim objetivo que visam” (p. 29-30). No mesmo sentido, manifestase Cláudia Lima Marques, ao lavrar parecer sobre a responsabilidade dos fabricantes de cigarros (In: “Violação do dever de boa-fé de informar corretamente. Atos negocias omissivos afetando o direito/liberdade de escolha. Nexo causal e falha/defeito de informação e defeito de qualidade nos produtos de tabaco e o dano final morte. Responsabilidade do fabricante do produto, direito à ressarcimento dos danos materiais e morais, sejam preventivos, reparatórios ou satisfatórios.” In: RT, p. 82). 598 Conforme FRADERA, Vera Maria Jacob de. “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 128. 596 215 boa-fé objetiva foi se consolidando, paulatinamente, na seara doutrinária, graças aos esforços em especial de Clóvis do Couto e Silva – principalmente na obra Obrigação como processo – e pela divulgação em nosso sistema da doutrina estrangeira, em especial, Almeida Costa e Antunes Varela, em seus estudos sobre o Direito obrigacional599, até que passasse a integrar a práxis dos Tribunais, servindo de referencial às suas decisões. Judith Martins-Costa explica esse período, destacando que “a inexistência de expressa previsão no Código Civil ao princípio da boa-fé passou a exprimir lacuna, angustiosamente sentida quando os tradicionais princípios de Direito das Obrigações – o da autonomia privada, expresso na auto-vinculação, e o da responsabilidade por culpa – começaram a se mostrar mais que nunca insuficientes para uma justa solução de casos resultantes, por exemplo, da contratação por adesão, ou do exercício abusivo da posição contratual, ou do indevido recesso das tratativas contratuais, ou da necessidade de revisão das bases contratuais em casos de excessiva onerosidade, entre outros tantos que poderiam ser aqui lembrados”600, acrescentando que a positivação é um processo que decorre de qualquer das fontes reconhecidas como fontes de produção jurídica, uma das quais é a jurisdição, sendo que, nesta via, o princípio da boa-fé objetiva já é, há muito, positivado em nosso sistema601. Somente na aurora da década de noventa, o princípio da boa-fé veio a receber do legislador a devida atenção. A tarefa foi cumprida pelo legislador consumerista, que, ao criar o Código de Defesa do Consumidor, foi pródigo ao fazer referências diretas e indiretas a este postulado, levando Junqueira de Azevedo a ressaltar que a idéia de boa-fé constitui a ____________ A influência que a doutrina exerce na evolução do direito brasileiro merece especial destaque, embora não seja considerada por grande parte dos juristas como uma de suas principais fontes. Como ressalta Judith MartinsCosta, “somos, os luso-brasileiros, tributários de uma longa tradição ‘bartolista’, e, portanto, a força da doutrina tem um peso específico, de alta densidade cultural. É que, desde as nossas mais fundas origens , o ‘mos italicus’ refletivo exemplarmente na obra de Bartolo de Saxoferrato, conformou uma mentalidade” e “isso significa dizer que, em nossa profunda mentalidade, paradoxalmente, articulou-se, ao legalismo, a atenção à doutrina como fonte de produção de modelos hermenêuticos, mesmo os derivados da doutrina estrangeira”. In: COSTA, Mário Julio de Almeida. “A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).” In: RBDC, v. 21, p. 68 e 69. 600 In: COSTA, Mário Julio de Almeida. “A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).” In: RBDC, p. 74. 601 In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, p. 639. A autora funda o seu posicionamento nos ensinamentos do jusfilósofo italiano Giuseppe Zacharia, manifestado no estudo designado ‘Sul concetto di positività del diritto’, in: Diritto positivo e positività del diritto, Turim, ed. Giappichelli, 1991, p. 329 e ss. Entretanto a jurista não deixa de destacar as vantagens da tipificação do princípio da boa-fé, explicando que “agora está de certa forma facilitada a tarefa do intérprete/aplicador, o que é deveras importante numa cultura de legolatria e legomania como a nossa, ainda centrada no fetiche da lei” (p. 640). 599 216 inspiração principal da legislação sobre defesa do consumidor no Brasil, representando uma verdadeira ‘mudança de mentalidade’ no âmbito de nosso Direito Privado602. 3.3 O POSTULADO DA BOA-FÉ NA CODIFICAÇÃO CIVIL ATUAL A atual legislação central do Direito Civil acabou por contemplar, de forma integral, o princípio da boa-fé objetiva no nosso ordenamento positivo, permitindo a exploração deste nas suas mais destacadas funções (como técnica interpretativa, como limitadora de direitos subjetivos e como forma de integração dos atos negociais). Assim o nosso sistema privado codificado se junta aos modelos mais refinados de legislação, como o BGB e o Código Civil Português, no trato destinado a esta matéria. O nosso Código Civil, assim, destacou em três momentos o princípio da boa-fé objetiva: como técnica interpretativa, como critério de limitação do exercício de direitos reconhecidos e como cláusula geral da temática contratual. No artigo 113 da Codificação Civil há previsão no sentido de que os contratos devem ser interpretados de acordo com os ditames da boa-fé603, trazendo e confirmando, portanto, o papel relevante deste princípio na interpretação das manifestações de vontade – contratos604. Essa previsão de utilização da boa-fé como referencial hermenêutico dos contratos já estava prevista no Código Comercial de 1850, em seu artigo 131605, mas que não surtiu os efeitos ____________ In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “A Boa-fé na formação dos contratos.” In: RFD/USP, v. 87, São Paulo, 1992, p. 79. Ratificando este posicionamento, Judith Martins-Costa refere-se à “exploração” da boa-fé na prática jurisprudencial brasileira ocorrida após o Código de Defesa do Consumidor (In: “Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito Privado brasileiro.” In: RF, p. 127). 603 O enunciado n. 25 da I Jornada de Direito Civil organizada pelo STJ, em 2002, estabelece “A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes”. 604 A redação expressa no artigo 113 do Código Civil (“os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração”) lembra, em muito, a disposição apresentada pelo parágrafo 157 do BGB: “os contratos devem ser interpretados conforme exige a boa-fé levando-se em conta os usos”. 605 “Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1. a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer a rigorosa e restrita significação das palavras. (...) 4. o uso a prática geralmente observada no comércio e nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras.” 602 217 que poderia ensejar, pois, como destaca Judith Martins-Costa, este texto jamais desempenhou a função de cláusula geral606. A importância da utilização do princípio da boa-fé como camon hermenêutio é referendada por Cláudia Lima Marques, que ensina: “a melhor linha de interpretação de um contrato ou de uma relação de consumo deve ser a do princípio da boa-fé, o qual permite uma visão total e real contrato em exame”607. Assim, como sói acontecer na utilização de princípios e cláusulas gerais, a valorização casuística ganha um fôlego especial, de forma que a boa-fé, enquanto técnica hermenêutica, no dizer de Tereza Negreiros, assume contornos de uma verdadeira tautologia: não tem conteúdo até o instante em que seu conteúdo é invocado608. Já na década de sessenta, Clóvis do Couto e Silva punha em destaque a relação existente entre a hermenêutica integradora e o princípio da boa-fé, afirmando “é difícil determinar, com firmeza, o que é resultado do princípio da boa-fé e o que é conquista da interpretação integradora”609. Cabe ressaltar, entretanto, que a utilização do princípio da boa-fé como técnica de interpretação contratual não deve acarretar a utilização pura e simples de um jogo de conclusões lógicas, mas, sim, propiciar a concretização de juízos de valor, imprimindo um aspecto ético na tarefa hermenêutica, sempre norteada pelo ideal de justiça contratual, de acordo com os padrões sociais desejáveis610. Uma outra função da boa-fé é encontrada no artigo 187 do Código Civil, onde esta é colocada como referencial para a limitação do exercício de direitos subjetivos. Tal situação já era contemplada anteriormente em nosso sistema no microssistema consumerista, onde a boa____________ In: COSTA, Mário Julio de Almeida. “A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).” In: RBDC, p. 64. 607 In: MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 51. Nesta mesma linha, Judith Martins-Costa observa que “os passos essenciais à plena realização desta técnica hermenêutica se iniciam com a constatação de que, na interpretação das normas contratuais, deve cuidar o juiz de considerá-las como um conjunto significativo, partindo, para tal escopo, do complexo contratual concretamente presente – o complexo de direitos e deveres instrumentalmente postos para a consecução de certas finalidades e da função social que lhes é cometida” (In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 430). 608 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 226. 609 In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo, p. 33. 610 Na lição de Carlos Rezzónico: “la buena fe ayuda y orienta al análisis y ella misma asume por sí el alcance de regla interpretativa, quedando, desde luego, en primer plano el aspecto ético al impedir que por la observancia estricta del contenido del contrato éste se convierta en una asechanza para una de las partes” (In: Principios Fundamentales de los Contratos, p. 531). 606 218 fé como limitadora de direitos subjetivos foi utilizada como critério identificador das cláusulas abusivas, semelhante ao que ocorreu no Direito germânico611. Nessa função, a atuação do princípio da boa-fé estabelece limitações de atuação dos parceiros contratuais, definindo condutas e controlando a transferência de riscos profissionais, além de proporcionar a liberdade do devedor face à não-razoabilidade da conduta do outro contratante612. Dessa forma, a boa-fé ganha um aspecto objetivo, genérico, um patamar de conduta do homem médio, possibilitando ao julgador, em cada caso concreto que lhe é apresentado, decidir se a conduta do contratante ultrapassou ou não os limites impostos pela razoabilidade613. Neste sentido, Seibel de Freitas Lima, ao analisar a potencialidade da boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos, leciona que tal função impõe um arquétipo exemplar de conduta, cuja construção decorre da experiência e de sua aplicação em casos concretos, com posterior sistematização científica, permitindo sua definição e redefinição contínuas, especialmente quando concebida em um modelo jurídico aberto614. Talvez a maior conquista da vinculação do exercício de direitos ao princípio da boafé venha a ser a conhecida teoria dos atos próprios, de larga difusão dos sistemas de língua espanhola, segundo o qual a ninguém é lícito utilizar-se de um Direito em contradição com o comportamento exercitado anteriormente. Como ensina Judith Martins-Costa, o efeito primordial da observância deste postulado teórico é o impedir que a parte que tenha violado ____________ Vera Fradera, ao abordar o tema no Direito Alemão, explica que neste “o controle do exercício da autonomia da vontade é realizado de maneira ampla pelo juiz, valendo lembrar aqui a teoria do abuso de direito, nascida da ‘exceptio doli generalis’ressuscitada pela jurisprudência do fim do século passado. Esta construção foi vinculada ao parágrafo 242, onde se prevê a execução de boa-fé das convenções. Esta construção é peculiar ao direito alemão, se bem sejam as duas noções indissociáveis, na maioria dos sistemas jurídicos. Foi também com base na boa-fé objetiva que o juiz alemão controlou a edição de cláusulas abusivas nos contratos de consumo, antes mesmo da publicação da AGBG, de 1976”, In: FRADERA, Vera Maria Jacob de. “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 147. 612 Conforme MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 50-1. 613 Conforme MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 57. 614 In: LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. “Pautas para a interpretação do artigo 187 do novo Código Civil.” In: RT, v. 838, ago. 2005, p. 29. O autor explica mais detalhadamente a sua afirmação: “com isso, a norma contida no art. 187 do Código Civil de 2002 somente se concretizará e obterá seu maior alcance com a atividade judicial criadora que lhe dê aplicação nos casos concretos, além do esforço doutrinário no sentido de sistematizar as hipóteses típicas em torno de uma unidade conceitual. Os preceitos éticos do art. 187 não têm uma definição rígida e pré-concebida, mas permitem, como referido, a entrada de elementos externos ao Código, exigindo uma delimitação em concreto. Isso não significa dizer que são totalmente indeterminados a priori, pois, na medida que seu significado vai sendo construído em uma série de casos concretos, à luz das circunstâncias da vida social, é possível a elaboração de sistematizações que orientem os operadores jurídicos para novas aplicações. Trata-se de uma aplicação que segue, portanto, o ‘novo pensamento sistemático’, conjugação dos pensamentos tópico e sistemático” (p. 31). 611 219 deveres contratuais exija da outra parte o cumprimento da avença, ou que venha a valer-se do seu próprio incumprimento para beneficiar-se de disposição contratual ou legal615. Os estudo sobre a efetividade da teoria dos atos próprios levaram ao reconhecimento da existência de duas formas de manifestações: o ‘tu quoque’ e o ‘venire contra factum próprium’. A fórmula do tu quoque traduz a regra pela qual uma pessoa que viole uma norma jurídica, ao exercer a situação jurídica que essa norma lhe atribua, estará atuando num exercício inadmissível de posição jurídica. Com explica António Menezes Cordeiro, fere as sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um contrato e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento616. Dessa forma, no tu quoque contratual há um excesso no recurso às potencialidades regulativas de um contrato que o próprio titular já violara, em síntese, fere a boa-fé o exercício de posições jurídicas em cuja base tenha havido posições incorretas. O venire contra factum proprium representa o exercício de posição jurídica em contradição com o comportamento anteriormente assumido pelo seu titular. Como leciona António Menezes Cordeiro o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo, sendo o primeiro o factum proprium, porém contrariado pelo segundo617, acrescentando que, devido a sua carga ética, psicológica e sociológica, o venire contra factum proprium atenta necessariamente contra a boa-fé, em ____________ In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 460-1. In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 837. O autor traz à colação os ensinamentos de Gunther Teubner, segundo o qual o tu quoque contratual teria sido imputado a um dos seguintes oito princípios: “à retaliação, à regra da integridade, à recusa de protecção jurídica, à compensação de culpas, ao recurso ao próprio não direito, aos comportamentos contraditórios, `a renúncia a sanções e à proporcionalidade contratual” (p. 840) 617 In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 745. O autor esclarece: “a pessoa que manifeste a intenção de não praticar determinado acto e, depois, o pratique, pode ser condenada, em certas circunstâncias, ainda quando o ato em causa seja permitido, por integrar o conteúdo de um direito subjetivo. Pode ordenar-se a vasta casuística existente em três grupos. Num primeiro, o titular-exercente manifesta a intenção de não exercer um direito potestativo, mas o exerce (...) no segundo, o titular-exercente indicia não ir exercer um direito subjetivo comum, mas exerce-o (...) no terceiro, finalmente, a pessoa age ao abrigo de uma permissão genérica de actuação, por exemplo – declara não ir tomar determinada atitude, mas acaba por assumi-la. Esta hipótese de ‘venire contra factum proprium’ não tem sido suficientemente esclarecida pela doutrina e pela jurisprudência” (p. 747-8). 616 615 220 especial por ser expressão da confiança, âmbito de proibição de comportamentos contraditórios618. No artigo 422 do Código Civil, com especial referência aos contratos, o princípio da boa-fé objetiva é indicado como orientador de todo o processo contratual , desde a fase précontratual, quanto a sua execução ou mesmo após formalmente encerrado o vínculo, na fase pós-contratual619. Trata-se de disposição normativa que se mostra inspirada na dicção da cláusula geral da boa-fé do BGB: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”. Houve, há pouco, alterações na codificação civil alemã, com a introdução da seguinte redação ao parágrafo 241 do BGB, nos seguintes termos: “Deveres oriundos das relações obrigacionais: (...) 2. As relações obrigacionais podem, de acordo com o seu conteúdo, obrigar cada uma das partes a ter em conta os direitos, o patrimônio e os interesses da outra parte”. Apesar das diversas considerações críticas que foram levantadas em relação ao dispositivo em questão na codificação civil620, o texto parece ter atingido a sua finalidade, assumindo o papel referencial a atuação da boa-fé na seara contratual. O princípio da boa-fé, no âmbito das obrigações e contratos, é o responsável, em especial, por dois grandes feitos: consagra o reconhecimento da complexidade do vínculo obrigacional, trazendo à luz os ____________ In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 753-4. O autor, entretanto, informa: “a recondução laboriosa do ‘venire contra factum próprium’ `a doutrina da confiança e ao princípio da boa-fé não é pacífica. Na base da sua natureza, coloca-se um problema de regime, com questões deste tipo pode um incapaz ‘venire contra factum proprium’? E se houver simulação ou coação física, erro, dolo, coação moral ou incapacidade acidental, quando da produção do ‘factum proprium’? A doutrina é uniforme em tomar a previsão de ‘venire contra factum proprium’ por meramente objetiva; não se requer culpa, por parte do titular exercente, na ocorrência de contradição. Não se pode, contudo, ir tão longe nesta via que, ao ‘factum proprium’ se dê mais consistência do que ao próprio negócio jurídico: também este, afinal e por maioria de razão, suscita, no espaço jurídico, confiança digna de protecção e, não obstante, cede perante vetores que, em casos determinados, se apresentem com peso maior” (p. 761). 619 O texto exato do artigo 422 do Código Civil é o seguinte: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”. Há, entretanto, no Congresso Nacional, projeto de lei no sentido de alteração deste dispositivo, sendo proposta a seguinte dicção: “os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução, e fase pós–contratual, os princípios da probidade e da boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade”. 620 A crítica mais forte à redação do artigo 422 do CCB veio de Junqueira de Azevedo, quando o texto ainda estava na fase de projeto. Segundo este autor, “o artigo é insuficiente, deficiente e, além de tudo, revela que está num paradigma anterior aos tempos nos quais estamos vivendo. Ele está no paradigma do sistema que alguns dizem aberto, de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. No meu modo de entender, já estamos, no mundo, hoje em outro paradigma”. Na visão deste doutrinador, o texto proposto teria ainda pecado pela fala de referência expressa à incidência da boa-fé objetiva na fase pré e pós-contratual (In: “Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos.” In: RT, p. 11). 618 221 deveres acessórios que garantirão a eficácia da prestação principal e proporciona uma visão dinâmica do processo contratual e obrigacional, ou seja, processualiza o contrato. Assim é possível ser afirmado que o princípio da boa-fé gera uma ampliação horizontal e vertical do contrato. No primeiro caso, tem-se a atuação dos deveres anexos e, no segundo, o reconhecimento da possibilidade de ocorrência de obrigações na fase pré e pós-contratual. 3.4 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NOS CONTRATOS E A CRIAÇÃO DE DEVERES ANEXOS No aspecto do crescimento horizontal, a contratação moderna passa a ser composta por um complexo obrigacional formado por ‘obrigações nucleares’ e ‘deveres colaterais’ que se articulam, de forma a gerar um conjunto, que permitirá que o vínculo negocial desempenhe, de maneira satisfatória, a pretensão dos contratantes e, ao mesmo tempo, concretize o escopo social do contrato. As obrigações nucleares são as comprometidas diretamente com o cumprimento do objeto do contrato, sendo designadas por Claus Von Canaris como ‘deveres de prestação’ em contrapartida aos ‘deveres de proteção’, que representam os deveres secundários de conduta621. Assim, como sintetiza Ricardo Lorenzetti, as obrigações nucleares expressam o interesse cuja satisfação é perseguida por meio do contrato, em geral objeto de livre negociação das partes622. Os deveres colaterais são os elementos de efetiva ampliação horizontal do âmbito contratual moderno, geralmente analisados como decorrentes da boa-fé; são, em especial, comprometidos com a realização racional, ética e social do contrato623, designados também de deveres avoluntaristas e instrumentais624. A origem dessa formulação é atribuída ao jurista ____________ In: CANARIS, Claus Wilhelm. “Norme di protezione. Obblighi del Taffico. Doveri di protezione.” In: Rivista Critica del Dirtto Privato, 1983, p. 802. 622 In: LORENZETTI, Ricardo Luis. “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pósgraduação em Direito da UFRGS, p. 30. 623 Outro não é o entendimento expressado pelos Princípios para os Contratos Comerciais Internacionais UNIDROIT - que estabelece: “las obligaciones contractuales pueden ser implícitas” e que “las obligaciones implícitas dimanan de: (a) la naturaleza e la finalidad del contrato; (b) las prácticas estabelecidas entre las partes y los usos; ( c) la buena fe y la lealdad negocial; (d) el sentido común” (art. 5.1). 624 Designação utilizada por In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado, p. 642. 621 222 alemão Hermann Staub, que, já no início do século, apontava que o cumprimento do contrato não poderia ficar limitado às hipóteses de mora ou impossibilidade, mas também deveria contemplar as noções de cumprimento defeituoso e violação dos deveres colaterais625. Dessa forma, em especial no campo obrigacional, o princípio da boa-fé tem se destacado pela sua capacidade especial de atuação, permitindo a identificação de deveres que extrapolam os limites da chamada prestação principal. Vislumbra-se, nos vínculos obrigacionais, a existência de deveres resultantes do princípio da boa-fé, deveres secundários, anexos, laterais ou instrumentais. Menezes Cordeiro sintetiza essa realidade na expressão ‘complexidade intra-obrigacional’, explicando que o vínculo obrigacional abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas, antes, vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta626. Os deveres acessórios, derivados da boa-fé, são caracterizados pelos aspectos avoluntaristas, obrigando as partes (credor e devedor) a agirem de modo a possibilitar a efetivação e o devido proveito da prestação para a outra parte e, também, de abster-se de comportamentos que possam vir a desarticular o jogo das prestações inseridas na obrigação. Tratam-se, portanto, de deveres de conduta positivos e negativos, que servem não apenas como moldura para o quadro obrigacional, mas principalmente como instrumentos que propiciam a realização do verdadeiro interesse contido no vínculo. A doutrina costuma listar os principais deveres acessórios derivados da aplicação do princípio da boa-fé no âmbito obrigacional, destacando os deveres de segurança, tutela ou proteção, de informação627 ou esclarecimento, de lealdade ou fidelidade e de cooperação ou ____________ Ricardo Lorenzetti distingue os deveres secundários de finalidade negativa, cuja função é impedir as invasões arbitrárias na esfera íntima do sujeito (dever de segurança) e os deveres de finalidade positiva, cujo propósito é possibilitar o cumprimento da obrigação (colaboração e informação) - In: “Teoria Sistémica del Contrato.” In: Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS, p. 31. 626 In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 586. 627 Na lição de Anibal Alterini, “la obligación de información, como contenido implícito de los deberes de quien pone productos o servicios en el mercado masivo, obedece a la necesidad de posibilitar al adquirente una decisión bien fundada” (In: “La autonomia de la voluntad en el contrato moderno, La contratación contemporanea.” In: Temas de Derecho Civil. Ciclo de mesas redondas, v. II, publicação do Departamento de Derecho Privado de la Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires, 1990, p. 22. 625 223 colaboração628. Todos eles, de forma mais ou menos incisiva, irão atuar para permitir a maior eficácia possível da prestação tida como principal, além de serem os grandes responsáveis por abrilhantarem o elemento ético existente no cerne do vínculo obrigacional. ____________ A noção de cooperação nos contratos infelizmente não tem recebido a atenção da doutrina jurídica nacional, como sói acontecer no âmbito do sistema jurídico de outros países. Entretanto, a sua relevância não pode passar despercebida pelo estudioso da doutrina contratual atual.A cooperação é um revestimento que envolve todo o contrato, quer em seu âmbito interno, onde está visceralmente comprometido com os ditames comportamentais criados pela boa-fé, quer no seu âmbito externo, como uma massa de ligação do contrato com a sua função social. Como destaca Luis Renato Ferreira da Silva, “as relações contratuais, enquanto fatos que se inserem no mundo das relações econômicas e sociais, com isto integrando–se à cadeia produtiva e afetando a esfera de terceiros, impõe um comportamento solidário, cooperativo, que é atuado pela idéia de função social” (In: A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição, p. 133. No âmbito interno da relação contratual a noção de cooperação é integrada a própria idéia de comportamento das partes no jogo contratual, de forma a permitir que o objetivo do contrato seja atingido na sua integralidade e concretize as expectativas de âmbos os contratantes. Trata-se de nítida negativa da noção individualista que por tanto tempo marcou a teoria dos contratos. Nesse sentido, o jurista finlandês Thomas Wilhelmsson afirma que enquanto a abordagem tradicional do direito contratual é antagonista e vê o contrato como uma combinação de vontades de duas partes para proteger apenas os interesses específicos de cada uma delas, o modelo contratual enfatiza de modo crescente o contrato como uma expressão de cooperação entre duas partes, sendo visto como forma como atingir resultados de acordo com os propósitos do contrato, conluindo “de modo geral um contrato pode ser visto cada vez mais como uma forma de cooperação flexível e cambiante com respeito e entre diferentes atores no mercado que é efetivada como como um meio de distribuição racional na sociedade. O ponto de vista é social: um contrato ser avaliado tendo-se em vista sua capacidade para criar uma cooperação social saudável” (In: WILHELMSSON, Thomas. “Regulação de cláusulas contratuais.” In: RDC, v. 18, p. 11). Neste âmbito externo, onde o contrato ganha um status de acontecimento social, a cooperação passa então a ser entendida como uma decorrência da idéia de solidariedade e da inserção desta no âmbito das relações privadas. Usando o exemplo paradigmático da relação de consumo, Claudia Lima Marques identifica que “a relação entre os consumidores e fornecedores não pode ser uma luta, mas sim um momento de cooperação para alcançar o útil e o necessário em uma sociedade em constante e rápida evolução” (In: “Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.” In: RTDC, p. 17). O dever de cooperação, como adverte Vera Fradera, já é reconhecido pela Suprema Corte Alemã desde 1920, consistindo no fato de o credor e devedor estarem obrigados a proporcionar as condições para o desenvolvimento do contrato e afastar os entraves à sua execução, mediante uma estreita cooperação (In: “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 151). Judith Martins-Costa destaca a atuação da boa-fé na consolidação do dever de cooperação como uma imposição da evolução da ordem econômica: “com efeito, constituindo ‘norma-princípio’, mais propriamente um modelo, boa-fé objetiva em sua concreta atuação opera articuladamente com outros princípios e com outras regras. No substrato desta técnica combinatória está a consideração das transformações que sofre a ordem econômica em razão da chamada ‘globalização’ e que utiliza as normas vagas, em combinação com normas imperativas, juntamente com outros procedimentos, tais como novas formas de articulação negocial, para minimizar os riscos das fissuras econômico-sociais, tendendo a assegurar, como assinala José Eduardo Faria, ‘um equilíbrio substantivo’ entre os participantes das relações econômico sociais e criando, na medida do possível, ‘as condições para a consecução de padrões básicos de solidariedade e cooperação”, In: COSTA, Mário Julio de Almeida. “A boafé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).” In: RBDC, p. 99. Cabe frisar aqui o posicionamento de Clóvis do Couto e Silva, pioneiro no estudo das potencialidades da boa-fé no direito brasileiro, segundo o qual ‘todos os deveres anexos podem ser considerados como deveres de cooperação’ (In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. Lês principes fondamentaux de la responsabilité civile em droit brésilien et compare. Cours fait à Paris: Université de Paris UII, 1988, p. 1). 628 224 3.6 A BOA-FÉ COMO ELEMENTO DE PROCESSUALIZAÇÃO DO CONTRATO No enfoque do crescimento vertical do contrato, esta figura negocial passa a ser encarada como um processo que se estende pelos períodos pré-contratual, contratual e póscontratual, sendo dotado de dinamicidade que lhe garantirá a flexibilidade necessária para se desenvolver no sentido de atingir a plena função social. Verifica-se, assim, um abandono da visão tradicional, em que o vínculo era enxergado como uma fotografia estática. A negociação forma-se por uma combinação de movimentos conduzidos ao sabor da realidade social que faz o seu entorno, em combinação com os objetivos almejados pelas partes. Vista como um dever de comportamento ético que deve nortear todas as relações negociais, o princípio da boa-fé objetiva traz a necessidade de repensar a dinâmica negocial, a ponto de moldar a conduta das partes desde a fase pré-contratual até a fase pós-contratual. Assim, é possível ser afirmado que a boa-fé literalmente processualiza o contrato, criando vínculos obrigacionais entre as partes, desde os primeiros contatos – responsabilidade précontratual – até a fase posterior à extinção formal do contrato – responsabilidade póscontratual. Dessa forma, o princípio da boa-fé enfraquece os limites formais do início e fim da contratação, em nome da proteção das expectativas legítimas629. Como ‘standard’ de comportamento, a boa-fé objetiva estabelece uma forma de conduta social adequada, com compatibilidade de adaptação aos casos específicos. Vera Maria Jacob de Fradera refere que a boa-fé objetiva é um conceito de geometria variável, cuja constância é duvidosa, mas cuja vantagem é a flexibilidade630. Atuando durante todo o processo contratual, o princípio da ____________ Lidia Cordobera, na doutrina argentina, observa que a boa-fé: “iluminam toda la vida del contrato, desde la creación de los deberes a cargo de los contratantes, antes del nacimiento del mismo contrato, el momiento de la formación o en la que se plasma el consentimiento donde se manifestará con deberes específicos de claridad, coherencia, congruencia, el tiempo de su cumplimiento, donde también deberá prestarse colaboración y aun con posteridad, donde deberá, por ejemplo, guardar reserva de aquello que le hubiera sido confiado en virtud de la relación negocial” (In: La buena fe como pauta de interpretación en los contratos. Tratado de la buena fe en el derecho. t. I, p. 346-7). 630 In: FRADERA, Vera Maria Jacob de. “A boa-fé objetiva, uma noção presente no direito alemão, brasileiro e japonês de contrato.” In: RBDC, p. 144. 629 225 boa-fé objetiva exerce suas funções em toda a extensão deste, otimizando o vínculo negocial631. Portanto, o princípio da boa-fé objetiva criar uma nova racionalidade jurídica aos contratos, que passam a ser considerados como um processo, visto na sua integralidade, de forma que, já na fase de aproximação dos possíveis futuros contratantes, os deveres éticos da boa-fé já se fazem notar, com destacável função. Na fase de execução da relação contratual, então, a boa-fé objetiva se destaca ainda com maior precisão, pois atuará como norteador da própria forma de realização dos deveres contratados, mantendo a processualidade do vínculo e permitindo assim o seu útil desenvolvimento como instrumento de tutela de interesses legítimos 632. Encerrada a execução do contrato, em uma diversidade de casos, o vínculo ainda continua irradiando efeitos, numa espécie de pós-eficácia do contrato. 3.7 A ATUAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO PARÂMETRO PARA A “ÉTICA NEGOCIAL” Como visto anteriormente, a boa-fé objetiva tem ganhado destaque, em especial pelo forte ativismo jurisprudencial, em diversos flancos do âmbito das relações jurídicas, ora atuando como técnica hermenêutica, na função limitadora de exercício de direitos reconhecidos, ou criadora de deveres colaterais que atuam como moldura do vínculo obrigacional. Entretanto, parece possível buscar-se, nesse emaranhado de utilidades do princípio da boa-fé, um sentido unívoco que servirá de norte para a sua concretização: a ____________ Judith Martins-Costa enfatiza a posição da boa-fé objetiva como modelo, dentro da concepção proposta por Miguel Reale, explicando que “para a sua correta aplicação, não pode o juiz prescindir da articulação, coordenada, de outras normas integrantes do ordenamento, compondo-as numa unidade lógica de sentido. É preciso recorrer, exemplificativamente, as regras da mora, ou da resolução contratual, ou da responsabilidade civil, ou do adimplemento, ou a tópicos integrantes do direito legislado, como o da ‘utilidade da prestação’ para o credor, ou a que consagra o poder do juiz de reduzir a cláusula penal, ou às regras da exceção do contrato não cumprido e ainda as do abuso de direito, ou a outros princípios e diretrizes, expressos ou implícitos no ordenamento, como o da moralidade e razoabilidade ou a solidariedade social, ou, enfim, aos cânones de interpretação e integração do contrato, para lograr uma adequada concreção do princípio”, In: COSTA, Mário Julio de Almeida. “A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).” In: RBDC, p. 75. 632 Segundo pontua Cláudia Lima Marques, a relação contratual pode ser vista como “um verdadeiro processo que se desenvolve no tempo (in: der Zeit verlaufenden Prozess), um processo social, um processo jurídico, o contrato, visualizado dinamicamente, indicando uma série de efeitos jurídicos (Rechtsfolgen) durante a sua realização, antes mesmo dela e após. Esta visão dinâmica e realista do contrato é uma resposta à crise da teoria das fontes dos direitos e das obrigações, pois permite observar que as relações contratuais durante toda a sua existência (fase de execução), mais ainda, no seu momento de elaboração (de tratativas) e no seu momento posterior (de pós-eficácia), fazem renascer direitos e deveres outros que os resultantes da obrigação principal” (In: Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 217-8) 631 226 atuação como parâmetro ético nas relações negociais. Nesse aspecto, manifesta-se expressamente Carlos Rezzónico, afirmando que em poucos temas como na boa-fé a consideração ética assume tanta importância, concluindo: ‘cuando la ley entroniza la buena fe, en realidad está aludiendo a un concepto y a un criterio valorativo que no es creado por el derecho sino que éste lo asume de la conciência social, de la conciencia ética, de la sociedad a la que se dirige’633. A utilização da boa-fé como parâmetro ético representa uma otimização das possibilidades deste princípio, proporcionando-lhe um viés ao mesmo tempo prático e doutrinário. Na precisa afirmação de Heloísa Carpena, a boa-fé constitui uma ética prática, cujos critérios variam de acordo com as condições sociais de determinado momento histórico e de determinada sociedade634. O desgaste ético nas transações negociais é uma das marcas do Direito Contratual da modernidade. A ânsia de lucro, estimulada pela competitividade da primeira globalização, essencialmente preocupada com as concentrações de riquezas, entrou em colapso com a percepção da necessidade de mudanças no mercado, centrado agora em outras aspirações que não prescindem da cooperação e dos valores sociais635. Assim, neste novo ambiente negocial pós-moderno, a boa-fé, nas palavras de Clóvis do Couto e Silva, passa a exercer, em especial, uma função harmonizadora, conciliando o rigorismo lógico-dedutivo da ciência do Direito dos séculos passados, com a vida e as ____________ In: REZZÓNICO, Juan Carlos. Principios Fundamentales de los Contratos, p. 500. Este autor ainda destaca que “la incorporación a un cuerpo de leys del principio de buena fe, puede interpretarse como la admisión de criterios éticos de estimación de la conducta, a los que el legislador enlaza consecuencias de derecho. Esos criterios se describen comúmente como propios a la conducta de ‘hombres honrados y concienzudos’, lo que viene de alguna manera a trasladar el problema a la determinación de estos otros aspectos, los que deden extraerse de la moral social vigente” (p. 500). 634 In: CARPENA, Heloisa. Abuso de direito nos contratos de consumo, p. 79. Nesse mesmo sentido, leciona Judith Martins-Costa: “a boa-fé substitui o chamamento de outros princípios ou noções – tais como a vedação ao enriquecimento sem causa, o abuso de direito, o princípio da solidariedade social, os de correção e honestidade ou a eqüidade -, todos eles ‘demasiadamente equívocos ou genéricos’, surgindo assim o recurso à boa-fé objetiva como resultante da ‘exigência de encontrar uma noção operativa, datada de um real valor prático” (In: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 436). 635 Noemi Nicolau sintetiza a importância da boa-fé na sociedade atual: “la sociedad atual, poco proclive a la lealdad, caracterizada por la competitividad, la masificación de las relaciones humanas y la pérdida de los valores, exige como nunca la buena fe en las relaciones jurídicas. Cabe preguntarse si es razonable imponer la exigencia de la buena fe – lealdad en el marco de las relaciones jurídicas de derecho privado, cuando no es frecuente hallar esa conducta en las relaciones familiares, sociales e políticas. Cabe preguntarse si, en tales circunstancias, es justo imponer parámetros tan exigentes al contratante, al socio, al acreedor. Por nuestra parte creemos que, cuando predomina la corrupción y la mala fe en las relaciones sociales, urge mantener con firmeza la exigencia de buena fe en las jurídicas, porque resulta ser una de los medios más eficaces para proteger al hombre de otros hombres, como principal tarefa que cabe al jurista de hoy, en especial, al civilista” (In: NICOLAU, Noemi Lídia. El rol de la buena fé en la moderna concepción del contrato. Tratado de al buena fe en el derecho, p. 324). 633 227 exigências éticas atuais, abrindo, por assim dizer, no ‘hortus conclusus’ do sistema do positivismo jurídico, ‘janelas para o ético’636. Neste mesmo sentido, na doutrina italiana, Massimo Bianca ressalta o aspecto ético que fundamenta a boa-fé, em correspondência à idéia de uma moral social ativa ou solidária637. O surgimento de uma nova ‘ética’ nas relações negociais, que substitua o já obsoleto e cansado individualismo do Estado Liberal, é inevitável. A ética individualista já não consegue corresponder às necessidades da sociedade - e do mercado – atual. É necessária uma nova massa de colmatação dos vínculos negociais, comprometida com a concretização dos valores sociais reconhecidos de maneira expressa no texto constitucional638. Troca-se a ‘ética individual’ pela ‘ética social’, preocupada com a harmonia interna das relações sociais, mas sem esquecer os seus reflexos no ambiente externo, onde está inserida a contratação. É a ética da cooperação e solidariedade, colocada agora como dever de conduta, derivado do princípio da boa-fé. Como ressalta Tereza Negreiros, o conteúdo eticizante da boa-fé legitima-se diante dos valores estabelecidos na Constituição, concretizando-se num processo de contínua ____________ In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo, p. 42. Nesse mesmo sentido, é a lição do jurista português Almeida Costa, para quem o princípio da boa-fé implica “uma específica valoração jurisprudencial ético-jurídica para a solução do caso concreto. Quer dizer, o acento tónico ético-valorativo coloca-se, respectivamente, no momento da feitura da lei e no momento da decisão (In: COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1994, p. 87). 637 In: BIANCA, Massimo. “La nozione di buena fede quale regola di comportamento contrattuale.” In: RDCiv, n. 03, 1983, p. 206. Entretanto, Judith Martins-Costa adverte: “com efeito, de pouca utilidade seria o recurso à boa-fé se esta se confudisse com um mero reclamo à ética. Se assim ocorresse estar-se-ia exclusivamente no campo da extensão dos poderes conferidos ao juiz, ausente ou não existente o conteúdo substancial do princípio em exame. Contudo, como insistentemente tenho referido, a boa-fé objetiva é mais do que um apelo à ética, é noção técnico-operativa que se especifica, no campo de função ora examinado, como o dever do juiz de tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança incumbente às partes contratantes, de forma a não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para a qual foi criado” (In: MARTINSCOSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado, p. 437). 638 Nas afirmações de Carlyle Popp, “nessa linha de pensamento seria inconcebível não reconhecer um fundamento constitucional para o princípio da boa-fé. Ele, de fato, não possui somente algum reflexo de cunho constitucional, mas é a própria materialização do princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito obrigacional” e “o direito, tendo o ser humano como protagonista das relações jurídicas, caminha, a passos largos, para cada vez mais buscar a efetivar o objetivo fundamental da República, qual seja: constituir uma sociedade justa e solidária. E para isto, certamente, o respeito à boa-fé objetiva colaborará” (In: “Considerações sobre a boa-fé objetiva no Direito Civil vigente – efetividade, relações empresariais e pós-modernidade.” In: GEVAERD, Jair; TONIN, Maria (coord.) Coletânea Direito Empresarial e cidadania: questões contemporâneas. Juruá, 2004no Direito Civil vigente – efetividade, relações empresariais e pós-modernidade, publicado na coletânea Direito Empresarial e cidadania: questões contemporâneas, Coord. Jair Gevaerd e Maria Tonin, Juruá, 2004, p. 22) e Maria Celina Bodin de Moraes: “sob a ótica constitucional, o princípio da boa-fé encontra-se implícito quer na cláusula geral de tutela da dignidade humana, quer no preceito que impõe como objetivo da República a constituição de uma sociedade solidária” (in: prefácio à obra Teoria do Contrato: novos paradigmas, Renovar, 2002). 