Estética da vida no limite : autenticidade, ponto de vista interno, testemunho e valor literário em Quarto de despejo (Diário de uma favelada)

Abstract

Esta trabalho busca entender a estética particular presente em Quarto de despejo (diário de uma favelada), de Carolina Maria de Jesus. E, por esta estética, atribuir estatuto literário à obra. Do confronto com a crítica especializada, identifica a prevalência da análise de viés sociológico, e a relutância ou desinteresse em reconhecer valor literário. O próximo passo vai em direção a um conceito que tem margeado o debate sobre a obra: testemunho. Parte do referencial teórico organizado por Márcio Seligmann-Silva e de sua noção expandida de testemunho. Do confronto com os dois principais campos de estudo (da Shoah e latino-americano), estabelece Quarto de despejo como testemunho da exclusão social no sentido de testis (o terceiro na cena) e de superstes (sobrevivente). Com as especificidades de ser um testemunho mediado (participação de um interlocutor letrado), escrito por um sujeito testemunhal semiletrado, no suporte diário, para virar livro (esfera pública). Da experiência brasileira da violência, toma as ideias de Renato Janine Ribeiro de um Brasil marcado por dois traumas (colonização e escravidão), e suas reflexões sobre dor e injustiça. A partir de um debate envolvendo críticos literários (Antonio Candido, Roberto Schwarz), sociólogos (Florestan Fernandes, Clóvis Moura) e historiadores sobre a escravidão (João José Dias, Eduardo Silva, Ramatis Jacino), caracteriza a experiência da vida no limite, cujos episódios cotidianos de violência, somados, podem gerar trauma. Reivindica Quarto de despejo como uma narrativa da experiência subjetiva da fome, na qual a construção da cena traumática ocorre com intenção de arte. Levando em conta Quarto de despejo como construção literária que nasce de procedimentos pensados, escolhas estilísticas e habilidades performáticas dos dois sujeitos envolvidos (sujeito testemunhal e mediador letrado), destaca a linguagem peculiar e original (o erro funciona como elemento estético) e a existência de um lirismo resultante do choque entre as dicções lírica (de inspiração poética romântica, com elevação da linguagem) e realista (o "real" violento da vida na favela). Na estética da vida no limite, o feio vem da favela como área degradada, e o belo reside no ato de resistência, personificada pela figura da protagonista em sua trajetória solitária contra o meio hostil. No final, propõe um esquema de interpretação a partir de noções que evidenciam elementos de força em Quarto de despejo, mas que também pode ser útil na análise de outras obras da periferia.

This work seeks to understand the particular aesthetics present in Carolina Maria de Jesus' Quarto de despejo (diário de uma favelada). And, for this aesthetics, to attribute literary status to the work. From the confrontation with the specialized critic, it identifies the prevalence of sociological bias analysis, and the reluctance or disinterest in recognizing literary value. The next step is towards a concept that has bordered the debate on the work: testimony. Part of the theoretical framework organized by Márcio Seligmann-Silva and his expanded notion of testimony. From the confrontation with the two main fields of study (from Shoah and Latin American), he establishes Quarto de despejo as a testimony to social exclusion in the sense of testis (the third in the scene) and superstes (survivor). With the specificities of being a mediated testimony (participation of a literate interlocutor), written by a semi-literate testimonial subject, in the daily support, to turn book (public sphere). From the Brazilian experience of violence, he takes the ideas of Renato Janine Ribeiro from a Brazil marked by two traumas (colonization and slavery), and his reflections on pain and injustice. From a debate involving literary critics (Antonio Candido, Roberto Schwarz), sociologists (Florestan Fernandes, Clóvis Moura) and historians about slavery (João José Dias, Eduardo Silva, Ramatis Jacino) characterize the experience of life on the edge, whose daily episodes of violence, added together, can generate trauma. It calls for Quarto de despejo as a narrative of the subjective experience of hunger, in which the construction of the traumatic scene occurs with the intention of art. Taking into account Quarto de despejo as literary construction that is born of thoughtful procedures, stylistic choices and performance skills of the two involved subjects (testimonial subject and literate mediator), highlights the peculiar and original language (the error works as an aesthetic element) and the existence of a lyricism resulting from the clash between lyrical poetry (of romantic poetic inspiration, with elevation of the language) and realistic (the “real” violent of life in the slum). In the aesthetic of life on the edge, the ugly comes from the slum as a degraded area, and the beautiful lies in the act of resistance, personified by the figure of the protagonist in her solitary trajectory against the hostile environment. In the end, it proposes a scheme of interpretation based on notions which show elements of strength in Quarto de despejo, but which can also be useful in the analysis of other works of the periphery.