636 228 realização639. A boa-fé atua como fator de moralização das obrigações jurídicas, funcionalizando o contrato para que ele sirva de instrumento de concretização da exigência de justiça social imposta como um dos escopos da ordem econômica estabelecida do Texto Constitucional, possibilitando uma espécie de ‘socialização das relações negociais’, o que, no entender de Tereza Negreiros, impedirá que as relações intersubjetivas possam ser compreendidas em si mesmas, sem uma contextualização sistemática e, em especial, constitucional640. Em síntese, o comportamento de boa-fé impõe o dever ético. Nesse contexto, pode-se falar na existência (ou exigência) de uma ética solidária, que se reflete, também, com especial ênfase, no plano do mútuo comportamento entre os sujeitos da relação, pois, como refere Emílio Betti, a boa-fé é, essencialmente, uma atitude de cooperação641. Trata-se da forma de pôr a salvo o interesse da outra parte até um limite que possa ser considerado como um ‘sacrifício razoável’, no sentido de garantir que o contrato possa atingir a sua finalidade e traga o proveito esperado para ambos os contratantes642. Nas palavras de Ruy Rosado de Aguiar, para a aplicação da boa-fé, o julgador parte do princípio de que toda a inter-relação humana deve pautar-se para um padrão ético de confiança e lealdade, indispensável para o próprio desenvolvimento normal da convivência social ____________ In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 273. Esta autora explica: “a novidade está, precisamente, na tentativa de entrever na incidência do princípio da boa-fé a impreterível confirmação do direito contratual aos princípios constitucionais, uma vez que o contrato deixa de ser considerado como um ‘instrumento economicamente neutro’, porquanto seus efeitos transcendem a privacidade das partes, devendo ser, por isso, diretamente informado pelo quadro axiológico do direito civil –constitucional” (p. 190). 640 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 257. Nessa mesma linha de argumentação, manifesta-se Ruy Rosado de Aguiar Junior: “são dois os lados, ambos iluminados pela boa-fé: externamente, o contrato assume função social e é visto como um dos fenômenos integrantes da ordem econômica, nesse contexto visualizado como um fator subjetivo aos princípios constitucionais de justiça social, solidariedade, livre concorrência, liberdade de iniciativa, etc., que fornecem os fundamentos para uma intervenção no âmbito da autonomia contratual; internamente, o contrato aparece como o vínculo funcional que estabelece uma planificação econômica entre as partes, às quais incumbe comportar-se de modo a garantir a realização dos seus fins e a plena satisfação das expectativas do negócio” (In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo.” In: RDC, p. 22-3). 641 In: BETTI, Emilio. Teoría General de las Obligaciones. Editorial Revista de Derecho. Madrid: Privado, 1969. t. I, p. 117-8. 642 Conforme In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 256, a qual ressalta que “é nesse contexto que se justifica e se reitera a oposição pessoa-indivíduo: aquele existe em sociedade e desenvolve-se através de relações que a boa-fé exige sejam solidárias; este existe em si, configurando-se o interesse social como a mera justaposição (e não interação de interesses individuais). Em termos concretos, antes a parte contratante podia fazer tudo que não prejudicasse a contraparte; agora, deve fazer tudo para colaborar com a outra parte desde que não prejudique a si própria de forma tal que o benefício contraposto desnature a função mesma do vínculo. Trata-se de uma mudança radical, expressa por uma inversão de perspectivas, segundo a qual o enfoque recai sobre os deveres jurídicos ao invés de, como antes, recair prioritariamente sobre os direitos subjetivos” (p. 256). 643 In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo.” In: RDC, p. 25. 639 643 .A 229 boa-fé atua, portanto, ainda, como um princípio de salvaguarda da noção de solidariedade contratual644. Voltando aos ensinamentos de Tereza Negreiros, nessa linha, a boa-fé manifesta-se como expressão da pós-modernidade no Direito, alerta às mudanças de mentalidade na história das idéias jurídicas645. 3.8 A BOA-FÉ NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: A CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA A operabilidade do princípio da boa-fé objetiva encontra-se visceralmente ligada à instrumentalização das relações de mercado, que, no dizer de Judith Martins-Costa, é o ‘locus’ onde se desenvolvem privilegiadamente as relações obrigacionais646. Tal vinculação é viabilizada em especial pelos deveres de colaboração, orientados pelas exigências da convivência social, colocando limites à perversidade da globalização. Voltando aos ensinamentos de Judith Martins-Costa: “nesta perspectiva, a boa-fé constitui, em larga medida, um freio, posto pelo próprio ordenamento no terreno das obrigações, aos problemas advindos da ação globalizante, na medida em que reintroduz, normativamente, as pautas de uma racionalidade tipicamente coligada à pauta de justiça corretiva, que, desde Aristóteles, está na base mesma da formação ocidental”647. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, no desempenho de sua tarefa de servir como orientador para a Política Nacional das Relações de Consumo, a vincula ao objetivo de harmonizar os interesses dos participantes das relações de consumo, bem como a ____________ Conforme BIANCA, Massimo. “La nozione di buena fede quale regola di comportamento contrattuale.” In: RDCiv, p. 209. O autor explica: “La buena fede quale principio di solidarietá contrattuale si specifica in: due fondamentali canoni di condutta. Il primo conone di buena fede, valevole principalmente nella formazione e nella interpretazione del contratto, impone la lealtá del comportamento. Nell’esecuzione del contrato e del rapporto obbligatorio, la buena fede si specifica anche como obbligo di salvaguardia. Qui la buena fede impone a ciuscuna delle parti di agire in: modo da preservare gli interessi dell’altra a prescindere da specifici obblighi contrattuali e dal dovere extracontrattuale del neminem laedere. Questo impegno di solidarietá, che si proietta al di lá del contenuto dell’obbligazione e dei doveri di respetto altrui, trova il suo limite nell’interesse proprio del sogetto. Il soggeto è tenuto a far salvo l’interesse altrui ma non si fino al punto di subire un appezzabile sacrificio, personale o economico. In: mancanza di una particulare tutela giuridica dell’interesse altrui non si giustificherebbe infatti la prevalenza di esso sull’interesse proprio del soggetto”. 645 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, p. 5-6. 646 In: MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: Do Direito das Obrigações, do adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Forense, v. V, t. I, p. 31. 647 In: MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil: Do Direito das Obrigações, do adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: Forense, v. V, t. I, p. 32. 644 230 compatibilização da proteção dos consumidores com as necessidades de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre orientado pela boa-fé. Ao fazer essa opção, o legislador consumerista relaciona a boa-fé aos ditames socioeconômicos que servem de orientação para o ordenamento jurídico nacional, fazendo com que esses venham a atuar ativamente no âmbito da economia do contrato. Assim o artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor criou uma nova orientação para a atuação do princípio da boa-fé, servindo como um canal de irrigação dos contratos de consumo, que passam a ser regados pelos princípios da ordem econômica, tais como a justiça social e solidariedade, dentre outros. Como enfatiza Ruy Rosado de Aguiar Junior, por meio deste postulado normativo, a legislação consumerista se dirige para o aspecto externo e quer que a boa-fé sirva para a superação dos interesses egoísticos das partes e a salvaguarda dos princípios constitucionais sobre a ordem econômica, através de comportamento fundado na lealdade e na confiança648. 4 OS DEMAIS PRINCÍPIOS DOS CONTRATOS PÓS-MODERNOS 4.1 O PERCURSO DO PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DO VÍNCULO CONTRATUAL ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE A história do contrato é marcada pelo apego ao dogma da pacta sunt servanda, que, durante um longo período, reinou de forma isolada na seara do pensamento jurídico contratual. Inicialmente, ligado às idéias racionalistas do século XIX, após comprometido com a noção de segurança para o tráfego negocial, este postulado teve o seu apogeu durante a fase do liberalismo econômico. Assim o contrato, enquanto ato da livre manifestação de vontade das partes, ganhava o caráter de intangível e obrigatório, vinculando as partes de forma irremediável. Somado ao ____________ In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo.” In: RDC, p. 22. Segundo este autor: “a boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade, conforme está contido na Constituição da República), numa tentativa de ‘concreção em termos coerentes com a racionalidade global do sistema” (p. 24). 648 231 aspecto jurídico, a pacta sunt servanda649 ainda ostentava um caráter ético que desautorizava a modificação da palavra emprenhada650. Com o passar do tempo, foi constatada a necessidade de flexibilizar a idéia hermética de intangibilidade do conteúdo dos pactos, pois a realidade, com sua força vital, mostrou-se mais potente que os postulados e silogismos racionalistas, exigindo que este dogma fosse repensado e sopesado frente aos acontecimentos sociais experimentados, em especial, após os grandes conflitos bélicos que marcaram o século passado. A Primeira Grande Guerra trouxe o fenômeno da inflação e o reconhecimento de seus efeitos nas relações econômicas. Dessa forma, o contrato, no desempenho de seu papel como instrumento econômico, não pôde deixar de sofrer as conseqüências dessa nova realidade. Na seqüência, vem a Segunda guerra mundial e as suas conseqüências devastadoras sob o continente europeu, deixando a descoberto os ideários jusracionalistas, exigindo medidas de caráter social capazes de absorver com o menor impacto possível, a nova realidade que começara a ser construída. ____________ Darcy Bessone, citando Giorgi, apresenta sete explicações filosóficas para este princípio: a) sociabilidade ou pacto social – o fundamento da obrigação contratual residiria em uma convenção tácita e primitiva de fidelidade às próprias promessas, celebrada pelos homens; b) ocupação, posse ou tradição – a promessa constituiria uma abdicação de direito e a aceitação importaria na ocupação do direito abdicado, operando-se, assim, a tradição; c) abandono da própria liberdade – todo homem teria uma esfera particular de direito, na qual poderia impedir o ingresso de qualquer outra, mas, se livremente o permitisse, não haveria injustiça na apropriação pelo credor de uma parte de sua liberdade; d) interesse – o homem deve manter, lealmente, as suas promessas, no próprio interesse, porque, de outro modo, perderia a confiança pública e dificilmente encontraria com quem contratar; e) Ahrens – a consciência e a razão mandam fazer o bem e, por conseguinte, respeitar as próprias promessas. Acresce que, se as promessas pudessem ser violadas impunimente, a ordem social tornarse-ia impossível, a sociedade seria inútil e o homem ficaria reduzido às suas próprias e mesquinhas forças; f) neminem laedere – não é tolerável que se faça mal a outrem, arrebatando-lhe o direito; g) veracidade – o homem deve manter as suas promessas, porque a lei da natureza o obriga a dizer a verdade. Pode, certamente, calar ou falar, mas, se prefere falar e, falando, promete, o dever de ser verdadeiro obrigá-lo-ia ao cumprimento prometido” (In: Do contrato: teoria geral, p. 19-20). 650 Luis Renato Ferreira da Silva ensina que “o assunto não é novo na doutrina, sendo que sua evolução histórica remonta, ainda que não em termos legislativos ou jurisprudenciais, mas como preocupação dos pensadores do direito e da filosofia em geral, desde a antigüidade clássica. O enfoque dado então era de cunho moral e vinculava-se à idéia de manutenção da palavra dada. Quer-se dizer, ignoravam-se conseqüências jurídicas para se preocupar com as relativas ao caráter ético da permanência dos contratos. Não custa relembrar que, à época, o direito estava intimamente ligado a fatores de ordem religiosa, o que revestia seus institutos, no caso, a regra de que a palavra dada deve ser mantida de certa sacralidade. Apesar destes fatores, já se referiu que pensadores como Cícero e Sêneca abriam exceções à vinculatividade do pactuado, o que conduziu, pelos caminhos do direito canônico, à elaboração jurídica da idéia. As exigências de um cientificismo que marcou profundamente os últimos séculos impuseram, à ciência jurídica, a busca de soluções mais técnicas para o problema das circunstâncias supervenientes, afastando-se dos princípios fundamentalmente religiosos e morais que estavam por debaixo da teoria da rebus” (In: SILVA, Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 125-6). 649 232 Esse panorama socioeconômico, agregado ao aparecimento de novas teorias sobre a ética negocial, criaram um ambiente propício ao surgimento de novos ideais visando à disseminação das idéias de revisão dos contratos por fatos supervenientes, ressuscitando o postulado da rebus sic stantibus651. O retorno desta regra652, agora na sua versão modernizada653, representou um marco definitivo na passagem do modelo de Estado Liberal para o Estado Social. O contrato, outrora intangível654, cede espaço para o ‘contrato evolutivo’655. ____________ A origem da expressão rebus sic stantibus é atribuída aos juscanonistas e pós-glosadores, representando uma abreviação da fórmula “contractus qui habent tractum succesivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus”. Almeida Costa ensina este princípio: “prende-se à doutrina e à prática forense medievais. De acordo com ele, nos contratos de longa duração, considera-se sempre subentendida a cláusula de que só valem mantendo-se o estado de coisas em que foram estipulados (contractus qui habent tractum succesivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus). Logo, caso se produza alguma mudança significativa das cirscunstâncias que existiam à data da celebração do contrato, a parte para quem o cumprimento result In: SILVA, Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, e demasiado gravoso pode pedir a sua resolução” (In: COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 265). 652 Menezes Cordeiro ensina que a idéia de que a adstringibilidade do comportamento humano depende das circunstâncias fáticas condicionantes de sua constituição já deitava suas raízes na cultura da antigüidade: “esta tese é apoiada em Polybius, sempre, em Cícero e Séneca. Conta Polybios, transcrevendo em um discurso: ‘Se a situação agora ainda fosse a mesma do que antes, na altura em que vocês concluíram a aliança com os Aetólios, então vocês deveriam decidir-se a manter firme o vosso convénio pois a isso vos tereis obrigado; caso ela esteja, contudo, totalmente modificada, então ser-vos-á justificado retomar, sem qualquer dúvida, a questão’. Diz Cícero, por seu turno: Sed incidunt saepe tempora, cum ae, quae maxime videntur digna esse iusto homine eoquequem virum bonum dicimus, commutantur fiuntque contraria ut reddere depositum facere promissum, quaeque pertinent ad veritatem et ad fidem, ea migrare interdum et non servare fit iustum. Referri enim decet ad ea quae posui principio fundamenta iustitiae: primum tut ne cui noceatur, deinde ut communi utilitati serviatur. Ea cum tempore commutantur, commutatur officium et non semper est idem. E ainda: Sic multa, quae honesta natura videntur esse, temporibus fiunt non honesta. Escreveu, por fim, Seneca: Tunc fidem fallam, tunc inconstantiae crimen audiam, si, cum eadem omnia sint, quae erant promittente me, non praestitero promisso; alioquin, quidquid mutatur, libertatem facit de integro consulenti et me fide liberat”. Entretanto, o autor adverte que não existia no Direito Romano um princípio geral que autorizasse a ser levada em consideração no cumprimento das obrigações a alterações das circunstâncias, pois o pensamento romano não era dotado de sistematização. Esta questão viria a ser tratada de forma mais científica apenas na doutrina medieval, pelo esforço teórico de autores como Grotius e Pufendof (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 938-941). 653 Após semeada a cláusula rebus sic stantibus pela doutrina medieval, duas foram as vertentes que se seguiram: uma de caráter humanista, ancorada no pensamento da primeira sistemática o ‘mos gallius’ e outra de feição jusracionalista, ligada ao Direito Europeu das glosas e comentários, que permite a superação das suas dificuldades de integração sistemática. Entretanto, essas duas vertentes acabaram por trilhar caminhos convergentes, que desaguaram no entendimento atual sobre os limites e potencialidades desta cláusula (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 947). 654 Menezes Cordeiro ensina que “a linhagem da velha ‘cláusula’, que subia até Bartolo e aos Canonistas, foi, como se viu, interrompida pelos jurisprudentes elegantes. A falta de apoio cultural ditou, assim, o silêncio do Código Napoleão na matéria”, acrescentado que “o Código Napoleão culminou esta evolução, ignorando totalmente a ‘cláusula rebus sic stantibus’ ou qualquer outro instituto que, em geral, prosseguisse a sua finalidade. Às vacilações do jusracionalismo somou-se, desta feita, todo o peso da tradição elegante francesa expressa nos silêncios eloqüentes de Ciuacius, Donellus, Domat e Phothier (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 954-5). 655 Expressão utilizada por ALTERINI, Atílio Aníbal. Teoria de la imprevisión y cláusula de hardship. Disponível em: 651 233 Esse sentimento de desconforto frente a cultuada rigidez no cumprimento dos pactos agitou a doutrina jurídica, atuando como fomentador dos mais acesos debates que marcaram a ciência jurídica nos últimos tempos, e que ainda se fazem presentes, de forma cíclica, nos debates atuais, ostentando, no dizer de Almeida Costa uma permanente actualidade656. Não há como deixar de reconhecer o fato de que a celebração dos contratos é rodeada de uma série de circunstâncias, das mais variadas ordens, que por vezes tende a sofrer alterações advindas do seu intercâmbio com a realidade social em que intervém. Há uma via de mão-dupla entre a realidade fática e os aspectos jurídicos que revestem os pactos. Assim a vivência do contrato em consonância com os acontecimentos sociais poderá levar ao desequilíbrio entre as contraprestações entabuladas ou, até mesmo, afetar o próprio escopo que motivou a celebração do vínculo contratual, levando o contrato a se afastar de seu sentido inicial657. Assim este novo rumo do enfrentamento da teoria contratual em relação ao “mundo real”, com suas vicissitudes econômicas e sociais, põe por terra o entendimento no sentido de que a revisão dos pactos representaria um momento de patologia dos contratos, uma situação anormal e incomum658. Essa visão do caráter excepcional da revisão dos pactos é preconceituosa e carregada, ainda, de um espírito racionalista, típico do passado iluministaliberal, que deixa em segundo plano a visão do contrato como algo vivo, real e comprometido com o seu contorno social. A revisão dos contratos em função de acontecimentos supervenientes nada mais faz do que trazer à tona e pôr em relevo a condição do contrato como um jogo de riscos, que se combinam de forma mais ou menos harmônica. O risco é elemento natural do xadrez contratual, em especial nos negócios que se prolongam no decorrer do tempo. Não há nada de ____________ In: COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações p. 263, acrescentando: “a segurança das relações jurídicas induz à estabilidade dos contratos. Pode acontecer, porém, que uma mudança profunda das circunstâncias em que as partes se vincularam torne excessivamente oneroso ou difícil para uma delas o cumprimento daquilo a que se encontra obrigada, ou provoque um desequilíbrio acentuado entre as prestações correspectivas, quando se trate de contratos de execução diferida ou de longa duração. Nestas circunstâncias, às vantagens da segurança, aconselhando a rigorosa aplicação do princípio da estabilidade, opõe-se a um imperativo de justiça, que reclama a resolução ou modificação do contrato”. 657 Segundo Mosset Iturraspe, essas modificações na noção de contrato também se fazem sentir no sistema jurídico argentino, explicando que “la nueva concepción del contrato, atento a su doble función individual y social, y el intervencionismo estatal, que es su consecuencia, posibilita la revisión de los contratos, tanto por el Poder Legislativo como por el Poder Judicial. La revisión por el primero se opera mediante la llamada ‘legislación de emergencia’, siendo duen ejemplo de ella la dictada sobre locaciones urbanas. La revisión por el segundo encuentra cauce en el ejercicio abusivo de los derechos (art. 1071) y en la excesiva onerosidad sobreviniente (art. 1198)” (In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos. Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni Editores, 2003, p. 365). 658 Nesse sentido, ver ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 114. 656 234 ‘anormal’ nas influências que o tempo traz à execução do contrato. Poderia, sim, entender-se como “anormal’ a situação fria de um pacto que se mostrasse impermeável às influências do tempo, pois estaria alheio ao momento econômico e social que o cerca. Não seria um contrato ‘vivo’, e sim um pacto sem alma. Pode-se, então, com inspiração no sistema da common law, aceitar a existência de uma implied condition, no sentido de que a sobrevivência do contrato pressupõe uma condição implícita no sentido de que as circunstâncias que presenciaram a formação do vínculo contratual permaneçam no momento da execução. Nesse contexto, surgem as teorias que toleram a revisão dos contratos quando, em decorrência de um fato posterior a sua formação, são verificados acontecimentos econômicosociais que justificam a modificação do conteúdo do vínculo negocial ou, mesmo, a sua extinção. Dentre essas idéias ganharam destaque, de forma seqüencial, as teorias da pressuposição, da imprevisão e, mais recentemente, a teoria da quebra da base econômica do contrato 659. Essas teorias justificarão a resolução do vínculo ou a revisão de seu conteúdo660. No primeiro caso, o fato superveniente, de caráter social e inevitável, gera a efetiva frustração ____________ No plano dos contratos internacionais, é utilizada com freqüência a ‘cláusula hardship’, que prevista de forma expressa no instrumento negocial, permite a sua revisão em função da ocorrência de fatos que afetam o seu equilíbrio econômico. Aníbal Alterini indica a existência de uma variedade de ‘cláusulas hardship’, que podem assumir os seguintes perfis: “(a) pueden enunciar uma fórmula general (Por ejemplo, tomar em cuenta uma situación grave, de carácter financiero, econômico o político; (b) acudir a um enunciado puntual (por ejemplo, dar relevância a nuevos custos fiscales, restricciones derivadas de políticas ambientales, variaciones em la tasa de cambio, etcétera); ( c) establecer que, dadas las circunstancias previstas, las partes deberán renegociar el contrato em cierto plazo, o someterse a arbitraje; (d) permitir, em fin, que la parte perjudicada se desligue del contrato; etecétera” Assim o autor atribui à ‘cláusula hardship” o caráter de ‘uma cláusula ‘rebus sic stantibus perfectibilizada. Entretanto explica que existe entre as duas figuras uma mera aproximação, pois representam aspectos distintos: “sus efectos la aproximan a la teoria de la imprevisión. Pero se diferencia de ella em estos aspectos: (i) como cláusula explícita proviene de la convención de partes, (ii) os critérios para su aplicabildad resultan de lo pactuado y, en los hechos, generalmente son más laxos que lo que rigen en la teoria de la imprevisión” (In: ALTERINI, Atílio Aníbal. Teoria de la imprevisión y cláusula de hardship. Disponível em: ). 660 Os Princípios sobre os Contratos Comerciais Internacionais de UNIDROIT, em seu artigo 6.2.2, estabelece que: “se presenta um caso de excesiva onerosidad (hardship) cuando ocurren sucesos que alteran fundamentalmente el equilibrio del contrato, ya sea por el incremento del costo de la prestación a cargo de una de las partes, o bien por una disminuición del valor de la prestación a cargo de la otra y, además, cuando: (a) dichos sucesos no son conocidos por la parte en desvantaja después de la celebración del contrato; (b) dichos sucesos no pudieron ser razonablemente previstos por la parte en desvantaja en el momento de celebrarse el contrato; (c) dichos sucesos escapan al control de la parte en desvantaja no asumió el riesgo de tales sucesos”. 659 235 do fim contratual objetivado661. Nessas situações, com fundamento nos próprios postulados da função social do contrato, a única solução plausível parece ser mesmo o desfazimento do vínculo, pois não mais existe a utilidade social que justificou a formação do contrato. Como aponta Luis Renato Ferreira da Silva, nesse caso a própria prestação é afetada, de forma que frustra-se a sua finalidade, ocorrendo a perda da utilidade para uma das partes que não encontra mais razão para o seu cumprimento, eis que o fim que a moveu na contratação desapareceu662. Note-se que, neste caso, a obrigação pode continuar possível, mas mostra-se inócua, existindo ou não onerosidade excessiva. Há casos, entretanto, em que o advento do fato posterior proporciona um desequilíbrio fragrante na economia do contrato, numa “impossibilidade econômica” de manutenção do vínculo nos seus parâmetros iniciais663. A onerosidade excessiva retira a justificativa econômica do contrato, de forma que a solução será a sua revisão, de maneira que permita o cumprimento adequado das obrigações pactuadas, sem manifesto prejuízo para os contratantes. O jurista argentino Hector Masnatta explica que “la onerosidad será excesiva cuando el valor de una prestación respecto a la contraprestación se altera de tal modo que sobrepasa las flutuaciones que las partes han considerado normales” e que “la onerosidad no debe determinarse sólo en consideración a la prestación principal, sino teniendo en cuenta todas las obligaciones accesorias, v. gr. , los gastos ocasionados para poner o devedor en situación de cumplir”664. ____________ O exemplo clássico desta situação é trazido à tona por Luis Renato Ferreira da Silva, nos coronation cases do Direito Inglês: “série de casos onde as pessoas que haviam alugado cadeiras, janelas e embarcações para ver o cortejo de coroação do Rei Eduardo III viram seu desiderato frustrado, pois a coroação foi adiada por motivo de doença do rei. De todos os casos o mais citado é, por sua vez, Krell v. Henry, onde se desobrigou o locatário do pagamento devido porque a finalidade do contrato tinha sido especificamente a coroação” explicando: “ao julgar este caso a decisão centrou-se na frustração que atingia o fim do contrato. Quer dizer, buscou-se não as condições pré-estabelecidas ou as implícitas, mas sim a finalidade contratual, ou seja, a possibilidade de cumprimento satisfatório, colocando-se fora do contrato os fatores autorizadores da ‘frustration’. A importância deste caso ressalta no momento em que se vislumbra a busca de fatos circunstanciais perfeitamente previsíveis e, mais ainda, sem recurso a vontades imanentes, mas à vontade real” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 128 e 130, respectivamente) 662 In: SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 139. 663 Judith Martins-Costa alerta que as situações de impossibilidade objetiva da prestação não podem ser confundidas com as situações de ocorrência de onerosidade excessiva: “à diferença do que sucede com a impossibilidade objetiva de prestar, na hipótese de onerosidade excessiva, a prestação é ainda possível, em abstrato; porém, como explica Betti, a cooperação exigida na relação obrigacional exige que se impeça o sacrifício econômico exagerado para uma das partes” (In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado p. 648). 664 MASNATTA, Héctor. La excesiva onerosidad sobreviniente y el contrato, p. 54 e 57, respectivamente. 661 236 Note-se que este segundo caminho, no sentido da efetivação da revisão do contrato, afastando a pretensão resolutória, deve ser priorizado, pois somente assim se estará conservando o vínculo contratual. A noção de revisão contratual possui uma ligação direta com aos ideais de conservação dos vínculos negociais, o que vem ao encontro do postulado negocial pós-moderno do ‘contrato-relação’. 4.1.1 A teoria da Pressuposição: a contribuição de Windscheid A teoria da pressuposição, decorrente da célebre formulação de Windescheid, apresentada em sua obra sobre a ´doutrina do Direito romano da pressuposição’, causou no século XIX apaixonadas discussões juscientíficas entre os juristas alemães da época. Mosset Iturraspe resumiu essa doutrina explicando que o formulador dela “endendía por ‘presuposición’ una limitación de la voluntad exteriorizada en la declaración negocial, en su supuesto de hecho, por la cual la voluntad negocial sólo tiene valor para el caso previsto, que el declarante considera cierto y, por ende, innecesario de colocar como condición de que exista, aparezca o persista una determinada circunstancia”665. Assim, pressuposição(Voraussetzung) representa a circunstância ou situação pressuposta e o próprio estado de espírito do pressuponte, atuando como uma condição embrionária ou não desenvolvida666. Segundo Windscheid, a pressuposição pertence às auto-limitações da vontade, numa situação similar a uma condição não desenvolvida (uma limitação da vontade que não se desenvolve para condição), de maneira que a relação jurídica originada da declaração de vontade depende de um certo estado de coisas pressuposto, que, se não se concretizar ou deixar de existir, comprometerá a relação jurídica a ela vinculada667. Nesse contexto, a pressuposição pode ser expressa ou tacitamente manifestada, mas o declarante somente pode alegá-la quando o motivo tenha se elevado à categoria de pressuposição, quer reportando-se ____________ In: ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 91. Conforme COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 266. O autor detalha os postulados desta teoria ensinando que ela “assenta nos seguintes postulados: qualquer declaração de vontade negocial pode ser feita na plena convicção de que se manterá determinado estado de coisas em relação ao tempo existente, ou de se haverem produzido ou virem a produzir-se certos fatos pretéritos, presentes ou futuros, de tal sorte que, de outro modo, não se realizaria o negócio, ou a sua estipulação teria ocorrido em termos diversos; e o convencimento da verificação dessas circunstâncias ou facto é tão seguro, que nem mesmo se insere no contrato a cláusula correspondente, apresentando-se a pressuposição, portanto, como uma condição embrionária, ou não explícita ou desenvolvida (eine unintwickelte Bedingung)”. 667 In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 970. 666 665 237 ao passado, presente ou futuro, em relações momentâneas ou duradouras668. A teoria de Windscheid, então, estabelecia uma relação de dependência entre a declaração de vontade negocial e a manutenção de certos estados ou ocorrência de determinados eventos. Na sua formulação, Windscheid mantém-se apegado aos ensinamentos de Savigny, em sua lógica sistemático-subjetiva que reduz à vontade humana a razão de ser de todas as posições subjetivas. Assim o autor construiu o seu pensamento esteado na concepção subjetiva, que posiciona a vontade humana no centro de qualquer construção jurídica, de forma que a pressuposição representa um fator sem o qual o sujeito não teria emitido a sua declaração negocial, assumindo relevância jurídica na medida em que conta com o conhecimento da contraparte negocial. A comparação inevitável entre os fundamentos da teoria da pressuposição e a doutrina sobre os motivos do negócio jurídico – em especial quanto ao erro em relação aos motivos – gerou severas críticas à formulação de Windscheid, cunhadas especialmente por Otto Lenel, o que acarretou o seu afastamento do então projeto de Código Civil alemão669, onde inicialmente era contemplada, mas apenas no sentido de acontecimento futuro: “Aquele que realizar uma prestação sob a pressuposição, expressa ou tacitamente declarada, da verificação ou não verificação de um acontecimento futuro, ou de um efeito de direito, pode exigir a restituição ao destinatário, caso a pressuposição não se realize”670. As contestações a essa proposta normativa foram bem incisivas, no sentido de que esta teoria não teria ainda ____________ In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 971. As críticas de Otto Lenel podem ser encontradas na sua obra, traduzida para o espanhol: “La clausula rebus sic stantibus”, Ed. RDP, Madri, 1935. Menezes Cordeiro sintetiza os argumentos contrários à inserção da teoria da pressuposição no BGB levantados por este autor: “Essa crítica desenvolveu-se, precisamente, nestes dois planos: numa crítica interna ao preceito que, no projecto, consagraria a pressuposição e numa crítica material à própria doutrina da pressuposição em si. No primeiro plano Lenel estranha que, no par. 742 do projecto, não se tenha incluído, também, a pressuposição de passado e a de presente. Recordando, com gosto, as dúvidas e hesitações presentes nos ‘Motive’, Lenel remata que, assentando uma doutrina num princípio único, ou esta toda certa, ou toda errada; tivesse Windscheid razão, e haveria que a receber no todo; havendo dúvidas, melhor seria deixar a questão em aberto, aguardando o aperfeiçoamento doutrinário. Em caso algum deveria se aceitar uma recepção parcial. No segundo plano, Lenel assevera, no essencial, a impossibilidade de distinguir, dos meros motivos, a pressuposição de Windscheid. Quem tenha dúvidas quanto às bases em que se assente o negócio que pretenda celebrar terá, apenas, de nele inserir uma condição por ela não aceita. Por uma de duas hipóteses: ou o contratante do negócio desconhece, em absoluto, a pressuposição - cenário possível, uma vez que Windscheid exigira, para a eficácia da pressuposição, não o seu conhecimento, mas a sua mera cognoscibilidade pela outra parte – ou, conhecendo-a, não esteve disposta, na conclusão do negócio, a fazê-lo depender dela, tomando-a como mero assunto particular da outra parte. Lenel vinca, pois, que não existe meio termo entre os motivos e a condição; tentar estabelecê-lo é abrir a porta aos motivos e, com isso, introduzir a insegurança no Direito. Lenel conclui que Windscheid tentara uma leitura da ‘causa’romana, mas não conseguira; propõe, por isso, que se abandone, no projecto, a ideia de pressuposição e que se tente, em vez dela, uma melhoria do esquema das condictiones” (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 973-5). 670 A previsão em questão era consagrada no parágrafo 742 do então projeto de Código Civil Germânico. 669 668 238 obtido reconhecimento jurídico capaz de justificar a sua inclusão na codificação tedesca, podendo fazer perigar a segurança de tráfego. No entanto, como pondera Menezes Cordeiro, apesar de desamparada pelo Código Civil Alemão, a teoria da pressuposição viria a se fazer presente na jurisprudência que se seguiu, contribuindo decisivamente para reconduzir as próprias orientações voluntaristas à aceitação da eficácia da alteração das circunstâncias671. Note-se, entretanto, que a teoria de Windscheid, embora reconheça que a pressuposição pode deitar suas asas em relação, tanto ao passado, presente ou futuro, mantém as duas primeiras hipóteses sob a seara dos vícios do consentimento, na categoria de ‘erro’, considerando apenas a pressuposição em relação a questões advindas na execução do pacto, como uma espécie de “error in: futurum”. Mas, certamente, o calcanhar de aquiles da teoria da pressuposição sempre foi o relativo a sua impotência no sentido de gerar uma adequada segurança ao tráfego negocial, pois o seu forte apego aos aspectos subjetivos do contrato levou a possibilidade de revisão do vínculo mesmo nos casos de pressuposição unilateral672. Mas além da insistência em colocação da vontade humana com eixo central do pensamento jusprivatista, a teoria de Windescheid pecou pela sua delimitação, pois se mostrou ineficaz para um devido enfrentamento da alteração das circunstâncias, pois neste ambiente, mais do que a preocupação com a concretização das circunstâncias preconcebidas, tomam-se em conta os reflexos que as modificações fáticas geram na manutenção do equilíbrio das relações negociais. ____________ In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 973. Este autor, oportunamente, anota que “a crítica última de Lenel a Windscheid fora, afinal, a de que a pressuposição instalaria, no futuro código, a insegurança. Ora, o BGB não teve dúvidas em consagrar dispositivos bem mais ousados e bem menos esclarecidos do que o da pressuposição – pense-se na boa-fé! – chegamos mesmo, em certas disposições, - par. 321 e 610 – a admitir, em termos amplos, embora sectorizados, a relevância da motivação superveniente das circunstâncias. A insegurança nunca seria problema, tanto mais que poderia, facilmente, ser enquadrada num esquema probatório adequado. A pressuposição caiu, em primeira linha, porque Lenel lhe lançou, através de críticas nem sempre irrespondíveis, o anátema que, desde Savigny até hoje, paira sobre os motivos da declaração da vontade e ainda porque, num gesto onde se nota todo o vigor do autor, da reconstrução da ‘Edictum perpetuum’, lhe retirou o apoio cultural laboriosamente captado por Windscheid na recolha dos textos romanos. A pressuposição era o motivo e não tinha apoio nos textos: tanto bastou para ficar sem defesa”. (p. 975). 672 Almeida Costa informa que “argumenta-se, conseqüentemente, que oferece um pouco satisfatória defesa das justas expectativas do declaratário e da segurança necessária ao comércio jurídico. Admite-se a impugnação do negócio desde que a pressuposição fosse conhecida ou mesmo só cognoscível do outro contratante. Ora, este aspecto, apenas por si, não deve bastar.Pode a outra porte, embora conhecendo ou sendo cognoscível a pressuposição, não haver querido que a eficácia do negócio ficasse dependente da sua verificação, nem a boa-fé a isso obrigá-la. A referida doutrina, em síntese, conduz à denegação do princípio da estabilidade do contrato mesmo que a manutenção dele não afete de modo expresso a boa-fé” (In: Direito das Obrigações, p. 267). 671 239 Posteriormente, as perturbações econômicas decorrentes da Primeira Grande Guerra, desencadeando o robusto crescimento da inflação, causou a ressurreição dos debates sobre a teoria da pressuposição. Os novos enfoques agregados à doutrina de Windscheid fizeram com que nascesse uma nova versão para a teoria da pressuposição, mais moderna e comprometida com o contexto sócio-econômico da época673. Como afirma Luis Renato Ferreira da Silva, as numerosas teorias que desembocaram na formação predominante da chamada teoria da imprevisão encontram seu nascedouro na teoria da pressuposição de Windscheid674. 4.1.2 A revisão judicial dos contratos com fundamento na teoria da imprevisão A teoria da imprevisão é a mais tradicional das teorias revisionistas675, com notável destaque nas doutrinas jurídicas da França e Itália, não sendo rara a sua utilização pela práxis jurídica como representativa da própria idéia revisionista dos contratos, num fenômeno que Menezes Cordeiro chamou de ‘osmose lingüística’676. ____________ Mosset Iturraspe explica que “el matriz más interesante dentro de esta corriente moderna de la presuposición - se acota con toda razón – radica en haber avanzado dentro del contenido, dentro del objeto del contrato, y haber manifestado que hay motivos que, no obstante no ser referidos expresamente por las partes, no pueden ser considerados irrelevantes, porque de la forma como actuaron las partes, en el caso considerado, se puede deducir, en forma inobjetable, que fueron tenidos en cuenta, pues, de lo contrario, no se habría configurado el sinalagma originario ni la equivalencia de prestaciones” (La Frustración del Contrato, p. 94). Este autor buscou na doutrina Italiana referências à teoria da pressuposição, destacando quatro doutrinadores, começando por M. Rescigno (in: Manual de Diritto Privato, Nápolis, 1973, p. 303), segundo o qual “debe darse relevancia al instituto de la presuposición, tomando como cierta la actitud que debieron asumir las partes al tener que haber actuado de buena fe. Apunta que la jurisprudencia más reciente, en Italia, ha objetivizado el concepto de presuposición, directa ou indirectamente, entendiendo por tal aquella situación de hecho o de derecho, querida por ambas partes en el momento de contratar y que no hay duda fueron tenidas en cuenta, a pesar de que no figuren en le contrato, dado lo que surge del proprio negocio”; L. Osilla (in: La sopravvenienza contrattuale, Rivista de Diritto Commerciale, 1924, p. 313): “la presuposición, por ser tal, debió de haber sido conocida por el hombre con diligencia y raciocinio medio y en cuanto tal debió reputarse conocida y aceptada”; G. Pellicano (In: “La presuposizione.” In: RTDP C, 1976, p. 1636): “es innegable la necesidad, dentro del proceso de objetivización, ‘de coligar este instituto con la causa’ para salvarlo dela crítica que se le hace respecto de los motivos irrelevantes”; e por último M. Cassattana (in: Presuposizione e rischo contrattualle negli orientamenti della dottrina e della giurisprudenza, Rivista de Diritto Commerciale, 1977): “no obstante el correr de los años, la experiencia muestra que permanece una tendencia jurisprudencial a aceptar de una forma o de otra los postulados basicos del instituto de la presuposición. Acota que, mientras la doctrina italiana se muestra un tanto más partidaria de los argumentos objetivos, la jurisprudencia se siente más cómoda desplazándose por los argumentos de la corriente subjetiva” (p. 94-5) 674 In: SILVA, Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 126. 675 Luis Renato Ferreira da Silva entende que a formulação atual da teoria da imprevisão resulta da combinação de diversos entendimentos teóricos, que designa de “teorias da imprevisão”, referindo-se à teoria da pressuposição, de Windscheid, da superveniência, de Giuuseppe Osti, das circunstâncias extracontratuais de Bruzin e teoria do erro, que têm dentre os seus defensores Achile Giovene (In: SILVA, Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 102 e ss.). 676 In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 955, nota 189. 673 240 Impulsionada pelos acontecimentos catastróficos da segunda grande guerra, a teoria da imprevisão ganhou campo na Europa do pós-guerra, em especial na França e Alemanha, e, a partir de então, espalhando-se por diversos países de tradição romano-germânica. A divulgação dessa teoria foi consectária da jurisprudência administrativa francesa, que, numa reação ao rigorismo do Code, mostrou-se simpática à revisão dos contratos frente ao advento de circunstâncias imprevisíveis677. A sua aceitação nos contratos administrativos não enfrentou tantas resistências, face às peculiaridades dessas contratações pelos interesses públicos envolvidos e pela necessidade de continuação do funcionamento dos serviços envolvidos678. No Direito Brasileiro, a teoria da imprevisão tem a sua nascente relacionada aos surtos inflacionários que dominam a economia da segunda metade do século passado. A crescente espiral inflacionária que assolou o nosso sistema econômico na década de oitenta, reforçada pelos insucessos dos sucessivos planos governamentais e desvalorizações da moeda foram os responsáveis pela consolidação definitiva desta teoria, tanto nos tribunais quanto na seara doutrinária, apesar da lamentável carência de base legislativa autorizadora da revisão contratual nestas situações. A teoria da imprevisão é, então, compreendida e aplicada como uma espécie de princípio geral do Direito. ____________ César Fiuza lembra que a cláusula rebus sic stantibus já era consagrada no Código Civil Austríaco de 1811, embora se experimentasse nessa época o reinado do pensamento liberal, e que a sua adoção já era conhecida em 1900, em aresto da Corte de Turim: “queste in: sostanza essendo le considerazione sulle qualli, independentemente da quelle circa l’aplicabilità al caso delle regole d’equità, si fonda la pronuncia della Corte di merito, è per sè evident che la regione del decidere stà as ogni modo nel riconoscito diffeto di consenzo o di voluntà de obbligarse in: quelle sopravvenute imprevisibili condizioni di cose che, se previste, avrebbero reso impossibile ogni accordo fra le parti. Più che un principio di equità temperativa fu quello di equità interpretativa di un contratto avente tratto sucessivo che determinò la decisione della Corte modenese, la qualle per mutamento impreveducto di cìo che formava oggetto assenziale del contrato giudicó che há forza di leggi fra le parti. Il giudizio della Corte non può quindi essere censurato perchè, ritenuto com apprezzamento, sovrano che erano cessati i rapporti contrattuali, la risoluzionen dell’obbligazione subordinata al rimborso di ciò, che constituisce il corispettivo dell’obbligazione stessa, che è la logica e giuridica consequenza” (In: FIUZA, César. “Aplicação da cláusula ‘rebus sic stantibus’ aos contratos aleatórios.” In: RIL, n. 144, out-dez. 1999, p 7). 678 Menezes Cordeiro informa que: “a consagração judicial da ch. teoria da imprevisão deve-se às convulsões provocadas pela guerra de 1914-18. Como marco desta teoria aponta-se, habitualmente, ConsEt 30-Mar-1916, no caso conhecido da Companhia geral de iluminação de Bordéus, embora o texto dessa decisão pressuponha um reconhecimento judicial anterior à teoria. Discuti-se, aí, o seguinte: a Companhia de iluminação em causa celebrara, por trinta anos, em 1904, um contrato de concessão para o fornecimento de gás e de eletricidade a Bordéus, de acordo com determinadas tarifas; depois de 1914, assiste-se à alta do carvão, em proporções tais que poderiam fazer perigar a viabilidade da Companhia; o ConsEt começou por focar que, em princípio, o contrato de concessão regula de modo definitivo e que as mudanças de preços integram a álea do contrato; no caso vertente, porém, ocorrera uma situação extraordinária, gerada pela guerra, dada a necessidade de assegurar o interesse geral, a concessionária só deveria suportar a superveniência na parte razoável, face ao contrato. Esta orientação manteve-se na jutrisprudência posterior do Conselho de Estado francês, vendo, até, alargar o seu âmbito” (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 962-3). 677 241 Assim, consolidada pela práxis e contando com a simpatia doutrinária, a teoria da imprevisão acabou por se consolidar definitivamente em nosso sistema jurídico, aplicando-se nas situações em que fosse possível observar a presença dos seguintes requisitos: (a) contratos de execução continuada ou diferida no tempo679; (b) ocorrência de um fato superveniente, dotado de caráter imprevisível, representado pelo advento de situações incomuns, extraordinárias, inesperadas, que surpreendem as partes, (c) verificação de excessiva onerosidade em relação ao sinalagma funcional do contrato, caracterizada por um gravame econômico considerável, substancial, que aumente consideravelmente o custo da prestação680; (d) relação inequívoca de causa e efeito entre o fato surpresa superveniente à formulação do vínculo contratual e à onerosidade excessiva; (e) inimputabilidade do fato em questão à parte prejudicada. Dentre esses requisitos apontados, não há sombras de dúvida sobre a preponderância exercida pelo pressuposto da previsibilidade. Trata-se de caractere fundamental, que inclusive batiza a teoria681. Cabe, aqui, lembrar a lição de César Fiuza, no sentido de que o centro da imprevisibilidade é o evento futuro e incerto682, que representa um afastamento do curso natural dos acontecimentos naturalmente esperados de acordo com as experiências de vida em sociedade683. ____________ Como ensina Luis Renato Ferreira da Silva: “os pactos sujeitos à imprevisão são aqueles que possuem um lapso temporal entre a sua formação e o cumprimento. Este lapso pode ser preenchido por prestações periódicas (contrato de trato sucessivo ou de execução continuada) ou por prestação única apenas que distante da contratação (contrato de execução diferida)” (In: SILVA, Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 110). 680 Em que pese a existência de considerável doutrina que enfoca a onerosidade em termos subjetivos e tópicos, como faz Hora Neto (afirmando que a onerosidade excessiva deve ser compreendida como “a extrema dificuldade de cumprir a obrigação assumida – aponto mesmo de levá-la a ruína, à pobreza, à marginalização, violando enfim a sua própria dignidade humana, in: “A resolução por onerosidade excessiva no novo Código Civil: uma quimera jurídica?” In: RDP, v. 16, RT, São Paulo, p. 152), este requisito deve ter uma abordagem objetiva, vinculado aos fins econômicos do contratos, sob a ótica de sua função social. Não é necessário saber se alguém foi ou não reduzido a ruína econômica para se verificar a possibilidade de incidência da teoria da imprevisão, bastando que o evento imprevisível tenha retirado a racionalidade econômica que dá sustento a engenharia deste contrato. Como ensina Alberto Díaz, “a excessiva onerosidade será sempre uma expressão de relação. A desproporção, nesse sentido, pode proceder de duas vertentes: a) por ter aumentado o valor da prestação que eu devo cumprir, tendo permanecido igual o valor da que devo receber; b) por ter diminuído o valor da que eu devo receber, tendo permanecido igual a que eu devo prestar” (In: DÍAZ, Julio Alberto. “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, v. 20, RT, São Paulo, p. 208). 681 A imprescindibilidade do acontecimento imprevisível representa o diferencial da teoria da imprevisão em relação às outras duas grandes vertentes revisionistas: a teoria da pressuposição e a da base do negócio. Na ótica destes dois últimos balizamentos teóricos o evento em questão pode ser de qualquer magnitude, desde que não tenha sido considerado pelas partes no ato de contratar ou não corresponda às circunstâncias que presenciaram esta contratação, mas é claro, em ambas as situações, tenha acarretado onerosidade excessiva ao pacto. 682 In: FIUZA, César. “Aplicação da cláusula ‘rebus sic stantibus’ aos contratos aleatórios.” In: RIL, p. 8. 683 Na tarefa de refinamento sobre o exato sentido da expressão imprevisível, passa-se pela abordagem da sua aproximação com as conhecidas situações de ocorrência de caso fortuito ou de força maior. Para que se trace uma forte linha delimitativa destes casos basta que se parta da aceitação de que a teoria da imprevisão nutre-se de acontecimentos que levam a identificação de uma onerosidade excessiva, que poderá ser revertida por meio de revisão ou pela resolução do pacto, enquanto as situações de caso fortuito e força maior ensejam o reconhecimento de impossibilidade de cumprimento da prestação que serve de conteúdo do contrato. 679 242 Ainda em relação a este requisito, há a necessidade de identificação clara sobre o critério a ser considerado para o reconhecimento da imprevisibilidade. Nesse aspecto (calcanhar de Aquiles desta teoria), a situação merece uma ponderação casual, de acordo com as qualidades e habilidades dos contratantes. Não é raro encontrar posicionamentos doutrinários que, no afã de proporcionar um balizamento mais seguro genérico, ressuscita o antigo adágio do bonus pater familiae, velho conhecido dos romanos ou do ‘homem médio’. Assim se exigiria um tratamento tópico, caso a caso, considerando as peculiaridades da personalidade de cada contratante. A previsibilidade esperada em relação a um experiente homem de negócios não seria a mesma exigível de alguém sem nenhum preparo negocial684. Entretanto a razão parece estar com aqueles que postulam uma abordagem menos dependente da visão subjetiva. Nesse sentido, Luis Renato Ferreira da Silva explica que o elemento imprevisível não está necessariamente relacionado com as condições peculiares do sujeito envolvido, muito embora tais circunstâncias possam ter certa relevância. Acompanhando esse entendimento, tem-se a lição de Ruy Rosado de Aguiar Junior: “a imprevisibilidade deve acompanhar a idéia de probabilidade: é provável o acontecimento futuro que, presentes as circunstâncias experiência”685. Cabe ainda ressaltar que a análise da previsibilidade não deve apenas recair sobre o fato em si, mas considerar também as suas conseqüências para a conjuntura contratual, o que vem a ampliar o leque de possibilidades de aplicação dessa teoria revisionsista. Visão distinta acabaria por restringir ao excesso o âmbito de atuação da imprevisão686. ____________ 684 conhecidas, ocorrerá, certamente, conforme juízo derivado da Mosset Iturraspe, ao abordar o complexo tema da imprevisibilidade, ensina que “entendemos que la nómina de acontecimientos capaces de desencadenar la revisión no puede limitarse a: guerras, terremotos, invasiones, etcétera, pues si así ocurriera la norma no encontraría casi aplicación , afortunadamente. Debe ampliarse a otros eventos como: inundaciones, sequías, granizos, inflación y deflación, escasez en el mercado internacional, etcétera, cundo superen lo normal y previsible” (In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos, p. 376). 685 In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor- resolução. São Paulo: Aide, 2003, p. 155. 686 Voltando aos ensinamentos de Luis Renato Ferreira da Silva: “é este reaciocínio que tem permitido, em países de inflação contínua, alterarem-se contratos com a aplicação da teoria da imprevisão, e adotar como fato imprevisível os índices inflacionários. É que a existência contínua de taxas de inflação acaba por ‘normalizar’ a desvalorização da monetária, o que não impede que o quantum da desvalorização em um determinado período acabe por tornar-se inesperado e não previsto” (In: SILVA, Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 111). Na mesma linha, manifesta-se Ruy Rosado de Aguiar Junior: “assim, a desvalorização da moeda é um fato provável num regime de câmbio flexível, mas poderá haver imprevisibilidade do seu grau, a ser determinado pela própria evolução do processo de desvalorização. Se a uma situação de inflação contínua, mas controlada em certo nível, um dado futuro se acrescentar ao processo, este poderá determinar substancial modificação, gerando situação imprevisível. Assim a taxa de câmbio, que pode ser variável, mas a maxidesvalorização da moeda nacional poderá ser um fato imprevisível. Se o contratante, atendendo ao cuidado que dele se poderia exigir, não teve condições de pensar o fato e seus elementos essenciais (a inflação e o grau de inflação; a crise política e a sua duração; a crise política e seus efeitos sobre o contrato; a alteração das regras de câmbio, etc.), o fato é imprevisível” (In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, p. 156). 243 Note-se ainda que o acontecimento imprevisível deverá ser considerado, com intuito revisionista, apenas se ultrapassar a órbita exclusivamente privada de um indivíduo. Deve caracterizar-se como um acontecimento social, comum a uma comunidade de pessoas, experimentado, portanto, pelos indivíduos e pelos seus pares; afeta, assim, a toda uma categoria, ambiente social ou econômico. Assim, tomando por base essa pauta de requisitos, a teoria da imprevisão se faz presente em todos os tribunais brasileiros que receberam milhares de demandas ao longo do vasto período de domínio dessa teoria no nosso Direito. O Código Civil atual, que veio a lume após um longo período de elaboração, trouxe previsão expressa em relação à teoria da imprevisão, em duas oportunidades. A primeira, com caráter revisionista, é encontrada no artigo 317, estabelecendo que “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e do momento de sua exceção, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação”687, e a segunda, no texto do artigo 478, como justificação para a resolução do contrato: “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários ou imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que o decretar retroagirão à data da citação”688. ____________ Para uma adequada compreensão da disposição estampada no artigo 317 do Código Civil talvez seja oportuna uma breve abordagem da história deste dispositivo. Na versão inicial do projeto que redundou no atual Código Civil, a norma em questão possuía a seguinte redação: “Quando, pela desvalorização da moeda, ocorrer desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, deverá o juiz corrigí-lo, a pedido da parte, de modo que preserve, quanto possível, a equivalência das prestações”. Nota-se, então, o apego à situação referente à ‘desvalorização da moeda’, ponto que não foi preservado na redação final, de forma que o texto restou deslocado e, até certa medida, desnecessário frente à previsão mais intensa contida no artigo 478 do mesmo Código. Entretanto as limitações deste último artigo, que faz referência apenas à resolução do contrato, poderá ser composta com o daquela previsão normativa, tornando inequívoca a possibilidade de revisão dos termos do pacto. Julio Alberto Díaz não poupa esforços ao fazer críticas ao artigo 317 do Código Civil, dizendo: “apesar do meu esforço, confesso não ter conseguido entender qual foi a intenção do legislador ao incorporar uma norma cujo conteúdo já aparece explicitado, e de melhor maneira, na Parte Geral dos Contratos”, reforçando que “pensamos que nada teria perdido, (muito pelo contrário) se o legislador da Reforma tivesse simplesmente omitido o art. 317. De qualquer maneira, auguramos (e desejamos) um fatal destino de letra morta à norma em questão” (In: DÍAZ, Julio Alberto. “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p. 215-6). 688 A dicção que o legislador imprimiu ao artigo 478 do Código Civil denota uma evidente influência do texto do Código Civil Italiano : “art. 1467 – Contratto com prestazioni corrispettive. Nei contratti e esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione di una delle parti è divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può demandare la risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dal’art. 1458. La risoluzione non può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell’alea normale del contrato. La parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitarla offrendo di modificare equamente le condizioni del contratto”. 687 244 Ao adotar o texto do artigo 478, o Código Civil atual acabou por estabelecer um novo requisito para a aplicação da teoria da imprevisão: a excessiva vantagem para a outra parte da relação negocial não prejudicada com a ocorrência do fato superveniente. Trata-se, assim, de requisito novo, que até então não era reconhecido pela doutrina anterior ao advento do Código Civil atual. Toma-se, dessa forma, um novo rumo na evolução da teoria da imprevisão, que agora passa a exigir como elemento necessário para sua incidência a comprovação de que o outro parceiro contratual teria obtido extraordinário benefício com a ocorrência do evento imprevisível. De utilidade duvidosa e temerária, a nova dicção legislativa poderá ter vida curta, ou, talvez, cair no abandono, pois bastante divorciada do viés que desenhou as noções clássicas da teoria da imprevisão. Tradicionalmente vista como um instituto comprometido com a segurança contratual, servindo para evitar que acontecimentos inesperados e imprevisíveis venham a causar modificações de considerável ordem na engenharia econômica do contrato, num claro comprometimento com a regra da rebus sic stantibus, agora pretende o legislador desviá-la de seu itinerário natural, dando-lhe um novo colorido que acaba por desviá-la da sua missão original. A imposição da verificação da presença do requisito da ‘vantagem excessiva’ desloca o eixo central dessa teoria para a questão do equilíbrio contratual, tema também de grande relevância no sistema contratual, mas que, na abordagem da teoria da imprevisão, não ocupa o ponto central de sua justificativa689. Ao realizar a opção, o legislador então acabou por se afastar do perfil que a teoria da imprevisão adquiriu no nosso sistema jurídico. Tal posicionamento teórico sempre foi fundado na preservação da saúde econômica do vínculo negocial, que precisa ser revisado para restaurar o seu sinalagma funcional. O ponto de referência para a aplicação da teoria da imprevisão não pode ser a busca de evitar benefício econômico exagerado para uma das partes, mas, sim, a preocupação na manutenção do equilíbrio econômico do contrato no ____________ Fonseca Pugliese critica ostensivamente esta opção do legislador civilista, argumentando que: desta forma, casos típicos de aplicação da teoria da imprevisão como os contratos de fornecimento de produtos que se tornaram inviáveis pela imprevisível indisponibilidade de insumos no mercado poderão ser afastados da proteção dessa teoria, pois, em princípio, a parte adquirente dos produtos não terá qualquer vantagem excessiva como decorrência dos problemas que afetam a atividade produtiva da parte fornecedora”, acrescentando: “o requisito da ‘vantagem excessiva’, cria, na verdade, um novo conceito de imprevisão, na medida em que desloca o foco protetivo do instituto para o equilíbrio entre as prestações contratuais, afastandose de sua missão original de proteção da parte que se sujeita ao cumprimento de obrigações que se tornaram excessivamente onerosas. Divorciado da teoria clássica, o novo Código Civil cria uma verdadeira barreira para a plena aplicação do instituto pelos tribunais brasileiros” (In: “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p.16). 689 245 enfrentamento de fatos futuros de ordem imprevisível, proporcionando no contrato um nível de segurança satisfatório690. Evitar a ocorrência de excessiva vantagem econômica a uma das partes contratantes não pode ser visto como um dos requisitos exigíveis para a aplicação da teoria da imprevisão, mas, na realidade uma decorrência de sua aplicação691. Por outro lado, não se pode olvidar o comprometimento maior do contrato com a realização de sua função social, de forma que o equilíbrio do pacto deve ser preservado como um valor social, paradigmático para todas as demais relações negociais que se travam incessantemente no convívio em sociedade. Assim, ao pôr relevo na ocorrência de ‘extrema vantagem’ a uma das partes o legislador, está se limitando a produzir uma visão meramente interna da estrutura contratual, incentivando o afastamento de um olhar externo, que vê o pacto como um ato social, que deve ser considerado em benefício de todos. Logo, mesmo que não haja ‘excessivo benefício’ patrimonial a um dos contratantes, deve ser revisado frente a acontecimentos imprevisíveis para a manutenção de sua acalentada funcionalidade como instrumento justo de trocas econômicas. Como enfatiza Fonseca Pugliese, a teoria da imprevisão não é apenas um instrumento de reequilíbrio de prestações contratuais, mas também uma garantia legal de um princípio maior de justiça e segurança contratual, que informa e enriquece todo o Direito obrigacional brasileiro692. Note-se que impor ao prejudicado com a modificação das circunstâncias o ônus de realização da prova no sentido de que ocorreu em favor da parte contrária uma “excessiva ____________ Luis Renato Ferreira da Silva, escrevendo anteriormente a aprovação do atual Código Civil, já tecia críticas à exigência da ‘vantagem excessiva’ como requisito para a teoria da imprevisão: “esta nova exigência provoca uma sensível modificação na teoria, reduzindo a sua incidência ainda mais. Se o instituto objetiva manter o equilíbrio entre as partes e evitar que a comutatividade se perca, o novo requisito dificulta o uso do instituto. Poder-se-á ter uma onerosidade conducente à insolvência do devedor sem que para tanto corresponda uma vantagem excessiva do credor e, a manter-se tal dispositivo nos termos do projeto, esta situação, que na doutrina estrangeira é a propriamente protegida (porque só se quer a onerosidade, dispensando-se a vantagem), ficará sem solução” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 113). 691 Realizando uma abordagem de direito comparado, Fonseca Pugliese adverte que “em uma pesquisa (não exaustiva) de direito comparado, pudemos verificar que o direito alemão, o direito francês, o direito argentino e mesmo o direito italiano (que serviu de modelo para o art. 478 do NCC) não contêm qualquer previsão sobre esse novo requisito objetivo para a aplicação da teoria da imprevisão. Mesmo nos sistemas da ‘common law’, que não seguem a tradição intervencionista dos sistemas codificados, a aplicação das teorias equivalentes à imprevisão (impactibility e impossibility doctrines) não exige a comprovação de requisito semelhante, demandando apenas a prova da excessiva onerosidade ou impossibilidade do cumprimento das obrigações assumidas. Também no direito internacional privado (regras do Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado – Unidroit para os contratos comerciais internacionais) ou nos recentemente elaborados Princípios do Direito Contratual Europeu, que refletem as novas tendências do direito internacional e do direito comunitário europeu, respectivamente, não é encontrada referência ao requisito da ‘extrema vantagem’ para a parte que não suporta os prejuízos pela alteração imprevisível das circunstâncias contratuais” (In: “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p. 15). 692 In: DÍAZ, Julio Alberto. “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p. 26. 690 246 vantagem” é levar a teoria da imprevisão ao ostracismo, numa prática de remota ocorrência. A parte prejudicada, certamente, em grande parte das vezes, não disporá de meios de informação ou acesso a dados sobre a situação econômica do parceiro contratual, a ponto de conseguir realizar uma efetiva comprovação da excessiva vantagem693. Tal situação não estaria em consonância com os mais caros princípios que norteiam a novel legislação civil, que se funda nos auspícios da socialidade, eticidade, concretude e operabilidade694. Aponte-se que a solução adotada pelo legislador civilista, no sentido de dar prevalência à resolução do contrato, em detrimento da revisão, vem a contradizer a consagração do princípio da função social dos contratos, expresso no texto do artigo 421 do Código Civil, pois indica que as dificuldades encontradas no desenvolvimento do contrato devem levar ao desfazimento do vínculo, afastando o entendimento de que deve prevalecer o esforço para a superação do problema de execução das obrigações por meio da modificação dos termos contratuais695. Dessa forma, a deficiência da redação dos artigos 478 e 479 do Código Civil deve ser trazida à luz e preenchida pela idéia maior da função social do contrato. Assim o advento de ____________ Hora Neto manifesta sua indignação com o texto grafado no artigo 478 da atual legislação Civil de maneira bastante enfática: “o instituto da resolução por onerosidade excessiva, da forma como se acha esculpido no novo Código Civil redunda numa construção jurídica monstruosa, obsoleta, ou, como alhures vaticinado: numa quimera jurídica! A sua aplicação prática é de remota ocorrência, infreqüente, à vista da ‘prova diabólica’ a cargo do contratante prejudicado” (In: HORA NETO, João. “A resolução por onerosidade excessiva no novo Código Civil: uma quimera jurídica?” In: RDP, p. 158). 694 Fonseca Pugliese informa sobre a existência de Projeto de Lei que vem a sugerir uma série de reformas ao Código Civil vigente; tratando o tema da revisão dos contratos, sugere a substituição do texto dos artigos 478 e 480, corrigindo assim uma série de questões apontadas por atentos críticos à redação atual do Código Civil: “Art. 472. Nos contratos de execução sucessiva ou diferida, tornando-se desproporcionais ou excessivamente onerosas as suas prestações em decorrência de acontecimento extraordinário e estranho aos contratantes à época da celebração contratual, pode a parte prejudicada demandar a revisão contratual, desde que a desproporção ou a onerosidade exceda os riscos normais do contrato. Parágrafo 1º - Na impede que a parte deduza, em juízo, pedidos cumulados, na forma alternativa, possibilitando, assim, o exame judicial do que venha a ser mais justo para o caso concreto. Parágrafo 2º - Não pode requerer a revisão do contrato quem se encontrar em mora no momento da alteração das circunstâncias. Parágrafo 3º Os efeitos da revisão contratual não se estendem às prestações satisfeitas, mas somente às ainda devidas, resguardados os direitos adquiridos por terceiros. Art. 473. Nos contratos com obrigações unilateriais aplica-se o disposto no artigo anterior, no que for pertinente, cabendo à parte obrigada pedido de revisão contratual para a redução das prestações ou alteração do modo de executá-las, a fim de evitar a onerosidade excessiva. Art. 474. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as prestações do contrato. Art. 475. Requerida a revisão do contrato, a outra parte pode opor-se ao pedido, pleiteando a sua resolução em face de graves prejuízos que lhe possa acarretar a modificação das prestações contratuais. Parágrafo único – Os efeitos da sentença que decretar a resolução do contrato retroagirão à data da citação”. (In: “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p. 16). 695 Conforme SILVA. Luis Renato Ferreira. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição, p. 147. 693 247 fato imprevisível deverá servir também – ou talvez principalmente – para a revisão do contrato, sem a sua extinção. Tal possibilidade, é claro, comprometida com os ideais de preservação do contrato, está ao alcance de ambas as partes, podendo o prejudicado, com fundamento no instituto consagrado no artigo 478 do Código Civilista, pedir a revisão do contrato, ou a parte demandada em um pedido judicial de extinção do pacto, com força no artigo 479 do mesmo código, postular o afastamento da pretensão resolutória, mantendo o vínculo sob outros parâmetros fixados pelo julgador, sem prejuízo da apresentação em sua resposta de proposta de alteração do vínculo para restaurar o seu sinalagma funcional696. Esta forma de enfrentamento do tema, além de ser a única capaz de vinculá-la à plena realização da visão funcional do contrato, está em consonância com a evolução mundial sobre o tema 697. Ainda sob o sol das influências do sistema pós-moderno, que exigem um sistema jurídico ativo, dotado de normas capazes de efetivamente garantir o máximo de otimização da realização prática do Direito, não se pode deixar de apontar o caráter de norma de ordem pública consagrado à disposição contida no artigo 478 do Código Civil. Não se trata, como pensam alguns, de norma supletiva, aplicada ao sabor dos interesses dos contratantes, mas, sim, de viés impositivo, em nome da incessante busca de melhoria da vida em sociedade.De forma bastante peculiar, Mosset Iturraspe analisa a possibilidade de afastamento da revisão por disposição de cláusula contratual, concluindo que, para uma solução satisfatória, é ____________ Não pode passar despercebido, entretanto, o aspecto do direito processual, pois a nossa sistemática não comporta essa possibilidade de o julgador oferecer resposta diversa do pedido formulado pela parte. Esta preocupação é apontada por Luciane Padoin, dizendo: “partindo-se do fato do autor ter ingressado com uma demanda pleiteando a resolução do contrato, poderá o juiz prolatar uma decisão que extrapola o pedido do autor, qual seja, a revisão e imposição de novas condições contratuais. Se agir assim, restará caracterizada uma decisão ‘extra petita’, ofendendo a matéria processual”. Entretanto a própria autora ressalta: “contudo, não se pode compreender que ocorrerá uma irregularidade processual, pois o processo não pode (e não deve) estar desvinculado da nova ordem contratual que se estabelece. Aliás o processo é instrumento de aplicação do direito material, por isso aquele deve adaptar-se a este” (In: PADOIN, Luciane Maria. “Os Princípios da boa-fé objetiva, da função social e da equivalência das prestações no novo Código Civil: um (re)leitura do contrato.” In: RFD/UFRGS, v. 23, dez. 2003, p. 141). 697 Fonseca Pugliese informa que “esse também é o posicionamento apontado pelo direito internacional privado que, apesar de não vinculativo para os sistemas jurídicos domésticos, serve como indicação da orientação seguida nos meios jurídicos internacionais. Nesse sentido, os Princípios sobre os Contratos Comerciais Internacionais, editados pelo Unidroit, dispõem, em seu art. 6.2.3, que na hipótese de intervenção judicial, o tribunal poderá, alternativamente, extinguir ou modificar o contrato a fim de restabelecer o equilíbrio original das prestações. No mesmo sentido, os recentes Princípios do Direito Contratual Europeu, que refletem as novas tendências do direito comunitário na Europa, facultam aos tribunais a intervenção, com base na teoria da imprevisão, para a extinção ou adaptação de relações jurídicas privadas que tenham se tornado excessivamente onerosas” (In: “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p. 19). Almeida Costa é expresso ao afirmar que, frente à modificação das circunstâncias contratuais, “apontam-se, então, duas directivas do tipo judicial: a resolução do contrato ou a modificação do seu conteúdo” (In: Direito das Obrigações, p. 264). 696 248 necessário que se estabeleçam duas possibilidades; uma na qual as partes fazem referência concretas aos possíveis fatos configuradores da futura possível onerosidade excessiva, de forma que passam a ser fatos previsíveis, e, portanto, a cláusula em voga seria dotada de plena validade; numa outra hipótese, estariam as situações em que as partes fazem alusão genérica a fatos desencadeadores de excessiva onerosidade, qualquer que seja a causa, situação em que a cláusula então passará a ser viciada, devendo ser desconsiderada698. A solução apontada pelo mestre argentino mostra-se bastante lúcida e pragmática, mas não parece estar de acordo com o espírito que dá vida à nova legislação civilista, pois a função social do contrato se impõe como um valor maior, que, na literal linguagem do legislador, delimitará a liberdade contratual em nome da preservação das aspirações sociais. Aceitar a inclusão de uma cláusula que afasta categoricamente a possibilidade de revisão em relação a certos acontecimentos futuros, mesmo presente a excessiva onerosidade, não parece ser algo de acordo coma nova lógica da teoria contratual699. Ainda cabe enfrentar a questão da superveniência dos requisitos para aplicação da teoria da imprevisão frente à parte que se encontra em estado de mora contratual. Embora o texto normativo não faça menção expressa a essa situação, grande parte da doutrina mostra uma visível simpatia com a inclusão da ausência da mora para que se possa aplicar a teoria revisionista em foco700. Tal aspecto é delicado e de difícil solução, mas o seu enfrentamento ____________ In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos, p. 379. O próprio autor, em outra passagem de sua obra, traz à colação conclusão apresentada na IV Jornadas Santafelinas de Derecho Civil, acentando que “la revisión es un remedio que compromete al ordem publica y de allí su imperatividad” (In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos, p. 378). 700 É Nesse sentido, a manifestação de Alberto Díaz, que, de forma bastante eloqüente, se manifesta: “o instituto da imprevisibilidade funciona como atenuante da responsabilidade do devedor, mas exige como requisito preliminar que ele não tenha agido de modo tal que a sua própria conduta tenha dado lugar à onerosidade superveniente. Se a execução foi diferida por culpa ou dolo do contratante prejudicado, somente ele deverá suportar as conseqüências negativas provocadas pelo evento extraordinário acontecido com posterioridade à mora” (In: “A teoria da imprevisão no novo Código Civil Brasileiro.” In: RDP, p. 214). Na mesma linha é a lição der Luis Renato Ferreira da Silva, afirmando: “o fato superveniente que venha a produzir modificações na base negocial deve manter uma relação de alteridade quanto às partes envolvidas. A culpa imputável ao que tenta esgrimir-se à imprevisão elide esta teoria. Esta culpa pode se traduzir em várias circunstâncias, das quais a mais comum seja, talvez, a mora da parte. Inexistindo a mora no cumprimento da obrigação, a circunstância que ocorresse não afetaria o contrato, quer por ele já estar findo, quer porque, em não o estando, a fase de desenvolvimento do contrato já o punha a salvo das alterações” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 114). 699 698 249 deverá levar em consideração o fato de que nem toda situação de mora mostra-se relevante a ponto de afastar cabalmente a pretensão revisionista701. Por fim, o legislador civilista estabeleceu que, nos casos de utilização da teoria da imprevisão para se obter a ‘resolução’ do contrato, os efeitos retroagirão à data da citação, momento em que se estabelece formalmente a relação processual, numa clara congruência com os ditames do processo civil. Entretanto parece oportuno questionar se essa seria a melhor solução para a questão, pois num primeiro impulso, o momento da ocorrência do fato que justifica a aplicação da teoria mostra-se como o marco referencial para a atuação judicial, sob pena desta norma de caráter público que tutela a parte prejudicada não ostentar toda a sua ____________ 701 Tema que tem causado certa discussão em sede de aplicabilidade da teoria da imprevisão é em relação aos contratos aleatórios, face às particularidades que delineiam esta modalidade contratual. César Fiúza, escrevendo ainda na vigência do Código Civil de Bevilaqua, mostrava-se incisivo sobre a possibilidade de extensão da aplicação desta teoria aos contratos aleatórios, explicando “o que se deve ter em mente é que, quando se afirma que os contratos aleatórios não reservam lugar à cláusula ‘rebus sic stantibus’, o que se quer dizer é que não se pode reconhecer direito àquele que assumiu certo risco de, exatamente com base nesse risco assumido, invocar as benesses da revisão do contrato”, explicando: “é como se o segurador se negasse a pagar a indenização, alegando que o acidente em que se envolveu o automóvel segurado foi fato previsto. Mesmo assim, dependendo das circunstâncias, será possível, por princípio de eqüidade, a aplicação da norma contida na cláusula revisionista, se as conseqüências do risco assumido ultrapassarem os limites do razoavelmente aceitável, conduzindo a relação contratual a desequilíbrio insensato e injusto” (In: “Aplicação da cláusula ‘rebus sic stantibus’ aos contratos aleatórios.” In: RIL, p. 9). A teoria da imprevisão foi adotada expressamente nos artigos 317 e 478 a 490 do Codex Civilista, numa nítida demonstração de influência do Código Civil italiano, chegando a reproduzir, em várias passagens, a literalidade da previsão normativa deste. Entretanto não pode passar despercebido o fato de que o legislador pátrio não trasladou para o nosso sistema a previsão constante no artigo 1469 do modelo legislativo italiano, que expressamente afasta a aplicabilidade da teoria da imprevisão aos contratos de caráter aleatório. Esta situação, num primeiro momento, traz tranqüilidade ao tema em jogo, uma vez que o entendimento lógico decorrente desta postura do legislador é no sentido de que tal limitação não foi inserida em nosso direito privado, num claro ato de escolha legislativa. Esta é a opinião manifestada por Nelson Borges, que, ainda na época dos debates sobre o então ‘projeto de código civil’, afirmou: “a omissão equivale, implicitamente, à autorização de emprego da doutrina no universo dos contratos aleatórios”, complementando: “e uma das justificativas talvez possa ser esta: estabelecer uma proibição de caráter genérico e indiscriminado como a da legislação italiana certamente traria também a vedação de seu uso quando o fato imprevisível não estivesse ligado ao campo da incerteza desses pactos (.) o que seria profundamente injusto” (In: BORGES, Nelson. “A teoria da Imprevisão e os contratos aleatórios.” In: RT, v. 782, p. 78). Outro não é o entendimento predominante no direito privado argentino atual, que ao agregar reformas no Código de Vazfield, para mantê-lo em consonância com os valores sociais que atualmente dominam o pensamento social, faz expressa referência à possibilidade de revisão dos contratos dotados de aleatoriedade, em função da ocorrência de excessiva onerosidade superveniente que seja estranha a risco natural da espécie negocial em questão (a segunda parte do artigo 1198 do Código Civil Argentino determina que “en los contratos biraterales conmutativos y en unilaterales onerosos y conmutativos de ejecución diferida o continuada, si la prestación a cargo de una de las partes se tornara excessivamente onerosa, por acontecimientos extraordinarios e imprevisibles, la parte perjudicada podrá demandar la resolución del contrato. El mismo princípio se aplicará a los contratos aleatorios cuando la excesiva onerosidad se produzca por causas extrañas al risgo próprio del contrato”). Comentado o caminho trilhado por esta norma, o jurista argentino Mosset Iturraspe explica que nos contratos aleatórios a excessiva onerosidade deve produzir-se em função da ocorrência de “causas extranãs al risgo próprio del contrato” e que “em el contrato de renda vitalicia, el alea propia del contrato es la duración de la vita de la ´cabeza’ pero no lo es cualquier otra circunstancia que pueda agravar desmedidamiente la prestación de uma de ellas” (In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos, p. 373-4). 250 potencialidade, e o seu escopo não ser integralmente alcançado, mormente nos casos de revisão contratual. Essa questão passa pela clara identificação sobre a exata tutela jurisdicional que o Estado-Direito está disposto a prestar à parte prejudicada na dinâmica contrato-tempo. Tendo em vista os termos do artigo 478 do Texto Civilista, duas são as alternativas que se apresentam, ou seja: (a) a relação deve ser reacomodada para restabelecer a proporcionalidade inicial, ou, (b) a atuação judicial será no sentido de extirpar a presença da onerosidade excessiva, reduzindo o valor da prestação em nível mais adequado à economia do contrato. Ao que tudo indica, o legislador optou por trilhar o segundo caminho, determinando a extensão dos efeitos da sentença revisionista ao momento da realização do ato citatório. Mas a dúvida sobre acerto legislativo é latente, pois a permanente preservação do sinalagma funcional do pacto (muitas vezes ainda atrelado ao sinalagma inicial) mostra-se como a solução mais nitidamente comprometida com o caráter funcional do contrato pós-moderno. O equilíbrio no contrato deve ser visto em toda a extensão possível, sendo o contrato, mesmo que dividido em longas fases, um corpo unitário, e como tal deve ser considerado em seu conjunto. 4.1.3 A teoria da quebra da base econômica do contrato A teoria da quebra da base econômica do contrato surgiu no Direito inglês702, com o já referido coronation seat case703, mas ganhou fôlego no Direito alemão, em especial em função do trabalho doutrinário desenvolvido por Karl Larenz onde o tema foi enfrentado pela ____________ Luis Renato Ferreira da Silva informa que, “apesar de ter sido no direito inglês que nasceu a teoria da quebra da base negocial, como a unanimidade dos autores aponta, houve uma mitigação na aplicação da doutrina,uma vez que é da índole daquele direito, assim como dos países de direito continental, atribuir uma certa santidade aos contratos” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 132). Em sentido contrário se manifesta Alberto J. Bueres, argumentando: “en otro orden de ideas, no está demostrado fehacientemente que la teoría de la frustración del fin sea origen inglés, aunque en ese medio haya adquirido un gran desarrollo que difere del que habitualmente se le acuerda en el derecho continental. Me rigor, la teoría – según importantes autores – tiene antecedentes en el derecho romano en la teoría de las ‘condiciones’ (en concreto en la ‘conditio sob causa datorum), en los glosadores, en el iusnaturalismo racionalista de los siglos XVII y XVIII (Grocio, Puffendorf, etc), en el derecho general territorial prusiano, en el derecho alemán, e inclusive en ciertas elaboraciones doctrinales francesas” (In: “Proyectos de Reforma del Código Civil, La Seguridad jurídica.” In: Temas de Derecho Privado, Ciclo de mesas redondas, v. VI, publicação do Departamento de Derecho Privado de la Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales de la Uniservidad de Buenos Aires, 1995, p. 41). 703 Conforme narra Almeida Costa, os coronation seat cases datam da época da coroação do Rei Eduardo VII, em 1901, quando foram realizados contratos de locações de janelas, sob elevadas importâncias, para que se pudesse assistir à passagem do cortejo e de embarcações de onde se presenciaria um desfile naval. Entretanto, 702 251 primeira vez de forma sistemática704. Entretanto, os estudos sobre a base do negócio não se mostram de forma linear, podendo ser destacadas duas grandes fases dessa formulação teórica. O primeiro período é dominado pelas idéias de Oertmann, que dá continuidade aos questionamentos apresentados por Windscheid, em sua teoria da pressuposição, apesar de afastar-se nitidamente dos postulados dessa doutrina, ao criticar o fato de ela ter por ‘base’ a declaração isolada de uma das partes e não a ‘base negocial’ do contrato como um todo, considerado como um ato bilateral705. Paul Oertmann desenvolveu a sua formulação teórica alicerçada na aceitação da existência de uma ‘base negocial’ que seria fruto da representação mental das partes no momento da celebração do pacto, em relação às circunstâncias negociais e seus desdobramentos na dinâmica do contrato, devidamente qualificada pela bilateralidade706. Em função do apego à ‘representação mental das partes’, a teoria desenvolvida por Paul Oertmann ficou conhecida como “base subjetiva do negócio jurídico”707, abrindo caminho para um longo percurso doutrinário no Direito Alemão708. Apesar de superar, em grande parte, as objeções levantadas por Lenel em relação à devido à súbita doença do rei, a coroação acabou por ser adiada, tendo os tribunais ingleses considerado legítima a recusa dos locatários de satisfazer as quantias estipuladas (In: Direito das Obrigações, p. 268). 704 In: LARENZ, Karl. Base del negocio jurídico y cumplimento de los contratos. Traduzido por Carlos Ferandez Rodrigues. Madri: Editorial revista de derecho privado, 1956. 705 Conforme ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 98. 706 Antonio Menezes Cordeiro aponta que na visão de Paul Oertmann, a base negocial era considerada como “a representação de uma das partes, patente na conclusão de um negócio e reconhecida pela contraparte eventual, no seu significado, ou a representação comum de várias partes da existência ou do surgimento futuro de certas circunstâncias sobre cuja base se firma a vontade negocial” (In: CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 1033). 707 A formulação subjetiva da base negocial angariou a simpatia, na doutrina argentina, de Alfredo Orgaz, que chegou a expressar que “de modo expreso o tácito, hay muchas cosas que ellas no piensan pero que sin embargo, o más bien por esto mismo, se hallan más profundamente en su voluntad. Además de lo que las partes ponen en el contrato hay lo que pressuponen y en que, por ello, no piensan; sin embargo no está fuera de su voluntad sino, al contrario, en su fundo y su raiz. Prescindir de esta especie de subsuelo del contrato, sobre el que reposa orgánicamente lo expresado por los contratantes, sería mutilar el contrato y las voluntades en él contenidas” (apud In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos, p. 368-9). 708 Mosset Iturraspe esclarece que os ensinamentos de Oertmann “sirven para el lanzamiento posterior de la doctrina de las bases del negocio de Karl Larenz, son precursoras de esta exposición considerada como el estadio más avanzado del tema; evidencian las vicisitudes del punto de vista subjetivo, en el afán por separar los motivos intranscendentes de los determinantes o comunes a las partes” (In: La Frustración del Contrato, p. 97). 252 teoria da pressuposição709, a formulação de Paul Oertmann não permaneceu ilesa a críticas710, abrindo caminho para novas formulações teóricas no contexto da doutrina jurídica tedesca. A excessiva aproximação de um simples motivo e a base subjetiva do contrato geraram uma séria dificuldade na tarefa de identificação do enfoque e da aplicação dos ensinamentos de Paul Oertmann. É exatamente o pilar de sustento da teoria da base subjetiva representação subjetiva das partes - que a balança e gera incertezas na obtenção de uma precisão conceitual que fixe os seus limites e permita uma práxis satisfatória. A delicada tarefa de delimitação de um campo de atuação próprio para a teoria da base subjetiva, capaz de proporcionar a segurança jurídica almejada, acabou por perder-se em discussões teóricas, e jamais foi alcançada. Numa fase de transição, a teoria da base subjetiva foi burilada, recebendo a contribuição de diversos autores, o que permitiu a sua evolução, no desfecho da objetivação, mais tarde alcançado por Karl Larenz. Eugen Locher aprimora o pensamento de Paul Oertmann, vislumbrando a constituição da base negocial por circunstâncias necessárias para que seja alcançada a “finalidade do contrato”, determinada pelas próprias partes e posta em relevo mediante a conduta destas no jogo negocial711. Assim Eugen Locher evolui em relação ao enfoque da “representação das circunstâncias”, que então deixa de ser considerada apenas no seu viés psicológico. A base negocial, assim, passaria a ser considerada como o conjunto de ____________ Segundo Luis Renato Ferreira da Silva, “ao contrário de Windscheid, que repudiava a correlação entre a pressuposição e a ‘rebus sic stantibus’, Oertamann relaciona-as diretamente e não aceita a crítica de Lenel sobre a possível confusão de pressuposição e motivos. Para Oertmann, não há necessidade de uma parte dividir a pressuposição com a outra, basta que ela tenha conhecimento da decisão do contratante e aceite esta decisão. Extremamente ligado ao dogma da vontade, o autor afasta qualquer tentativa de objetivação da teoria, pois estaria ignorando a vontade das partes, que é elemento de segurança do negócio, na sua opinião” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 134-5). 710 Mosset Iturraspe sintetiza as principais críticas levantadas em relação à teoria da base subjetiva: “a mera exteriorización de un motivo por una de las partes, que lleva al conocimiento del mismo por la otra, es insuficiente para calificar a esse motivo de ‘voluntad negocial’; del hecho de saber o conocer una parte el motivo de la otra y guardar silencio, o sea del no rechazo de sus motivo unilateral, no puede seguirse su aceptación o conformidad con que el mismo se vuelva ‘voluntad negocial’; y de ahí la cuestión de saber hasta dónde es razonable exigir que el motivo sea expresamente aceptado, puesto que inferir del no rechazo la aceptación tácita se juzga inconveniente; y un motivo acetado – el mantenimiento de las circunstancias existentes, su no modificación, o bien la alteración de las mismas en tal o cual sentido – se convierte en una condición negocial” (In: La Frustración del Contrato, p. 99). 711 In: ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 101. O autor adverte que “la teoría de Locher no tuvo mayor repercusión en la doctrina y la jurisprudencia alemana; si bien hay un esfuerzo de objetivación de la denominada ‘base subjetiva’, se le reprocha que, insistiendo la crítica en un tema ya conocido, ‘no determina exactamente cuándo la finalidad de una de las partes ha pasado a ser contenido del contrato y, por tanto, finalidad objetiva del mismo. El paso estaba dado hacia un intento de unificación de los elementos subjetivos e objetivos”. 709 253 circunstâncias cuja existência ou permanência é tida como pressuposto do negócio jurídico, ainda que não o saibam os figurantes712. Entretanto, novamente dificuldades de definição atrapalharam a evolução da doutrina deste autor, pois a precisão sobre o sentido do termo ‘finalidade do contrato’ é árdua e nem sempre bem sucedida, pois, como salienta Mosset Iturraspe, “empero su tesis es subjetiva y no meramente objetiva, puesto que Locher define a la finalidad del negocio como aquélla que há nacido como propia de una de las partes que, habiendo sido admitida por la outra, há pasado a formar parte del contrato”713. Outro encaminhamento à teoria da base subjetiva foi idealizado por Lehmann, que fundado nos ditames da boa-fé, colocou em relevo a necessidade de bilateralidade na conformação das circunstâncias negociais. A noção de boa-fé serviria, então, como instrumento para que fosse alcançada a “finalidade do contrato”. Tal formulação ficou conhecida como teoria unitária, embora, com explica Luis Renato Ferreira da Silva, uma verdadeira união entre as duas teses precedentes714. Coroando a teoria da base, Karl Larenz lançou o desafio de enfrentar o tema propondo uma análise mais objetiva que subjetiva, colocando definitivamente a ‘base negocial’ dentro do conteúdo do contrato e afastando-a, definitivamente, dos motivos que influenciaram, em maior ou menor grau, na formação do negócio. Conforme as idéias desse autor, a ‘base negocial’ deve ser compreendida sob dois ângulos: um ‘subjetivo’ (subjektive Grundlage des Geschäfts), comprometido com os ensinamentos de Oertmann, compreendendo as representações mentais existentes no momento de formação do pacto, que serviu de ponto de partida para o acordo e lhe serviram de orientação, o que influencia decisivamente na identificação dos motivos715; outro, de viés ‘objetivo’ (objektive Geschäftsgrundlage), representativo do conjunto de circunstâncias cuja existência é ____________ Conforme SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 135. 713 In: ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 101. 714 In: SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 136. O autor explicita: “não se deu, em verdade, uma união por dois motivos salientes. O primeiro diz com o recurso “a boa-fé, que assume, na definição, aspecto meramente subjetivo, logo, desfavorecendo a suposta unificação. Em segundo lugar, incorpora-se a noção contida na teoria da pressuposição sobre condição não desenvolvida, no momento em que se afirma que o contrato dependia de certas circunstâncias” (p. 136). 715 Luis Renato Ferreira da Silva lembra: “Larenz aproxima a base subjetiva ao erro sobre os motivos e à garantia dos vícios ocultos. Ambas as hipóteses têm regulamentação no direito positivo brasileiro, razão pela qual Clóvis do Couto e Silva rejeitava a presença, no ordenamento jurídico brasileiro, da base subjetiva” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 136). 712 254 pressuposta para a existência do próprio contrato, relacionado ao fim e objetivo do pacto, independentemente de as partes as considerarem716. Assim, para dar efetividade à teoria de Larenz, é necessário que sejam levadas em consideração as circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar (note-se; e não a pressuposição destas pelas partes), de forma que o fim natural do contrato em apreço toma relevância. Trata-se de um condicionamento objetivo implícito, relacionado ao sentido e a resultados esperados da espécie contratual celebrada717. Diferentemente dos postulados da teoria da imprevisão, o elemento imprevisível deixa de ganhar espaço ou relevância, sendo integralmente descartado na teoria da base objetiva do negócio, bastando, apenas, a alteração anormal, que rompe com o desencadeamento natural dos acontecimentos da execução do pacto718. A dispensa do elemento imprevisível é decorrência da necessária vinculação da teoria da base objetiva com o ____________ Nas palavras do próprio autor “por base del negocio objetiva ha entenderse el conjunto de circunstancias y estado general de cosas cuya existencia o subsistencia es objetivamente necesaria para que el contrato, según el significado de las intenciones de ambos contratantes, pueda subsistir como regulación dotada de sentido. La base del negocio objetica ha desaparecido: a) cuando la relación de equivalencia entre prestación y contraprestación presupuesta en el contrato se ha destruido en tal medida que no puede hablarse racionalmente de una ‘contraprestación’ (destrucción de la relación de equivalencia); b) cuando la común finalidad objetiva del contrato expresa en su contenido, haya resultado definitivamente inalcanzable, aun cuando la prestación del deudor sea todavía posible (frustración de la finalidad)” (In: Base del negocio jurídico y cumplimento de los contratos, p. 225). Mosset Iturraspe identifica, como resultantes da formulação teórica de Oertmann, três formas de desenvolvimento da busca de ‘remédios’ para corrigir as situações de desequilíbrio superveniente: “a) la de quienes pensan que se trata de una búsqueda inútil, siendo suficientes los princípios generales con que ya cuenta el Derecho de los contratos, muy en especial, con la norma ‘de caucho’ de la buena fe negocial; b) la de quienes descreen de las ideas sobre la base de ‘que nada avanzan en el tema’ y ‘dejan el problema en los mismos precisos términos en que se mostraban con la teoria windscheidiana de la ‘presuposición’; y c) la de quienes creen conveniente profundizar la investigación ‘sobre bases poco más firmes’, contrarias a la tendencia a recurrir ‘a la generalización’, dejando de lado ‘una hermosa teoría unitaria que abarque todos los casos de desaparición relevante de la base del negocio’, convencidos de que es ‘necesario diferenciar los supuestos de hecho y las consecuencias jurídicas’ partiendo de la clasificación en ‘grupos de casos’, para juzgar ‘cada caso concreto’ atendiendo a sus particularidades; además de las circunstancias económicas directamente relacionadas con el contrato y su objeto, reparando en la situación económica de las partes ‘para juzgar, en definitiva, según la buena fe’. Este último es el pensamiento de Karl Larenz.” In: La Frustración del Contrato, p. 107-8). 717 Almeida Costa ilustra este requisito com o seguinte exemplo:“A sociedade de comércio externo (trading company) celebra com a empresa B, fabricante do produto X, um contrato de fornecimento de certa partida deste produto para colocação no estrangeiro. Surge um ulterior embargo à exportação. Sobre B não pesou a determinante da liberdade de comércio externo, mas conhecia e contou ou cabia-lhe contar com ela, isto é, sabia ou devia saber que estava subjacente ao negócio, até pela própria atividade comercial de A” (In: Direito das Obrigações, p. 277). 718 Luis Renato Ferreira da Silva explica: “dispensar-se a previsibilidade como característica fundamental para a aplicação da teoria torna-a valiosa e diferente da tese da imprevisão, ao mesmo tempo que aumenta o seu campo de aplicação em relação àquela. Na verdade, trata-se de compreender que a teoria da imprevisão, em qualquer das suas modalidades, ainda que representasse um avanço contra a exacerbada ‘santidade’ dos contratos imodificáveis, vinculando-se a uma noção extremamente voluntarística nas suas justificativas” (In: Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 142). 716 255 princípio geral da boa-fé, que naturalmente obriga as partes a se sujeitarem à dependência da manutenção das circunstâncias contratuais719. Não pode ser olvidado que, ao entabularem suas negociações, as partes naturalmente incorporam a assunção de um risco nato à espécie contratual em pauta. Tratam-se de riscos inerentes à espécie contratual, passíveis de serem facilmente contemplados pelas partes, de forma que a sua concretização, mesmo que não desejada ou expressamente pactuada, não poderá servir como fundamento para o desfazimento ou a revisão do vínculo720. Cabe destacar a advertência formulada por Almeida Costa, no sentido de que, apesar da larga aceitação, a doutrina da base objetiva do negócio não é pacífica, pois algumas doutrinas modernas vêm reposicionando o problema da alteração das circunstâncias em outras sedes, como o apego à teoria do risco contratual, o princípio da proteção da confiança ou, mesmo, relegando a solução para a afirmação de novas técnicas de interpretação contratual721. No nosso sistema, a teoria da quebra da base econômica do contrato foi prestigiada apenas como advento do Código de Defesa do Consumidor, que, em seu artigo 6º., inciso V, reconhece como direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que, em função da ocorrência de fatos supervenientes à formação do vínculo, vêm a tornar excessivamente oneroso o seu cumprimento da forma originalmente pactuada. Desafortunadamente, o Código Civil atual deixou de dedicar base normativa expressa a contemplar a teoria da quebra da base econômica do contrato. Entretanto a teoria encontra conforto nos artigos 421 e 422 do novo texto civilista, que consagram os postulados da função social dos contratos e da boa-fé objetiva. A previsão legislativa apenas sobre a teoria da imprevisão não pode ser entendida como o afastamento de outras possibilidades revisionistas. A realidade é pródiga e traz para o âmbito contratual toda a sua fertilidade no encontro dos fatos com o Direito. Restringir a revisão dos pactos ao acontecimento de fatos imprevisíveis é um enfoque de extrema ____________ Conforme COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 278. Vaz Serra, ao abordar a questão no Direito Português, detalha que “se a alteração das circunstâncias estiver compreendida nas flutuações normais do contrato ou for abrangida pela finalidade da lei, não se admite a resolução ou modificação, de que trata o presente artigo. Os contratos aleatórios podem ser resolvidos ou modificados quando a alteração das circunstâncias exceder expressamente todas as flutuações previsíveis na data do contrato; mas a resolução ou a modificação não se admite por uma causa quando as partes se sujeitarem a efeitos análogos aos desta, resultantes de outras causas” (In: VAZ SERRA, Adriano Paes da Silva. “Resolução ou Modificação dos Contratos por Alteração das Circunstâncias.” In: Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n. 68, jul. 1957p. 381. 721 In: COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 270. 720 719 256 limitação e que deve ser evitado. Luis Renato Ferreira da Silva enfrenta esta temática, pontuando que ‘é necessário perceber que a função social do contrato importa na admissão de outras formas de revisão para além da imprevisão ou onerosidade excessiva. Do contrário, corre-se o risco de minorar uma cláusula geral como a posta no art. 421, concretizando-a e confirmando-a a um único modo de aplicação, que, certamente, não é a idéia codificador”722. Nesse sentido, é também a lição de Almeida Costa, reportando-se à boa-fé como sendo, em última análise, o fundamento de sustento da resolução ou revisão dos contratos em decorrência de alteração das circunstâncias723. Com a devida vênia ao mestre lusitano, entendemos que simplesmente colocar o princípio da boa-fé como pilar de sustentação das teorias revisionistas dos contratos parece ser um peso excessivamente rigoroso para esta base de sustentação, em decorrência das suas naturais limitações. Se faz imprescindível a presença de um princípio-vetor mais contundente, que se imponha com forte intensidade, porque representativo de todo um manto de valores cultuados em nível constitucional, como um elemento estrutural da teoria contratual pós-moderna. Trata-se do princípio da função social, com as suas potencialidades de vigor incomparáveis que irá fincar a base de segurança para as teorias revisionistas, proporcionando-lhes a fertilidade necessária para prosseguirem numa constante evolução, acompanhando as mudanças sociais, culturais e econômicas, numa espiral onde os diversos valores sociais se encontram e se combinam, em clara demonstração de que ____________ In: SILVA. Luis Renato Ferreira. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição, p. 148. 723 In: COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 279. Este autor, em enfática manifestação, diz que “considera-se admissível a resolução ou modificação do contrato, justificada pela boa-fé e dentro do quadro legal, ainda que não se verifiquem os pressupostos de qualquer das formulações da teoria da base do negócio ou de outra. Com efeito, todas as fórmulas só dão linhas ou directrizes gerais e não devem aplicar-se esquematicamente, mas apenas tendo em consideração o conjunto das circunstâncias do caso concreto. Será sempre decisivo que o direito de resolução seja exigência imperiosa da boa-fé, segundo a situação em conjunto tida em conta a finalidade do contrato)”. Nesse mesmo sentido, são as lições de CORDEIRO, Antonio Menezes. Da boa-fé no Direito Civil, p. 918 e ss. Essa visão da doutrina jurídica portuguesa encontra conforto legislativo no Código Civil deste país, que, em seu artigo 437, é expresso ao vincular a resolução ou revisão dos contratos em função da alteração das circunstâncias à noção de boa-fé, in: verbis: “Resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias. Art. 437º - Condições de admissibilidade. 1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.” 722 257 somente o convívio na diversidade poderá proporcionar a tão esperada evolução da teoria contratual724. Do exposto, nota-se que o tema da revisão dos contratos se mostra ainda numa fase dinâmica e mutante, longe, portanto, de representar um tema encerrado. Tal situação é de fácil constatação na conjuntura criada pela atual codificação civil, que se mostra pródiga na presença de cláusulas gerais, que adequadamente utilizadas, representam especial antídoto para a solução das questões pertinentes à manutenção da justiça e equilíbrio contratual no decorrer da execução do vínculo. O cansaço das teorias tradicionais é inevitável, de forma que o ordenamento deve recorrer a essas válvulas de oxigenação do sistema, que são as cláusulas gerais, para manter a vitalidade das soluções jurídicas, em especial na matéria dos contratos725. Os vetores da função social, da boa-fé, do repúdio ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa servirão de manjedoura para as novas soluções, sempre permeadas pelo viés pós-moderno imposto ao Direito Civil atual, aberto à composição das contradições, do pluralismo de fontes e da valorização dos direitos fundamentais, mesmo nas relações exclusivamente firmadas entre particulares. ____________ Nesse sentido, é a lição de Mosset Iturraspe, afirmando que “el fundamento mediato de la revisión, reajuste o adecuación del contrato puede encontrarse en le principio de solidariedad, que no se compadece con el desquiciamiento de los fines, con la pérdida del equilibrio inicial o genético, con la frustración, a la postre, del objetivo comúm” (In: ITURRASPE, Jorge Mosset. Contratos, p. 366, nota 7). 725 Ruy Rosado de Aguiar Junior leciona que “ao mesmo tempo em que deu configuração muito limitada ao conceito de onerosidade excessiva, o novo ordenamento tratou de modo conveniente e amplo as questões relacionadas ao erro, o risco, o enriquecimento sem causa, a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Nesse sentido,, vê-se que o Código, além de repetir as disposições sobre a impossibilidade, introduziu regra específica para o enriquecimento sem causa (art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”), afirmou o princípio da função social do contrato (Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”) e regulou de modo superior a boa-fé objetiva (Art. 422. Os contratantes serão obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do local de sua celebração”. “Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes). Com essas cláusulas gerais, sempre poderá o intérprete encontrar fundamento para a modificação ou extinção do contrato em razão de fato superveniente que desvirtue a finalidade social, agrida as exigências da boa-fé e signifique o enriquecimento sem indevido para uma das partes, em detrimento da outra. O que não ajustar a tais soluções será examinado à luz da regra específica da onerosidade excessiva (art. 478 do Código Civil). A idéia de ser essa norma usada apenas subsidiariamente decorre de seu enunciado por demais restritivo” (In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor- resolução, p. 147-8). Entretanto a conclusão do autor não parece ser a mais acertada. Se a previsão constante do artigo 478 é muito restritiva, deve ter ela aplicação prioritária, e, em aplicação subsidiária, devem ser utilizadas as cláusulas gerais referidas. Ou melhor, a ´limitação’ da disposição normativa poderá ser alargada a partir de uma interpretação combinada com os ditames da função social e da boa-fé, verdadeiros princípios-vetores de toda o nosso direito contratual. 724 258 4.1.4 A ‘autorevisão’ dos contratos A doutrina moderna tem posto em destaque um novo rumo que se delineia no assunto da revisão dos contratos em função de acontecimentos supervenientes: a ‘autorevisão’ dos pactos. Almeida Costa, ao enfrentar o tema da modificação dos contratos frente às alterações das circunstâncias, faz referência expressa à possibilidade de os contratantes “acautelarem-se, nos próprios acordos, quanto a essas eventualidades”726. Essa idéia de autorevisão do contrato representa um dos mais importantes resultados das mudanças ocorridas na teoria contratual, que, ao mesmo tempo em que proporciona maiores benefícios aos contratantes, também exige destes uma postura mais madura e responsável. Como refere Mosset Iturraspe, “el pasar de una postura presuntuosa o ligera de inmutabilidad a outra, realista y despierta, de mutaciones exige contratantes responsables, experimentados, comprometidos con su tiempo y sensibles a los problemas que pueden desencadenarse”727. Trata-se, assim, de uma ‘revisão convencional’, previamente pactuada pelos contratantes, no sentido de ser realizada a renegociação dos termos do vínculo obrigacional, se houver a ocorrência de fatos supervenientes que venham a alterar a ‘base negocial’. As próprias partes, num ato de demonstração da seriedade inserida na negociação, se adiantam no tempo e estabelecem a possibilidade de revisão, em face da ocorrência de fatores objetivos728. ____________ In: COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, p. 264. Ao tratar da revisão convencional do contrato, o jurista francês George Rouhette classifica a revisão contratual em três categorias: (a) revisão imposta (révision imposée) , (b) revisão estimulada (révision encouragée) e (c) revisão espontânea (révision spontanée) - In: “La révision conventionnelle du contrat” In: Revue internationale de Droit Comparé, n. 02, 1986, p. 369. 727 In: ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 118. O autor explica que “se há evolucionado de una postura ingenua a otra madura, de un dejar hacer a un tratar de anticipar, de una especie de fatalismo – que ocurra lo que tenga que ocurrir – a una respuesta inteligente y coherente. Las partes se anticipan a los cambios y se comprometen, frente a su ocurrencia, a modificar el contrato, a adaptarlo ellas mismas para que mantenga el espíritu asociativo, la ecuación justa, la economía razonable, que las llevó a entrar en una relación duradora” (p. 118-9). 728 Mosset Iturraspe, com propriedade, esclarece que “la ‘revisión convencional’ pactuada en el contrato originario, no deja la renegociación al arbitrio de los celebrantes – a veces a su capricho o entojo – sino que la prevé, como algo obligatorio, bajo sanción de hacer en incumplimiento responsable”, apontando as circunstâncias que, de um modo geral, podem ser consideradas como relevantes a ponto de proporcionar a revisão nestes casos, classificando-as em: “a) generales, que afectan a un país, a una región o a un grupo de personas, y b) particulares, proprias de los contratantes. Entre las primeras, generales, podemos mencionar: la situación económica en su acepción mas amplia; la situación política, monetaria, social, metereológica; las circunstancias propias del rubro, área o ámbito negocial del cual se trata: construcción, cereales, maderas, servicios, etcétera. Entre las particulares debemos atender a las económicas, las financeiras, las sociales, las familiares y las demás que pueden afectar al contratante deudor” (In: La Frustración del Contrato, p. 119120). 726 259 Assim a inserção de uma cláusula de adaptação permite uma sensação de maior solidez ao vínculo, que, ao mesmo tempo, será mais maleável e dotado de uma segurança lastreada na aspiração de um perene equilíbrio na operação contratual729. 4.1.4.1. As cláusulas de hardship e a readaptação do contrato Um momento importante nesta evolução da revisão dos contratos por ato das próprias partes é encontrado nas relações negociais do comércio internacional, por meio das cláusulas de ‘hardship’, que certamente serviu como fértil fonte de inspiração para a ‘autorevisão” dos contratos. As cláusulas de ‘hardship’ provocam uma renegociação do pacto, caso venham a ocorrer circunstâncias supervenientes que alterem a ‘base negocial objetiva” do vínculo, podendo ser entendidas como sendo aquelas que criam um dever de renegociação em contratos duradouros, se sobrevierem fatos que acarretem a ocorrência de sensível modificação nas circunstâncias negociais, pondo em xeque o equilíbrio contratual730. ____________ Na doutrina francesa, I. Lamberterie (Le contrat aujourd’hui: comparasons franco-anglaises, ed. LGDJ, Paris, 1987, p. 217), citado por Mosset Iturraspe, classifica os métodos de adaptação dos contratos a situações supervenientes em duas categorias: “a) automáticos, si funcionan sin un acto de voluntad de las partes, posterior a la celebración del negocio, y b) no automáticos, que suponen la negoción de las partes. Y a la automática la distingue, a su vez: 1) según que la adaptación resulte de la estructura del contrato o, 2) de cláusulas específicas. Ejemplifica con las ‘cláusulas de revisión del precio’ que, conforme con la jurisprudencia de la Corte de Casación, deben tener una base precisa, independiente de las partes y guardar relación con el objeto del negocio o el rubro negocial. En cuanto a las técnicas de adaptación que suponen la negociación de las partes, pueden diferenciarse: 1) la adaptación operacional que se logra por vía de ejemplo, con la cláusula hardship, de, 2) las que suponen la necesidad de renegociar el contrato inicial; esta renegociación puede originarse en cláusulas muy vagas o generales, respecto de los sucesos que pueden dar pie a ella – por ejemplo las fluctuaciones económicas – o en cláusulas más precisas, que tengan en cuenta aspectos de orden económico o comercial, las condiciones de la ejecución o de la inejecución. Las cláusulas precisas pueden versar sobre modalidades de la renegociación, la manera de plantearla y llevarla adelante, o bien sobre las sanciones frente al apartamiento o negativa de una de las partes” (In: La Frustración del Contrato, p. 123-4). 730 Jean Cedras critica duramente as cláusulas de hardship, dizendo que essas ferem a propria noção de contrato e a sua natural característica da força obrigatória. Nas palavras do autor: “Ce type de contrat est un instrument de collaboration entre dês interêts dont la convergence est reconnue. Les stipulations à carctère technique y sont plus détaillèes, lês stipulations proprement juridiques tendent à y être moins precises, ce qui implique que leur bonne exécution tolera une certaine souplesse (...) Loin d’être interindividuel, ce contrat dépasse l’opération économique qu’il vise à réaliser. Il ne concerne pás seulement sés auteurs, il concerne aussi la collectivité. Pour sés auteurs, il n’a pás seulement pour fonction de réaliser une opération économique isolée dans l’espace et dans le temps: il s’agit au contraire d’um moment d’une politique de longue haleine, il prend place dans tout um réseau de relations contractuelles” (in: “L’Obligation de negocier.” In: RTDCom, 1985. t. XXXVIII, p. 271-2) 729 260 De larga utilização nos contratos internacionais, as cláusulas de hardship tem se destacado dentre as demais cláusulas de readaptação731, alcançando a simpatia das Cortes de Justiça, mesmo no âmbito das contratações internas. A dinâmica das cláusulas de hardship apresenta dois relevantes aspectos a serem considerados. Primeiro, é necessário que sejam adequadamente definidas as suas hipóteses de aplicação, identificando-se as dificuldades (hardship) suscetíveis de desencadear o dever de renegociar. Fixados esses parâmetros, passa-se à indicação do método a ser utilizado para procedimentalizar a operação. De destacada relevância, a previsão das circunstâncias a serem alçadas à condição de motivos suficientes para desencadear a renegociação deve ser devidamente definida pelos contratantes. Dentre as técnicas redacionais mais adequadas, tem-se o estabelecimento de uma lista de situações que, de forma objetivada, facilitam a identificação dos casos de incidência da cláusula de readaptação. Entretanto, face à multiplicidade de circunstâncias às quais estão expostos os contratos de longa duração, a opção pelo recurso das cláusulas gerais mostra-se bastante adequado e eficaz, não se descartando a possibilidade de combinação dos dois métodos, concomitantemente (cláusula geral seguida de uma enumeração exemplificativa de casos). Esta cláusula de ‘hardship’, entretanto, não necessita pontuar com exatidão as situações que devem ser consideradas como autorizadoras da revisão do contrato, desencadeando o processo de renegociação. Não restam dúvidas de que tais circunstâncias devem ser de ordem relevante, causando um sério impacto na ‘base do contrato’, em especial no seu aspecto econômico. Por este motivo, Mosset Iturraspe considera esta cláusula como criadora de uma “revisão aberta”, ou seja, sem delimitação das causas que devem ser ____________ 731 Dentre as principais ‘cláusulas de readaptação’, podem ser citadas a ‘government take clause’, de utilização nos contratos de abastecimentos de produtos petrolíferos, autorizando o repasse da repercusão de aumento dos preços praticados pelos países produtores de petróleo; a ‘first refusal clause’ que determina a realização de realinhamento de preços em consideração aos valores praticados pelos competidores; a ´cláusula do cliente mais favorecido’, que obriga o vendedor a repassar ao comprador as vantagens que conceder a clientes futuros; as ‘cláusulas de alta e baixa’, que vinculam o valor contratual à flutuação do nível salarial, custo de matériasprimas, dentre outros fatores. Há, ainda, as ‘cláusulas de manutenção de valor’, que estabelecem uma repartição de riscos monetários entre os contratantes, como ocorre nas cláusulas de indexação, de escala móvel, de vinculação a certa moeda. Tais espécies não se confundem com as ‘cláusulas de readaptação’ (Nesse sentido, é a lição de OPPETIT, Bruno. “L’Adaptation des contrats internationaux aux changements de circunstances, la clause de ‘hardship’. In: Journal du Droit Internacional, ano 101, 1974, p. 796-7). 261 consideradas para a repactuação732. Assim o escopo das cláusulas de hardship é converter uma relação contratual estática em dinâmica, com capacidade de evolução. Bruno Oppetit destaca a possibilidade de vinculação nas cláusulas de hardship ao elemento temporal, de forma a somente serem permitidas a sua incidência após decorrido certo lapso de tempo ou com determinada periodicidade 733. Não podem ser olvidadas as dificuldades de concretização dessas cláusulas de hardship, em função de elas não garantirem o resultado da negociação, mas apenas colocarem a imposição do processo de negociação. Como adverte Julio Gomes, “a cláusula de hardship não acarreta o dever de concluir um acordo, mas tão-só o dever de renegociar de boa-fé, configurando-se como uma obrigação de meios, pelo que uma parte apenas incorre em responsabilidade se provar que teve culpa no insucesso das negociações” 734 . Impõe-se, então, uma atitude de cooperação, que exigirá das partes um comportamento que confirme essa colaboração, a fim de evitar a ocorrência de intermináveis negociações (“foot dragging”). Infelizmente, nem sempre o intuito de renegociação é bem sucedido, na medida em que o receio de ser explorado, muitas vezes, cria uma desconfiança mútua que atua como uma barreira para o intercâmbios das informações necessárias para que se chegue a uma solução adequada. Um outro aspecto de relevo na aplicação das cláusulas de hardship é o relativo ao método de solução do impasse criado pela frustração das negociações ou negativa de uma das partes de se sujeita ou colaborar com esse processo. Ocorrendo estas situações, dois caminhos se mostram viáveis, qual seja a instituição do juízo arbitral (quando previamente pactuado) ou a busca de uma solução na alçada judicial. Nessas oportunidades, a parte interessada na ____________ In: ITURRASPE, Jorge Mosset. La Frustración del Contrato, p. 121. Nesse mesmo sentido, manifesta-se o jurista português Jorge Gomes, ressaltando que o critério último para a aplicação das cláusulas de hardship é a presença de uma substancial dificuldade que ponha em risco o equilíbrio das prestações no contrato (In: “Cláusulas de Hardship.” In: MONTEIRO, António Pinto (cord.) Contratos: actualidade e evolução, p. 191). Nesse sentido, também seguem os princípios da Unidroit: “Art. 6.2.2. There is hardship where the occurrence of events fundamentally alters the equilibrium of the contract either because the cost of a party’s performance has increased or because the value of the perforinance a party receives has diminished., and (a) the events occur or become known to the disadvantaged party after the conclusion of the contract; (b) the events could not reasonably have been taken into account by the disadvantaged party at the time of the conclusion of the contract; and (c) the risk of the events was not assumed by the disadvantaged party”. 733 In: OPPETIT, Bruno. “L’Adaptation des contrats internationaux aux changements de circunstances, la clause de ‘hardship’. In: Journal du Droit Internacional, p. 803. 734 In: GOMES, Julio. “Cláusulas de Hardship.” In: MONTEIRO, António Pinto (cord.) Contratos: actualidade e evolução, p. 192. 732 262 negociação, deverá, então, apresentar a sua proposta de negociação que será avaliada pelo árbitro ou julgador e imposta ao contratante desobediente735. 4.2 O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO DO CONTRATO COMO IMPERATIVO A ÉTICA PÓS-MODERNA Inicialmente, a interpretação do contrato se realizava de forma afastada da dos ideais universais de justiça eqüitativa. A eqüidade, tão cara aos jusfilósofos, passava quase despercebida na seara do Direito Contratual. Entretanto os trabalhos doutrinários, cada vez mais atentos à realidade social e as suas transformações, foram, paulatinamente, construindo noções teóricas sobre o ideal de justiça contratual, desvinculada do ideário liberal-racionalista de autonomia de vontade736. Constatou-se que nem sempre o livre é justo737. Assim como enfatiza Tereza Negreiros, constata-se na doutrina atual do Direito dos Contratos uma nítida aproximação do jurista da ____________ Interessante anotação é feita por Julio Gomes: “além da arbitragem, outros métodos têm sido utilizados com algum sucesso. Um dos mais interessantes consiste na nomeação de uma pessoa encarregada de ‘acompanhar’ permanentemente a execução do contrato, um ‘permenet contract referee’. Estaria autorizado, idealmente, a investigar, inspecionar, descobrir factos: requerer às partes que cooperem uma com a outra e, quando o desacordo entre elas não puder ser solucionado de outra forma, a emitir um juízo final e vinculante. Bem vistas as coisas, trata-se, no fim de contas, de reconhecer que certos contratos, pela sua própria natureza, necessitam de uma espécie de ‘órgãos de gestão’, o que, uma vez mais, enfatiza a sua proximidade com ‘mini sociedades’ ou ‘mini estados’. Esta espécie de ‘junta de revisão de contrato’ teria a vantagem de evitar que houvesse de interromper ou suspender a execução do contrato enquanto se procede à resolução de qualquer disputa. Este órgão supervisor do contrato permite que as partes modifiquem o conteúdo ou preecham as lacunas do acordo original sem interromper a sua colaboração”. (In: “Cláusulas de Hardship.” In: MONTEIRO, António Pinto (cord.) Contratos: actualidade e evolução, p. 197). 736 Judith Martins-Costa anota que: “constitui ponto de apoio relevante para a resposta a ser dada a questão da configuração do ‘instituto’ contrato na sociedade contemporânea, não mais os cânones oitocentistas da projeção da liberdade contratual (liberdade de contratar, de dar cláusulas, de modelação no conteúdo, de forma, de tipo, etc.), mas o requisito da ‘justiça substancial’, o núcleo central da teoria dos contratos. Embora se saiba que, rigorosamente, é possível dizer que este é um problema central desde, pelo menos, Aristóteles, o que o atualizará será a determinação das formas de concretização do problema: por certo não se pensa que a justiça contratual possa ser garantida pelo ‘consenso’ de partes fundamentalmente In: “Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro.” In: RDC, p. 145). 737 Para explicar a justiça contratual, Sens dos Santos traz à colação os ensinamentos sempre atuais de Aristóteles: “o primeiro importante conceito de justiça foi dado por Aristóteles há 2400 anos, quando distinguiu a justiça em distributiva e corretiva (ou comutativa), apontando-lhe as características de ‘intersubjetividade’ (ou alteridade) e ‘igualdade’. Através da alteridade, a justiça deve se preocupar com a questão do outro (álter), com o próximo; pela igualdade, salientou o filósofo, que se o injusto é o desigual, o justo é o que é igual aos olhos de todos. Aristóteles também discerniu a justiça distributiva como sendo a estabelecida entre a ‘polis’e os cidadãos – buscar-se-ia a justiça na correta repartição de bens e honras, de forma a proporcional ao mérito de cada um. Já a justiça comutativa visava a regular as relações negociais e de responsabilidade entre os cidadãos, de forma alcançar certo equilíbrio” (In: SANTOS, Eduardo Sans. A Função Social do Contrato, p. 101-2). Na seara contratual, a definição de justiça comutativa é a que deve ser considerada. 735 263 reflexão filosófica que, desde sempre, elegeu a justiça como um de seus problemas centrais 738 . No campo contratual, a noção de justiça contratual passa, necessariamente, pela busca de equilíbrio contratual, de notável viés econômico, embora não em sentido exclusivo. Teresa Negreiros, ao enfrentar essa questão, refere, acertadamente, que “o contrato não deve servir de instrumento para que, sob a capa de um equilíbrio meramente formal, as prestações em favor de um dos contratantes lhe acarretem um lucro exagerado em detrimento do outro contratante”739. Assim, por meio da preservação da observância desse princípio nos contratos, estar-se-á buscando sempre a aproximação mais efetiva da idéia de justiça contratual, expressão direta do princípio da igualdade substancial consagrado no Texto Constitucional. A discussão sobre o que possa ser considerado como uma ‘relação contratual justa’ passa, necessariamente, pela análise da posição que as partes ocupam no contrato e a sua condição de igualdade. O equilíbrio contratual é o elemento precursor de qualquer raciocínio que possa ser desenvolvido dentro do âmbito da noção de justiça do contrato. Entretanto não se pode olvidar que a idéia de equilíbrio econômico representa um elemento que tem atuação sobre todo o programa contratual, atuando como um permanente indicador das vantagens de cada contratante. As regras do modelo contratual clássico no qual a preocupação jurídica limitava-se tão-somente a analisar a igualdade formal das partes na fase de formação do pacto mostra-se, então, insuficiente. O contrato pós-moderno, como já referido, passa a manter permanente comprometimento com os valores sociais consubstanciados nos princípios de ordem constitucional. O contrato atual é constitucionalizado e apto a refletir as aspirações sociais que acabam por ser consignadas na Carta da República como indicadores de um projeto social maior. Dessa forma, a preocupação com o equilíbrio econômico do contrato constitui expressão do princípio da igualdade substancial consagrado no artigo 3º , III, da Constituição Federal. ____________ In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 155. A autora explica: “um contrato livremente pactuado pode ser, não obstante, um contrato injusto e, nesta medida, pode ser revisto, modificado judicialmente ou mesmo integralmente rescindido: à ênfase na liberdade secede a ênfase na paridade. Trata-se, pois, de uma transformação profunda no conceito de justiça contratual. A dimensão de tal mudança dificilmente pode ser compreendida em função, apenas, do direito contratual, exigindo, complementarmente, uma contextualização folosófica” (p. 158). 739 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 156. 738 264 4.2.1 A lesão como principal forma de desequilíbrio econômico do contrato: da lesão qualificada à lesão pura Assiste-se, hodiernamente, na teoria dos contratos, a um verdadeiro ‘ressurgimento’ da teoria da lesão, já amplamente conhecida dos antigos e que agora retornou para auxiliar na busca da consagração do ideal de manutenção do equilíbrio econômico dos contratantes740. Inicialmente, a teoria da lesão foi reconhecida no direito romano, embora não exista entendimento pacífico quanto à sua formatação específica, pois, como informa Luís Renato Ferreira da Silva, o momento de sua aparição, a sua origem nos textos legais, a hermenêutica dos mesmos, a ideologia que se sobrepunha ao instituto são contraditoriamente versados na doutrina dos romanistas 741 . Antes do Corpus Iuris Civilis, com a designação de ‘laesio enormis’, entendida como a venda de um certo bem imóvel por menos da metade de seu verdadeiro valor. Posteriormente, com o advento do Corpus Iuris Civilis, a lesão passa a assumir a condição de norma geral. No decorrer da Idade Média, a figura da lesão ganha força a partir do momento em que passa a se aliar às aspirações canônicas, na célebre luta da moral religiosa contra a usura, designada então de ‘laesio enormíssima’, que era reconhecida quando a vantagem excedesse a 2/3 do valor veraz 742 . Entretanto, ao final da Era Medieval, essa teoria é enfraquecida pelo crescimento da importância atribuída à vontade e, conseqüentemente, à liberdade contratual, como nascimento do liberalismo. Como aponta Orlando Gomes, devido à influência da Escola do Direito Natural, a lesão, à qual os canonistas haviam dado maior amplitude, foi banida das legislações, por ser considerada intolerável restrição à liberdade de contratar743. ____________ Luís Renato Ferreira da Silva observa que: “a ancianidade do instituto da lesão enorme pode ser detectada pelo exemplo bíblico, freqüentemente lembrado pelos autores que desenvolveram o tema, segundo o qual Esaú vendera a Jacó os seus direitos de primogenitura pela ínfima e desproporcional retribuição de um prato de lentilhas, o que só foi possível por força da extrema necessidade (fome) em que se encontrava o primogênito. Evidentemente que em tal época não se poderia falar no instituto da lesão como entendida pelos modernos ordenamentos jurídicos, mas o que se apontava no ‘negócio’ feito entre os filhos do patriarca era uma moralidade que atentava contra os conceitos religiosos dos hebreus, ferindo o comportamento que se esperava imperante em situações como a descrita. Atos atentatórios da moral não eram tolerados pelo sentimento religioso que muito inspirou o direito antigo e que, séculos adiante, como se verá, veio a ser mola propulsora da lesão e dos outros institutos” (In: SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 69). 741 In: SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 70. 742 Conforme SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 72. 743 In: GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 27. 740 265 No Code, entretanto, a teoria da lesão ganhou uma versão de caráter subjetivo, restrita à venda de imóveis e agregada à doutrina dos vícios do consentimento, seguindo a linha de pensamento individualista que tanto inspirou essa legislação744. Assim a ocorrência da lesão representava no sistema francês um vício da vontade, equiparado à figura do erro, dando ensejo à anulação do pacto745. Já no BGB a lesão mereceu um tratamento mais diferenciado, caracterizada pela desproporção chocante entre as prestações e a exploração da necessidade, leviandade ou inexperiência de outrem (parágrafo 138). Criou-se, assim, a chamada lesão qualificada, pois, como enfatiza Orlando Gomes, não basta que a situação de equivalência seja sacrificada, que uma das partes tenha obtido vantagem patrimonial que excede de muito o valor da contraprestação (teoria da lesão pura), sendo exigida a presença da conduta do explorador746. ____________ Orlando Gomes ensina que, pouco antes da promulgação do Código Civil Francês, “uma Lei de 4 do Fruidor do Ano III suprimira o direito de rescindir o contrato por lesão, tanto para os menores como para os vendedores de imóveis, casos únicos em que era tradicionalmente admitido. Durante a elaboração do Código, sérias discussões travaram-se perante o Conselho de Estado, a propósito de sua restauração. Berlier assinalou os inconvenientes da ação rescisória que se pretendia reviver, aduzindo diversas razões. Primeiramente, alegou que era contrária ao interesse público porque mantinha em suspenso a propriedade durante o prazo dado à rescisão; em seguida, qualificou-a de injusta e ilegal por existir apenas para o vendedor e, após ter apontado outras desvantagens de ordem prática, acarretou o inconveniente de fazer depender a sorte do contrato de perigosa perícia. Outros apoiaram esse ponto de vista, mas predominou o de Portalis, cuja argumentação interessante define claramente o sentido que o Código de Napoleão veio emprestar, originalmente, à lesão. Examinou o princípio da execução, partindo, na análise daquele, da comutatividade essencial do contrato de compra e venda e da necessidade de ter toda obrigação uma causa, para concluir que somente há causa na venda quando o preço está em proporção ao valor da coisa vendida” (In: GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 27-8). 745 O Código Civil Francês, em seu art. 1674 estabelece: “ Se le vendeur a éte lese de plus de sept douziémes dans le prix d’um immeuble, il a le droit de demander la rescision de le vende, quand même il aurait expressément renoncé dabs le contrat à faculte de demander cette rescision, et qu’il aurait declare Donner la plus-value.” 746 In: Transformações gerais do direito das obrigações, p. 32. Orlando Gomes critica este posicionamento do BGB: “tem-se a impressão de que esse requisito é eminentemente subjetivo. Parece, à primeira vista, com efeito, que a condenação do contrato assim realizado se funda, como no direito francês, no pressuposto de que não consente livremente quem celebra contrato premido pela necessidade. Na verdade, porém, o fundamento da sanção reside na consideração de que o comportamento da parte que se aproveita da necessidade da outra constitui atentado aos bons costumes. O contrato é nulo, não porque a vítima sofreu uma desvantagem, mas porque a outra parte agiu reprovadamente. Tem, pois, a usura fundamento distinto da lesão, não sendo possível, por conseguinte, aproveitar os elementos de sua definição para conceituar o negócio lesivo. Tanto que se opera a transposição, esvazia-se o conceito de lesão, conservando-se apenas o nome. Ora, se com a denominação de lesão qualificada se conceitua, em verdade, modalidade especial de usura, possível não é substituir-lhe o fundamento, e, em conseqüência, a sanção aplicável ao negócio jurídica realizado nas condições reprovadas” (p. 33-4). 744 266 Na mesma esteira segue o modelo italiano, que no artigo 1448 de seu Código Civil acompanha a tendência da subjetivação da lesão747. No direito brasileiro a teoria da lesão se faz presente inicialmente por força da influência das Ordenações do Reino, que vigoraram durante o período colonial, mantendo-se ainda posteriormente na Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, que deixou de reiterá-la no seu Esboço. Entretanto o espírito liberal que norteou a elaboração do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 1916 manteve a teoria da lesão afastada de nossos dois mais importantes diplomas normativos de Direito Privado do século passado. No âmbito das relações de consumo o postulado do equilíbrio econômico ostenta um viés eminentemente objetivo. A lesão consumerista nenhuma referência faz à necessidade de configuração de situação de exploração do estado de inferioridade ou inexperiência do consumidor, afastando-se assim do modelo normativo do Código Civil. Nesse contexto, podese afirmar que a teoria da lesão contemplada no Código de Defesa do Consumidor deve ser considerada como objetiva748. De fato, o Código Civil atual acompanha a tendência presente na codificação de outros países no sentido de se associar à ocorrência da lesão à existência de nítida disparidade negocial, de forma a se evidenciar uma situação de inferioridade de uma das partes, podendo assim ser caracterizada como subjetiva. O acerto da indicação da lesão, como vício da vontade, parece ser bastante discutível, podendo-se aqui trazer à colação a lição de Orlando Gomes: “ora, quando se exige o requisito da exploração ou da inexperiência de outrem, não se pode levar em conta a vontade da vítima para presumi-la viciada, mas, sim, o comportamento do explorador. Não é defeituosa, por outro lado, a declaração de quem, abusando da inexperiência ou da premente necessidade de alguém, obtém vantagem ____________ O art. 1448 do Código Civil Italiano dispõe: “Azione generale di rescissione per lesione. Se vi è sproporzione ra la prestazione di una parte e quella dell’altra, e la sproporzone di uma parte e quella dell’altra, e la sproporzione è dipesa dallo statu di bisogno di una parte, del quale l’altra ha approfittato per rarne vantaggio, la parte danneggiata può domandare la rescissione del contratto L’azione non è ammissibile se la lesione non eccede la metà del valore che la prestazione eseguita o promessa dalla parte danneggiata aveva al tempo de contrato(…)”. 748 Em interessante ponderação, Tereza Negreiros ameniza a distinção dos critérios estabelecidos pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, dizendo: “a diversidade é mais aparente do que real: o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor constitui uma presunção legal instituída pelo CDC (art. 4º, I). Assim é que, no âmbito das relações de consumo, o traço subjetivo da lesão não deixa de estar igualmente presente na lógica funcional do instituto” (In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 191). 747 267 patrimonial manifestamente desproporcionada ao proveito resultante da contraprestação. Não se pode considerar defeituosa, em suma, a declaração de vontade de nenhuma das partes”749. Já no âmbito consumerista várias passagens do Código de Defesa do Consumidor indicam um outro caráter para a lesão, desconsiderando categoricamente o aspecto subjetivo. É outorgado ao consumidor o ‘direito básico’ de modificação das ‘cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais’ (art. 6º, V); considera-se como prática abusiva a exigência sobre o consumidor de ‘vantagem manifestamente excessiva’ (art. 39, V); são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que estabeleçam ‘obrigações iníqüas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada” (art. 51, IV); presume-se exagerada a desvantagem que ‘se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso’ (art. 51, par. 1º, III). Consolidada a questão no âmbito consumerista, resta a dúvida sobre qual a efetiva configuração da lesão no sistema contratual que se afasta da incidência das regras consumeristas. O Código Civil atual, de forma expressa, adota a lesão como um dos vícios da vontade, colocando-a junto ao erro, dolo, coação e estado de perigo, numa nítida visão subjetiva. O artigo 157 da codificação civil é expresso ao reconhecer a ocorrência da lesão nas situações em que uma pessoa, sobre premente necessidade ou por inexperiência, se obriga à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. Em ocorrendo tal situação, a solução lógica é a anulação no negócio jurídico firmado (art. 171, II, do CCB). Por outro lado, não pode deixar de ser reconhecido que a principiologia que norteia a teoria atual dos contratos acaba por contemplar, também no âmbito dos contratos regulados pelo Código Civil, a teoria da lesão objetiva, afastando a necessidade de verificação dos elementos de ordem subjetiva. A aceitação de um contrato economicamente desequilibrado fere diretamente a nova teoria do contrato, comprometida com a consagração de um projeto constitucional geral, que se funda na função social e na boa-fé. Assim esses dois princípios servem de justificativa para que haja a revisão do contrato sempre que houver onerosidade excessiva congênita ao seu nascimento, pois somente assim se poderá obter a efetivação do ____________ 749 In: GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 35. 268 ideal de justiça contratual, valor tão relevante para a visão pós-moderna de contrato750. Não se trata, entretanto, da aceitação de um dirigismo contratual exagerado, mas, sim, do reconhecimento da importância dos valores éticos para a devida conformação jurídica dos institutos negociais751. 4.3 O PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO NO SISTEMA PÓS-MODERNO: A OPONIBILIDADE DOS EFEITOS CONTRATUAIS EM RELAÇÃO A TERCEIROS O postulado da relatividade do vínculo contratual acompanha a teoria do contrato desde os seus mais distantes primórdios, firmando a noção de que o pacto relaciona apenas as partes que firmaram o acordo, não gerando efeitos em relação a terceiros, na clássica postura ‘parte’ versus ‘terceiro’752. Fica evidenciado, assim, um claro comprometimento com a idéia de autonomia da vontade, limitando os efeitos contratuais ao círculo de contratantes. Como aponta Patrícia Cardoso, na concepção clássica de contrato há uma interdependência entre a autonomia da vontade e a relatividade dos efeitos do contrato, de forma que uma relação que produzisse efeito na esfera jurídica de terceiros implicaria em intromissão na esfera jurídica ____________ Luís Renato Ferreira da Silva traz à colação exemplo do direito francês que reforça a idéia de que a teoria da lesão está a serviço de uma efetiva justiça contratual: “veja-se que, mesmo na França, com as limitações inerentes àquele sistema, há quem defenda a incidência do instituto até mesmo nos contratos aleatórios. O espanto que poderia causar este entendimento reside em que a lesão sempre visou manter o equilíbrio das prestações contratuais, e este equilíbrio só pode ser vislumbrado em contratos comutativos, que são o pólo oposto dos aleatórios. O cerne deste desenvolvimento (que contraria a doutrina ainda majoritária) reside em que o contrato aleatório deve ser para ambos os lados. Segundo Deprez, conclui-se que não se pode fazer vigorar a idéia de aleatoriedade quando há certeza acerca da álea que conduzirá inevitavelmente para um lado. Ou seja, quando o caráter aleatório mascare uma certeza de contrato lesivo” (In: SILVA. Luis Renato Ferreira. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 91). 751 Conforme ressalta Miguel Reale: “o princípio do equilíbrio econômico dos contratos é a base ética de todo o Direito Obrigacional” (In: REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil, p. 9). 752 Nesse sentido, é a clássica disposição contida no artigo 1165 do Code, “As conveções só em efeito entre as partes contratantes; não prejudicam elas terceiro e não aproveitam a ele a não ser no caso previsto no art. 1121”. Este dispositivo mencionado refere-se a estipulação em favor de terceiro (“Poder-se-á, igualmente, estipular em proveito de um terceiro quando tal é a condição de uma estipulação que se faz para si mesmo ou de uma doação que se faz a um outro. Aquele que faz tal estipulação, não poderá revogá-la se o terceiro declarou querer aproveitar-se dela”). Sobre este aspecto, Tereza Negreiros leciona: “o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, num cenário em que a vontade ocupa o centro natural de todas as atenções, traduz um dos mais importantes corolários de concepção voluntarista do contrato. Não surpreende, portanto, que os conceitos de ‘parte’ e de ‘terceiro’ sejam também eles deduzidos apartir da referência à vontade: é ‘parte’ do contrato aquele cuja vontade deu origem ao vínculo contratual, é ‘terceiro’ aquele cuja vontade, pelo proprietário, é um elemento estranho à formação do contrato em causa” (In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 215). 750 269 alheia, quebrando a regra do solo consensus obligat 753 . Dessa forma, somente o patrimônio dos pactuantes ficaria comprometido pelo vínculo negocial. É o tradicional ‘inter alios acta, allis neque nocet, neque prodest”. Na síntese de Silvio Rodrigues: “como o vínculo contratual emana da vontade das partes, é natural que terceiros não possam ficar atados a uma relação jurídica que lhes não foi imposta pela lei, nem derivou de seu querer”754. Entretanto o reconhecimento de que o contrato está comprometido com o desempenho de uma função social modifica consideravelmente esse panorama, fazendo com que o pacto seja visto de forma inserida em um contexto social. O jurista italiano Enzo Roppo, nesse sentido, aponta a existência de uma ‘fórmula de relatividade do contrato” que traz como conseqüência a potencialidade de o pacto mudar sua disciplina, suas funções e a sua própria estrutura segundo o contexto econômico-social em que está inserido755. Uma vez celebrado, o contrato ingressa no mundo jurídico, do qual passa a fazer parte, na condição de um fato social relevante, projetando-se, portanto, no contexto da sociedade, e, conseqüentemente, com repercussão e reações em face à terceiros756. Assim os megaprincípios da função social dos contratos e da boa-fé revestem a relatividade de um comprometimento com a realidade social, irradiando suas conseqüências – positivas ou ____________ In: CARDOSO, Patrícia. “Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera como devedor na violação do pacto contratual.” In: RTDC, p. 125. 754 In: Direito Civil. Dos contratos e das declarações unilateriais de vontade, 28a ed., Saraiva, 2002, p. 17. Na doutrina portuguesa E. Santos Junior ensina: “na verdade, é de longa data afirmado um princípio: o princípio chamado da relatividade dos contratos ou, na terminologia anglo-saxónica – aliás, por influência normandofrancesa-, da ‘privity of contract’. O contrato é ‘res inter alios acta’, diz-se: é coisa das partes que só a elas respeita; a teceiros, não pode nem beneficiar nem prejudicar; enfim, o ocntrato – o contrato ‘obrigacional’, pois é este o qu se tem em vista – apenas produz efeito entre as partes. O princípio encontra consagração no art. 406, nº 2 do nosso CC: em relação a terceiros o contrato só produz efeitos nos casos e termos especificamente previstos em lei” (In: SANTOS JUNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito. Coimbra: Almedina, 2003, p. 164). 755 In: ROPPO, Enzo. O contrato, p. 24. 756 Nesse sentido, é a lição de Serpa Lopes: “a verdade é que nenhum de nossos atos se circunscreve, em seus efeitos, a nós mesmos ou aos que nele intervieram diretamente. Se, de um lado, constitui verdade inegável a de nenhum terceiro poder ser vinculado a um contrato no qual , não consentiu, por outro lado, não menos incontestável é que a existência de uma obrigação, de um contrato ou de qualquer outro ato jurídico representa um fato social, e que, como tal, produz os seus efeitos num meio social, com repercussão e reações em face de terceiros, que delas não podem escapar” (In: Curso de Direito Civil. Fonte das obrigações: contratos. 6. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 2001. v. III, p. 129). 753 270 negativas - no ambiente social em que estão inseridos, numa espécie de efeito dominó757, pois, como ensina Luis Renato Ferreira da Silva, “aceitando-se a idéia de que o contrato é um elo na cadeia econômica que transcende, desta forma, os interesses exclusivos dos contratantes (ainda que primariamente seja construído a partir e para estas vontades), acaba-se por se admitir que a função social faz com que se tenha que pensar em uma minoração da idéia de relativismo”758. Nesse sentido, pode ser aceita a existência de dois âmbitos de eficácia contratual, ou seja, uma dimensão interna, envolvendo os direitos e obrigações que emergem da própria natureza do contrato, vinculado ao círculo de contratantes, e o ambiente externo, decorrente da simples existência do contrato como fato social, atingindo a esfera jurídica de terceiros, pelo menos no sentido de respeito e abstenção759. Na explicação de Patrícia Cardoso, os direitos e obrigações específicas decorrentes das posições jurídicas inerentes ao contrato apenas podem vincular diretamente os contratantes, o que implica dizer que a prestação principal não pode ser exigida de terceiros, visto que sua realização compete ao devedor, mas isso não significa que não possam ser opostos a terceiros deveres genéricos de não prejudicar ____________ Sans dos Santos adverte que “o contrato, como fato social e econômico que é, tem ‘efeito cascata’. À proporção que o contratante imediato é lesado, toda a comunidade sente os prejuízos; da mesma forma, quando ambas as partes são beneficiadas pelo pacto, a vantagem é comum. Por esses motivos, não se pode observar o fenômeno apenas sob o prisma do contratante e contratado, pois o contrato passou a ser uma ‘instituição social’ – os bons contratos, que promovam o desenvolvimento econômico e social, são de interesse de toda a sociedade” (In: SANTOS, Eduardo Sans. A Função Social do Contrato, p. 56). 758 In: SILVA. Luis Renato Ferreira. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição, p. 134. 759 Junqueira de Azevedo, ao apresentar parecer sobre questão relativa à violação por parte de terceiro de regra de exclusividade em relações contratuais de fornecimento de combustíveis, explica: “aceita a idéia de função social do contrato, dela evidentemente não se vai tirar a ilação de que, agora, os terceiros são partes no contrato, mas, por outro lado, torna-se evidente que os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse. Com muita precisão, os juristas franceses distinguem entre dois termos: relativité (relatividade dos efeitos) e opposibilité (oponibilidade dos efeitos). José Duclos, em toda uma obra monográfica sobre o assunto (L’opposabilité: essai d’une théorie géneralé. Paris: LGDJ, 1984), dedica a primeira parte de seu trabalho (p. 32-276) ao estabelecimento da distinção entre os dois termos, quer em relação a fatos jurídicos, quer em relação a atos jurídicos, a atos jurisdicionais e a situações jurídicas (daí o subtítulo da obra ‘ensaio de uma teoria geral’). No prefácio, o prof. Didier Martin afirma: ‘a oponibilidade tem por alvo os estranhos à relação de direito que ela apresenta à sua consideração e que se denominam ‘terceiros’, sem dúvida para mehor marcar que as coisas jurídicas, que lhe são exteriores, não constituem, de forma alguma, negócios a ele estranhos’. Exclusivamente sobre os efeitos do contrato, Jean-Louis Goutal já havia escrito sua tese Essai sur le príncipe de l’effet relatif du contrat (Paris: LGDJ, 1981), em que também havia afirmado a oponibilidade do contrato a todos, resultando essa oponibilidade da mera existência do contrato; asseverou, então, que a oponibilidade é a regra e a inoponibilidade, a exceção (são exceções, por exemplo, os casos em que a lei exige expressamente o registro do contrato, para valer perante terceiros)” (In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de. “Princípios do novo Direito Contratual e desregulamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual.” In: RT, p. 116-7). 757 271 (neminen laedere), evitando uma interferência lesiva nos contratos regularmente celebrados760. Cria-se, portanto, a noção de oponibilidade do contrato em relação a terceiro, como uma espécie de tutela ou eficácia externa do crédito, o qual passa a ser protegido também em relação a terceiros – erga omnes 761. Assim a doutrina já vinha aceitando teorizar sobre efeitos negativos do contrato, que seriam o reconhecimento natural de não atentar contra os pactos alheios ou, ao menos, não incentivar o rompimento desses pactos762. Dessa forma, o princípio da função social incide sobre a noção tradicional de relatividade dos pactos, de modo a desafiar as categorias dogmáticas clássicas e enfatizar os contornos sociais do contrato, tornando-o um fato social diante do qual os terceiros não devem se mostrar indiferentes. Mas o princípio da relatividade dos contratos, na sua versão tradicional, é tocado nos casos em que o ordenamento lhe sobrepõe outros valores cultuados juridicamente como de maior importância, em especial a busca da realização da ética negocial, no mais das vezes esteirado nos princípios da boa-fé e seus consectários e na limitação ao exercício abusivo de direitos. Não restam dúvidas quanto ao fato de a função social dos contratos hodiernamente ser reconhecida principalmente pelo seu aspecto econômico. A veia econômica, para muitos ____________ In: CARDOSO, Patrícia. “Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera como devedor na violação do pacto contratual.” In: RTDC, p. 130-1. A autora reforça: “cabem aqui algumas reflexões acerca do princípio da relatividade dos efeitos do contrato e da oponibilidade destes, sendo certo que são conceitos diferentes. O dever de os terceiros se absterem de qualquer intervenção no contrato ou a invocação de um contrato por um terceiro é uma ocnceqüência da existência deste, o que remonta à oponibilidade. Já o princípio da relatividade preleciona que os direitos e deveres diretamente decorrentes da relação contratual vinculam apenas as partes contratantes, estando ligado ao princípio da obrigatoriedade das convenções” (p. 131). 761 Patrícia Cardoso adverte:“o direito moderno deve ser analisado sob a perspectiva relacional, isto é, reformulando conceitos derivados de uma concepção individualista em prol de uma concepção mais solidarista, inspirada nos valores constitucionais e, ao mesmo tempo flexível, criando figuras novas, adaptáveis às exigências sociais. O crédito, face à sua importância atual na sociedade e ao aumento da intersubjetividade – diferentemente do que ocorria no período liberal, onde a propriedade imobiliária era a medida por excelência da circulação de riquezas – não pode mais ser relegado, impondo-se sua valorização e, relação aos direitos reais, o que repercute no reconhecimento da tutela externa do mesmo” (In: “Oponibilidade dos efeitos dos contratos: determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera como devedor na violação do pacto contratual.” In: RTDC, p. 132). 762 Conforme In: SILVA. Luis Renato Ferreira. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil e sua Conexão com a Solidariedade Social. O Novo Código Civil e a Constituição, p. 139. O autor explica que: “nestas circunstâncias, o terceiro que tenha um interesse conflitante com os de algum contratante não pode instigar o rompimento contratual ou favorecer tal agir, pois está induzindo ao inadimplemento e, com isto, prejudicando a manutenção que é a função socialmente reconhecida. O terceiro, embora estranho à declaração de vontade daquele contrato, deve colaborar, no grau mínimo que é não atrapalhar o desenvolvimento do contrato” (p. 139). 760 272 autores, é o veículo que nutre e dá respaldo ao vínculo negocial, para que ele desempenhe satisfatoriamente a sua finalidade de troca. Entretanto, como destaca Ricardo Santos, não se pode limitar à função social do contrato ao seu viés econômico. A função social deve ser considerada em um espectro mais amplo e multifocal, comprometendo a finalidade do pacto também com valores, pelo menos aparentemente, despidos de caráter econômico direto, como o respeito aos direitos fundamentais, o reconhecimento da necessidade de consideração da questão ecológica e o respeito a tradição cultural que molda de cada ambiente social, entre outros fatores. No nosso sistema o mais enfático golpe à visão tradicional da relatividade dos contratos é encontrado no sistema normativo de tutela do consumidor (Lei n. 8078/9), no qual a extensão dos efeitos dos contratos e, com isso, a conseqüente atribuição de responsabilidade é levada aos mais amplos horizontes763. Criou-se no modelo consumerista, a regra geral das responsabilidades dos agentes econômicos que atuam na cadeia de produção, geralmente de maneira solidária, extrapolando-se, assim, os estreitos limites da relação contratual ____________ O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 63.981-SP, proferiu decisão que tornou-se paradigmática na extenção subjetiva da responsabilidade no sistema consumerista. Trata-se do case em que alguém, em viagem aos Estados Unidos, adquiriu uma filmadora da marca Panassonic, com garantia contratual de um ano, a qual apresentou vícios. A demanda foi proposta, então, contra a empresa Panassonic do Brasil Ltda., a qual alegou a sua ilegitimidade, por não ter participado do contrato posto sub judicie. O Egrégio Tribunal refutou a alegação de falta de legitimidade, em acórdão assim ementado: “Direito do consumidor – Filmadora adquirida no exterior – Defeito da mercadoria – Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (‘panasonic’) – Economia globalizada Propaganda – Proteção ao consumidor – Peculiaridades da espécie – Situações a ponderar nos casos concretos – Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente fundamentado – Recurso conhecido e provido no mérito, por maioria. I – Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca de equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se inclusive o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presente empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso país. II – O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado’ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados e de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca. III – Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos. IV – Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes. V – Rejeita-se a nulidade argüida quando sem lastro na lei e nos autos”. 763 273 propriamente dita 764 . Por outro lado, ainda no campo consumerista, tutela-se o ‘terceiro vítima’ do inadimplemento contratual, de forma que a responsabilidade pela inexecução das obrigações contratuais pode gerar efeitos que alcançam ‘terceiros não-contratantes”. Tal situação é perfeitamente identificada na figura do ‘consumidor vítima’ consagrada no artigo 17 do Código de Defesa Consumerista, dispondo que “equiparam-se a consumidor todas as vítimas do evento”. Essa ‘equiparação’ estende às vítimas da colocação de um produto ou prestação de um serviço a mesma proteção destinada ao tradicional contratante. Cria-se um critério que alarga a concepção de parte de forma a incluir outras pessoas num comprometimento com a noção funcional de contrato. Pode-se, aqui, seguir a afirmação de Augusto Geraldo Teizen Júnior, no sentido de que, em grande parte, a reformulação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato é conseqüência da economia industrial e fruto da massificação contratual 765. Fora do âmbito das relações de consumo, a questão da ampliação dos limites eficaciais do contrato também encontra adequação nas situações em que estão envolvidos ‘contratos em grupo’, ou seja, há a união de uma série de contratantes com a finalidade de fabricação de um certo produto ou prestação de determinados serviços. Cria-se, aqui, um liame funcional que abrange todos os envolvidos na relação, de forma que a tradicional noção de ‘parte’ cede espaço para uma visão mais efetiva, fundada na realidade negocial, que abrangerá todos os ‘participantes da relação’. Assim como a formação do ‘grupos de contratantes’ (contratos coligados, em rede) propiciará um maior proveito negocial, as responsabilidades também serão compartilhadas. Essa despersonalização (ou multipersonalização) do contratante, que muitas vezes serve como atrativo negocial, deve proporcionar maior segurança para a outra parte, na qual é gerada a expectativa de estabilidade negocial. O nosso sistema, inicialmente no plano jurisprudencial, e, após, por meio legislativo, contempla ainda a possibilidade de, em termos de responsabilidade de sociedades ____________ Ricardo Lorenzetti informa que situação semelhante ocorre no sistema jurídico argentino: “una prueba evidente de ello es la crisis que há sufrido el principio del efecto relativo de los contratos en relación a la responsabilidad del fabricante por daños causados a los consumidores. Tanto la doctrina como la jurisprudencia, han establecido la responsabilidad del fabricante, que no há contratado con el consumidor, sino el intermediario , violando de algún modo aquel principio” (In: “Analisis crítico de la autonomia privada contratual.” In: RDC, p. 7). 765 In: TEIZEN JUNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. São Paulo: RT, 2004, p. 174. 764 274 personificadas em relação a seus atos negociais ou não, ir além da legitimação tradicional, buscando-se uma legitimação extraordinária nos casos de abuso da personalidade jurídica, abrangendo sócios e/ou administradores da sociedade, numa clara expansão dos efeitos relativos do pacto766. 4.3.1 A flexibilização do princípio da relatividade do vínculo contratual e a atuação de terceiro que coopera com o devedor para o inadimplemento do contrato A doutrina jurídica, já há algum tempo, vem manifestando interesse em atentar com maior cuidado para os casos em que um terceiro coopera com o devedor para ocasionar lesão ao interesse do credor, surgindo assim a discussão sobre a tutela ou eficácia externa dos direitos de crédito. Assim questiona-se sobre a possibilidade de, além da tutela que o credor possui em relação ao devedor, ser-lhe também reconhecida a proteção em relação a atos de terceiros que tenham influenciado na violação dos seus direitos. O credor, assim, teria o direito legítimo de exigir de terceiro que se omita da prática de atos que venham a induzir o devedor a deixar de cumprir a obrigação contratada, ou que facilite o seu descumprimento, celebrando contrato incompatível com a obrigação preexistente767, pois este agiu em conduta reprovável, sob o prisma da solidariedade social e do respeito às relações negociais alheias. Segundo Ferrer Correia, é a teoria do efeito externo das obrigações que fornece à doutrina da responsabilidade do terceiro cúmplice o necessário enquadramento lógico sistemático, pois se diretamente o contrato só vincula os pactuantes, nem por isso o direito dele emergente deixa de ser oponível a terceiros ____________ Sobre este assunto nosso estudo A teoria da desconsideração da pessoa jurídica no novo Código Civil, RDP, v. 10, p. 69 . 767 Ferrer Correa, após informar que a jurisprudencia francesa foi uma das primeiras a orientar-se no sentido da responsabilização do terceiro que colabora como devedor na violação do vínculo contratual, no que acabou por contar com a colaboração da doutrina, exemplifica: “entre os muitos casos em que uma e outra tem feito aplicação do princípio da responsabilidade do terceiro pelo prejuízo causado ao titular do direito de crédito, avultam os da ruptura de um contrato de trabalho ou de prestação de serviço e os de violação de um pacto de preferência ou de uma promessa unilateral de venda – através de um novo contrato incompatível com o primeiro” (In: CORREIA, A. Ferrer. Da responsabilidade de terceiro que coopera com o devedor na violação de um pacto de preferência. Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal. Coimbra,: Almedina, 1985, p. 34-35). 768 In: CORREIA, A. Ferrer. Da responsabilidade de terceiro que coopera com o devedor na violação de um pacto de preferência. Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal, p. 37. O autor explica: “trata-se, em suma, de admitir, ao lado do efeito interno, específico das obrigações (de natureza evidentemente contratual), um efeito externo ou reflexo (de natureza extracontratual). A responsabilidade extracontratual é assim chamada a completar e a integrar a responsabilidade contratual; porque, efectivamente, as diversas responsabilidades admitidas por uma boa legislação devem articular-se de maneira a não deixar nenhum vazio por onde o ilícito (la faute), e especialmente a má-fé, possa impunemente passar” (p. 36-7). 766 768 . Assim não pode a relação obrigacional 275 ser considerada como uma círculo fechado, que nada signifique para terceiros. Aceita a existência de responsabilidade civil do terceiro que coopera com o devedor no incumprimento contratual, resta a discussão acerca dos elementos justificadores dessa responsabilização. Na doutrina portuguesa, Ferrer Corrêa insiste no reconhecimento de ocorrência de abuso de direito do terceiro, entendendo haver uma presunção de que o terceiro que conhecia a existência do contrato e, mesmo assim, agiu com a intenção de causar danos ao credor da obrigação pratica ato emulativo 769 . Transposta para o direito brasileiro atual, essa tese ganha sentido em função da abrangência dada pelo legislador civilista para a noção de abuso de direito, compreendido como o ato ilícito no qual o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Na doutrina italiano Pietro Perlingieri justifica a responsabilidade do terceiro que colabora com o devedor para o inadimplemento como do dever de solidariedade social previsto nas Cartas Constitucionais modernas, que proporciona a ampliação dos limites tradicionais da responsabilidade civil770. Também este enfoque poderia ser adotado em nosso sistema, levando-se em consideração o fenômeno de constitucionalização do Direito Civil, e conseqüentemente do contrato, que passam a sofrer as influências diretas dos ditames constitucionais. Entretanto parece mais adequada a proposta de Tereza Negreiros, concluindo que, à luz da nova principiologia contratual, a função social e o abuso de direito constituem fundamento para a responsabilização do terceiro que, ciente da existência de relação contratual anterior, não obstante contrata com o devedor obrigação incompatível como ____________ In: CORREIA, A. Ferrer. Da responsabilidade de terceiro que coopera com o devedor na violação de um pacto de preferência. Estudos de Direito Civil, Comercial e Criminal, p. 49. 770 In: PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional, p. 142. Na lição deste autor: “é verdade que a obrigação é relação que interessa ao devedor e ao credor, mas também é verdade que esta relação tem relevância externa. Mesmo o crédito é, de um certo ponto de vista, um bem, um interesse juridicamente relevante, e enquanto tal deve ser respeitado por todos. Tome-se, como exemplo, o fato ilícito do terceiro que provoque a morte do devedor, impedindo assim ao credor de satisfazer o prórpio interesse; o dano do terceiro não configura um inadimplemento (o terceiro não era devedor), mas um fato ilícito relevante nos termos do art. 2043. Há, portanto, uma ampliação das fronteiras da responsabilidade extracontratual, em relação ao princípio da solidariedade constitucional (arts. 2 e 3 Const.): se o comportamento do sujeito é lesivo de uma situação juridicamente relevante (absoluta ou relativa) de maneira a provocar um dano injusto, não há motivo de excluir a responsabilidade de quem provocou a lesão. A distinção entre situações absolutas e relativas perdeu portanto a sua justificação histórica na medida em que, com fundamento no dever de solidariedade e da conseqüente responsabilidade, todos devem respeitar qualquer situação e o titular da mesma tem uma pretensão a sua conservação em relação a todos” (p. 142). 769 276 cumprimento da primeira obrigação assumida por este771. A esses fundamentos, pode ser acrescentado o princípio da boa-fé, com a sua imposição de deveres de conduta comprometidos com os ditames da ética social. 4.4 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR DE CRÉDITO A consolidação do modelo de economia de mercado verificada no decorrer do século passado acabou por acarretar uma democratização do acesso ao crédito por parte dos consumidores em geral, fenômeno este que decorreu, em especial, pela facilitação das formas de concessão de crédito e multiplicação dos produtos e serviços que por meio dele, podem ser adquiridos e usufruídos772. Como afirma Catarina Frade e Sara Magalhães, o crédito passou então a ser uma constante no primeiro ciclo de vida das famílias, quando estas procedem à aquisição de equipamentos indispensáveis à sua autonomia familiar e econômica (casa, automóvel, eletrodomésticos, mobiliário, computador, etc.) de forma que este torna-se fortemente associado a padrões que resultam da interação das necessidades com o meio social773. ____________ 771 In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 249. Nesse mesmo sentido, manifesta-se Augusto Geraldo Teizen Júnior: “Portanto, sendo a liberdade de contratar dotada de função social, não pode ser tal liberdade exercida de forma contrária a sua função social. O abuso de direito deve ser invocado para responsabilizar o terceiro que excedeu a liberdade de contratar em desacordo com a sua função social, na medida em que tal liberdade resultou na violação de um direito de crédito alheio, de cuja existência o terceiro tivera conhecimento prévio. A função social, bem como o abuso de direito constituem, em conjunto com a boa-fé, principiologia contratual que pode fundamentar a responsabilização do terceiro que, ciente da existência de relação contratual anterior, não obstante, contrata com o devedor obrigação incompatível como cumprimento da primeira obrigação assumida” (In: A função social no Código Civil, p. 172). Conforme ensina Maria Manuel Leitão Marques, “ainda que o fenónemo do crédito tenha muitos séculos, a sua ‘democratização’ e legitimação social coincidem com o aparecimento da classe operária industrial, que vive do seu salário e tem um emprego estável que lhes permite contar com rendimentos futuros mais ou menos previsíveis, e por isso mesmo susceptíveis de serem antecipados. O aumento desse rendimento é paralelo à massificação de certo tipo de bens de equipamento doméstico e os dois fenômenos alimentam-se mutuamente” (In: O endividamento dos consumidores. Lisboa: Almedina, 2000, p. 17-8). 773 In: Sobreendividamento, a outra face do crédito, publicado na coletânea Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, coordenado por Claudia Lima Marques e Rosângela Lunardelli Cavallazzi, RT, 2006, p. 25. Segundo as autoras, “esses padrões resultam da interacção das necessidades individuais como meio social. A adopção de determinadas práticas de consumo está relacionada com as percepções que os indivíduos têm acerca do que é ou não valorizado pelo grupo social no qual eles acreditam (ou aspiram a) estar incluídos. Os indivíduos fazem, possuem e adquirem aquilo que é entendido como adequado fazer, ter ou comprar pelos outros com os quais cada indivíduo se identifica. Assim, o comportamento dos outros constitui um termo de comparação para o indivíduo, informando-o sobre o que deve ou não ser feito, ajudando-o a decidir. Certos tipos de consumo não podem ser descontextualizados ou mesmo conotados como supérfluos na medida em que não constam da lista das prioridades elementares (i.e., orgânicas) do indivíduo. Na vivência social dos indivíduos, esses consumos podem assumir-se como centrais. De um ponto de vista subjetivo, a sua não realização pode acarretar prejuízos relacionados, por exemplo, com a não inclusão de num círculo social com repercussão directa no bem-estar psicológico. Assim, um indivíduo que se encontre inserido em um contexto social em que a manifestação de bens materiais seja valorizada e não tiver recursos financeiros suficientes que lhe permitam a aquisição desse tipo de bens, encontra no crédito uma via para alcançar este reconhecimento social” (p. 25). 772 277 Assim acesso ao crédito representa um dos pilares de sustento do sistema econômico pós-moderno. A passagem do capitalismo de produção ao capitalismo de consumo somente obteve sucesso em função de se fazer acompanhar por esta espécie de open credit society pertinente à consolidação da atual sociedade de consumo de massa. A desvinculação entre obtenção de serviço ou aquisição de produtos ao pronto pagamento serve de fator de estímulo ao consumo, sendo responsável por grande parte das movimentações econômicas da atualidade774. Entretanto essa “facilidade de acesso ao crédito” que atua em favor do sistema econômico atual, ao mesmo tempo que vem ao encontro dos interesses dos consumidores, que de outra forma não teriam acesso a bens e serviços de que necessitam para sua sobrevivência ou conforto, apresenta-se como um dos temas mais delicados desta fase de transição entre o Direito Contratual moderno e o modelo pós-moderno, pois, como afirma Maria Manuel Leitão Marques, o crédito ‘democratiza’ o acesso a certos bens, mas não aumenta os rendimentos775, daí a série de problemas que naturalmente ele desencadeia. Assim, nas precisas palavras de Heloisa Carpena e Rosângela Linardelli Cavalazzi, “o crédito para o consumo se apresenta, de um lado, como o motor do processo capitalista, financiando a atividade econômica; e, por outro, como fonte de abusos por parte do fornecedor, ensejando a elaboração de novas teorias e normas disciplinadoras dessa relação”776. Além dos perigos inerentes à própria relação de consumo, face à reconhecida vulnerabilidade dos consumidores, o contrato de crédito acaba por trazer à tona uma série de peculiaridades que merecem a cuidadosa atenção dos estudiosos do Direito Contratual, em especial frente à ineficiência das atuais leis consumeristas neste âmbito específico. A proteção ao consumidor de crédito está a exigir uma regulamentação especial, sensível às características que norteiam essas relações. Como sintetiza Cláudia Lima Marques, em ____________ Segundo Cláudia Lima Marques, “a operação de crédito, como a estamos aqui definindo, é muito comum em todos os países, utilizada geralmente no Brasil como uma técnica complementar e necessária ao consumo, seja pela população com menos possibilidades econômicas e sociais, que utilizam seguidamente as vendas à prestação, seja pelo resto da população para adquirir bens de maior valor, como automóveis ou casas próprias, ou simplesmente alcançar maior conforto e segurança nas suas compras, utilizando o sistema de cartões de crédito”(In: “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, v. 18, p. 53). 775 In: MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores, p. 8. 776 In: PEREIRA, Wellerson Miranda. “Superendividamento e crédito ao consumidor endividado: reflexões sob uma perspectiva de direito comparado.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coords.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo. RT. 2006, p. 328. 774 278 matéria de crédito, estamos apenas começando um longo caminho de maior harmonia e de combate à abusividade no mercado777. 4.4.1 A proteção do consumidor de crédito e os mega princípios da função social e boafé A narrativa pós-moderna, fundada na multiplicidade e diversidade, necessita da atuação efetiva de megaprincípios que sirvam de elo de conexão, garantindo a coerência interna do ordenamento. No ambiente atual, de transição entre o moderno e o pós-moderno a função social serve como fonte de referência para que se obtenha uma adequada política de proteção ao consumidor de crédito, pois, o crédito é um dos principais elementos do mercado, que dele torna-se dependente de forma que a presença de vícios ou inadequações na utilização do crédito irá se refletir imediatamente na realidade do mercado778. Dessa forma, na sociedade endividada, a proteção do consumidor de crédito passa a representar um valor social779. ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, p. 57. Em estudo específico sobre os serviços bancários, esta autora apresenta interessante observação sobre as espécies de seus usuários: “em uma economia emergente com grandes dificuldades na área de crédito e de reservas como é a brasileira, este desenvolvimento aumenta a distância entre as camadas sociais e cria problemas estruturais mercadológicos, distinguindo as pessoas em categorias que poderiam ser resumir – e ironicamente – denominar: 1) ‘homo economicus’, um indivíduo pertencente à classe A e B, indivíduo com crédito, poupanças e contas em qualquer banco nacional ou internacional, que paga suas contas através do ‘home banking’, internet, telefone ou por escrito com uso do correio e que é alvo de incessante telemarketing dos bancos à procura de novos clientes; 2) ‘homo semi-economicus’, um indivíduo pertencente à clase médiabaixa (classe C), individuo com uma conta corrente para receber seu salário e pagar contas, mas sem crédito ou reservas, que muitas vezes nem cheques possui, ou que é titular de contas simples, sem crédito, só sendo a ele permitido o uso do cartão de débito; 3)o ‘homo excluído’, um indivíduo de baixa renda, que não tem conta bancária e que, no sistema financeiro brasileiro, deve descontar cheques, receber eventuais pensões, e benefícios para desempregados em um banco público, pagar as contas em casas lotéricas ou correios, sem a devida segurança e assessoria. Além de tudo, muitos devem pagar suas contas principais e impostos em um banco público nacional em centrais de pagamento, e só podem acessar algum (e caro) crédito através de terceiros ‘facilitators’, os chamados ‘agiotas’. Em outras palavras, sua renda limitada diminui suas oportunidades de acessar e adquirir serviços financeiros no mercado bancário” (In: “Sociedade de informação e serviços bancários: primeiras observações.” In: RDC, v. 39, jul-set. 2001, p. 59-60). 778 Na precisa afirmação de Claudia Lima Marques, “a nossa economia de mercado seria, pois, por natureza, uma economia do endividamento. Consumo e crédito são as duas faces de uma mesma moeda, vinculados que estão no sistema econômico e jurídico dos países desenvolvidos e emergentes como o Brasil” (In: “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 256). 779 Nesse sentido, é a lição de Wellerson Miranda Pereira: “o tratamento específico do crédito ao consumidor e das situações de superendividamento se insere na política mais ampla de proteção jurídica do consumidor. E, como tal, adota igualmente seus métodos e sua lógica: tratam-se de fenômenos da sociedade de massas, que afetam não só o interesse individual, mas igualmente o interesse coletivo dos consumidores” (In: PEREIRA, Wellerson Miranda. “Superendividamento e crédito ao consumidor endividado: reflexões sob uma perspectiva de direito comparado.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coords.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 163). 777 279 No mesmo sentido, o princípio da boa-fé deverá servir como norte para estabelecer parâmetros de conduta para as financeiras, que ficam comprometidas com os deveres anexos que resultam da adoção desse princípio, em especial aqueles relativos à informação e cooperação780. De acordo com o dever de informação cabe ao agente financeiro esclarecer o leigo sobre os riscos inerentes ao crédito frente ao comprometimento futuro de sua renda, pois os contratos de créditos exigem uma maior carga de informação a ser prestada pelo fornecedor781. Como lembra Claudia Lima Marques, “o fornecedor deverá informar, prévia e adequadamente, o consumidor sobre todos os elementos do contrato de crédito antes de concluí-lo (montante de juros, acréscimos legais, número e periodicidade das prestações) bem como a soma total a pagar com ou sem financiamento”782. Tratam-se das informações de ____________ Cláudia Lima Marques, ao apontar a busca de soluções para enfrentar o fenômeno do superendividamento, explica que “vão desde informação e controle da publicidade, direito de arrependimento, tanto para prevenir como para tratar o superendividamento; são frutos dos deveres de informação, cuidado e principalmente cooperação e lealdade oriundos da boa-fé para evitar a ruína do parceiro (exceção da ruína), que seria sua ‘morte civil’, sua exclusão do mercado de consumo ou sua ‘falência’ civil com o superendividamento” (In: “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 257). 781 Heloisa Carpena e Rosângela Lunardelli Cavalazzi enfatizam: “a informação clara, objetiva, verdadeira, cognoscível, permite que o consumidor instrua seu processo de decisão de compra do produto ou serviço, realizandoo de forma consciente, e assim minimizando os riscos de danos e de frustração de expectativas. O direito de informação é garantido de forma ampla pela lei, não como fim em si mesmo, mas como condicionante do direito de escolha do consumidor. É evidente que a adesão ao contrato de crédito ao consumo, estabelecendo relação continuada, de duração prolongada, e envolvendo cálculos e taxas freqüentemente incompreensíveis para o consumidor, impõe maior carga de informação a ser prestada pelo fornecedor” (In: PEREIRA, Wellerson Miranda. “Superendividamento e crédito ao consumidor endividado: reflexões sob uma perspectiva de direito comparado.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coords.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 335). 782 In: MARQUES, Claudia Lima. “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 286. A autora traz lições de direito comparado sobre o dever de informação nos contratos de concessão de crédito: “na França, desde 10.01.1978, a Loi Scrivener 78-22 já disciplinava a informação e a proteção dos consumidores no domínio de certas operações de crédito, referindo que o contrato deveria mencionar a identidade do mutuante, a natureza, o objeto e a duração da operação proposta, assim como o custo total e a taxa efetiva global de crédito (art. 4º). As disposições desta lei foram reunidas no Code de la Consommation de 26.07.1993, cujo art. L311-4 obriga o anunciante de todo negócio que envolva uma operação de crédito a inserir em sua publicidade as informações mencionadas, de modo que o consumidor já pode, desde a fase da publicidade, refletir sobre as condições do negócio. Outra forma de informar é o próprio contrato, daí a importância da norma comunitária européia (Diretiva 87/102/CE), que exige que o crédito ao consumo seja sempre contratado por escrito (art. 4º). Novas regras comunitárias (Diretiva 2000/65/CE) impõem ainda maior informação quando o serviço financeiro, bancário ou de crédito é contratado à distância (por telefone, Internet, home-banking, etc.). Na Alemanha, a revogada lei especial, hoje incorporada ao BGB, Verbraucherkreditgesetz, de 17.12.1990, reproduzindo a consolidada jurisprudência em matéria de crédito ao consumo, detalhou a disciplina dos deveres de informação e estabeleceu que o contrato de crédito, redigido rigorosamente na forma escrita, deve indicar a importância exata do crédito e o seu montante máximo, a importância global de todos os pagamentos parciais, compreendidos os juros e ulteriores custos, tipo e modalidade de reembolso do crédito, taxas de juros e ulteriores custos de crédito indicados individualmente, taxa efetiva anual e condições cuja presença pode ser modificada, como taxas de juros e garantias” (p. 286-7). 780 280 base, de caráter indispensável para que o destinatário possa realizar uma adequada escolha na contratação de crédito. Ainda em relação ao dever de informação e sua importância nos contratos de crédito, não pode ser esquecido o problema do excesso de informações, que, por sua vez, também acaba por trazer prejuízo considerável ao parceiro contratual. Os esclarecimentos devem ser realizados na medida exata, sem exageros, pois o excesso de cláusulas contratuais, em sua grande parte totalmente desnecessárias ou descomprometidas com as características da negociação em questão, dispersam a atenção do contratante. Clarissa Costa de Lima e Karen Rick Danilevicz Bertoncello advertem que cabe ao agente financeiro avaliar o máximo de informações capazes de serem absorvidas pelo consumidor de crédito, assim como o limite do número de cláusulas no contrato, pois a desinformação também pode resultar da falta de clareza no conteúdo ou da multiplicidade de informações prestadas783. O dever de cooperação nos contratos de concessão de crédito se consolida, em especial, na renegociação do pacto, o que se torna necessário em especial nos contratos de longa duração. Como afirma Claudia Lima Marques, os contratos de consumo devem ser momentos de cooperação e lealdade, e não de ‘destruição’ e ‘falta de opção’ do parceiro contratual mais fraco784. A efetiva tutela do consumidor do crédito enseja o enfrentamento de pelo menos três barreiras: a criação de um ambiente propício a que o consumidor manifeste a sua vontade de maneira consciente e refletida; a adoção de normas imperativas de proteção do consumidor de crédito e o desenvolvimento de mecanismos aptos a evitar a ocorrência do superendividamento, a minimização de seus efeitos e de solução para as situações mais graves deste fenômeno. ____________ In: LIMA, Clarissa Costa; BERTONCELLO, Karen Rick Danilrvicz. “Tratamento do crédito ao consumo na América Latina e superendividamento.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 206. 784 In: MARQUES, Claudia Lima. “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 265. A autora observa que “a doutrina alemã foi buscar no direito comercial (na lex mercatória dos princípios dos contratos internacionais do UNIDROIT e na teoria do Law and economics) a origem da aceitação deste dever, considerando ‘usus’ comercial incluir tais cláusulas de readaptação”(p. 268). 783 281 4.4.1.1 Proteção à vontade do consumidor de crédito Tradicionalmente, o Direito dos contratos tem sido construído sobre a pedra angular da vontade livre e consciente dos contratantes. Um simples olhar sobre a codificação civil atual dos diversos países e o tratamento destinado aos vícios do consentimento confirmam essa afirmação. Entretanto a doutrina atual vem questionando sobre a oportunidade de ser vislumbrada uma ‘nova autonomia negocial’ que possa garantir uma autonomia real do contratante mais fraco, no dizer de Cláudia Lima Marques, uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade785 e pelo que Nicolas Cuzacq designou de indústria do luxo786. A doutrinadora francesa Nicole Charbin designou essa “nova autonomia” de vontade racional, que realmente represente o fruto de uma reflexão787. Segundo Cláudia Lima Marques, no Direito brasileiro, a proteção à ‘vontade racional’ do consumidor deve ser considerada na concretização do direito à informação antes da conclusão do contrato de crédito e na transparência do próprio contrato, com especial cuidado na sua redação788. Realmente, para se obter a garantia de que a opção de contratar será racional, é no mínimo exigível que este tenha prévio acesso aos termos e condições da futura contratação, para que possa realizar uma adequada reflexão sobre a sujeição aos elementos do contrato, e das obrigações nele contidas como os custos de financiamento (juros, índices de correção monetária e cláusula penal), as garantias exigidas, cláusulas limitativas, ____________ 785 In: MARQUES, Claudia Lima. “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, p. 57. 786 In: CUZACQ, Nicolas. “Le luxe et el Droit.” In: RTDCom, v. 44, n. 4, Dalloz, 2002, p. 605. 787 In: CHARDIN, Nicole. “Le contrat de consommation de crédit et l’autonomia de la volunté.” In: LGDJ, Paris, 1988, p. 175. Cláudia Lima Marques elogia a denominação de Nicole Charbin: “parece-me feliz, pois indica a importância dos novos direitos dos consumidores: o direito à informação sobre as condições do crédito e sobre o contrato, o direito à reflexão e ao arrependimento. Trata-se de uma nova função positivada das novas normas de proteção ao consumidor, pois somente se assegurarmos estes direitos aos consumidores podemos falar de uma vontade realmente refletida” (In: “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, p. 57). 788 In: MARQUES, Claudia Lima. “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, p. 58-62. 282 dentre outros aspectos negociais relevantes789. Nessa esteira, Rosângela Lunardelli Cavalazzi lembra que, ‘em conformidade com a cláusula geral da boa-fé, como dever de informar e esclarecer o leigo sobre os riscos de comprometer sua renda futura e já antecipando uma preocupação com o superendividamento, o art. 52 do CDC estabeleceu que deverá o fornecedor, nos contratos de que envolvam outorga de crédito ou financiamento, informar prévia e adequadamente o consumidor sobre o preço e as condições, bem como sobre a soma total a ser paga, com e sem financiamento”790. Já o artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor determina que, se não for dada a oportunidade ao consumidor de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, os contratos não irão gerar obrigações. A negociação do crédito por meio de instrumentos contratuais redigidos com linguagem de difícil entendimento para o consumidor comum é um outro fator a ser considerado quando é debatido o tema da formação de vontade livre, consciente e racional do contratante mais vulnerável. De acordo com o princípio da “caveat venditor”, o ônus da informação é do profissional, que deve desempenhá-lo de modo satisfatório, ou seja, expressá-la no instrumento contratual de maneira clara, integral e compreensível ao seu destinatário. Ainda na esteira dos ensinamentos de Cláudia Lima Marques, nota-se a falta, no Código de Defesa Consumerista, da existência de um prazo para o exercício do direito de reflexão nos contratos envolvendo crédito791, o que viria ao encontro da proteção de uma vontade racional do consumidor. Para a autora, citando as lições de Jean Calis-Auloy, o ____________ Na lição de Cláudia Lima Marques, “o consumidor possui direito de livre escolha e de liberdade na aquisição de serviços financeiros. Para possibilitar este direito, o Código de Defesa do Consumidor assegura um direito de informação ao consumidor (art. 6º, III, CDC). A lei brasileira impôs aos bancos este dever de informar (arts. 30, 35, 46, 52 e 54, CDC): trata-se do dever de informar o consumidor sobre os produtos e serviços, sobre o preço e também sobre os termos do contrato e das obrigações que está assumindo. O Código de Defesa do Consumidor prevê dois recursos específicos quanto ao dever de informar. Em uma dimensão coletiva, o Estado, através da fiscalização realizada por seus órgãos, agências e entidades administrativas, como os Procons, pode controlar a maneira e o conteúdo desta informação fornecida aos consumidores e pode impor diferentes sanções em caso de abusividade, como multas, contrapropaganda e proibições (arts. 55, 56, 57, 58 e 59, CDC). O Ministério Público e as associações de defesa do consumidor podem controlar as práticas comerciais e de informação dos bancos através das ações civis públicas e coletivas (arts. 81, 84 e 91 so CDC). Para o consumidor individual, a mesma falha no fornecimento de informações pode ser corrigida principalmente através de sanções ao inadimplemento parcial e a ineficácias tais como quebra positiva dos contratos ou vícios de informação (arts. 20, 35 e 46, CDC)” (In: “Sociedade de informação e serviços bancários: primeiras observações.” In: RDC, 59-60). 790 In: COSTA, Geraldo de Faria Martins da. “Superendividamento: solidariedade e boa-fé. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006., p. 392. 791 In: MARQUES, Claudia Lima. “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, p. 62. 789 283 crédito faz nascer dois perigos para o consumidor que não reflete a sua decisão: leva a compras desnecessárias e compromete o consumidor para o futuro, de forma que a experiência tem demonstrado que, mesmo em caso de contratos formalizados e concluídos dentro dos estabelecimentos comerciais, o consumidor necessita de um prazo para refletir sobre a contratação, o que auxilia no controle das situações de superendividamento, evitaria compras inúteis e situações de insolvência792. 4.4.1.2 A construção de um direito do crédito fundado em normas cogentes que venham a tutelar com mais eficácia a parte mais vulnerável A criação de um sistema rígido de controle estatal sobre os contratos de crédito, além de reduzir os riscos de aproveitamento do contratante mais forte sobre aquele que necessita do acesso ao crédito, ainda auxilia na tarefa de moldar um mercado de crédito mais seguro e com menos “surpresas”. A vulnerabilidade característica do consumidor de crédito exige a presença mais forte do Estado neste âmbito, mantendo viva esta característica do Estado Social. Se de um lado, na lição de Alan Touraine, o intervencionismo estatal direto recua, no caminho do abandono do paradigma econômico e social, cedendo espaço para a implementação do paradigma cultural793, de outro o amadurecimento social incompleto exige ainda a presença do intervencionismo do Estado em certos âmbitos das relações negociais. O passado e o futuro se encontram no presente. ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.” In: RDC, p. 62. A autora informa: “o direito alemão conhece desde 1974 um semelhante prazo de reflexão de sete dias em caso de contratos de crédito ao consumidor (antigo parágrafo 6º da Abzahlungsgesetz, introduzido em 15.05.1974, e o atual parágrafo 7º da Verbraucherkreditgesetz, de 17.12.1990). Este prazo de reflexão é considerado como o instrumento principal de proteção do consumidor, com seu caráter preventivo e pedagógico” (p. 62). 793 In: TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje, p. 9 e ss. Na visão deste autor: ”durante um longo período descrevemos e analisamos a realidade social em termos políticos: a desordem e a ordem, a paz e a guerra, o poder e o Estado, o rei e a nação, a República, o povo e a revolução. Em seguida a revolução industrial e o capitalismo libertaram-se do poder político e apareceram como a ‘base’ da organização social. Substituímos então o paradigma plolítico por um paradugma econômico e social: as classes sociais e riqueza, burguesia e proletariado, sindicato e greves, estratificação e mobilidade social, desigualdade e redistribuição passaram a ser nossas categorias mais comuns de análise. Hoje, dois sécuos após o triunfo da economia sobre a política, estas categorias ‘sociais’ tornaram-se confusas e deixaram na sombra uma grande parte da nossa experiência vivida. Precisamos, portanto, de um novo paradigma, pois não podemos voltar ao paradigma político, sobretudo porque os problemas culturais adquiriram tam importância que o pensamento social deve organizar-se ao redor deles. É dentro deste novo paradigma que precisamos situar-nos para sermos capazes de nomear os novos atores e os novos conflitos, as representações do eu e das coletividades que são descobertas por um novo olhar, que põe diante de nossos olhos uma nova paisagem” (p. 9). 792 284 Entretanto a atuação do Estado, como regulador do mercado de crédito, foge do intervencionismo bruto de outrora, concretizando-se de forma estratégica. A fase prévia, das negociações preliminares, é priorizada, com exigências positivas de informação e aconselhamento e limitações aos apelos publicitários. Por outro lado, o intervencionismo judicial também ganha acentuada relevância pelo controle exercido pelo Ministério Público e pelo ativismo dos Tribunais. O sistema brasileiro, no entanto, ainda sente a carência de mecanismos de reparação das conseqüências negativas causadas ao consumidor de crédito endividado, o que já é realidade em diversos países, como na França e na Alemanha. 4.4.1.3 O superendividamento do consumidor de crédito Os contratos de concessão de crédito, em um número considerável de situações, acabam por aprisionar o consumidor, que se vê envolto em uma órbita de dívidas que vão se tornando insolúveis, expondo-o a uma verdadeira ruína financeira794. Tal situação faz surgir uma sociedade do endividamento795. Essa realidade é resultante, em grande parte, da implementação daquilo que Rosângela Lunardelli Cavallazzi designou de ‘nova ética do consumo’, na qual ocorre a precedência do consumo sobre a acumulação (fuga para frente, ____________ Rosângela Lunardelli Cavallazzi, inspirando-se em Jean Baudrillard (O sistema de objetos), realiza interessante comparação entre o atual fenômeno do superendividamento dos consumidores ao modo de produção feudal baseado no trabalho escravo, explicando, entretanto, que: “no contemporâneo, ao contrário do sistema feudal, ocorre uma cumplicidade: ‘o consumidor moderno integra e assume esta obrigação sem fim: comprar, a fim de que a sociedade continue a produzir, a fim de se poder pagar aquilo que foi comprado’. Vale a pena ressaltar que esta cumplicidade que diferencia as relações de consumo do mundo moderno e contemporâneo não implica liberdade de escolha ou qualquer tipo de independência do consumidor em relação às imposições do mercado, pois a participação no jogo – no sistema de consumo – é coercitiva e não garante qualquer identidade entre as necessidades do consumidor, fragmentadas, complexas, irreversivelmente incoerentes, e as ‘necessidades’ demonstradas pelo sistema de consumo a partir da exposição dos seus produtos, que, embora aparentemente desconectados, mantem conteúdo coerente, unitário, codificado” (In: PEREIRA, Wellerson Miranda. “Superendividamento e crédito ao consumidor endividado: reflexões sob uma perspectiva de direito comparado.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coords.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 394-5). 795 Expressão utilizada por Geraldo de Faria Martins da Costa, “Superendividamento: solidariedade e boa-fé. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 285. Em outro estudo, este mesmo autor destacou que “na economia do endividamento, tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como ‘meio de financiar a atividade econômica’. Segundo a cultura do endividamento, viver a crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascenção ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil. Direito fácil mas perigoso. O consumidor endividado é uma engrenagem essencial, mas frágil da economia fundada sobre o crédito” (In: “O direito do consumidor endividado e a técnica do prazo de reflexão.” In: RDC, v. 43, p. 258). 794 285 investimento forçado, consumo acelerado), em que se torna absurdo economizar, pois a lógica do sistema é primeiro comprar para em seguida se resgatar o compromisso por meio do trabalho796. No Direito comparado, em especial na França, o tema é tratado com bastante acuidade, sob a denominação de teoria do superendividamento797, recebendo inclusive tratamento normativo específico798. A lei francesa mais importante sobre a proteção do devedor de contratos de crédito é a de número 78-22, de 10 de janeiro de 1978, denominada Lei Scriener I, que serviu, inclusive, como fonte de inspiração para a adoção de diretiva para a Comunidade Econômica Européia sobre crédito ao consumo, datada de 22 de dezembro de 1986799. Na Loi Neiertz, de 31 de dezembro de 1989, a situação do superendividamento é caracterizada como ‘impossibilidade manifesta pelo devedor de boa-fé de fazer face ao ____________ In: “O perfil do Superendividado: referências no Brasil. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 385. Claudia Lima Marques explica que: “o novo Código Civil brasileiro, aprovado em 10.01.2002, reforça esta tese de necessidade de se pensar seriamente no Brasil sobre superendividamento (veja noções obre lesão, boa-fé objetiva, função social do contrato, combate à onerosidade excessiva, rescisão ou redução dos contratos onerosos, modificação das cláusulas penais, da indenização em caso de culpa concorrente, etc. )pois ao unificar as obrigações civis e comerciais e ao criar a figura do empresário, deixa ao direito do consumidor – direito especial - a proteção do contratante mais fraco nessas relações mistas (entre civil–concumidor e comerciantefornecedor” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 266). 797 Claudia Lima Marques conceitua o superendividamento como “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e alimentos)” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 256). 798 Cláudia Lima Marques explica que “a França trata o superendividamento com bastante eficiência. Como ensina Danielle Khayat, existem dois tipos de bancos de dados sobre o endividamento dos consumidores, os bancos positivos e os bancos negativos, e dois tipos de tratamento do superendividamento, pelo direito civil geral e por leis especiais. Aqui, os países principais do direito comparado são a França, a Alemanha, os Países Baixos, os Estados Unidos e o Reino Unido, que conhecem a falência civil (ou bankruptcy) ou procedimentos assemelhados, que conduzem (a exceção da Alemanha) ao desaparecimento de toda ou em parte da dívida do particular após a liquidação de seus bens, com a participação judicial ou acordo supervisionado pelo juiz para o re-escalonamento da dívida, redução do montante, diminuição dos juros, etc.” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 74.) 799 Geraldo Martins da Costa informa que esta diretiva da Comunidade Econômica Européia, entretanto, é menos protetora que a lei francesa que lhe serviu de inspiração (COSTA, Geraldo de Faria Martins da. “Superendividamento: solidariedade e boa-fé. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 232). 796 286 conjunto de suas dívidas não profissionais exigíveis e não pagas’800; entretanto, a boa-fé, no Direito francês, é presumida801. Ainda no Direito Francês, teve grande importância no tratamento jurídico destinado ao superendividamento a Loi 98-657, du 29 juillet 1998, d’orientation relative à la lutte contre lês exclusions, visando garantir o acesso efetivo de todos aos direitos fundamentais nos domínios do emprego, da moradia, da justiça, da educação, da formação e da cultura, da proteção da família e da infância. Considerado o superendividamento como um espelho da exclusão social802, esta lei contempla regras sobre a liquidação total e parcial de dívidas de ____________ Posteriormente, a matéria foi tratada no Code de Consommation deste país, nos artigos L331-1 s. et R. 331-1 e seguintes. Gilles Paissant, ao apresentar um panorama sobre o tema do superendividamento, narra que, “desde la entrada em vigor de la primera ley específica el 1º.03.1990 hasta el 31.12.2000, se han registrados 1.027.841 demandas de consumidores para disfrutar de sus ventajas. Em 1998 hubo 117.000 demandas, 142.000 em 1990 y 148.000 em 2000. Como puede comprobarse, las demandas están creciendo. Este fenómeno es muy diversificado. Se puede estar sobreendeudado por 10.000 F ó 1,5 MF. El sobreendeudado puede ser un asalariado, obrero o mando, lo mismo que un funcionario; un soltero o un matrimonio y, a menudo, un parado o un individuo divorciado. En cualquier categoría profesional o personal se pueden encontrar sobreendeudamiento. No existe un perfil tipo de sobreendeudado. Además de diversificado, el sobreendeudamiento aparece también como un fenómeno duradero. Es lo que explica la intervención del legislador francés en 1989” (In: PAISSANT, Gilles. “El tratamiento del sobreendeudamiento de los consumidores en Derecho Francés.” In: RDC, v. 42, p. 09). 801 Esta informação é dada por Geraldo de Faria Martins da Costa, inspirado nas lições de Jean Calis-Auloy e Frank Steinmetz: “na França, a boa-fé do devedor é presumida. Não é o devedor que deve provar a sua boa-fé, mas são as comissões de superendividamento e os credores os encarregados da prova da má-fé do consumidor. Em sua síntese sobre a jurisprudência francesa, a doutrina esclarece: ‘poder-se-ia, em um desejo de severidade para com os devedores, considerar como de má-fé todo devedor que se endividou excessivamente por imprevidência, leviandade, falta de reflexão. O procedimento seria reservado, nesta concepção, aos devedores que se conduziram como bons pais de família e cujo superendividamento é o resultado de circunstâncias imprevisíveis, por exemplo, de uma dispensa do trabalho, de uma doença ou de um divórcio. As comissões e os tribunais não seguiram esta concepção. São de boa-fé, segundo a jurisprudência, não somente os consumidores vítimas das circunstâncias, mas também aqueles que se endividam excessivamente por imprevidência, sem ter o procurado o superendividamento de maneira consciente e refletida. Não se pode, com efeito, exigir de um consumidor as qualidades de um bom pai de família. Somente são considerados de má-fé pelos juízes os devedores que foram conscientes de criar ou de agravar o seu superendividamento: esses não merecem o benefício do procedimento do Code de la Consummation”; esclarecendo: “tendo-se em vista a grande dificuldade de delimitar de maneira satisfatória a não restritiva dita noção, a Cour de cassation não a definiu de maneira peremptória. Constata-se que os juízes franceses utilizam um feixe de indicadores para caracterizar a boa-fé (ou a má-fé) do consumidor: o número de empréstimos, o montante e a destinação dos fundos, notadamente o seu caráter suntuoso, os motivos que conduziram ao endividamento, o nível intelectual que impede a ingenuidade e a torna inescusável, o perfil sócio-profissional, etc.” (COSTA, Geraldo de Faria Martins da. “Superendividamento: solidariedade e boa-fé. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 251 e 246, respectivamente). 802 Analisando a questão do superendividamento, Wellerson Miranda Pereira adverte: “deve-se atentar para o fato de que o fenômeno aqui analisado constitui uma situação de agravamento global da condição financeira do consumidor. Trata-se de depreciação considerável e duradoura de seu patrimônio e de sua capacidade de participar ativamente da vida econômica da sociedade, traduzindo-se em verdadeira exclusão social” (In: “Superendividamento e crédito ao consumidor endividado: reflexões sob uma perspectiva de direito comparado.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coords.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 42). 800 287 um devedor superendividado803. Como explicam Catarina Frade e Sara Magalhães, “a crise financeira implica igualmente a restrição de práticas sociais, contribuindo para o isolamento social dos indivíduos e, no limite, para a exclusão social. Para além deste processo de afastamento social passivo, também pode haver um afastamento mais activo, na medida em que os indivíduos consideram que a sua capacidade financeira não se ajusta aos padrões de consumo esperados ou que eles julgam esperados e, como tal, evitam a exposição social da situação”804. Concretiza-se, aqui, a característica pós-moderna do revival dos direitos humanos. Na doutrina portuguesa, o superendividamento é conceituado por Maria Manuel Leitão Marques como a situação “em que o devedor se vê impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto das suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que o não possa fazer no momento em que elas se tornam exigíveis”805, classificando-se em duas espécies: o superendividamento ativo, quando o devedor contribui de forma positiva para se colocar nessa condição, e o superendividamento passivo, que se verifica face a ocorrência de situações que afetam gravemente a possibilidade de cumprimento de suas dívidas, como desemprego, doenças, acidentes pessoais806. Em nosso país, o tratamento dedicado ao tema é ainda incipiente, mas já chama a atenção da doutrina mais atenta. Cláudia Lima Marques, ao abordar o assunto, é enfática ao ressaltar que: “este é um tema considerado quase ‘tabu’ pelas Instituições Financeiras e Administradoras de Cartões de Crédito, face à grande insolvência dos consumidores no Brasil. A verdade é que, nas sociedades de consumo consolidadas, o tema do superendividamento é tratado como problema jurídico que é; legislações especiais são ____________ Gilles Paisant informa: “s’agissant spécifiquement du surendettement, la loi nouvelle contient quelques mesures relatives à la prévention de ce phénomène. Ainsi em est-il de l’article 97 qui permet d’inscrire les débiteurs surendettés au fichier national dês incidents de paiement des le moment de la saisine de la commission et de conserver l’inscription pendant tout la durée d’exécution dês mesures convenues ou arrêtées, sans pouvoir exceder huit ans, ou encore dês articles 100 à 104 sur la protection des cautions personnes physiques. Mais au titre de la prévention des exclusions, la loi est essentiellement consacrèe au traitement du surendettement. Conservant la voie de l’originalité qui avoit eté celle choisie dés 1989, la réforme contient une innovation majeaure em instaurant um traitement différencié de l’insuffisance de ressources. Mais elle procede aussi à quelques aménagements de dispositions antérieurement aplicables” (In: “La réforme de la procédure de traitement du surendettement par la loi du 29 juillet 1998 relative à la lutte contre les exclusions.” In: RTDCom, v. 04, Dalloz, 1998, p. 747). 804 In: FRADE, Catarina; MAGALHÃES, Sara. “Sobreendividamento, a outra face do crédito. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 42. 805 In: MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores, p. 2. 806 In: MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores, p. 2. 803 288 preparadas para evitar (prevenção) e dirimir este problema (tratamento), que faz parte do sistema das sociedades de consumo. Nesses países, há sempre uma espécie de ‘falência civil’ dos consumidores e suas famílias, a evitar a ‘morte’ total do ‘homo economicus’; afinal, os contratos de consumo devem ser momentos de cooperação e lealdade e não de ‘destruição’ e ‘falta de opções’ do parceiro contratual mais fraco”807. Dessa forma, a teoria do superendividamento traz uma série de questionamentos na seara do Direito, ensejando uma diversificada gama de discussões sobre como enfrentar essa problemática frente ao modelo jurídico existente. O endividamento excessivo dos consumidores, além se ser um problema social grave, uma cultura equivocada que assola o mercado de consumo, é um problema que pede, então, uma solução jurídica. Mas, como adverte José Reinaldo de Lima Lopes, o Direito não é capacitado para representar, de forma isolada, um caminho para a solução desses problemas creditórios. É necessária uma solução estatal incisiva, por meio de mudanças na política de consumo, porque a insolvência dos consumidores é um fato social, com origens muitas vezes na força maior social - desemprego, período de turbulência econômica geral808. Entretanto, mantemo-nos dentro do âmbito jurídico, no qual é trazido à colação o princípio da boa-fé objetiva, largamente consagrado no CDC e no Código Civil atual, para implementar a sua função potencializadora do dever de cooperação das partes nos contratos cativos de longa duração. A boa-fé objetiva desempenha papel singular como fonte orientadora do desenvolvimento das relações negociais, mantendo-as constantemente arejadas e aptas a se adaptarem às novas contingências. Maria Cristina Pezzella, após destacar que o princípio da boa-fé objetiva “visa à proteção do devedor contra exigências impertinentes que colidam com o direito ou a equidade”, lembra que ele “se inspirou nas mesmas idéias que ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 73. 808 In: LOPES, José Reinaldo Lima. “Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral.” In: RDC, v. 17, p. 63. Na opinião do autor, “Nestas circunstâncias, quem deve pagar a conta? O problema torna-se um de políticas públicas e de redistribuição (...) Há um problema geral de política do consumo no equívoco dos órgãos de defesa do consumidor (privados ou públicos) de aceitar o consumismo, aceitar uma perspectiva econômica equivocada, conformista, sem capacidade de ser crítica do sistema que provoca o superendividamento” (p. 63). 807 289 fundamentaram a ‘exceptio doli generalis’ do Direito romano, frente à qual poderia evitar-se que se exigissem de modo não eqüitativo as prestações”809. A boa-fé, como fonte criadora de deveres anexos de informação, cuidado, lealdade e cooperação, irá atuar no vínculo relacional existente entre as partes, em que, pela natureza da relação, se destacará a cooperação recíproca das partes para a função socio-econômica do contrato810. Esse dever de cooperação traz consigo o questionamento da existência de um dever geral de renegociação nos contratos de longa duração – em especial bancários, financeiros e de crédito – em que resta evidenciada a situação de superendividamento do contratante. Analisando a questão na doutrina germânica atual e em face das recentes alterações do BGB, Cláudia Lima Marques aponta a existência de simpatia dos juristas tedescos pela aceitação da obrigatoriedade decorrente da boa-fé, de cooperação para a renegociação do pacto que se torna excessivamente oneroso. Diz a autora: “estes autores alemães partem da premissa de que haveria uma cláusula ou um dever de modificação de boa-fé (no caso brasileiro, com previsão expressa no art. 6º, V, do CDC) dos contratos de longa duração, sempre que exista quebra da base objetiva do negócio (Wegfall der Geschäftsgrundlage) e ____________ 809 In: PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. “O princípio da boa-fé objetiva no Direito Privado Alemão e Brasileiro.” In: RDC, v. 23-4., p. 205. A autora explica ainda que, “com fundamento na boa-fé objetiva, podem resultar a cargo do devedor deveres ‘secundários’ especiais de ‘notificar’ ou informar o credor sobre algo do interesse para ‘conservação dos seus bens jurídicos’. Seu cumprimento acarretará a pretensão da parte prejudicada de ser indenizada, podendo também resultar na caducidade do direito. As relações ‘obrigacionais duradouras’, que pressupõem uma relação de confiança recíproca ou que obrigam a uma prestação pessoal podem ser denunciadas por meio de uma causa significativa. O BGB reconheceu este princípio expressamente em relação aos contratos de serviços e de sociedade (§§ 626 e 723), como também para os contratos de longo prazo (RG Seuff A 66, n. 195) e os contratos de abastecimento de água (OLG hamburg Seuff A 73, n. 5). A jurisprudência sobre o § 242, BGB, desenvolveu-se também na chamada revalorização das prestações atingidas por meio da desvalorização sofrida pelo dinheiro, causada pela guerra e pela infração” (p. 205-6). 810 Esta função da boa-fé como dever de cooperação, em especial nos contratos de longa duração, é destacada na doutrina italiana por Francesco Macário, no sentido de que “non v’èdubbio che lo spazio riconosciuto all’operatività del principio di buona fede avvicini significativamente la reflessione sulla revisione giudiziale del contratto all’impostazione sócio-economica del discorso relativo ai contratti a lungo termine, intesi nella prospectiva ‘relazionale’. La valorizazione del precetto di buona fede quale regola di comportamento nell’esecuzione del contratto può dirsi, infatti, il più immediato risultado della ricaduta sul terreno giuscivilistico della dottrina dei ‘relational contracts’, ove la logica cooperativa tendente alla realizzazione del risultado dedotto in: contratto dovrebbe sostituire quella egoistica, finalizzata al mero ‘advantage-talking’ (evidentemente antitética a quella di ‘sharing and cooperation), tipica dello scambio isolato (indicato, in area anglosassone, in contrapposizione al modelo del ‘long-term contract’, come ‘discrete transsaction’), normalmente ad efficacia istantanea. Non per nulla gli studiosi che, soprattutto nell’ambiente di ‘common law’ nordeamericano (dove la teoria dei contratti relazionali è stata originariamente elaborata e comunque maggiormente sviluppata), hanno accolto questa configurazione dei raporto contrattuali – senza dubbio meno dirigibile, in termini generali, per il ‘civil lawer’ continentale tradizionale – si sono prontamente schierati a favore dell’intervento giudiziale nel contratto in: presenza di sopravvenienze incidenti sull’originario equilíbrio fra le prestazione” (In: MACÁRIO, Francesco. “Rischio contrattuale e rapporti di durata nel nuovo diritto dei contratti: dalla presupposizione all’obbligo di renegoziare.” In: RDCiv. ano XLVIII, p. 83-4.) 290 onerosidade excessiva daí resultante. Assim, considera a parte majoritária da doutrina alemã, de que haveria uma espécie de dever ‘ipso jure’ de adaptação (ipso jureAnpassungspflicht) ou dever de antecipar e cooperar na adaptação, logo, dever (ou para alguns Obligennheit) de renegociar (Neuverhandlungspflicht) o contrato”811. Esse dever de submeter-se à renegociação contratual, para evitar 812 o superendividamento do outro contratante, espelha claramente a doutrina de Clóvis do Couto e Silva, ao ver na boa-fé objetiva um “dever de consideração para com o ‘alter’ ideal de solidariedade, esculpido nos ditames da nossa Constituição Federal 813. Assim não há motivos para deixar de reproduzir esse raciocínio nas relações de trato sucessivo, pois o ordenamento jurídico nacional conta com todo o aparato normativo que serve de sustento a esta premissa, além do respaldo de abalizada doutrina. Novamente, Cláudia Lima Marques sintetiza a questão: no Direito Brasileiro, face ao CDC, parece também ser possível considerar-se a existência deste dever de renegociação a favor do consumidor, pois tanto o art. 6º, V menciona o direito do consumidor de pedir a modificação do contrato em caso de onerosidade excessiva, quanto nos art. 52 e 53 menciona o direito à informação, ao pagamento antecipado e devolução das quantias pagas. Logo, parece-me possível também no Brasil requerer a antecipação desta modificação e a . Pode-se dizer ainda que esta cooperação também vem a traduzir no âmbito das relações privadas o ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 77. A autora refere também a sugestão de Horn de inclusão de acrécimo no parágrafo 242 do BGB, com o seguinte texto: “se a prestação de uma das partes, em virtude de circunstâncias externas, se tornar excessivamente difícil, pode este contratante requerer uma razoável divisão dos prejuízos entre as partes através de adaptação do contrato, se ele não deveria contar com estas circunstâncias, em especial, se este risco no sentido do contrato não lhe é normal e se a manutenção do contrato nas condições anteriores não lhe é razoável (zumutbar), podendo requerer também a rescisão do contrato. A adaptação (Anpassung) ou a rescisão (Auflösung) dar-se-á por consenso entre as partes ou por decisão judicial”. Tal sugestão, entretanto, não foi incorporada na recente reforma legislativa experimentada pelo BGB. Ainda, a autora complementa, informando que “o novo BGBReformado em 2000 e 2001 traz agora um direito geral de rescisão em contratos cativos de longa duração (novo par. 314 do BGB-Reformado), mesmo que este direito não esteja previsto, se considerado o caso concreto, e levando em conta os interesses de continuidade do vínculo, não é razoável (zumetet) a continuidade para uma das partes, evitando assim o superendividamento. Mais ainda, o novo BGB-Reformado traz a figura da quebra da base do negócio (novo par. 313), permitindo a adaptação do vínculo à nova base e evitando o superendividamento” (p. 77-8). 812 In: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo, p. 29. 813 Na doutrina italiana, Natalino Irti afirma que “la solidarietà econômica, delineata nell’art 2 Cost. Como contenuto di um ‘dovere inderogabile’, va conmvertita in: critério giuridico: può, così, rinvigorire il principio di buona fede nell’interpretazione ed esecuzione del contratto” (In: “Persona e mercato.” In: RDCiv, ano XLI, n. 3, 1995, p. 297). 811 291 cooperação do parceiro-fornecedor (dever de renegociação) para a adaptação do contrato (princípio de boa-fé do art. 4º, III) e sua manutenção (art. 51, par. 2º)”814. A nova legislação civil, ao consagrar expressamente a função social do contrato e a observância dos ditames da boa-fé objetiva na sua execução, parece encerrar de vez a discussão, permitindo que se conclua pela necessidade de observância do dever de colaboração entre os contratantes, inclusive por meio de renegociação forçada. 4.4.1.3.1 Superendividamento e a educação do consumidor A consciência de que o fenômeno do endividamento excessivo dos consumidores tornou-se uma realidade no contexto da sociedade atual traz à tona a discussão sobre a adoção de medidas capazes de conter esta situação tanto no sentido de evitar a sua ocorrência, como de possibilitar uma terapia que auxilie aqueles que já se encontram numa situação de superendividamento. Considerando que o endividamento é o resultado de uma ‘cultura do consumo’, a melhor técnica para o enfrentamento desta situação é a implementação de formas educativas do consumidor, que o auxilia a evitar o ingresso no superendividamento ou possibilite àqueles que já se encontram envoltos neste estado de obter alternativas para vencer a sua crise financeira e não retornarem a este estágio815. Assim, podem ser estabelecidos dois momentos na educação do consumidor de crédito frente ao superendividamento: prevenção e tratamento. ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?” In: RFD/UFRGS, p. 80. Nesse sentido, Geraldo Martins da Costa se posiciona postulando que “o direito à renegociação do conjunto de dívidas vencidas e a vencer do cidadão superendividado de boa-fé deveria ser expressamente definido e detalhado em lei. O art. 52 do CDC poderia ser acrescentado Nesse sentido,” (COSTA, Geraldo de Faria Martins da. “Superendividamento: solidariedade e boa-fé. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 244). 815 Entretanto, como ressalta Maria Manuel Leitão Marques, não se pode olvidar que “outras tendências (envelhecimento da população, alterações do mercado de trabalho, maior insegurança) e novos valores dos consumidores (preocupações ambientais, maior equilíbrio e espírito crítico) poderão refrear o aumento do consumo ou pelo menos torná-lo mais consciente, informado e reponsável. Nessa medida, funcionarão como um limite ao endividamento, ou pelo menos ao endividamento excessivo para o consumo que está na origem do superendividamento” (In: MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores, p. 75). 814 292 A educação preventiva é chamada por Janson J. Kilborn de ‘educação passiva’816, representando a técnica de orientar os consumidores de crédito no sentido de evitar que assumam compromissos econômicos maiores que a sua capacidade financeira. A implementação desta ‘pedagogia do consumo’ representa ao mesmo tempo uma tarefa governamental e também das instituições financeiras. No plano governamental a educação do consumidor de crédito passa pela implementação de políticas eficientes de limitações equilibradas de acesso ao crédito, proibição de realização de créditos consignados a salários para áreas que não representem formas de suprimento de necessidades existenciais e, principalmente pelo estabelecimento de limitações ao apelo publicitário das financeiras817, que acaba por difundir a banalização do da utilização do crédito e vincular a sua utilização a elevação do estatus social818. Outra possibilidade seria a criação de regras que possibilitassem ao consumidor de crédito usufruir de um prazo razoável de reflexão que lhe outorgasse a possibilidade de arrependimento. A adoção dessas técnicas certamente não evitará de maneira categórica o excessivo endividamento dos consumidores de crédito, mas certamente irão auxiliar na redução dessa realidade. ____________ 816 In: KILBORN, Janson J. “Comportamentos econômicos, superendividamento: estudo comparativo da insolvênicia do consumidor endividado. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 66 e ss. 817 Claudia Lima Marques lembra que “no Brasil não há um controle especial sobre a publicidade de crédito, nem normas sobre uma forma especial para este contrato” e que “os bancos criaram uma campanha para atrair mais de 50 milhões de clientes no Brasil, voltando-se justamente para os clientes de baixa renda e em cidades que nem mesmo bancos tinham. Assim, agências foram criadas e serviços bancários foram oferecidos nos correios, em supermercados, em loterias, etc. Criou-se também ‘crédito popular’, mas já estamos observando um fenômeno de ‘ressaca’ ou de problematização, alertando que o crédito pode levar rapidamente a um endividamento impossível de ser pago, o que equivale à falência do consumidor” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 288 e 304-5, respectivamente). 818 Como destaca Mania Manuel Leitão Marques, “a publicidade intensa e sistemática das instituições financeiras para captação de novos clientes (folhetos publicitários pelos bancos, anúncios na comunicação social, linhas telefônicas de atendimento e até páginas na internet) encoraja esta banalização, no sentido de que os consumidores utilizem mais crédito e com mais frequência para a aquisição de bens cada vez mais diversificados. Para além disso,o crédito passou a ter um significado social, que ultrapassou os benefícios materiais do poder de compra adicional e da satisfação das necessidades de consumo. Na sociedade atual, o crédito ao consumo confere ‘status’ – ser-se adulto significa usar crédito, uma mensagem, por vezes, vinculada em campanhas publicitárias que tentam captar os mais jovens para o uso do crédito, e facilita a camuflagem da estratificação social, ao permitir ao indivíduo adotar um estilo de vida característico de uma classe superior à sua” (In: MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores, p. 63). 293 Não se pode olvidar, entretanto, que existem barreiras praticamente intransponíveis que não estão ao alcance governamental. A ânsia de consumo, naturalmente alicerçada em sentimentos de carência, necessidade de auto-afirmação social ou simplesmente a busca de conforto são fatores pessoais que desafiam irremediavelmente a luta pelo combate ao endividamento social. A estes fatores alia-se o fator apontado por Janson J. Kilborn como a ‘comprometedora superconfiança’819 no julgamento de sua suscetibilidade ao risco. Na opinião deste autor, a ‘educação passiva’ do devedor sobre o vício de pedir empréstimos excessivos não encontra correspondência para as poderosas forças psicológicas direcionando a superconfiança e a um exacerbado entusiasmo no pedir empréstimo820. Já em relação às financeiras, a atuação esperada na concessão do crédito é a de proceder a um ‘empréstimo responsável’, acompanhado do dever de aconselhamento821. Para ____________ In: “Comportamentos econômicos, superendividamento: estudo comparativo da insolvênicia do consumidor endividado. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 73. O autor explica que “a comprometedora superconfiança aparece notoriamente na história do crédito ao consumidor norte-americano. Lendol Calder explica que os consumidores norte-americanos, depois da Segunda Guerra Mundial, aumentaram mais e mais seu débito, ‘vivendo além de suas possibilidades, além da renda recebida, mas não além do crédito’. A ansiedade dos consumidores recebia um paliativo com a convicção otimista de que ‘daremos um jeito. As coisas irão melhorar – talvez melhorem muitíssimo’. Robert Manning indica que as otimistas projeções econômicas feitas pelas administrações Reagan e Bush direcionaram muitos consumidores a utilizar mais e mais crédito, para alcançar estilos de vida comensuráveis com dias melhores, que certamente estavam a sua frente. A comprometedora superconfiança eventualmente levará mais e mais consumidores a substimar a probabilidade de que eles possam estar sujeitos a uma inesperada crise de liquidez. Além disso, operando sob a ilusão do controle, consumidores fazem o orçamento – alguns mais cuidadosamente que outros – aumentando seu sentimento de controle sobre suas finanças futuras, e sobre sua invencibilidade perante uma futura crise financeira. Dadas as complexidades dos cálculos das taxas de juros, e dos caprichos do orçamento familiar, não pe difícil ver que a superconfiança tem seduzido muitos consumidores próximo demais da margem da instabilidade financeira. O real controle sobre nossas finanças futuras é esquivo, muito mais para uns do que para outros.” (p. 74). 820 In: “Comportamentos econômicos, superendividamento: estudo comparativo da insolvênicia do consumidor endividado. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 86. 821 Na lição de Semy Glanz: “o banco deve ser cauteloso ao conceder créditos. Segundo o já citado professor da Universidade de paris X – Nanterre – Thierry Bonneau. Pode haver responsabilidade contratual ou delitual, conforme seja a vítima o cliente ou terceiro. O banqueiro tem o dever de vigilância e, sem imiscuir-se nos negócios de seu cliente, deve agir com prudência e discernimento, pois, se o empréstimo causar um dano, torna-se o banco responsável. Assim, o banqueiro não deve conceder crédito excessivo a uma empresa em relação a sua capacidade financeira. Isto ocorre quando o crédito permite prolongar uma atividade desesperada de uma empresa em relação a sua capacidade financeira. Isto ocorre quando o crédito permite prolongar uma atividade desesperada de uma empresa, falando-se de apoio abusivo ou manutenção artificial da atividade do devedor (Droit Bancaire. Ns. 721 e ss. 2ª ed., 1996, p. 450 e ss). Segundo o mesmo autor, a Corte de Cassação entendeu que o banco falta ao seu dever de conselho e se torna responsável perant o mutuário, se não o adverte sobre o endividamento. Os bancos devem ser prudentes e recusar o crédito excessivo em relação aos recursos do consumidor-mutuário” (In: “Responsabilidade civil das instituições financeiras pela má concessão de crédito.” In: Revista da Emerj, v. 01, n. 02, 1998, p. 112). 819 294 o desempenho de um ‘empréstimo responsável” o fornecedor deverá analisar detalhadamente as condições financeiras do tomador do empréstimo, consultando os registros de dados apropriados, a fim de verificar a solvabilidade do consumidor e acautelar-se sobre a possibilidade econômica deste de cumprir com as obrigações resultantes desse contrato. O dever de aconselhamento, que ultrapassa a mera informação sobre o contrato de concessão do crédito, alcança o que pode ser chamado de “personificação da informação”, de modo a adaptá-la as peculiaridades do tomador, apontando objetivamente às vantagens e desvantagens da aquisição do crédito, a curto e longo prazo, prevenindo-o. Como sugerem Heloísa Carpena e Rosangela Lunardelli Cavallazzi, cabe ao fornecedor considerar não somente as características do homem-médio, mas do consumidor determinado, transmitindo a ele, de forma simples e compreensível, os riscos e as variáveis que envolvem a operação em questão822. Cabe à instituição financeira assegurar-se de que o ‘aconselhamento’ seja devidamente compreendido pelo seu destinatário que assim adquire condições de realizar a devida escolha de acordo com as suas reais necessidades e capacidades. Tem, assim, o dever de aconselhamento um caráter subjetivo823. Como afirma Geraldo Martins da Costa “o fornecedor de crédito deve não somente transmitir as informações de alta tecnicidade que ele possui (as quais ele necessita conhecer e tem direito de conhecer e de compreender), o profissional também deve proceder a um trabalho de exploração prévia das informações primárias a fim de obter um produto final utilizável pelo credor das informações”824. ____________ In: CARPENA, Heloisa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. “Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 336. 823 Nesse sentido, Clarissa Lima e Karen Bertoncello, com inspiração na doutrina francesa, explicam: “o dever de informação consiste em transmitir uma informação cujo conjunto é determinado de maneira objetiva a exemplos das informações alencadas no art. 52 já analisado. Este dever de informação comportaria duas prestações, uma de natureza intelectual (a determinação da informação). Em contrapartida, o dever de conselho consistiria em dar uma opinião ou parecer a alguém para orientar sua ação. Neste caso, a transmissão da informação deve estar adaptada às necessidades do destinatário. Para este fim, aquele que tem o dever de aconselhar deve se inteirar da situação de seu parceiro e analisar suas necessidades para emitir uma opinião sobre a maneira mais adequada de satisfazê-las. Enfim, ele deve assegurar que o conselho seja compreendido por seu parceiro, deve explicar e justificar seu ponto de vista, defender sua opinião de maneira a incitar o beneficiário do conselho a segui-la. Em resumo, o dever de conselho tem um caráter subjetivo na medida em que seu devedor escolhe uma solução apropriada às necessidades do outro contratante e lhe apresenta uma opinião incitativa, ao passo que o conteúdo da obrigação de informação é determinado apenas de maneria objetiva sem envolver nenhuma prestação intelectual” (In: “Tratamento do crédito ao consumo na América Latina e superendividamento.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 199). 824 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. “Superendividamento: solidariedade e boa-fé. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 242. 822 295 Outra técnica de enfrentamento do Superendividamento é a ‘educação ativa’, que parte exatamente de uma experiência negativa que resulta da assunção de excessivos empréstimos. Como ensinam Heloisa Carpena e Rosângela Lunardelli Cavalazzi, a aplicação de medidas de tratamento do superendividamento possibilitam preservar os meios essenciais de sobrevivência do consumidor, garantindo-lhe o chamado ‘reste à vivre’, ou seja, o mínimo indispensável para a manutenção do devedor, considerando sua renda e o valor dos débitos vencidos e a vencer825. Neste ponto, o Direito comparado divide-se na adoção de dois métodos: um tratamento severo ou a implementação de planos mais brandos de recuperação financeira, geralmente acompanhados de planos de longo prazo para pagamento das dívidas. Dessa forma, a opção pela melhor técnica de implementar o aprendizado ativo, ou seja, reeducar devedores insolventes é de fundamental importância para a obtenção de bons resultados. Um sistema que tem recebido severas críticas é o modelo norte-americano, que permite ao devedor insolvente liberar-se de grande parte das dívidas, portanto sem caráter pedagógico mais marcante826. No Direito europeu, encontramos o modelo germânico que, inicialmente, na adoção do Insolvezordnung, em 1994, colocou aos consumidores insolventes encargos pesados demais, que geravam a entrega aos credores de 100% de sua renda nos quatro primeiros anos e entre 80% a 90% nos outros três anos. Posteriormente, esses percentuais foram repensados e fixados em 50% da renda do devedor. Entretanto o prazo de duração da recuperação ____________ In: CARPENA, Heloisa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. “Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 332. 826 Conforme informa Jason J. Kilborn, “este sistema de processo leva, normalmente, três meses e tem três amplos e simples passos que dão assistência às pessoas: (1) o ingresso da petição do devedor para alívio e a detalhada informação financeira, (2) a reunião do devedor com o depositário para responder a questões sobre a situação financiera do devedor, e (3) execução de um relatório de ‘ausência de bens’ pelo depositário que ingressa com uma ‘decisão’, para que logo seja o devedor liberado da maioria dos débitos não pagos. A maioria esmagadora dos consumidores norte-americanos em débito não dedica nenhum valor de sua renda futura para o pagamento de seus débitos. Após ingressar com a ação e encontra com o depositário uma única vez, os devedores não precisam mais pensar na situação que os levou a entrar e sair do superendividamento” (In: “Comportamentos econômicos, superendividamento: estudo comparativo da insolvênicia do consumidor endividado. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 84). 825 296 financeira pode chegar a onze anos827. Já o modelo francês limita a duração do plano de recuperação financeira do devedor insolvente em 10 anos, entretanto, contando com descontos exagerados. 4.5 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA PARTE MAIS VULNERÁVEL NA RELAÇÃO NEGOCIAL O modelo de Estado Social implementou, por meio do intervencionismo estatal, um forte controle da atuação contratual em diversos setores, o que representou uma forma de reação frente à massificação social e ao poder exagerado advindo da concentração econômica. O modelo pós-moderno dá continuidade a essa característica, mas motivada também por outras razões, que passam, em especial por dois fatores: o reconhecimento da necessidade de atender aos interesses das minorias e a garantia de efetivação dos princípios constitucionais nas relações contratuais, em especial a dignidade humana828, ambos comprometidos com o enfrentamento do problema da exclusão social fruto da globalização neoliberal829. ____________ Informações trazidas por Jason J. KIlborn, In: “Comportamentos econômicos, superendividamento: estudo comparativo da insolvênicia do consumidor endividado. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito.” In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. (coord.) Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito, p. 92 e 97. 828 Nesse sentido, é a lição e Aline Novais: “O outro princípio ocnsiderado paradigma da nova teoria contratual, o princípio da tutela do hipossuficiente, também surge como um reflexo das normas constitucionais. Na verdade este princípio aparece como corolário indispensável do pensamento jurídico constitucional da igualdade das pessoas, disposto no caput do art. 5º da nossa Crata Magna. Para a realização deste princípio no campo material, papel fundamental desempenha o Código de Defesa do Consumidor, tutelando o partícipe considerado vulnerável na relação de consumo” (In: “Os novos paradigmas da teoria contratual: o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da tutela do hipossuficiente.” In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional, p. 17). 829 Clodovis Boff, ao enfentar o tema da exclusão social, enfatiza: “a raiz da exclusão é de caráter econômico. O excluído começa por ser excluído do mercado formal: não consome (para atender as suas necessidades básicas) nem vende (nem mesmo o que tem de melhor: a sua força de trablho). Essa é a exclusão fundamental e determinante da exclusão social mais ampla. Desse modo, quando falamos em exclusão, pensamos na exclusão econômica, que acaba levando à exclusão social” (In: Como trabalhar com os excluídos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 106. Neste mesmo sentido são as lições encontrada na obra de SELLA, Adriano. Globalização neoliberal e exclusão social. Alternativas...? São possíveis! São Paulo: Paulus, 2002. Eugênio Facchini Neto também observa esta situação da exclusão social como fruto da globalização econômica: “há um acentuado custo social associado a este fenômeno. Como afirmou Ralph Dahrendorf, a globalização está associada à exclusão social. Uma parte significativa da população parece ter perdido todo contato com a esfera da cidadania. Trata-se dos ‘marginalizados socias’. E suma, ‘certas pessoas simplesmente não servem: a economia pode crescer mesmo sem a sua contribuição, porque qualquer perspectiva que sejam considerados, não constituem, para o restante da sociedade, um benéfico, mas um custo. E à medida que se expande o neoloberalismo, que anima a goabalização, seu número é sempre maior” (In: “Reflexões histórico-evolutivas sobrea constitucionalização do direito privado.” In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 26). 827 297 Assim na transição da modernidade para a pós-modernidade nota-se o crescimento da importância social das minorias, que, através de diversos mecanismos de pressão, buscam a consolidação do respeito aos seus interesses e reconhecimento de seus direitos. Assim tem ganhado fôlego na teoria jusprivativista a idéia de utilização do Direito Privado com a finalidade de implementação de políticas sociais830. Este ambiente proporciona, por sua vez, a criação de normas de Direito Privado para proteger a parte mais vulnerável nas relações sociais831, num claro comprometimento com o resgate da idéia de igualdade material832. Tal situação denota claramente ser um braço da pós-modernidade jurídica lançado sobre a teoria dos contratos, centrando suas atenções no sujeito contratual e forçando o reconhecimento de vulnerabilidades especiais, mormente pela criação de lex specialis ratione personnae. Analisando esta questão no Direito Português Joaquim de Souza Ribeiro a denomina como “materialização do contrato”, de forma que à abstração de formas universais e igualitárias sucede um particularismo diferenciador, que atende aos fatores de desigualdades ____________ Embora não se possa deixar de reconhecer a importância deste fenômeno para que se tenha um direito mais comprometido com a evolução social, esta situação não fica ilesa a críticas. Eberhard anota que: “il diritto privato utilizzato a scopi di politica sociale promove un modo di pensare per gruppi non diferenziati e genera un grosso flusso di norme statali, accentua le perdite di autonomia, e può assumere il carattere di privilegio” (In: “L’utilizzazione del Diritto Privato per Scopi di Politica Sociale.” In: RDCiv, p. 209). 831 O jurista tedesco Eberhard Eichenhofer põe em destaque os seguintes exemplos emblemáticos deste fenômeno: “l’obbligo di contrare – bem presto riconosciuto dalla giurisprudenza per il titulare di posizione di monopolio, il riconoscimento degli obblighi contrattuali accessori sanzionati com la responsabilità por damni in: caso di lesione colposa, il contratto com efficacia di tutela dei terzi, la teoria del venir meno dei pressuposti del negozio, gli obblighi assicurativi per il propietario ed il titulare di altre posizione giuridiche dalla cui lesione colposa deriva una responsabilità per illecito, ovverola figura dei rapporti di vicinato” explicando que “queste multeplici ipotese sono in: realtà tra di loro tropo eterogene per lasciare traspire modelli comuni di utilizzazione del diritto privato per scopi di politica sociale” (In: “L’utilizzazione del Diritto Privato per Scopi di Politica Sociale.” In: RDCiv, p. 195). 832 Conforme anota Cláudia Lima Marques, “ninguém discute hoje mais por que o consumidor foi o único agente econômico a merecer inclusão no rol dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição Federal; foi escolhido porque o seu papel na sociedade é intrinsecamente vulnerável frente ao seu parceiro contratual, o fornecedor. Trata-se de uma necessária concretização do Princípio da Igualdade, de tratamento desigual aos desiguais, da procura de uma igualdade material e momentânea para um sujeito com direitos diferentes, sujeito vulnerável, mais fraco. Criar uma lei especial e assegurar direitos subjetivos para este sujeito vulnerável são instrumentos de igualdade, de ação positiva do Estado-legislador, a guiar a ação do Estado-executivo e do Estado-juiz” (In: “Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.” In: RTDC, p. 7-8). Esta necessidade já era aponta da por Orlando Gomes, lecionando: “a igualdade formal falhou na prática. O contrato passou a ser arma de exploração do mais fraco pelo mais forte obrigando a uma política legislativa de tratamento desigual para restaurar o desequilíbrio entre as partes. Foi preciso compensar a inferioridade econômica dos pobres com uma superioridade jurídica, limitando a liberdade de contratar e usando a técnica de determinar imerativamene o conteúdo de certos contratos. Tornou-se assim evidente a necessidade de um direito desigual” (In: GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 72). 830 298 nas condições efetivas de exercício da liberdade contratual833. Nesse mesmo sentido, Thomas Wilhelmsson enxerga uma superação do modelo tradicional, em que os atores dos contratos são considerados de maneira abstrata, passando para um raciocínio contratual que confere maior peso aos argumentos relativos à pobreza e hipossuficiência de uma das partes (personrelatedness)834. Esse perfil legislativo de promoção do social por meio da proteção da parte mais vulnerável na contratação persegue, em particular, três finalidades: a proteção à saúde do contratante mais fraco, garantir a igualdade de condições contratuais e proporcionar a manutenção do vínculo em contratos de duração, por meio de imposição de limites à liberdade de recesso nas relações continuativas835. No primeiro caso, temos como situações paradigmáticas as normas de proteção à saúde dos empregados, que estão impregnadas em todo o sistema laboral, distribuídas em graus, de acordo com as condições pessoais da parte mais vulnerável (menor, mulher, portadores de deficiência, entre outros casos) e a lei consumerista, que se mostra pródiga na previsão de normas que cuidam da saúde do consumidor836. Novamente a tutela consumerista aparece quando se quer identificar a atuação do legislador com o escopo de garantir o equilíbrio na relação contratual, regulando e impondo ____________ In: RIBEIRO, Joaquim de Souza. O problema do contrato: as cláusulas gerais e o princípio da liberdade contratual, p. 638. 834 In: WILHELMSSON, Thomas. “Regulação de cláusulas contratuais.” In: RDC, p.12. 835 Conforme DENNINGER, Erhard. “L’utilizzazione del Diritto Privato per Scopi di Politica Sociale.” In: RDCiv, p. 195. Na doutrina argentina Lopez Cabana, inspirando-se em conclusões de Jornadas Jurídicas ocorridas neste país, aponta que a vulnerabilidade jurídica é protegida pelo sistema quando se afirma: “a) la invalidez de las cláusulas que desnaturalizan la esencia del vínculo obligacional, afectan la liberdad contractual o la buena fe, o importan abuso de derecho; b) la interpretación conforme a la finalidad y economia del contrato, tomando-se en cuenta el princípio de razoabilidad y la fuerza vinculativa de los actos precedentes así como el emplazamiento socio-económico-cultural del adherente; c) la invalidez de las cláusulas que limitan la responsabilidad, en especial en cuanto no existe una contrapartida económica justificante de esa renuncia; d) la necesidad de firma expresa de las condiciones generales, aunque tal firma no es por sí sola suficiente, pues se privilegian los princípios de claridad y reconoscibilidad; e) la necesidad de evitar condiciones generales ‘sorpresivas’ exigiendo que el no predisponente las conozca de manera efectiva cuando se hallan en instrumento separado; f) la prevalencia de las cláusulas especiales sobre las preexistentes; g) en caso de ambigüedad, la interpretación contra el predisponente; h) la inequiparabilidad de las condiciones generales a los usos y costumes” (In: “Defensa Jurídica de los más débiles”, p. 07. In: RDC, RT, v. 28, p. 11). 836 Em relação a tutel amaterial e processual do consumidor Carlos Silveira Noronha ensina que: “no direito moderno, a tutela do consumidor acelerou-se a partir do epílogo do anterior e inicio do presente século, sob o influxo da chamada Revolução Industrial. Os mecanismos criados para a sua proteção espraiam-se por três grandes sistemas: o da common law e da civil law e o socialista” (In: “Revisitando a tutela do consumidor nos precedentes históricos e no Direito pátrio.” In: RFD/UFRGS, v. 24, 2004, p. 61-2). 833 299 limites às condições gerais de contratação837. Este mesmo instituto aparece também na lei inquilinária e na regulamentação normativa de alguns contratos de crédito. A proteção da parte mais débil da contratação, por meio de garantia de manutenção do vínculo contratual em relações naturalmente duradouras, é vislumbrada nas garantias de renovação do contrato nas locações residenciais e nas relações de seguro-saúde838. Esta proposta de concepção das normativas contratuais rompe definitivamente com o sistema de igualdade formal no setor dos contratos, criando um Direito Privado especial para situações de desigualdades. Eberhard Eichenofer explica que assim o Direito atua como instrumento de ‘compensação de uma distorcida paridade contratual’839. Tal agir está nitidamente comprometido com os ideais de um novo modelo de contrato que, assim, poderá atuar como um instrumento de promoção social840. Por meio desta opção de enfrentamento da questão, o Direito assume a tarefa de criação de meios para evitar ou reduzir os conflitos sociais, e, como destaca Judith Martins-Costa, uma das formas de atingir esse escopo é particularmente a ‘atenuação da vulnerabilidade’841. Cavalieri Fillho explica que “a vulnerabilidade do consumidor é a própria razão de ser do nosso Código do Consumidor; ele existe porque o consumidor está em posição de desvantagem técnica e jurídica em face do fornecedor” concluindo que “o Código estende ____________ Celia Weingarten aponta que “las decisiones empresariales también se fornam en base a la confiabilidad generada y la expectativa de cumplimiento por la masa de consumidores. Es necesario destacar un aspecto importante, crucial en la mecánica de operabilidad de los consumidores, pues se halla directamente relacionado con su ‘nivel de culturización’ (entendiéndose éste como conjunto de elementos socioeconómicos, escolarización, etc.) de tal forma que ante un menor nivel de estratificación, mayor será la incertidumbre en cuanto al cumplimiento de las obligaciones asumidas, y mayor también la necesidad de regulación contractual para obtener seguridad y fortalecer la posición del empresario, incluyendo, por ejemplo, cláusulas abusivas, garantías o fianzas, como mecanismos superadores de aquel riesgo” (In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños, p. 40-1). 838 Conforme aponta Eberhard Eichenhofer: “quale prima caractteristica del diritto privato utilizzato per scopi di politica sociale emerge il fatto che le sue regole attribuiscono alla parte contrattuale più ‘debole’ poteri che non spettano alla controparte” (In: “L’utilizzazione del Diritto Privato per Scopi di Politica Sociale.” In: RDCiv, p. 201). 839 In: DENNINGER, Erhard. “L’utilizzazione del Diritto Privato per Scopi di Politica Sociale.” In: RDCiv, p. 202. 840 Nesse sentido, anota Neves Soto: “assim os princípios do direito contratual moderno, e sobretudo o da função social dos contratos, surgiram de uma operação lógica de abstração e interpretação extensiva da tutela protetiva do vulnerável, sempre que a relação contratual se apresente em desequilíbrio, que já estava expressa no Código de Defesa do Consumidor e em algumas outras leis dispersas” ( ver na CLT o caso do contrato de trabalho, na lei 8245 para o caso do contrato de locação imobiliária) In: “Novos perfis do Direito Contratual.” In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (org.); et al. Diálogos sobre Direito Civil,p. 257. 841 In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado 651. 837 300 sobre todos uma espécie de manto jurídico protetor para compensar a vulnerabilidade”842. É o método compensatório utilizado pelo legislador pós-moderno843. Ao contrário do que apregoavam os cultuadores da soberania do modelo econômico de liberdade de mercado, o sistema de livre concorrência não trouxe os tão almejados benefícios aos consumidores, que distante ficaram da concretização de suas expectativas de tornarem-se os “monarcas do mercado”. Como pontua Ada Pelegrini Grinover e Antonio Herman Benjamin, “em certos casos, a posição do consumidor, dentro desse modelo, piorou em vez de melhorar844. O jurista Português João Calvão da Silva ratifica este entendimento, dizendo que “o ideário liberal individualista era hostil ao consumidor; erguia-se como verdadeiro dique à proteção de seus interesses”845. A percepção da realidade de que o mercado não está dotado de mecanismos eficientes, para superar ou mesmo mitigar a vulnerabilidade presente nas dinâmicas relações de consumo exigiu do legislador dos mais diversos países um cuidado especial com a tutela consumerista, para que a força de lei sirva como elemento de resistência às forças do mercado. Nesse contexto e prestigiando a literalidade do texto expresso no artigo 421 do Código Civil, a utilização do paradigma da função social para a proteção da parte mais débil da contratação somente poderá ocorrer com a imposição de limites à liberdade contratual e dos direitos subjetivos da parte considerada contratualmente mais forte846. Como afirma ____________ In: CAVALIERI FILHO, Sérgio. “O Direito do Consumidor no limiar do século XXI.” In: RDC, p. 100. Nesse sentido, é a lição de Cláudia Lima Marques, que analisando o Código de Defesa do Consumidor, ensina que este representa “uma lei tutelar, principiológica, de origem constitucional (art. 48 ADCT e 5º , XXXII da CF) centrada pós-modernamente na proteção do sujeito vulnerável, no diferente, no sujeito mais fraco na relação fornecedor-consumidor” (In: MARQUES, Claudia Lima. “Proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico.” In: RFD/UFRGS, p. 49-50). 844 In: Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Forense Universitária. 2000 p. 6. Os autores esclarecem: “A sociedade de consumo, ao ocntrário do que se imagina,não trouxe apenas benefícios para os seus autores. Muito ao revés, em certos casos, a posição do cosumidor, dentro desse modelo, piorou em vez de melhorar. Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação de relativo equilíbrio de poder de barganha (ate porque se conheciam), agora é o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, ingavelmente, assume a posição de força na relação de consmuno e que, por isso mesmo, ditas as regras. E o Direito não pode ficar alheio a este fenômeno. O mercado, por sua vez, não apresenta, m si mesmo, mecanismos eficientes párea superar tal vulnerabilidade do consumidor. Nedm mesmo para mitigá-la. Logo, imprescindível a intervenção do esado nas três esferas: o Legislativo, formulando as normas jurídicas de consumo; o Executivo, implementando-as; e o Judiciário, dirimindo os conflitos decorrentes dos esforços de formulação e de implementação” (p. 6). No mesmo sentido, ALMEIDA, José Antonio. “Publicidade e Defesa do Consumidor”, p. 105. In: RDC, v. 21, p. 106. 845 In: SILVA João Calvão da. Responsabilidade Civil do Produtor, p. 31-2. 846 Segundo Eberhard Eichenhofer, o uso do direito privado com fim social limita a liberdade contratual de concluir e articular os termos do contrato e, em relação aos direitos subjetivos, limita os poderes de direção e decisão (in: “L’utilizzazione del Diritto Privato per scopi di política sociale.” In: RDCiv, n. 2, 1997, p. 203-4). 843 842 301 Tereza Negreiros, dar importância à posição social da pessoa do contratante significa dar importância social ao contrato847. Cria-se um processo de distinção necessária entre “débeis” e “fortes”, para que o Direito possa identificar o sujeito vulnerável, protegendo-o ou ‘tonificando-o’ frente ao outro pólo da relação negocial. Como ensina Claudia R Brizzio, se pretende restablecer la verticalidad del fiel de la balanza de la Justicia cuando confrontan fuertes y débiles, porque ‘estos (los más débiles) presionados por la necesidad, están obligados a querer lo que los más fuertes son libres de imponerles”848. Esse princípio da proteção da parte mais vulnerável é também manifestado por meio de regras hermenêuticas já consolidadas no nosso sistema, nos contratos firmados com cláusulas pré-dispostas – contratos padronizados e de adesão - criando a regra de desenvolvimento da atividade interpretativa no sentido menos favorável à parte responsável pela sua redação: ‘interpretatio contra preferentem’ e ‘in: dubio contra stipulatorem’849. Como enfatiza Cláudia Lima Marques, “no novo sistema de Direito e na sua aplicação diária, há que prevalecer uma ética reconstrutiva, uma dogmática renovada e uma ____________ In: NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 302. A autora apresenta os seguintes questionamentos: “pergunta-se: diante do processo de materialização do contrato, é correto afirmar-se que o direito dos contratos permanece desprezando as diferenças socioeconômicas, deixando de estabelecer discriminações correlatas? O fato de um contratante ser velho ou jovem, saudável ou doente, rico ou pobre, estar ou não empregado, tem alguma relevância jurídico-constitucional? Estas variantes sociais, enfim, pertinentes à concreta e real situação da pessoa do contratante, correspondem, ou devem corresponder, a diferenciações jurídico-contratuais?” e responde : “em face do Código Civil de 1916, a resposta deverá ser negativa. Não existia naquele Código Civil a preocupação em diferenciar contratos conforme fatores como os acima elencados. E é natural que assim fosse, já que, sob a ótica liberal que presidiu a elaboração daquele Código, o instrumento contratual em si mesmo conduzia ambos os contratantes a uma dimensão em que as vontades de um e de outro dispunham de idêntico valor legal”, e conclui: “no entanto, à luz do CDC, a resposta já não é tão simples” (p. 304-5). 848 In: BRIZZIO, Claudia R. “Globalización y Debilidad Jurídica.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 569. 849 Conforme estipulado no Digesto, L. 45, t. 1,1. 38, par. 18, “ïn stipulationibus quun quaeitur, quid actum sit, verba contra stipulatorem interpretando sunt”. Alberto Coaguila observa que “la idea de la ‘parte débil’ en la recalión contractual, denominada também como el ‘débil jurídico’, es un axioma que se viene arrastrando desde el derecho Romano. Así, en el Digesto, Labeón y Paulo sostienen que cualquier oscuridad o ambigüedad de los pactos en el contrato de compraventa, debían interpretarse en contra del vendedor. De este axioma, convertido en todo un princípio general del Derecho y que há influenciado en la doctrina y legislacion de los países de tradición jurídica romano-germánica, han surgido dos sub-princípios: el interpretattio contra stipulatorem y el favor debitoris” (In: “La contratación masiva y la crisis del contrato: a proposito del proyecto del Codigo Civil argentino de 1998.” In: LL, p. 1192). 847 302 interpretação protetiva e útil para este agente econômico vulnerável”850. Note-se que a vulnerabilidade que exige do credor do direito uma atuação comprometida com a função social de correção da desigualdade das partes851 não pode ser vislumbrada como proteção das características individuais e isoladas da parte e, sim, ver o contratante como pertencente a um grupo. Talvez se possa até falar em tutela da relação e não Um dos grandes momentos de latente dificuldade de atuação jurídica tutelativa do sujeito vulnerável é, exatamente, a identificação precisa de quem merece ser objeto de proteção. Questiona-se sobre o melhor critério que deve orientar esta seleção que, no afã de propiciar uma proteção, não se crie um odioso privilégio. Num primeiro momento, surge a dificuldade sobre a espécie de fraqueza presente no indivíduo que poderá-deverá despertar a preocupação dos operadores do direito. Neste ponto, entretanto, parece não haver espaços para dúvidas. O critério utilizado não pode considerar apenas a debilidade econômica, tão emblemática na sociedade atual, mas não a única existente. Certos tipos de fraqueza, tão relevantes quanto a econômica, também devem ser consideradas, como a falta de conhecimentos técnicos e a de ordem psicológica, entre uma série de vulnerabilidades especiais (do idoso, criança, portadores de deficiência, entre outros). Cada momento social se encarregará de pôr em destaque essas situações particulares, apontando novas formas de fraqueza ou sanando situações outrora consolidadas. É o momento ____________ In: MARQUES, Claudia Lima. “Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.” In: RTDC, p. 5. Nesse sentido, foram as conclusões sobre “favor debitoris” da X Jornada Nacional de Direito Civil, realizada na Argentina: “el derecho romano daba relevancia al ‘favor debitoris’, regla que há sido considerada como ‘un preceto residual que debe ser entendido en el sentido de proteción de la parte más débil de un contrato’. Solamente en caso de que en el contrato no exista una parte notoriamente más débil, la interpretación debe favorecer la mayor equivalencia de las contraprestaciones” (In: “Defensa Jurídica de los más débiles”, p. 07. In: RDC, p. 7). Nesse sentido, dispõe o artigo 5º da Diretiva 93/13/CEE, referente às cláusulas abusivas nos contratos concluídos com os consumidores: “Em caso de dúvida quanto ao sentido de uma cláusula, a interpretação mais favorável ao consumidor prevalece”. 851 Esta idéia é reforçada pelos ensinamentos de Claudia R. Brizzio: “dentro del mismo ámbito académico también se entendió que el princípio constitucional de igualdad ‘sirve de fundamento para establecer una base protectiva de la parte débil’; y que ‘la ley debe profundizar la protecvión de los consumidores, de los contratantes débiles y, en general, evitar todo aquello que tiende a una negocición impuesta y vajatoria. La distinción entre débiles y fuertes, y la protección de los débiles, sea por razones económicas, sea por su carencias o limitaciones personales resulta , en suma, una aplicación de la ética de la solidariedad. Esta ética de la solidariedad pasa por el meridiano de la proteción de los débiles jurídicos, que ya reclamaba Josserand como preocupación esencial del derecho moderno hacia meados del siglo pasado” (In: “Globalización y Debilidad Jurídica.” In: Obligaciones y Contratos en los Albores del Siglo XXI, p. 570). 850 303 histórico, acompanhado dos valores sociais em evidência que irá identificar as áreas que merecem a intervenção tutelativa do Estado, por meio de escolha sociopolítica, em que o Direito é apenas um operário. Definido o âmbito de atuação tutelativa do ordenamento jurídico, vem à tona o questionamento sobre o acerto do critério de priorizar grupos específicos, sem uma consideração específica das particularidades de cada grupo. Esta questão metodológica surge em especial na abordagem da tutela consumerista. A totalidade dos consumidores submetidos a certo ordenamento jurídico forma um grupo vulnerável a ser protegido, ou seria necessário identificar neles a presença de vários grupos? Lopez Cabana sugere o reconhecimento da noção de “subconsumidor”, ou seja, o consumidor particularmente frágil852, que seria merecedor de maior proteção jurídica. Tal critério teria de considerar, ou as particularidades do sujeito consumidor (criança, idoso, analfabeto), ou as especialidades do produto ou serviço (gêneros de primeira necessidade, intervenções médicas, etc). O autor argentino torna o tema ainda mais complexo ao explicar que “los consumidores no son todos iguales, habiendo consumidores instruídos y consumidores ignorantes, consumidores de biens primarios y consumidores de lujosas ‘gabgets’, consumidores necesitados de tutela y consumidores capazes de tutelarse por si solos”853. 4.6 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL NOS CONTRATOS A solidariedade é um axioma que vem acompanhando a evolução histórica do pensamento social, em geral ganhando ênfase nos momentos de crise e enfraquecendo nas épocas de prosperidade. Analisando o termo solidariedade, Jean Duvignaud adverte que “aparentemente, toda a gente compreende o sentido do termo sem se perceber das confusões que ele mascara”854. O discurso solidarista procura criar um espaço social que atue de forma intermediária frente às dicotomias sociais tradicionais, ou seja, entre o público e o privado, o ____________ 852 853 In: CABANA, Roberto M. Lopez. “Defensa Jurídica de los más débiles”, p. 07. In: RDC, p. 13. In: CABANA, Roberto M. Lopez. “Defensa Jurídica de los más débiles”, p. 07. In: RDC, p. 13, e Contratos Especiales en el Siglo XXI. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1999, p. 15. 854 DUVIGNAUD, Jean, A Solidariedade – Laços de Sangue, Laços de Razão. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 9. 304 Estado e a sociedade civil, o Estado e o mercado, o político e o econômico, de forma a conceber um outro modelo de Estado855. Na lição sempre precisa de Cláudia Lima Marques, “a solidariedade é vínculo recíproco em um grupo (wechselseitige Verbundenheit); é a consciência de pertencer ao mesmo fim, à mesma causa, ao mesmo interesse, ao mesmo grupo, apesar da independência de cada um dos participantes (Zusammengehörigkeitsgefühl)”, acrescentando ainda que “solidariedade possui também sentido moral, é relação de responsabilidade, é relação de apoio, é adesão a um objetivo, plano ou interesse compartilhado. No meio caminho entre o interesse centrado em si (egoísmus) e o interesse centrado no outro (altruismus) está a solidariedade, com o seu interesse voltado para o grupo”856. É a solidariedade, portanto, um valor social que faz a ligação entre os interesses individuais e da coletividade, elementos integrantes da grande teia social, pois nos dizeres de Jean Duvignaud, “o mundo é como um organismo vivo e cada um tem qualquer coisa a receber dos outros e qualquer coisa para lhes dar”857. Nota-se na noção de solidariedade social um claro viés pós-moderno, pois é uma prática alimentada pela própria complexidade social, na exigência de uma sociedade aberta, flexível e pluralista, fundada na autonomização da sociedade civil e dos grupos sociais que a compõem858. Na história dos contratos, entretanto, o tema da solidariedade social não possui maior destaque, pois o pensamento clássico não permitia uma maior amplitude deste princípio, que era abafado pelo excessivo individualismo egoísta que marcou a trajetória do contrato por um largo período. O culto ao individualismo é exatamente a antítese da solidariedade social e, enquanto, o pensamento liberal se manteve em alta, pouco ou quase nenhum espaço restou para que se pudesse pensar no outro ou no bem-estar da sociedade. ____________ Conforme FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 185. Para este autor: “coloca-se em evidência que a solidariedade social não é unicamente devida à existência de um Estado intervencionista. No discurso solidarista, a solidariedade social não se realiza exclusivamente pela via do Estado; este não é a única forma de vida coletiva. O discurso solidarista pressupõe a existência de uma pluralidade de solidariedades realizadas em todo o espaço da sociedade civil, onde os grupos sociais são sujeitos de direito no sentido de que são produtores de direitos autônomos em relação ao Estado” (p. 186). 856 In: MARQUES, Claudia Lima. “Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.” In: RTDC, p. 3-4. 857 DUVIGNAUD, Jean, A Solidariedade – Laços de Sangue, Laços de Razão, p. 10. 858 Nesse sentido, é a lição de FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade, p. 186. 855 305 A noção de solidariedade social passa a integrar o pensamento do Direito Contratual com a fase do intervencionismo estatal, que passou a reconhecer e impor a existência de valores sociais a servirem como ponto de limite da liberdade contratual. O pensamento solidarista foi o elemento motivador do dirigismo estatal no campo contratual859, impondo aos pactos um maior comprometimento com o projeto social assumido pelo Welfare Stated860. No modelo atual de contratação, esculpido pelo Código Civil, destaca-se o apego aos valores sociais do contrato por meio dos princípios da função social e da boa-fé. Nesse contexto, o contrato é posicionado no caminho dos valores sociais consagrados pelo texto constitucional, trazendo um novo revestimento a essa relação. Na lição de Humberto Theodoro Júnior, quando o Código Civil adota a linha da socialidade, ele está “cumprindo a programação constitucional que prevê, no relacionamento público-privado, a implantação de um “modus vivendi” inspirado no valor da solidariedade social”, de forma que “o que esse programa combate não é a liberdade individual nem a autonomia de vontade, mas, sim, ele visa “à regulação do exercício desses direitos fundamentais, de sorte que deixem de se inspirar no egoísmo individualista e se interpretem segundo o solidarismo. O contraste se estabelece não entre o indivíduo e a coletividade, mas entre o individualismo e solidarismo”861. Tradicionalmente comprometida com a finalidade econômica de propiciar a circulação de bens e de atribuição de propriedade, o contrato sofre uma renovação, em que ganha espaço a função de realização de valores individuais e sociais. Como afirma Rubéns S. Stiglitz, “no cabe duda es de que el hallarse el contrato inserto en el contexto social, y ser un instrumento de convivencia, debemos privilegiar a la solidariedad, y a los principios e valores que la sustentan, como clausula abierta, flexible, pura y oxigenante, que ineludiblemente debe hacer campamento, e integrarse conceptualmente, en la relación de ____________ Conforme já observava na metade do século passado San Tiago Dantas: “as transformações subseqüentes da política dos Estados democráticos, com reflexos no direito contratual, foram inspiradas pelo princípio da solidariedade social, que, desde o meado so século XIX, tende a prevalecer, por influências das idéias socialistas, sobre o individualismo puro do período anterior. Nasce a tese da proteção social dos mais fracos, destinada a corrigir as conseqüências desumanas do liberalismo jurídico, favorecendo o empregado em relação ao empregador; o devedor em relação ao credor; o inquilino em relação ao senhorio; a vítima em relação ao autor do dano, ou ao seu reponsável indireto; o consumidor em relação ao fornecedor. Foi sobre a influência deste pensamento solidarista que se elaboraram muitas normas restritivas da liberdade contratual, com que os autores têm caracterizado o chamado dirigismo contratual” (In: DANTAS, San Tiago. Problemas de direito positivo. São Paulo: Forense, 1953, p. 21). 860 Luís Edson Fachin enfatiza: “passando por sobre o sistema tradicional do individualismo, cuja força ainda gera uma ação de retaguarda para mantê-lo incólume, princípios de justiça distributiva tornaram-se dominantes, a ponto de serem considerados tendências mundiais da ‘percepção bem concreta dessa coisa que se chama solidariedade social, que nas modernas sociedades penetrou já profundamene na área do direito privado” (In: “Limites e possibilidades da nova teoria geral do Direito Civil.” In: RFD/UFP, p. 57). 861 In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, p. 121. 859 306 aquivalencia”862. Assim o valor solidariedade se destaca como fio condutor que refunda o contrato, agora revisitado pela Constituição863. É o reflexo do modelo proposto pelo Estado Social de Direito, em que há uma nítida preocupação com a promoção dos valores importantes para a manutenção do bem-estar da coletividade864. O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, refletindo-se inevitavelmente no âmbito contratual, repassa ao contrato os axiomas constitucionais que servem de base para todo o sistema jurídico, dentre os quais encontra-se, com considerável ênfase, o princípio da solidariedade social. Assim, do tradicional individualismo, passa-se ao solidarismo, e o contrato ganha uma nova dimensão, mais ampla e compromissada, ao mesmo tempo, com a realização dos valores negociais, mas sem perder o humanismo exigido pelo moderno constitucionalismo865. Como pontua Cláudia Lima Maques, se o Direito Civil moderno teve como grande meta narrativa a fraternidade, hoje este papel é desempenhado pela solidariedade e a realização dos direitos humanos em pleno Direito Privado866. Entretanto, como adverte Paulo Nalin, “a solidariedade não é somente um valor inserido na Constituição, sem papel definido no plano da regra. Ao contrário, ela reflete o ____________ In: STIGLITZ, Rubén S. Autonomía de la voluntad y revisión del contrato, p. 69. O autor complementa: “la liberdad contractual debe insertarse en una visión inspirada en la solidariedad social, que en una primera aproximación no desatienda las fórmulas que se traduzcan en intentos de alcanzar una nivelación jurídica formal, como contraposición a la desigualdad real” (p. 70). 863 Conforme NALIN, Paulo. “O contrato em movimento no Direito Pós-moderno.” In: RTDC, ano 3, v. 10, abr.-jun. 2002, p. 277. 864 Nesse sentido, ensina Pietro Pierlingeri: “com a mudança do Estado liberal de Direito para o Estado Social de Direito, lá onde o Estado não garante mais a liberdade, mas sim por meio dele se garante a promoção do bem-estar social, o Estado Social de Direito faz a promoção fundamental do Direito no Estado Moderno, que não se fixa só a conceder garantias fundamentais aos seres humanos, como também é contemporâneo na exigência dos deveres destes para com a coletividade. Trata-se do solidarismo jurídico: é o reverso da medalha do Estado Social de Direito” (In: “Normas constitucionais nas relações privadas.” In: RFD/UERJ, p. 67). 865 Castro Rangel esclarece que “a solidariedade é aqui herdeira direta da fraternidade revolucionária, mas não se confunde ou comistura com ela. A fraternidade, quando conjugada com a igualdade, aponta para a idéia de que o outro (o alter, o diverso) é irmão – o que pode constituir uma mera proclamação simbólica de cariz moral ou ter o sentido revolucionário e imperativo de justiça igualitária. Ora, a solidariedade há-de implicar, antes do mais, uma nova orientação das relações econômicas internacionais no sentido de as tornar menos assimétricas” (In: “Diversidade, Solidariedade e Segurança (notas ao redor de um novo programa constitucional).” In: ROA, p. 839). 866 In: MARQUES, Claudia Lima. “Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso.” In: RTDC, p. 4. 862 307 novo espírito ético da sociedade brasileira que, efetivamente, pretende encontrar um Brasil no século XXI livre da miséria econômica e das desigualdades sociais”867. Mas a tarefa de compreensão dos exatos limites e potencialidades da solidariedade constitucional é árdua, pois, como destaca Judith Martins-Costa, “a ampla vagueza semântica e o caráter abstrato da diretriz constitucional da solidariedade dificultam a própria visualização dos deveres que se alocarão nos casos concretos”868. Assim será necessária a fixação de ‘marcos setoriais’ como forma de garantia da possibilidade de sistematização da matéria, evitando que ela se perca na aplicação tópica e desordenada. Para tanto, poderão ser utilizados, como ‘elementos de conexão’, os princípios da função social do contrato e da boafé, que servirão para concretizar o princípio constitucional da solidariedade social. 4.6.1 A aplicação do princípio da solidariedade social nos contratos e a noção de mercado A idéia clássica de mercado representa um nítido reflexo das aspirações que marcam a era do liberalismo econômico, no qual se encontra o auge da referência ao individualismo egoístico. A expressão ‘mercado’ mostrava-se carregada das noções de competição e concorrência, em consonância com a naturalística do século XVIII, representando o espaço de ____________ In: “O contrato em movimento no Direito Pós-moderno.” In: RTDC, ano 3, v. 10, abr.-jun. 2002, p. 277. O autor complementa: “a Constituição mantém eficaz o valor da solidariedade que, por sua vez, indica um contrato de propósitos comuns entre os titulares da situação subjetiva travada, cujos interesses recíprocos não se opõem, mas sim se integram em cooperação, e um fim comum, logo, não individual. O que importa, em última instância, acaba sendo proteger a dignidade do sujeito contratante, esteja ele credor, esteja ele devedor, por meio de uma solidariedade corretora das antinomias privadas envolvidas” (p. 278). 868 In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado, p. 655. Segundo esta autora, “para além de sua vagueza semântica, a expressão ‘deveres que decorrem da solidariedade social’ possui largo espectro de aplicação. É certo que indica deveres instrumentais, porém têm como escopo permitir a implementação do objetivo posto no artigo 3º da Constituição Federal, espraiando-se por mais uma imensa diversidade de relações jurídicas e encontrando os mais diversos meios de atuação. Normas jurídicas que implementam planos econômicos, certas regras tributárias, determinadas regulações premiais, preceitos de direito administrativo, de direito urbanístico, de direito econômico em sentido estrito, de direito de família, de direito previdenciário, as regras que consagram a responsabilidade objetiva, etc. são exemplos tradicionais de sua atuação. A novidade está na consideração das relações obrigacionais – por muito mais tempo tidas exclusivamente como o reino dos interesses individuais, até mesmo ‘egoísta’ – como relações que podem e devem concretizar, em larga medida, deveres de solidariedade social” (In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado, p. 628-9). 867 308 manifestação da liberdade individual, guiado por ‘mãos invisíveis’, na qual a atuação do Estado era nitidamente periférica ou inexistente869. A atualidade exige a construção de uma nova concepção de mercado, apto a conviver com a presença constante do Estado Social e de deus princípios, dentre os quais ganha destaque a busca da realização da justiça social, absorvendo, portanto, um perfil solidário. Como afirma Paulo Nalin, é significativo considerar-se que a liberdade de mercado se louva da conformidade imposta pela justiça social, na medida em que o excesso de liberdade é a antítese dela própria, num mercado de desiguais operadores, onde a radical liberdade de iniciativa só faz concentrar riquezas870. Este mesmo autor sustenta a necessidade de uma plena conexão Estado-cidadão-mercado, de forma que o ente estatal é reposicionado, não mais se localizando de maneira periférica, mas atuante na atividade de mercado, a fim de manter um contínuo resguardo do cidadão-econômico871. Estas conclusões são obtidas por meio de uma simples observação dos valores consagrados na Carta Constitucional, que no artigo 1º traça como fundamentos da República os princípios da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, combinados com os objetivos fundamentais da República (art. 3º ), que passam pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda, a ordem econômica esculpida na Constituição funda-se, dente outros princípios, na busca da existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social. Assim, como afirma Judith Martins-Costa, há uma ____________ Judith Martins-Costa indica a presença de duas concepções de mercado, que, de certa forma, se sucederam no tempo: a naturalista e a normativa, explicando: “a cencepção naturalista, que tem origem nas doutrinas fisiocratas do séc. XVIII, compreende o mercado como o ‘locus’ da liberdade e da espontaneidade, que ‘mãos invisíveis’ orientam na direção do bem comum. Não haveria, assim, necessidade de intervenções normativas (legislativas ou administrativas) no mercado, reino natural da economia. Este seria, por sua vez, de todo apartado da esfera da política, dizendo-se ‘naturalista’ a concepção justamente porque seria o mercado o regime natural das relações econômicas”, enquanto a concepção normativista é tida como aquela em que “não há mercado fora das decisões políticas e fora das escolhas legislativas de uma sociedade: o mercado é, com efeito, o regime normativo da atividade econômica” (In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado, p. 614 e 617, respectivamente). 870 In: NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 186-7. 871 In: NALIN, Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civilconstitucional, p. 189-90. 869 309 intima relação entre mercado e solidariedade social, pois esta é norma conformadora daquele872. Assim, no balanço entre mercado e justiça social, o princípio da solidariedade social passa a exercer um papel preponderante. 4.7 PRINCÍPIO DA CONFIANÇA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS A confiança é um tema social dotado de considerável amplitude e vaguidade que acaba por acarretar sérias dificuldades nas tentativas de sua investigação. No plano do Direito a questão não se mostra diferente873, pois muitos dos acontecimentos que circundam o cotidiano da vida em sociedade, capazes de propiciar a atuação da confiança, também acarretam conseqüências nas mais diversas searas do plano jurídico. A interpenetração da confiança e do Direito, portanto, é inevitável e desejada, pois se espera da ordem jurídica a tarefa de garantir a confiança dos sujeitos, como pressuposto fundamental para qualquer coexistência ou cooperação pacífica de paz jurídica, de forma que, na lição de Carneiro Frada, a confiança “encontra-se seguramente na génese de muitas normas jurídicas; quando estas promovem a função de estabilização de expectativas mediante o acolhimento de estruturas de confiança já existentes e vigentes na ordem social. Outras vezes é às regras que compõem o ____________ In: MARTINS-COSTA, Judith, Mercado e Solidariedade Social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. A Reconstrução do Direito Privado, p. 620. A autora complementa: “do ponto de vista metodológico, este tipo de norma vem designado pelas expressões ‘norma-objetivo’ ou ‘policy’, sendo razoável supor que dela decorram – para permitir a construção de uma sociedade solidária – não só políticas públicas, ações e atividades que a implementem, mas, por igual, certos deveres de solidariedade que se impõem a todas as relações de mercado e conformam o seu efetivo modelo. Em outras palavras, o que quero acentuar é que, justamente porque constitui ‘norma-objetivo’, o estatuído no artigo 3º da Constituição Federal configura critério indiciário d(os) fins, que devem ser implementados pelas normas de conduta, nesta medida corolários imperativos, e necessariamente incidentes nas relações de mercado, da diretriz que busca a construção de uma sociedade solidária” (p. 621-2). 873 Carneiro da Frada explica: “a confiança não é, em Direito, um tema fácil. As dificuldades que ele coloca transcendem em muito a necessidade de delimitação do seu âmbito, já de si problemática. Não existe nenhuma definição legal de confiança a que possa socorrer-se e escasseiam referências normativas explícitas à propósito. O seu conteúdo apresenta-se fortemente indeterminado pela puralidade ou vaguidade de empregos comuns que alberga, tornando-se difícil traçar com ele as fronteiras de uma investigação jurídica” (in: FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 17). 872 310 tecido normativo que se reporta.Outras, ainda, é ela própria seleccionada como situação produtora de conseqüências específicas”874. Entretanto é no plano das relações negociais que a importância da tutela da confiança ganha fôlego, adquirindo proporções de um verdadeiro princípio negocial875 ou, mesmo, de própria fonte de direito876. Como observa Judith Martins-Costa, contemporaneamente, a autonomia contratual não é mais vista como fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas; assim o eixo contratual da tutela subjetiva da vontade desloca-se para a tutela objetiva da confiança877. A pós-modernidade, aliada aos anseios de concretização da redução de complexidade, potencializa o elemento confiança nas relações contratuais Neste sentido a jurista argentina Celia Weingarten, após afirmar que a confiança é o ‘fundamento’ do contrato, explica que ‘entonces la voluntad es sólo uno de los fatores de atribuición de efectos negociales, pero no el único. Bajo deternimadas circunstancias, pueden nacer obligaciones cuyo único fundamentos es la confianza, una confianza que nace a partir de lo que una ____________ In: FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 24. Segundo esse autor, “é intuitiva uma profunda assimilação da confiança com apropria realidade jurídica, visível sobretudo nas formas de relacionamento mais simples e nos microsistemas sociais mais elementares: a confiança recíproca dos sujeitosimpregna de tal forma certas actuações que a desconfiança se apresenta, no mínimo, suspeita, e a quebra de expectativas tende a ser valorizada como violação ou ruptura do direito próprio destas relações humanas. Por outro lado, sobretudo nas sociedades altamente difernciadas e complexas do tipo das da actualidade, impõe-se, afinal, uma discriminação entre Direito e confiança: o primeiro intervém para assegurar níveis de interacção social precisamentge aí onde o processo de coordenação interindividual das condutas humanas através da confiança se torna, por dificuldade ou ineficiência, implaticável. Pode até afirmar-se que, quanto maior for, por via da referida complexidade e diferenciação, a despersonalização e o anonimato na vida social, mais aguda se torna a acuidade da substituição do processo informal de coordenação dos comportamentos através da confiança pela institucionalização das regras jurídicas formais” (p. 18). 875 Nesse sentido, Claus-Wilhelm Canaris aponta que “a responsabilidade pela confiança não é responsabilidade/obrigação ‘por força’ do negócio jurídico, mas responsabilidade ‘por participação’ no meio jurídico negocial” (apud MARQUES, Claudia Lima. “Vinculação Própria Através da Publicidade? A nova visão do Código de Defesa do Consumidor.” In: RDC, p. 16). 876 Infelizmente, no tema relativo às fontes das obrigações, o nosso Direito Civil codificado não seguiu o modelo italiano, que deixa transparecer uma evidente flexibilidade nas possibilidades de acontecimentos ensejadores de vínculos obrigacionais: “art. 1173. Le obbligazioni derivano da contratto, da fatto illecito, o da ogni altro atto o fatto idoneo a produrle in: conformità dell’ordinamento giuridico”. Entretanto o nosso ativismo doutrinário e jurisprudencal se encarregou de dotar o sistema obrigacional de modernas fontes de obrigações. 877 In: MARTINS-COSTA, Judith. “Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro.” In: RDC, p. 141. Assim a autora conclui que “por esta vertente da tutela objetiva da confiança, fundada no princípio da boa-fé, conatural à aludida tutela, vai permitir ao Poder Judiciário o desenvolvimento de um controle sobre a relação contratual inimaginável em tempos passados. Este controle se opera sobretudo no que diz respeito à eqüitativa distribuição dos riscos, das vantagens e desvantagens dos quais o contrato é a matriz, em atenção à idéia, hoje dominante também nos sistemas de direito codificado, de que o contrato, veste formal das relações econômicas, representa uma espécie de planificação privada da economia nacional, na qual pesos e contrapesos devem ser examinados em perspectiva unitária” (p. 143). 874 311 situación de hecho o lo que la contraparte aparente, y que induce a un indivuduo a obrar en un sentido o outro”878. O princípio da confiança, desta forma, está na base de todo o sistema de direito negocial, desde os contratos mais simples até o mais requintados e complexos879., representando um sinal que lhe é marcado de forma indelével pela sistemática pósmoderna880. Entretanto, a abordagem da confiança nos negocios jurídicos já vem se sedimentando de longa data881, sem conseguir uma adequada sistematização, que agora passa a ser viável. Cariota Ferrara, na metade do século passado, ao analisar a teoria do negócio jurídico, enfatizava a importância da correlação entre responsabilidade e confiança negocial882. ____________ In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños. Em nosso sistema jurídico há uma série de contratos em que o elemento confiança é tonificado com mais intensidade, representando um aspecto que compõe a própria engenharia do tipo negocial.Um dos exemplos dessa situação pode ser verificado nos contratos cativos de longa duração, modelo típico do meio negocial pósmoderno, onde a confiança deve ser levada em consideração, observando-se uma série de características especiais que envolvem esta espécie de contratação.Também não se poderia olvidar das peculiaridades que envolvem os contratos de prestação de serviços, em especial pela contratação da atuação de profissionais especializados, dotados de reconhecido conhecimento em determinado ramo científico. Assim aconselhamentos de advogados, diagnósticos médicos ou projetos de engenharia são naturalmente dotados de uma força geradora de expectativas legitimadoras de tutela da confiança.Nessas hipóteses, o grau de confiabilidade sobre o comportamento do profissional mostra-se acentuado, de forma que a tutela da confiança do consumidor também deve ser mais incisiva.Há ainda contratos como o de mandato, de gestão, de agência, que podem ser reconhecidos como de confiança especial, o que deriva da própria essência dessas espécies contratuais. A confiança é o leitmotiv do pacto, sua razão de ser e seu ponto de segurança. 880 Daniela Jacques reforça esta idéia afirmando: “o princípio da confiança está presente em toda a relação obrigacional, desde a operação mais simples como uma compra e venda entre dois sujeitos como nas relações hipercomplexas, com caráter de internacionalidade, com a existência de redes contratuais e com a vulnerabilidade bastante acentuada de uma das partes. Nestas últimas, entretanto, se faz imprescindível a proteção da confiança de forma para estabelecer o equlíbrio das relações e ainda se faz mister entender o que esta confiança significa no contexto sócio-econômico para promoção da tutela jurídica com razoabilidade” (In: “A proteção da confiança no Direito do Consumidor.” In: RDC, p. 125). 881 Cabe aqui destacar a distinção entre a tradicional teoria da aparência e a noção de proteção da confiança. Neste sentido Carlos Rizzónico explica que a teoria da aparência teria por essência a idéia de que aquele que dá nascimento a um comportamento ou declaração parente fica vinculado erga omnesi frente à situação exterior que proporcionou. A tutela da confiança, por sua vez, estaria mais direcionada à consideração com a expectativa do destinatário da declaração, de acordo com as condições que presenciam o evento (In: REZZÓNICO, Juan Carlos. Principios Fundamentales de los Contratos, p. 410). No mesmo sentido é a lição de Carneiro Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 44. 882 In: FERRARA, Luigi Cariota. El Negócio Jurídico. Traduzido por Albaladejo. Madri: Aguilar, 1956, p. 53. 879 878 312 4.7.1 A confiança como forma de superação do déficit e do excesso de informações nas relações negociais A informação, numa economia ainda marcada pela massificação nas relações negociais, representa elemento de suma importância para uma saudável formação e execução dos vínculos contratuais. Na doutrina jurídica, muitos são os escritos que realizam uma verdadeira apologia sobre a importância da informação nos contratos, sendo indicada ora como princípio autônomo, ora como dever decorrente da boa-fé contratual. No processo de tomada de decisão no jogo contratual, em grande parte entabulado entre fornecedores e consumidores, uma decisão sadia somente poderá ser alcançada se for devidamente guarnecida pelas informações adequadas ao tipo contratual. No plano legislativo, o enfrentamento da questão não é diverso. Numa análise, mesmo que superficial, do Código de Defesa do Consumidor, nota-se com clareza que o princípio-dever de informação trespassa essa malha normativa, acompanhando a tutela normativa consumerista durante todas as suas passagens, não somente nas normas de Direito Privado, mas também nos setores que estabelecem infrações penais e no plano processual. A falta de informações adequadas é um vício que macula o contrato, cabendo ao direito enfrentar esta situação, propondo soluções que protejam as expectativas legítimas que os contratantes depositaram no pacto. Assim essa é a primeira tarefa do princípio da confiança: sanar o deficit de informação nos contratos, dando segurança ao vínculo e garantindo a proteção das expectativas dos contratantes. Entretanto a questão da informação nas relações negociais tem alcançado também um outro extremo: o excesso de informações. Assim como a falta de informações macula o contrato, direcionando a vontade dos contratantes ou cobrindo os seus olhos com uma densa névoa que não permite que vislumbre a realidade negocial, a dose excessiva de informações também desnorteia o contratante. Assim como a escuridão, o excesso de luminosidade também cega. A sobrecarga de informações acaba por desnortear o contratante, em especial quando este é, por natureza, a parte mais vulnerável da relação, pois existe um limite de compreensão do sujeito que deve ser considerado, para que a sua formação de decisão seja efetivamente 313 livre e racional. Como ensina a jurista argentina Celia Wiergarten, o paradigma econômico neoclássico, que afirmava que quanto maior seja a informação, maior seria o grau de liberdade para a realização das escolhas racionais não pode mais ser levado às últimas conseqüências, pois estudos sobre o conceito de “racionalidade limitada’ (lounded rationality) e sobrecarga de informações (overloaded information), indicam que nem sempre aquele paradigma corresponde à realidade883. Numa sociedade de relações realizadas em massa, este aspecto ganha destaque, pois a vontade-escolha do contratante (em geral consumidor) estará sempre sujeita a limitações natas a sua personalidade, delineada por elementos culturais ou de outra ordem. De tudo, conclui-se que a informação deve ocorrer na dose certa, nem restrita ou excessiva, e esse ponto de equilíbrio pode ser sintetizado na expressão ´informação necessária”, que pode ser entendida como aquela que é capaz de proporcionar uma efetiva transparência na relação negocial e, ao mesmo tempo, servir como elemento de correção da inevitável diferença entre os sujeitos da negociação. Nesse contexto, os vícios quanto ao grau da informação podem ser sanados pelo restabelecimento da relevância do elemento confiança884. A proteção das expectativas legítimas cria um elo de segurança que protege a ‘essência do contrato’, proporcionando a segurança esperada na contratação. No dizer de Celia Weingarten, a confiança cumpre uma ‘função comunicativa’ que envolve o processo de interação que liga o emissor e o receptor das vontades negociais885. ____________ In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños, p. 35. A autora acrescenta que “toda decisión es, en puridad, un ‘acto deliberado, racional y voluntario’ no obstante la racionalidad del ser humano es limitada porque no dispone de toda la información para formular alternativas y sus consecuencias, pues este concepto está vinculado con la calidad y cantidad de información con que cueta y fundamentalmente con su capacidad de elección (condición social, entorno y contexto, ect.)” e que “pero aun cuando la información sea transmitida, es posible que el receptor ‘no lo comprenda adecuadamente’, en primer lugar necesita un minimo de culturización general y en segundo lugar, porque la información requiere de un cúmulo de conocimientos específicos, sin los cuales carece de utilidad: además, procesar y evaluar esa información requeriría de un asesoramiento profesional de alto costo para el consumidor” (p. 35-4, respectivamente). 884 Como explica Celia Weingarten “en realidad es un mecanismo que en sí mismo transmite información. Através de mensajes simbólicos, opera como un vehículo comunicacional de credibilidad al consumidor, para lograr las decisiones de estos últimos. Por distintas vías informales las empresas envián señales a fin de distinguir sus productos. Así, por ejemplo, una marca afamada ayuda a resolver el problema de la desinformación del consumidor acerca de la calidad de un producto; cuando la calidad es opaca, el consumidor puede presumir la marca como una señal de calidad, además de reducir el costo para el consumidor de buscar un producto doado de calidades específicas” (In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños, p. 37-8). 885 In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños, p. 38. 883 314 Ainda utilizando as palavras de Celia Weingarten, a confiança assume no mundo dos contratos o importante ‘valor motivador de condutas’, pois toda decisão é, em última análise, o resultado de expectativas886. ____________ 886 In: WEINGARTEN, Celia. La confianza en el sistema jurídico: contratos y derecho de daños, p. 39-40. CONCLUSÃO A sociedade atual passa por uma fase de transformações que afetam os mais diversos setores do pensamento social, representando uma ruptura em relação ao paradigma econômico-social que marcou o último século. Esta fase de transição teve início com o fenômeno da globalização econômica, que ocasionou uma verdadeira modificação do modus vivendi mundial, enfraquecendo as fronteiras nacionais, alterando a configuração dos valores sociais e impondo uma nova fórmula de pensamento coletivo. Passado o trauma inicial desta mundialização, foram surgindo pontos de resistência ao novo modelo imposto, reforçando-se a necessidade de preservação de valores culturais, simpáticos à diversidade e a busca de alternativas para a rehumanização do social. Surge assim o movimento pós-moderno que assume o pesado encargo de encarnar essas novas aspirações sociais e ostentar a condição de novo paradigma para o convívio social. Desta forma, tem-se o que Alain Touraine designou de fim do social, passando-se a soberania dos valores culturais, acompanhados de sua inevitável complexidade. Trata-se realmente de um novo paradigma imposto pela sociedade onde categorias sociais estão sendo substituídas pelas categorias culturais, cujo reflexo se faz sentir em todos os aspectos da vida pessoal e coletiva. Assim, optou-se por analisar este novo fenômeno social a partir da análise da teoria do contrato e das transformações por ela experimentadas nesta fase de transição. O contrato é uma figura jurídica extremamente sensível às alterações experimentadas no meio social que o cerca. Desta forma, tomando por baliza inicial as clássicas lições de Érick Jayme, passou-se a considerar como principais reflexos do pensamento pós-moderno sobre o Direito as características do pluralismo, comunicação, narratividade, retorno aos sentimentos e o papel primordial assumido pelos direitos humanos, fazendo-os incidir sobre a teoria dos contratos 316 como forma de compreensão e enfretamento da complexidade em que estão imersas as relações negociais. De tudo, conclui-se pela necessidade de adoção de mega-princípios que possam servir com elos de ligação e manutenção da coerência da temática do contrato no ambiente pós-moderno. Para tanto foram apontados os postulados da função social e da boa-fé como princípios-vetores capazes de desempenhar satisfatoriamente esta tarefa. A escolha orientou-se por três fatores, quais sejam: a importância destes conceitos para a temática dos contratos, a sua capacidade agregadora em relação a outros princípios e mesmo entre si, e a metodologia legislativa eleita pela Codificação Civil atual, que os coloca como verdadeiros abre-alas da sistemática normativa sobre os contratos. Como conseqüência natural da escolha realizada constatou-se a integração simbiótica entre os princípios da função social e da boa-fé em relação a outros postulados relevantes na teoria dos contratos, como a regra da intangibilidade do vínculo, do equilíbrio contratual, a relatividade dos efeitos do contrato, a proteção ao consumidor de crédito, a proteção da parte mais vulnerável, o solidarismo e a tutela da confiança nos contratos. Todos estes indicadores da teoria contratual experimentam, de forma ou menos direta os reflexos da modificação do paradigma social para a fase de apego ao modelo cultural. Esta em gestação, portanto, mais um capítulo na longa e turva evolução histórica da teoria dos contratos. Um estágio que talvez represente a tão esperada fase de maturidade do sistema contratual, regada pelos valores constitucionais e pelo apego ao retorno da humanização do pensamento jurídico, como resposta a avassaladora força da globalização econômica, com a sua tendência natural à massificação fria e excludente. Assim, posta este novo paradigma social, resta a esperança de que ele venha a efetivamente representar o início de uma fase onde a genealidade humana seja utilizada para um verdeiro crescimento social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. “A boa-fé na relação de consumo.” In: RDC, n. 14, abrjun. 1995. ______. “Interpretação.” In: RA, n. 45. ______. “Interpretação”, p. 07. In: RA, n. 45, ano XVI, Porto Alegre, 1989,. ______. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor- resolução. São Paulo: Aide, 2003. AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez. 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